quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A favor ou contra?

Contardo Calligaris


No que prometia ser um belo dia de primavera de meados dos anos 1970 em Paris, um jovem psicanalista trabalhava no plantão de uma enfermaria psiquiátrica.

Considerando a exiguidade do salário que ele recebia, seria mais correto dizer que ele estagiava. De qualquer forma, ele não estava ali pelo dinheiro, mas para enriquecer sua experiência dos caminhos pelos quais a gente enlouquece e sofre.

O jovem psicanalista estava sempre disposto a topar uma parada que pudesse lhe ensinar algo novo. Naquele dia, embora esta não fosse sua atribuição, ele, com um psiquiatra e dois enfermeiros, embarcou na ambulância que respondia a um chamado da polícia do bairro 13. O comissariado recebera o telefonema angustiadíssimo de um homem que acabava de encontrar sua mulher e sua filha de um jeito que não conseguia descrever, mas que, ele gritava, não era normal.

A ambulância chegou antes dos policiais. O marido, desculpando-se por não ter a coragem de voltar lá dentro, apontou na direção da porta do banheiro do apartamento.

O jovem psicanalista foi o primeiro a entrar e descobriu uma jovem mulher, deitada nua na banheira, cantando feliz enquanto brincava com seu bebê na água. A jovem mulher não pareceu perceber a chegada do estranho e o jovem psicanalista se deu conta de que o bebê era curiosamente inerte, rígido e branco: ele estava morto há tempo.

O jovem psicanalista nunca esqueceria o corpinho que ele apertou contra si, como se houvesse uma chance de esquentá-lo de volta para a vida.

Engravidar e dar à luz (apesar de ser o cotidiano da espécie) são experiências tão extremas que elas podem enlouquecer algumas mulheres, em geral temporariamente, logo após o parto.

A internação da mulher de nossa história durou pouco: ela foi declarada não imputável por razão de insanidade e recuperou a dita sanidade rapidamente.

Durante sua internação, soube-se que, dois anos antes, um irmão do bebê morto na banheira também tinha falecido, aos três meses, de morte súbita e inexplicada. A equipe do hospital se perguntou: não seria legítimo esterilizar compulsoriamente as mulheres que matassem seus bebês numa psicose desencadeada pelo parto? De fato, existe um risco estatístico de recidiva caso elas deem à luz outra vez.

A discussão não chegou a conclusão alguma; ficou suspensa entre o respeito pela esperança de uma mãe que quer tentar uma nova gravidez, a dificuldade de garantir o direito à vida dos nascituros e nossa incapacidade de prever, prevenir e intervir a tempo. Pouco importa, pois nisto eu acredito mesmo: todas as discussões que valem a pena são inconclusas.

Bastante tempo depois, o jovem psicanalista, que não trabalhava mais naquele hospital, recebeu um telefonema do psiquiatra que estivera com ele na ambulância. A jovem mulher da banheira pedira uma consulta na mesma enfermaria onde ela fora internada dois anos antes: ela estava grávida e queria saber se corria o risco de enlouquecer de novo e assassinar seu bebê no berço. Que ela perguntasse era um bom sinal, mas insuficiente para responder com segurança. O que fazer? Encorajá-la a abortar ou a apostar que nada aconteceria? Quem sabe sugerir que levasse a gravidez a termo e se engajasse a entregar o bebê, na hora do parto, para a assistência pública?

Não sei a resposta certa e é por isso que me lembrei dessa história.

Uma eleição é o pior momento para debater qualquer questão que seja. Numa eleição, as pessoas precisam ser a favor ou contra.

Ora, as pretensas discussões entre "a favor" e "contra" me inspiram o mesmo mal-estar que sinto quando assisto a uma cena de violência. Faz sentido porque, nessas discussões, ninguém argumenta, cada um apenas reafirma abstratamente sua identificação: em "eu sou a favor" e "eu sou contra", o que mais importa é reforçar o "eu". Com isso, inevitavelmente essas discussões menosprezam, atropelam e violentam a vida concreta de todos.

Depois desse preâmbulo, talvez eu consiga, numa coluna futura, escrever sobre a questão do aborto. Enquanto isso, eis uma leitura que recomendo a todos os que preferem pensar a gritar: "O Drama do Aborto: Em Busca de um Consenso", de dois médicos, A. Faúndes e J. Barzelatto (Komedi). Sobre o tema, talvez esse seja o escrito mais honesto, menos tendencioso e mais generoso que já li.


* Publicado na Folha de S.Paulo e no blog www.contardocalligaris.blogspot.com em 14/10/2010.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O que clichês não explicam

Jairo Nicolau


Todas as eleições criam interpretações que viram clichês para a posteridade. A eleição de 1989 foi a da renovação, da crise da elite política tradicional; a de 1994 foi a eleição do Plano Real; a de 1998 foi a da aposta na continuidade e dos benefícios da estabilidade da moeda; a de 2002 foi a da vitória da renovação e da aposta na agenda social de Lula e do PT; em 2006, houve o reconhecimento dos grandes ganhos sociais do governo Lula.

E as eleições de 2010? Até o fim de setembro, a interpretação-clichê já havia sido produzida e virou um mantra entre os analistas: o governo Lula, com 80% de aprovação, transferiu sua popularidade para a candidata situacionista ao longo da campanha; as eleições de 2010 seriam a da reeleição de Lula por outras vias.

Mas bastou as urnas serem abertas e a vitória de Dilma no primeiro turno não ser confirmada, para uma busca frenética para novas explicações sobre os determinantes do voto no Brasil. A economia deu lugar à sociologia. O eleitor que votava com o bolso passou a ser, repentinamente, influenciado por temas como aborto, liberdades públicas, homossexualismo, crença (ou descrença) em Deus e denúncias sobre corrupção.

Nunca saberemos, ao certo, qual foi o peso da mobilização anti-Dilma nas duas semanas que antecederam as eleições. Infelizmente, não há como mensurar os efeitos de cada fator sobre a queda de Dilma. Será que admoestações de pastores e bispos realmente influenciam os eleitores? As denúncias do caso Erenice tiraram votos de Dilma na classe média? Ver vídeos do YouTube convence eleitores de alguma coisa?

Um caminho mais proveitoso é avaliar cuidadosamente o desempenho dos candidatos pelo território. Para isso, temos grande volumes de dados: por seção eleitoral, municípios e Estados. Uma mera observação da votação dos candidatos por Estado já revela dados interessantes.

Nas eleições presidenciais, os candidatos têm apresentado diferentes padrões de voto nos Estados. Mas, no primeiro turno de 2006, esse padrão assumiu contornos espaciais diferentes das eleições anteriores. Lula venceu na Região Norte e Nordeste, mas perdeu no Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Lula venceu em 16 Estados; Alckmin, em 10 Estados e no Distrito Federal.

Segundo pesquisas de opinião publicadas na primeira semana de setembro, Dilma liderava em todos os Estados. Mas depois que os votos foram apurados, os resultados deste ano acabaram por mostrar muita similaridades com os de 2006. Serra venceu em oito Estados, Dilma foi vitoriosa em 18 Estados e Marina venceu no Distrito Federal. Dilma venceu nos mesmos16 Estados em que Lula havia vencido em 2006 e, mais, no Rio Grande do Sul e Goiás. Ou seja, apenas três unidades da Federação não repetiram o mesmo partido vitorioso em 2006 e 2010.

As pesquisas de opinião revelam que os votos de Dilma e Serra têm diferentes bases sociais. Quando analisadas por escolaridade e renda o padrão de Dilma é uma pirâmide; seus votos são proporcionalmente mais altos nos estratos de mais baixa renda e escolaridade, e caem na medida em que sobem a renda e a escolaridade. O padrão de Serra é diametralmente inverso: maior nos estratos superiores e menor nos estratos inferiores.

Existe uma justaposição entre renda e escolaridade das pessoas e o território. Sabemos, por exemplo, que as faixas de mais baixa escolaridade e renda estão altamente concentradas na Região Nordeste. Dois mapas excelentes publicados pelo Estado, com a votação nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, mostraram que Dilma venceu nas regiões mais pobres das duas cidades, enquanto Serra foi vitorioso nas áreas de renda média e alta.

Ainda não temos dados sobre as divisões no interior de cada Estado e entre os bairros das cidades, mas a simples divisão de renda e escolaridade está longe de explicar o que aconteceu em 2006 e 2010.

Termino com mais uma pergunta: por que morar em certos Estados e regiões do País está fazendo tanta diferença na hora de votar?

* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 13/10/2010.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

República Fundamentalista Cristã

Vladimir Safatle


Fundada em 31 de outubro de 2010 após a expulsão dos infiéis do poder, a República Fundamentalista Cristã do Brasil apareceu em substituição à República Federativa do Brasil. Dela, ela herdou quase tudo, acrescentando uma importante novidade institucional: um poder moderador, pairando acima dos outros Três Poderes e composto pela ala conservadora do catolicismo em aliança com certos setores protestantes. Os mesmos setores que, nos EUA, deram suporte canino a George W. Bush. A função deste poder moderador consiste em vigiar o debate político e social, impedindo que pautas de modernização social já efetivadas em todos os países desenvolvidos cheguem ao Brasil.

Na verdade, a fundação desta nova República começou após uma eleição impulsionada pelo problema do aborto. Procurando uma tábua de salvação para uma candidatura que nunca decolara e que passou ao segundo turno exclusivamente por obra e graça de Marina Silva, José Serra resolveu inovar na política brasileira ao instrumentalizar politicamente os dogmas mais arcaicos deste que é o maior país católico do mundo.

Assim, sua mulher foi despachada pelos quatro cantos para alertar a população contra o fato de Dilma Rousseff apoiar "matar criancinhas" (conforme noticiou um jornal que declarou apoio explícito a seu marido). As portas de seu comitê de campanha foram abertas para os voluntários da TFP, com seus folhetos contra a "ameaça vermelha" capaz de perverter a família brasileira através da legalização da prostituição e do casamento gay (conforme noticiou o blog do jornalista Fernando Rodrigues). A internet foi invadida por mensagens "espontâneas" contra a infiel Dilma e o PNDH-3.

José Serra já havia dado a senha quando afirmou, em um debate, que legalizar o aborto seria uma "carnificina". Que 15% das mulheres brasileiras entre 18 e 39 anos tenham abortado em condições indescritíveis, isto não era "carnificina". Carnificina, para Serra, seria o Brasil importar esta prática tão presente na vida dos "bárbaros selvagens" que são os ingleses, franceses, alemães, norte-americanos, espanhóis, italianos, ou seja, todos para quem o aborto é, pasmem, uma questão de saúde pública e planejamento familiar.

Confrontada com esta guinada, a "classe média esclarecida" não se indignou. As clínicas privadas que fazem abortos ilegais continuariam funcionando. O direito sagrado de salvar a filha de classe média de uma gravidez indesejada continuaria intacto. Para tal classe, o discurso sobre "valores cristãos" era apenas uma radicalização eleitoral.

Quando o poder moderador, confiante em sua nova força, começou a exigir que o criacionismo fosse ensinado nas escolas, que o Estado subvencionasse atividades de proselitismo religioso travestidas de filantropia, já era tarde. Então, alguns lembraram, com tristeza, dos pais fundadores da República Federativa do Brasil, decididos a criar uma república laica onde os dogmas religiosos não seriam balizas da vida social. Uma república onde seria possível dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Uma República que morreu no dia 31 de outubro de 2010.


* VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP. Artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 11/10/2010.

Valorização da vida?

Gilberto Dimenstein


Desde que comecei a investigar, no fim da década de 1980, as mais diversas formas de agressão contra crianças e adolescentes no Brasil, constatei que a origem da violência estava na família. Ou na falta dela.

Nas entrevistas, surgiam, invariavelmente, histórias de maus-tratos em casa. Percebi que, embora nem todas as vítimas se tornassem pessoas violentas, os violentos tinham sofrido algum trauma doméstico, esta uma das causas do problema.

Tempos depois, tomei conhecimento de imagens captadas por ressonância magnética que mostravam que os maus-tratos na infância geram uma alteração cerebral e podem explicar atitudes antissociais.

Pesquisas realizadas nos Estados Unidos revelam, com nitidez, como crianças que recebem bom atendimento desde o berço e que são estimuladas pelos pais e, depois, na pré-escola são mais propícias a um bom desempenho escolar, têm maior chance de empregabilidade e menor risco de envolvimento em problemas com a polícia e a Justiça.

É por esse prisma que encaro o debate sobre aborto no Brasil, tratado agora com um tom histericamente eleitoral.

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Causaram polêmica em escala mundial estatísticas divulgadas por economistas, segundo as quais os crimes violentos nos Estados Unidos caíram mais nas cidades em que o aborto é permitido. Por mais terrível que seja esse dado, não me espantei: deixaram de nascer crianças rejeitadas e desrespeitadas pelos pais. Misturem-se aí a baixa escolaridade, a dificuldade de conseguir um emprego, comunidades infestadas de criminosos tidos como referência a ser admirada, a falta de lazer e o acesso fácil a drogas.

Nada disso significa a defesa do aborto para evitar o crime, mas apenas a constatação de que o poder público deveria ajudar as mulheres a realizar planejamento familiar. O acesso a métodos contraceptivos é também uma questão de educação.

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O planejamento familiar no país cresceu. Poderia ter crescido mais rapidamente se não fosse a força das religiões -tão grande que, como se vê nestas eleições, José Serra e Dilma Rousseff se veem obrigados, contrariando suas crenças íntimas, a pôr a fé acima da saúde pública.

Somente em 1994 se regulamentou o aborto nos casos de estupro e risco de morte das mães, uma lei aprovada em 1940 (sim, 1940!).

Grupos religiosos, conectados com os governos, atacaram a distribuição de pílula anticoncepcional, de camisinhas e de pílulas do dia seguinte. Condenaram até mesmo programas de educação sexual nas escolas, apontados como imorais. Na semana passada, o Vaticano atacou o Prêmio Nobel concedido ao criador da fertilização in vitro.

Isso retardou ou impediu o desenvolvimento desses programas.

É uma situação terrível. A mulher não consegue se proteger por falta de apoio do poder público e/ ou desinformação. Engravida contra a própria vontade. É condenada a fazer um aborto nas piores situações possíveis, correndo riscos, por falta de um sistema digno de saúde. Depois, ainda é apontada como criminosa e pecadora. Uma das principais causas da evasão escolar é a gravidez na adolescência.

Não quero ofender ninguém, mas isso me parece fazer maldades em nome de Deus.

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Experiências isoladas vêm mostrando, no Brasil, como aliar informação a acesso a métodos contraceptivos tem funcionado nas comunidades mais pobres, ajudando as mulheres a planejar o tamanho de sua família, a manter-se nos estudos e a obter melhores empregos. Depois, tendem a ser melhores mães. Até porque são mais educadas.

Essas ações são resultado de gente que teve coragem de enfrentar os preconceitos e a pancadaria. Assim, hoje se pode pegar de graça pílula do dia seguinte ou camisinha numa estação do metrô ou num posto de saúde em São Paulo.

Lembro, por sinal, que estatísticas em bairros da cidade de São Paulo indicam uma linha paralela entre maior número de jovens nas escolas e queda da violência.

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Penso que isso é valorizar a vida, considerando-a uma energia divina de criação.

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PS- Para fazer justiça: nas minhas andanças pelos lugares mais violentos, investigando a situação das crianças e dos adolescentes, as pessoas mais despojadas que encontrei foram alguns padres, freiras e pastores. Foram lições inesquecíveis. Apesar de discordar de suas posições, prefiro a honestidade deles à encenação cristã de José Serra e Dilma Rousseff.

gdimen@uol.com.br

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 10/10/2010. 

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Quanta ignorância, meu Deus

Gilberto Dimenstein


Uma indicação do perigo de colocar a fé acima da ciência é que, nessa eleição, aproveitando a polêmica do aborto, começaram a atacar a pílula do dia seguinte, acusando-a de abortiva. Lembro que esse medicamento tem ajudado comprovadamente a evitar abortos.

As pesquisas disponíveis indicam, em síntese, que a pílula retarda a ovulação e/ou dificulta que o espermatozóide chegue até o óvulo. Isso é abortivo? Se for, pílula anticoncepcional também é abortiva.

Não, claro, mas do jeito histérico que está esse debate - a tal ponto que Dilma e Serra fazem pose de cristãos, obedientes aos mandamentos divinos -, corremos o risco de impedir a disseminação da distribuição da pílula do dia seguinte nos postos de saúde. Diga-se que essa política é acertadamente feita pelo PT e PSDB.

Volto a dizer que se tivéssemos nos rendido a preceitos religiosos não haveria distribuição gratuita nem de camisinhas nem de pílulas anticoncepcionais. O custo seriam mais abortos.

Se os políticos não tiverem coragem de deixar essas questões nas mãos da saúde pública, vamos pagar um preço caro.


FHC entrou pela porta da frente, Dirceu pelos fundos

Elio Gaspari


No dia em que Marina Silva, uma pobre menina do Acre, nascida no seringal Bagaço, teve 19,6 milhões de votos, José Dirceu, o engenheiro da máquina petista na eleição vitoriosa de 2002, chegou cedinho para votar num colégio de Moema, em São Paulo. Entrou por uma porta lateral e saiu protegido por seguranças.

Há quatro anos, nesse mesmo local, ouviu gritos de ladrão. Na mesma manhã de domingo, Fernando Henrique Cardoso percorreu a pé uns poucos quarteirões e votou no Colégio Sion, o prédio onde, em 1980, um grupo de sindicalistas fundou o Par tido dos Trabalhadores.

Algo está acontecendo debaixo dos olhos do comissariado petista.

Mais: os resultados trouxeram sinais de que algo está acontecendo debaixo dos olhos do eleitorado. Com 255 mil votos, o deputado federal mais votado do PT de São Paulo foi João Paulo Cunha, réu do processo do mensalão.

Numa bancada que já teve Florestan Fernandes e Hélio Bicudo, o líder do PT na Câmara, Candido Vaccarezza, chegará à Câmara numa coligação beneficiada pelos 1,4 milhões de votos dados ao palhaço Tiririca, pior do que está, não fica.

Em Boa Vista, um colaborador de Romero Jucá (PMDB), líder do governo no Senado, ao ver a Polícia Federal, jogou um pacote com R$ 100 pela janela do carro.

Quando Marina Silva se juntou aos movimentos da igreja e ao PT nas causas do andar de baixo do Acre, Erenice Guerra, a filha de um pedreiro, militava nas bases cristãs e no jovem PT. Uma chegou ao Senado, a outra à Chefia da Casa Civil.

Uma saiu do PT e festejou 19,6 milhões de votos, a outra tem os filhos depondo na polícia por conta de maracutaias urdidas no Planalto e na Anac.

O comissariado menosprezou Marina Silva. Esse tipo de erro é neutro. Resulta da impossibilidade de se prever o desempenho de um adversário. O comissariado menosprezou também a descoberta do Ereniçário, um factoide, segundo Dilma Rousseff.

Aí não se tratou de um erro neutro, mas de um produto da soberba petista.

Pode-se supor que Marina Silva recebeu 10 milhões de votos sem culpa, movidos a emoção. Foram eleitores que usufruíram o direito de ficar longe de argumentos extremados como os do mensalão petista e da privataria tucana. Na infância, o PT foi alimentado por esse tipo de voto, daqueles que não queriam trato com os náufragos da ditadura, nem com políticos que formavam aquilo que supunham ter sido uma oposição consentida. (Tremenda injustiça com Tancredo Neves, Franco Montoro e Ulysses Guimarães.) Acreditar que um apoio formal de Marina afrouxe o cadeado aritmético dos 47,6 milhões de Dilma Rousseff é uma aposta arriscada.

Os votos sem culpa não formam um curral. Eles são o contrário disso.

Votos evangélicos saídos da fé podem ir para qualquer lado. Votos evangélicos produzidos por pastores e bispos eletrônicos possivelmente serão devolvidos a Dilma.

O que levará eleitores sem culpa a escolher entre Dilma e Serra será um processo complexo e imprevisível, ligado ao simbolismo que os candidatos constroem em torno de suas figuras. Foi isso que Marina conseguiu.

Por falar em simbolismos, na noite da vitória de 2002 José Dirceu teve um piti porque não foi levado ao pódio de Lula no palanque da festa, na Avenida Paulista. Passados oito anos, foi votar pelos fundos, enquanto FHC entrou pela porta da frente.

* Artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 06/10/2010.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Baixarias contra Dilma e Serra

Gilberto Dimenstein


O secretário de Comunicação do PT, André Vargas, acusa Serra de ser anticristão porque, quando era ministro da Saúde, teria introduzido a pílula do dia seguinte na rede pública. Errado. Mesmo que fosse verdade, não vejo nenhum problema, muito pelo contrário.

Vargas faz esse ataque para tentar minimizar os estragos causados pelo debate sobre aborto, que tirou votos de Dilma Rousseff. Como já escrevi em coluna passada, as declarações de Dilma, no passado, foram coerentes com alguém preocupado com a saúde da mulher. Os ataques contra ela foram uma baixaria, tentando faturar no que considero uma visão atrasada contra os direitos da mulher e contra a saúde pública.

Preferem que as mulheres continuem fazendo aborto nas piores condições possíveis, sem nenhum apoio do poder público, correndo sérios riscos? Coisa, claro, que não afeta os mais ricos.

Se levássemos às últimas conseqüências os ataques de André Vargas, adolescentes que fizeram sexo desprotegido, ficariam grávidas, sem a pílula do dia seguinte. Fariam um aborto ou teriam, na marra, um filho que não querem.

Se forem radicalizar essa discussão, segundo os preceitos religiosos, nem mesmo camisinhas seriam distribuídas, afinal a posição da igreja é fazer sexo só depois do casamento. Aliás, nem haveria pílula anticoncepcional.

Condicionar políticas públicas a esse tipo de visão é não um atraso, mas falta de responsabilidade.


Lobby cristão e casamento gay

Contardo Calligaris


Em maio passado, durante uma visita ao santuário de Fátima, o papa Bento 16 declarou que o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo estão entre os mais "insidiosos e perigosos desafios ao bem comum".

Atualmente, quase todas as igrejas cristãs (curiosamente alinhadas com as posições do papa) negociam seu apoio aos candidatos à presidência cobrando posições contra a descriminalização do aborto e contra o casamento gay.

Em 2000, segundo o censo, havia, no Brasil, 125 milhões de católicos, 26 milhões de evangélicos e 12 milhões de sem religião. É lógico que os principais candidatos inventem jeitos de ficar, quanto mais possível, em cima do muro -tentando satisfazer o lobby cristão, mas sem alienar totalmente as simpatias de laicos, agnósticos e livres pensadores (minoritários, mas bastante presentes entre os formadores de opinião).

Adoraria que as campanhas eleitorais fossem mais corajosas, menos preocupadas em não contrariar quem pensa diferente do candidato. Adoraria também que soubéssemos votar sem exigir que nosso candidato pense exatamente como nós. Mas não é esse meu tema de hoje.

Voltemos à declaração do papa, que junta aborto e casamento gay numa mesma condenação e, claro, tenta pressionar os poderes públicos, mundo afora. Para ele, o que é pecado para a igreja deve ser também crime para o Estado.

No fundo, com poucas exceções, as igrejas almejam um Estado confessional, ou seja, querem que o Estado seja regido por leis conformes às normas da religião que elas professam. De novo, as igrejas gostariam de uma sociedade em que seja crime tudo o que, para elas, é pecado: o sonho escondido de qualquer Roma é Teerã ou a Cabul do Talibã.

Há práticas sexuais que você julga escandalosas? Está difícil reprimir sua própria conduta? Nenhum problema, a polícia dos costumes vigiará para que ninguém se dedique ao sexo oral, ao sexo anal ou a transar com camisinha.

Para se defender contra esse pesadelo (que, ele sim, é um "insidioso e perigoso desafio ao bem comum"), em princípio, o Estado laico evita conceber e promulgar leis só porque elas satisfariam os preceitos de uma confissão qualquer. As leis do Estado laico tentam valer por sua racionalidade própria, sem a ajuda de deus algum e de igreja alguma.

Por exemplo, é proibido roubar e matar, mas essa proibição não é justificada pelo fato de que essas condutas são estigmatizadas nas tábuas dos dez mandamentos bíblicos. Para proibir furtos e assassinatos, não é preciso recorrer a Deus, basta notar que esses atos limitam brutalmente a liberdade do outro (o assaltado ou o assassinado).

Agora, imaginemos que você se oponha ao casamento gay invocando a santidade do matrimônio. Se você acha que o casamento é um sacramento divino que só pode ser selado entre um homem e uma mulher, você tem sorte, pois vive numa democracia laica e sua liberdade é total: você poderá não se casar nunca com uma pessoa do mesmo sexo. Ou seja, você poderá manter quanto quiser a santidade e a sacramentalidade de SEU casamento.

Acha pouca coisa? Pense bem: você poderia ser cidadão de uma teocracia gay, na qual o Estado lhe imporia de casar com alguém do mesmo sexo.

Argumento bizarro? Nem tanto: quem ambiciona impor sua moral privada como legislação pública deveria sempre pensar seriamente na hipótese de a legislação pública ser moldada por uma outra moral privada, diferente da dele.

Parêntese: Se você acha que essa história de casamento gay é sem relevância, visto que a união estável já é permitida etc., leia "Histórias de Amor num País sem Lei. A Homoafetividade Vista pelos Tribunais - Casos Reais", de Sylvia Amaral (editora Scortecci).

PS. Sobre a dobradinha sugerida pela declaração do papa: talvez, para o pontífice, aborto e casamento gay sejam unidos na mesma condenação por serem ambos consequências da fraqueza da carne (que, obstinadamente, quer gozar sem se reproduzir).

Mas, numa perspectiva laica, a questão do aborto e de sua descriminalização não tem como ser resolvida pelas mesmas considerações que acabo de fazer para o casamento gay. Ou seja, não há como dizer: se você for contra, não faça, mas deixe abortar quem for a favor. Vou voltar ao assunto, apresentando alguns dilemas que talvez nos ajudem a pensar.
 
 
* Artigo publicado na Folha de S.Paulo, de 30/09/10, e no blog do autor:
http://contardocalligaris.blogspot.com/2010/09/lobby-cristao-e-casamento-gay.html

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Marina decidirá o plebiscito

Kennedy Alencar


No roteiro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a eleição presidencial de 2010 seria uma disputa plebiscitária entre o PT e o PSDB. Mais do que isso, entre seus oitos anos de governo e outros oito anos do tucano Fernando Henrique Cardoso.

No meio do caminho, surgiu uma pedra. Para surpresa de Lula e de boa parte do mundo político de Brasília, Marina Silva deixou o PT em 13 de maio de 2008. Um anos depois, aceitou uma aventura de risco: disputar a Presidência da República pelo inexpressivo PV.

O resultado do primeiro turno mostra que Marina quebrou o plebiscito. Os méritos não são do PSDB de José Serra, mas da senadora que, de certa forma, vingou-se da forma como foi isolada no governo Lula.

Registro: ex-colegas de ministério de Marina se queixam de que ela não seria uma boa gestora. De acordo com essa versão, ela combinava ações na mesa do presidente, mas um suposto domínio de ONGs na máquina do Meio Ambiente desautorizava o acertado.

Marina sempre rebateu essa versão. Diz que todos os projetos que Lula quis realizar obtiveram as autorizações. Ressalta que nunca fez chegar à imprensa, enquanto ministra, versões desfavoráveis a Dilma Rousseff, ex-chefe da Casa Civil e hoje candidata à Presidência.

PT e PSDB não devem se iludir. Marina terá enorme importância no segundo turno. Petistas e tucanos já começam a cortejar seu apoio. Não adianta falar com o PV de José Luiz de França Penna. A votação que foi dada a Marina é dela --a "Lula de saias" que foi a grande surpresa desta eleição. Marina vai decidir o plebiscito.

Medo, mesmo, eu tenho do Neymar

Barbara Gancia


Deve estar faltando trabalho para os advogados tapuias. Minha impressão é que parece ter pouca gente aplicando golpes na praça, prevaricando, matando e cometendo outros ilícitos.

Está certo que o pessoal anda com os ânimos acirrados por conta da eleição, mas só o ócio mais desavergonhado, do tipo que leva à danação eterna, explicaria as manifestações vistas nos últimos dias.

A começar pelo faniquito do presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D" Urso, que resolveu selecionar o que você e eu devemos apreciar na Bienal de Arte que abre amanhã. Em nome dos bons costumes, D'Urso tentou excluir da mostra as obras do artista Gil Vicente.

Alô, senhor Flávio D'Urso! Por acaso, alguém pediu sua opinião? Gostaria de saber que escola emérita de arte o senhor cursou que lhe confere o direito de decidir por mim o que devo ou não apreciar.

Seria gravíssimo se um crítico de arte tentasse exercer o papel de censor. Mas é ainda mais grave observar que o senhor D'Urso, que está no terceiro mandato como presidente da OAB (seccional São Paulo), resolveu inverter os papéis e sair atacando valores que deveria estar defendendo com a vida.

Se eu fosse a bispa Sônia, trataria de ficar com oito pés atrás. O senhor D'Urso não presta serviços para ela, na qualidade de seu defensor? Pois então. Neste episódio, ele demonstrou que precisa voltar com urgência aos livros.

Por natureza, advogados têm intimidade com o conceito de liberdade de expressão. Quando não têm, algo me diz que eles correm o risco de ser perseguidos pelas ruas e xingados de rábulas, não é mesmo?

E eu sei que Hélio Bicudo já tem tempo livre nas mãos para participar de piqueniques, e que o Miguel Reali Jr. também adora uma manifestação por uma causa animada.

Mas organizar um "Manifesto em Defesa da Democracia" só porque Lula teve um chilique com a queda de sua candidata nas pesquisas ou porque Zé Dirceu falou em tom de comício aos correligionários, a mim parece coisa de medricas.

Pessoal treme na base com Zeca Diabo, mas quem é ele mesmo? Não será aquele camarada que perdeu o cargo e ficou inelegível por oito anos? Réu em processo em que é acusado de comandar o esquema de propina do mensalão?

Defender-se dessa denúncia, convenhamos, deve tomar alguma energia da parte do interessado. Não parece provável que dê para se defender e, ao mesmo tempo, comandar a revolução.

Outro de quem agora está na moda ter medinho é do Franklin Martins. Mas, eu pergunto: quantas vezes até agora o ministro da Comunicação Social teve sucesso ao tentar preencher o vácuo deixado pela extinta Lei de Imprensa?

Pois então, deixemos o homem fazer mais esta viagem para Londres e Bruxelas a fim de conversar com dirigentes de instituições reguladoras de radiodifusão e comunicação europeus. Que mal tem?

Uns acham que a lei comum resolve e outros que se deve estabelecer um modelo regulatório para a mídia e os jornais. Que tal debater a questão, em vez de ficar todo mundo histérico achando que isto aqui vai virar a Venezuela?


* Artigo publicado na Folha de S.Paulo, de 24/09/2010.