quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Tecido social

Antonio Prata
 
 
Reinaldo Boucinhas, 67, é engenheiro e está indignado com "essa corja do PT que dominou o país". Ano passado, Reinaldo teve a carta cassada por excesso de pontos. Foi ao despachante e por R$ 1.100 em três vezes sem juros, comprou uma habilitação limpinha, sem fazer o curso de reciclagem ou passar por suspensão. "Cê queria o que? Que eu ficasse um ano sem dirigir?! Eu trabalho, queridão, sou pai de família!" No vidro traseiro de seu carro, sr. Boucinhas tem um adesivo: uma mão sem o mindinho, sob o símbolo de proibido.

Luciana Boucinhas, 33, é atriz, dramaturga e acabou de aprovar na Lei Rouanet um monólogo de sua autoria. "Istmo Holístico" arrecadará R$ 300 mil de isenção fiscal, dos quais Luciana embolsará 30, apresentando notas falsas de "despesas com transporte", arrumadas por seu namorado, empresário. "Nesse país, com arte de vanguarda, não dá pra viver de bilheteria, cara! Tô me financiando, cara! Tô financiando a arte, entendeu, cara?!"

Rafael Galhardi, 42, é empresário e tem uma fábrica de embalagens biodegradáveis. A fábrica está numa área estritamente residencial. "Pra você ver como é esse país! Você quer produzir e não te deixam! Quer dizer... Fui obrigado a pagar propina pro fiscal liberar a fábrica! É foda! Esse país é foda!"

Hélio Pereira, 55, fiscal da prefeitura e católico praticante. Confessa-se todo ano. Teme as chamas do inferno. "Mas você quer o quê? Que eu viva com o salário de funcionário público?! Eu sou só uma gota no oceano!" O padre da igreja que Hélio frequenta, felizmente, tem lhe acalmado. Com alguns pais-nossos, ave-marias e boas ações, ele jura, Hélio entrará no reino dos céus.

Padre Osvaldo, 48, vê seu rebanho diminuir a cada ano, levado pela Igreja Internacional da Assembleia Divina, duas ruas abaixo. "Gente ignorante, gente corrupta, que só quer saber do dízimo!" Semana passada, padre Osvaldo recebeu uma boa notícia. Um de seus paroquianos, fiscal da prefeitura, conseguirá cassar o alvará do templo, expulsando os infiéis para outro bairro.

Pastor Sandro, 31, é membro da Igreja Internacional da Assembleia Divina e está preocupado com esse lance do alvará. "A Igreja Católica deita e rola e ninguém faz nada, mas é o evangélico mexer um dedo que cai todo mundo em cima!" Por isso, pastor Sandro está agindo na surdina. Já falou com o Elias e o Sem Noção, seus amigos de infância, no Morro do Querosene, pra darem um susto no padre Osvaldo. "Só um susto. Vamos ver se ele recua."

Sem Noção, 31, foi morto pela PM no último sábado com um tiro na nuca, numa quebrada do Querosene. Deixou uma moto, dez pedras de crack, cinco filhos e três viúvas.

Major Augusto, 55, acaba de dar cinquentinha para que o Pedrão, do almoxarifado, libere pelo menos um.32 lá das apreensões, pra ele poder cravar um "resistência à prisão" na execução do noia. "Ó que paisinho?! Agora cê precisa de desculpa pra matar bandido!"

Antonio P., 35, é escritor e deu R$ 50 pro major Augusto, em 1999, quando foi parado numa blitz com sua namorada, Margarida, e estava com o IPVA vencido.

Margarida: tinha olhos azuis como bolas de gude e falava em viver na Itália. Que fim terá levado?
 

antonioprata.folha@uol.com.br
 @antonioprata
Publicado na Folha de S.Paulo, em 26.09.2012.

Anatomia da esperança

Eliana Cardoso





Fiz várias descobertas no embate físico e emocional com uma mastectomia. Alguns achados corriqueiros: o câncer de mama representa mais de 7% de todas as formas da doença maligna e mata cerca de 12 mil mulheres por ano no Brasil. Ainda assim, nunca tinha pensado que se tornaria meu aquele destino comum a tantas brancas, negras, cristãs, judias, agnósticas, heterossexuais, lésbicas, gordas, magras, bancárias, donas de casa, cozinheiras e intelectuais. Nunca. Até que... num dia bonito de julho, a radiologista me pediu que repetisse uma mamografia.

Outros achados foram mais novidadeiros. Embora conhecendo longa lista de escritoras e poetas vítimas do câncer de mama, surpreendi-me com o acúmulo de poemas intitulados Mastectomia. Os mais difíceis me acordaram para o prazer de usar o cérebro e festejei a sequência de 12 composições - The Mastectomy Poems - que fecham o livro de Alicia Ostriker The Crack in Everything. Como canta Leonard Cohen, existe uma rachadura em todas as coisas e é por ela que entra a luz. Dizem os versos de Alicia: "Apertei sua mão./ Você anuiu, breve, confiante,/ Um capitão de navio./ E lá me deitei, mapa da baía,/ Sem recifes nem bancos de areia.(...)/ A anestesia me despediu, como a desempregados.(...)/ Você esfaqueou o seio, o picou e dividiu/ Como a carne rubi da melancia./ Sério na sua linha de trabalho, se excitou um pouco./ Coletou o risco nos ductos./ Coletou os ductos./ Às colheradas, cavou a gordura, mamilo e tudo./ Eliminou probabilidades e pinçou/ As quase insignificantes células,/ Que ficariam - talvez não - / Adormecidas para sempre".

Partindo de experiências parecidas, cada poeta oferece perspectivas diferentes sobre a perda, o estrago e o medo. Na voz poderosa da poeta irlandesa Eavan Boland, o horror da mutilação transforma-se em raiva contra o cirurgião e sua equipe: "Arrancaram/ O que primeiro os saciou/ E que desde então odiaram:/ De veias azuladas,/ E abóboda branca,/ Casa/ De deslumbre e/ Umidade dos sonhos./ Achatada para a pilhagem,/ Para o malabarismo do saque,/ Sou paisagem bárbara./ Deles, o verdadeiro espólio".

Como entender tamanha revolta contra os médicos? Jerome Groopman - catedrático da escola de medicina de Harvard, autor de A Anatomia da Esperança e de Como os Médicos Pensam e coautor de Your Medical Mind (disponível no Kindle) - aponta falhas no comportamento da profissão, explicando que a educação clássica de um médico começa não com um introito aos vivos, mas com a exposição aos mortos.

Ele mesmo, quando estudante, após a palestra de abertura sobre a anatomia humana, se viu transferido para uma gelada sala subterrânea onde dezenas de cadáveres cobertos por folhas de plástico foram divididos entre os alunos - um corpo para cada grupo de quatro. Ao longo das semanas os grupos dissecaram músculos, nervos e tendões, amarrando cordas finas ao redor de cada parte isolada, com uma pequena etiqueta para identificar o objeto.

Concluída a dissecação numa tarde de outono, Groopman caminhava para o dormitório quando olhou para baixo e viu alguma coisa. No começo não sabia o que era, mas logo percebeu que um pedaço espesso da carne do seu cadáver caíra da mesa e se grudara na ponta do sapato. "Fiquei imóvel por um longo tempo", ele escreve, "e me senti como se tivesse cometido um sacrilégio, violado uma fronteira, removendo os mortos daquele lugar tão apropriadamente escondido, onde o cadáver era intencionalmente mascarado para não ser uma pessoa". E, assim, Groopman se viu tomado pelo sentimento de que ele mesmo tinha de ser mais do que um conjunto de órgãos, músculos e pele. De que possuía alguma dimensão diferente e acima do físico.

Mas poderia ele duvidar dos reducionistas? Seria possível que o homem fosse mais do que moléculas interagindo? Poderia questionar a tese de que o sentimento de autoconsciência não passa de ilusão? Refez os passos, devagar, para um pequeno jardim atrás da escola médica, com cuidado para não deslocar o pedaço de carne. Destacou o fragmento do sapato e cobriu-o com uma espessa camada de terra.

Groopman deu-se conta de que a medicina o colocara diante do mistério de nossa existência. A sensação daquela hora se repetiria ainda em muitas ocasiões. Como se repete para os que fazem da medicina um chamado, e não apenas um trabalho. E como se repete para cada um de nós em momentos cardeais: o nascimento do filho, a morte da mãe, o bilhete de amor, o neto no colo...

Em A Anatomia da Esperança Groopman relata: "Anos atrás eu tratava de uma mulher com câncer de mama. Cirurgia, radiação e quimioterapia. Cada tratamento induziu apenas remissão temporária. O câncer atacou fígado e ossos. Fui vê-la. Segurei-lhe a mão e descrevi como o câncer se espalhara. 'Bárbara', disse-lhe, 'temos sido honestos um com o outro. Não conheço nenhum remédio que possa ajudá-la neste momento'. Por longo tempo ficamos juntos em silêncio. Então, ela virou-se para mim: 'Não, Jerry. Você ainda tem algo para me dar. Você tem a medicina da amizade'."

Ao contrário de Bárbara, tenho bons prognósticos. E recebi de meus cirurgiões a medicina da amizade. Ao longo de muitas semanas o cirurgião plástico me recebeu mais vezes em seu consultório do que as impostas pelos cuidados da medicina moderna. Respondendo a minhas perguntas, mostrou-me livros com diagramas e fotografias de reconstruções mamárias. Revelou-se capaz de me entender como pessoa, e não apenas como um corpo doente.

Vou aprendendo, pouco a pouco, a conviver com 700 gramas de silicone: a aceitar - ou quase aceitar - esses dois sacos de gelo seco no lugar das casas gêmeas de antigos banquetes. E pratico o ritual da poesia. Os poemas aliviam o desgosto - talvez não o sofrimento do poeta -, mas, tempos depois, o desta leitora.


* PH.D. PELO MIT, É PROFESSORA TITULAR DA FGV-SÃO PAULO
SITE: WWW.ELIANACARDOSO.COM
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 26/09/2012.

Aperta que vai

Celso Ming


As cotações das ações dos bancos despencaram nesta terça-feira na Bolsa em reflexo ao anúncio feito pela direção do Bradesco, na véspera, de que cortará em mais da metade (de 14,9% ao mês para 6,9% ao mês) os juros cobrados no segmento rotativo dos cartões de crédito.

Esses 6,9% ao mês ainda são escorchantes. Correspondem a juros anuais de 123%, nível que também não tem justificativa técnica.

A decisão do Bradesco foi tomada sob pressão. Primeiramente, seus dirigentes sentiram no cangote o tacão do governo federal. Desde o dia 7 de setembro, a presidente Dilma Rousseff fulminava os bancos com críticas cortantes sobre o nível dos juros praticados no crédito rotativo dos cartões e nos cheques especiais. A retórica foi, depois, transformada em consequência, quando os dois maiores bancos estatais de controle federal – Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal – anunciaram fortes derrubadas nesses custos ao tomador. Desta vez, foi notável, também, o desentendimento entre Bradesco e Itaú sobre como reagiriam aos apertos federais.

As justificativas do diretor executivo do Bradesco, Marcelo Noronha, para a decisão tomada pareceram tão inconsistentes quanto as manifestadas anteriormente pelos seus dirigentes quando tentavam justificar os níveis da agiotagem então praticada. Ou eram descabidas antes ou passaram a ser agora.

Sem passar o recibo de que foi forçado a cortar os juros pela ação do governo, sob pena de graves perdas de participação no cobiçado mercado dos cartões de crédito, Noronha se limitou a reconhecer que “os bancos têm de fazer a sua parte e virar a página dos juros de dois dígitos no cartão de crédito”. Disse, também, que a elevação da base de clientes e de transações com cartões de crédito e os ganhos de escala se encarregarão de recompor os resultados do banco.

Nesta terça, o Credit Suisse alertou os acionistas do Bradesco de que o volume de financiamento do cartão de crédito precisaria subir 40% para que o banco tivesse escala suficiente para compensar as perdas de receita que virá com o corte nos juros – como disse Noronha. Como todos os concorrentes também buscarão aumento de escala, parece inevitável que os altos lucros não voltem por aí.

A indústria de cartões está em expansão. Nos últimos cinco anos, cresceu em 85% o número de usuários para os 193 milhões previstos no final de dezembro. Nesse período, o volume de transações financeiras cobertas saltou 111% e seu faturamento, 169%.

Os cartões de crédito prestaram grande serviço ao País e aos bancos. Baixaram a necessidade de suprimento de papel-moeda e o uso de cheques, que exigem processos custosos de manipulação, transporte e compensação. Ampliaram a clientela bancária e automatizaram boa parcela das suas operações de crédito. Enfim, não só ajudaram a modernizar o sistema nacional de pagamentos, mas também a aumentar os negócios dos bancos.

No mais, é nova mostra de que é perda de tempo argumentar com os bancos. Cedem só sob pressão ou quando uma concorrência para valer começa a desmanchar seu jogo oligopolista. Nesta terça-feira, o Itaú anunciou a redução dos seus juros.



CONFIRA




A entrada de Investimento Estrangeiro Direto (IED) ainda surpreende. Em agosto, foram mais US$ 5 bilhões. O Banco Central se viu diante da necessidade de rever para cima (para US$ 60 bilhões) a projeção da entrada de IED em 2012 (previa US$ 50 bilhões).

Capital bom. Como o nome diz, o IED se destina a investimento. Não pode ser misturado com os capitais especulativos de que a presidente Dilma e o ministro Mantega se queixam. O IED cobrirá, com folga, o rombo externo (déficit em Conta Corrente) que, neste ano, deverá alcançar US$ 55 bilhões.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 26/09/2012.

Rezar?

Roberto DaMatta



Rezamos todos ou a reza, como reza o hábito, é um atributo (ou um privilégio) dos que acreditam em alguma coisa? Acreditar é um verbo poderoso. Talvez o mais poderoso de todos, porque ele afirma algo que é ou não é, dependendo do ponto de vista. Eu acredito em Deus!, diz Francisco; Eu não!, responde José. Acredito que o mundo vai acabar em dezembro deste ano e que o mensalão é obra das elites reacionárias, de uma imprensa corrompida e de um Supremo Tribunal Federal golpista, dizem os defensores de Lula.

O pragmatismo inocente afirma que "gosto não se discute", mas se aplicarmos isso ao verbo crer, o mundo se abre a uma torrente de loucuras. De fato, aprendemos que o verbo acreditar também tem limites. Não há como acreditar em Papai Noel ou que a morte não exista fora dos simbolismos culturais e religiosos. Crer é um direito e um ato de fé.

Há quem acredite em X, Y e Z - e há quem não acredite em X, Y e Z. Então X, Y e Z têm um lado oculto (ou tenebroso) que a suposta luminosidade do crer não alcança. O não crer obriga o crente a ver o todo. O crer, por seu turno, leva o cético a ver o lado que lhe falta e que ele imaginava não existir.

* * * *

Esta pobre meditação é o resultado de um fato concreto e do meu mal-estar relativo ao mundo político brasileiro.

Primeiro, o fato.

Morre uma professora dedicada. Eu não a conheci, mas pelas mensagens que recebo, relembro como é dura a reconciliação com a presença concreta da morte para seus entes queridos. Eis que, no meio das mensagens, um padre solidário com a perda espera não constranger os seus colegas ateus com suas preces. Poucas vezes me deparei com um exemplo de tamanha delicadeza e sensibilidade. Que os ateus me desculpem, eu não rezo para ofendê-los, diz o padre.

Como um conforto ao sacerdote, eu desejo sugerir que todos rezam. Uns acreditando, outros sem acreditar. Mas, perguntaria um crente: como rezar sem um Deus? Ora, responderia o ateu, e como rezar para divindade se o rezar é um ato pelo qual se aceita o mundo tal como ele é? Na sua bondade e maldade, nas suas trevas e luzes? Mais do que reconhecer, suplicar ou tentar estabelecer um contrato com as divindades, a prece é, já dizia Mauss, o ato religioso mínimo para entrar em contato com o sobrenatural que nos cerca e aterroriza, sejamos crentes ou ateus.

Rezar é reconhecer nossa finitude, fraqueza, carência, angústia e solidão. É admitir que vivemos numa totalidade que não podemos conhecer completamente. É um ato que pertence ao que Gregory Bateson chamou de "uma ecologia da mente". Pois, quando rezamos, suspendemos o aqui e agora dominados pelo eu para irmos de encontro ao todo. Rezar é admitir que há no mundo seres e situações estranhas, acima (ou abaixo) dos elos entre meios e fins. Há quem use um canhão para matar um passarinho e quem tente enfrentar gorilas com poesia. O mundo não é claro como querem os materialistas, mas também não é absolutamente escuro como desejam os crentes.

* * * *

Eu ando rezando às claras e às escuras. Vejo no Brasil que julga o mensalão um dado novo e alarmante para os poderosos de todos os matizes e de todas as estirpes.

Este é um julgamento que pela primeira vez na nossa História vai traçar limites não apenas para quem cometeu ilegalidades no poder, mas nos contextos ou situações engendradas por quem o ocupou e, sobretudo, por quem se deixou ocupar pelo poder.

Meu mal-estar com relação ao Brasil tem a ver com a força de quem tem certas crenças. E para quem tem certas crenças, os fins justificam os meios. Ser poderoso é, no Brasil, bradar pela ausência de limites. Será mesmo possível punir um poderoso no Brasil? É possível aceitar o erro de um petista, mesmo sendo petista? Pode-se admitir que os petistas, como a maioria dos seres humanos, são também ambiciosos e podem errar, como foi o caso do mensalão e, pior que isso, o aliar-se em São Paulo ao sr. Maluf?

Pode-se ser de esquerda deixando de lado o chamamento milenarista que promete um mundo perfeito quando perpetuamente governado por um messias? Seria possível ter no Brasil uma administração pública na qual oposição e situação aceitem os seus erros e tenham consciência dos seus limites?

Será que hoje não estamos num tempo em que a ética tem sido comida pelo político e pela "política da coalizão", que foi a alma do fato em causa? Politizar negativamente é impedir a visão do todo como sendo feito de parcelas diferenciadas. Se você, leitor, concorda comigo, reze. Se não concorda, reze por mim.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 26/09/2012.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Falsa intimidade

Vladimir Safatle






A moralidade é uma virtude disputada. Mesmo aqueles que dela conhecem apenas o nome gostam de falar sobre virtudes morais como se fossem íntimos de longa data.

Em época eleitoral, por exemplo, somos obrigados a acompanhar o espetáculo lamentável de moralistas de última hora, que parecem acreditar no pendor infinito da população ao esquecimento e à indignação seletiva.

Melhor seria que eles se abstivessem de falar de moral antes de meditar profundamente a respeito da passagem do Evangelho que exorta a primeiro tirar a trave no seu próprio olho antes de retirar o cisco no olho do próximo.

Por exemplo, o Brasil vive um momento importante com o corajoso julgamento do chamado mensalão. Espera-se, com justiça, que daí nasça uma nova jurisprudência para crimes de corrupção eleitoral. Espera-se também que ninguém saia impune desse caso vergonhoso.

No entanto é tentar resvalar a moralidade à condição de discurso da aparência e da esperteza ver políticos como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e seu candidato à Prefeitura de São Paulo tentarem utilizar a justa indignação popular em benefício eleitoral próprio.

Caso eles realmente amem os usos das virtudes morais em política, melhor seria se começassem por fazer uma profunda autocrítica sobre o papel de seu partido na criação do próprio mensalão, da acusação de compra de voto na emenda da reeleição, assim como fornecer uma resposta que não fira a inteligência quando membros de seu partido --como Marconi Perillo, Yeda Crusius e Cássio Cunha Lima-- aparecem envolvidos até a medula em casos de corrupção.

Seria bom também que eles explicassem por que apoiam incondicionalmente um prefeito que chegou a ter seus bens apreendidos pela Justiça no ano passado devido ao caráter da contratação da empresa Controlar, e por que a Justiça suíça e a francesa investigam propinas que a empresa Alstom teria pago a políticos do governo paulista em troca de contratos com a Eletropaulo.

Por fim, seria uma boa demonstração de respeito aos eleitores que o candidato Serra se defendesse, de preferência sem impropérios, a respeito das acusações sobre o processo de privatização de empresas federais no período FHC.

Sem isso, toda essa pantomima lembrará uma velha piada francesa sobre um sujeito que dizia a todos em sua pequena cidade ser amigo de Charles de Gaulle. Eis que um dia, De Gaulle aparece na cidade. Para não ser desmascarado, o sujeito resolve chegar perto do presidente e, com um tom de cumplicidade, perguntar: "E aí, Charles, o que há de novo?". "De novo", respondeu De Gaulle,"só mesmo essa intimidade".


Publicado na Folha de S.Paulo, em 25/09/2012.

A nossa guerra santa metropolitana

Eugênio Bucci



A competição entre os candidatos a prefeito na cidade de São Paulo virou gincana religiosa. Representantes católicos afirmam que a candidatura de Celso Russomanno (PRB) é uma estratégia maquiavélica da Igreja Universal do Reino de Deus e da Rede Record para ganhar a Prefeitura. Identificam aí uma cruzada fundamentalista, perigosíssima, apocalíptica. De seu lado, Russomanno nega tudo. Garante que seu partido tem mais católicos do que evangélicos e até pediu uma audiência reservada com o cardeal-arcebispo dom Odilo Scherer para pacificar os ânimos (infelizmente, conforme este jornal noticiou ontem, a Cúria Metropolitana alegou problemas de agenda e não atendeu ao pedido).

Há uma tensão religiosa no ar poluído da nossa capital. O ambiente vai pesando, vai confluindo para aquilo que místicos de outras inspirações espirituais chamariam de "energia ruim" ou de "clima carregado". A esta altura da campanha eleitoral, nada poderia ser pior.

As igrejas, quando convertidas em aparelhos partidários, não iluminam mais nada. Viram agentes das trevas. Todas as igrejas, sem exceção. A História está cheia de exemplos tenebrosos, todos conhecemos esses exemplos, mas, nesta hora obscura, não custa relembrar os princípios que servem de alicerce à crença democrática que nos unifica.

Uma disputa eleitoral - o rito mais alto da democracia, como gostam de dizer os cientistas políticos - existe para debater e, se possível, equacionar os impasses e as necessidades comuns de uma sociedade, qualquer que seja ela, uma cidade ou um país. Estamos falando aqui de impasses ou necessidades comuns (de uma comunidade): são impasses e necessidades, portanto, de ordem pública, que afetam todos, independentemente das particularidades individuais ou grupais de uns e outros. Em razão disso, os processos de discussão e de decisão que caracterizam as campanhas eleitorais democráticas pertencem à esfera da política, não da religião. Enquanto a primeira lida com argumentos racionais (ainda que, por vezes, nos pareçam um tanto estúpidos), a segunda se sustenta na fé. Quem pretende resolver a política com apelos vindos da fé pretende matar a política. Aliás, se a fé, sozinha, desse conta de equacionar os dilemas de uma cidade, a política não seria necessária - e poderia até ser dispensada, jogada fora, ou mesmo proibida. Em conclusão: trazer a coação eclesiástica para o núcleo do debate eleitoral constitui um ataque à democracia e à liberdade individual.

Sim, isso tudo já é sabido, é o bê-á-bá, mas parece que todo mundo se esqueceu do óbvio. Chega a ser inacreditável que líderes religiosos - evangélicos ou católicos, tanto faz - desconheçam princípios tão elementares, mas eles dão sinais de que os desconhecem e, às vezes, dão provas cabais de que os desprezam. Já vimos essa degradação em outras ocasiões. Na campanha presidencial de 2010, por exemplo, o pretexto do aborto abriu caminho para as cruzadas mais insanas, tornando irreconhecíveis faces que eram vistas como democráticas até então. Nessas horas de nuvens escuras, até mesmo políticos sabidamente agnósticos - ou ateus praticantes - assumem o papel de profetas moralistas empenhados em promover o fanatismo religioso para corroer o diálogo racional. As eleições se rebaixam, o potencial das urnas se apequena, a vida social se estreita - e a própria religião perde a graça.

Ninguém aqui tem o direito de se iludir. Quem promove o obscurantismo em períodos eleitorais não é o povo crédulo, como dizem os cínicos, mas as lideranças, os dirigentes religiosos e partidários, que exploram a credulidade dos humildes. Pelo que temos visto em São Paulo, hoje católicos e evangélicos enveredam pelo mesmo desvio, com pregações aparentemente antagônicas, mas que são igualmente antipolíticas. Se conseguirem transformar a eleição municipal numa contenda entre duas igrejas, essas lideranças religiosas (e partidárias) serão sócias na tarefa de desnaturar palanques em altares profanos.

Existe um problema no imbricamento entre religião, partido político e redes de televisão e de rádio, representado pela triangulação entre Igreja Universal, PRB e Rede Record? É claro que existe. Mas esse é um problema político, não religioso. E não é um problema dos evangélicos, por favor. Trata-se de um problema político passível de ser solucionado com ferramentas próprias da política, no âmbito do Estado de Direito (como, entre outras medidas, pela adoção de regras que proíbam a promiscuidade entre emissoras, partidos políticos e igrejas). Em tempo: existem inúmeras emissoras de orientação expressamente católica que caem na mesma distorção. Além disso, embora católicos petistas reclamem de Russomanno, é bom lembrar (outra vez, lembrar o óbvio) que o PRB se construiu com o apoio do lulismo, que também açulou seguidamente a TV Record por ter visto nela uma oportunidade de fustigar as "elites".

Não, o fenômeno Russomanno não caiu do céu, assim como não vai para o céu. Ele decorre do lulismo, da ausência de regras na radiodifusão e do oportunismo de sempre. Não vale, agora, sair por aí dizendo que os evangélicos, por serem evangélicos, querem levar o fundamentalismo à Prefeitura paulistana. Nada mais falso, nada mais baixo, nada mais ofensivo. A fé pessoal de cada um não tem nada que ver com isso. Se queremos culpar, se queremos satanizar alguém, deixemos em paz os comuns do povo. Vamos procurar as causas na sacrossanta esperteza dos caciques e vamos debater politicamente o que politicamente foi urdido.

No Brasil, é bem verdade, como alguém logo vai avisar, até as guerras santas terminam em pizza (acompanhada de vinho do padre). Mesmo assim, recomenda-se cautela aos chefes religiosos. Cautela e humildade. Que ninguém volte a chutar a santa - e que ninguém bata a porta na cara de ninguém. De vez em quando, ter um pouco de fé na política também ajuda.


* JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 20/09/2012.

Código para a impunidade

Janio de Freitas



Palco principal da atualidade brasileira, o Judiciário oferece aos cidadãos mais um enredo de suspense. Com valor ilustrativo diferente do proporcionado pelo julgamento do mensalão, mas com maior significação direta para cada um dos que expomos a vida nas cidades.

Com base no excesso de prazo das prisões, sete bandidos "de alta periculosidade" foram soltos no Rio.

O país todo os conhece, teve a oportunidade de vê-los em ação da sua especialidade, no vídeo da invasão que fizeram do Hotel Intercontinental, em São Conrado. Com mais três, todos armados de fuzis e metralhadoras, desciam de Kombis e automóveis, comunicavam-se com a Rocinha ali adiante, vagueavam em desafio pelas ruas e, por fim, entravam nos jardins e no hotel. Aí fizeram reféns e ameaçaram uma carnificina.

Era agosto de 2010. Há quatro dias, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, soube que sete dos dez invasores presos estão soltos desde dezembro de 2011. Soube mais: soube que o desembargador Siro Darlan soltou-os, como disse, porque "existe um prazo de 81 dias quando o réu está preso, e eles estavam presos há um ano e meio". Quase isso, um ano e quatro meses.

Um argumento embaraçoso, de fato. Mas o desembargador, muito discutido desde que se ocupava de problemas com crianças e adolescentes, tem ainda um reforço argumentativo bem ao seu estilo: "Os réus do mensalão respondem ao processo em liberdade há sete anos. Por que os favelados não têm esse direito? A lei é igual para todos".

Se a lei for igual para todos, nem por isso os crimes são iguais para todos os respectivos acusados. Daí o suspense que o caso provoca. Não o de saber por que o desembargador, tratando-se de acusados de "alta periculosidade", não cobrou a providência em falta para evitar a liberação contrária à segurança pública.

O suspense, este sim, até que seja dada explicação convincente dos fatos e das responsabilidades resultantes na falta, por um ano e quatro meses, dos procedimentos apropriados para manter presos e julgar sete bandidos. Tanto mais que a Secretaria de Segurança informa, pela Polícia Civil, haver encaminhado o inquérito para os procedimentos do Ministério Público e do Judiciário em 30 de agosto. No mesmo mês da invasão do hotel e da prisão dos dez bandidos.

Soltos há nove meses, por certo os sete não se mantiveram com trabalho convencional. Ignoram-se outras possíveis contribuições suas à criminalidade que forçou a antecipação, para a semana passada, da instalação da polícia na Rocinha.

Mas a eles se deve parte de uma evidência importante: enquanto se louva o julgamento do mensalão como sinal de fim da impunidade, a impunidade se mostra com agressividade, onde e quando não poderia ser proporcionada.

Anuncia-se novo Código Penal, com penas pretensamente adequadas à atualidade. Nada se anuncia para assegurar sua aplicação, sempre.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 25/09/2012.

Bobagens sobre Russomano

Vinicius Torres Freire



Existe agora um "eleitor consumidor", diferente do "eleitor cidadão", um indivíduo que "consome a cidade", um animal político-eleitoral novo, identificado com a "classe C". Por isso, Celso "tá bom pra você" Russomano lidera para prefeito de São Paulo.

De longe, é o que a gente mais ouve sobre a eleição paulistana, afora a falação sobre igrejas evangélicas ("de longe": este colunista ora mora nos EUA).

Parece quase tudo bobagem.

A primeira bobagem é atribuir identidade comum a todas as famílias com renda entre R$ 1.270 e R$ 5.480 (dois a nove salários mínimos, mais ou menos). Por que uma classificação estatístico-econômica imediatamente identifica o cidadão como isso ou aquilo em termos políticos, sociológicos etc.?

Mas passemos; deixemos de lado o clichê analítico mais vazio e tolo da década (cadê os sociólogos?).

Outra bobagem, aritmética: Russomano tem tantos ou mais votos na classe "Z" (das famílias que recebem até dois salários mínimos) do que na "C". E o sujeito mais pobre vota em Russomano por algum motivo essencialmente diferente dos "C"? Mistério.

Russomano faz sua grande diferença sobre José Serra e Fernando Haddad nas periferias mais pobres, leste e sul. Lá onde o PT fez maioria nas últimas três ou quatro eleições. Por que será?

O fato de Haddad ser um novato-noviço desconhecido não ajudou a derrubar a votação petista? E o desgaste de Serra? O fato de Russomano estar há décadas na praça do mercado (televisivo e eleitoral) não lhe dá vantagem sobre Haddad?

A "classe C" da estatística econômica ganha de dois a nove salários mínimos (amplitude enorme, aliás). Nas famílias que recebem entre dois e cinco salários, Serra e Haddad, juntos (33%), estão pertinho de Russomano (39%), segundo o último Datafolha ("empate técnico"). Trata-se do grosso da "classe C" (uns 90% do total).

Se considerada também a "elite da classe C" (cinco a nove salários), o resultado fica ainda mais para empate mesmo.

De resto, como Russomano pode ser o querido dos "C" se mais de 61% dessa "classe" não vota nele? Não faz lé com cré.

De resto, os eleitores que não votam em Russomano são mais "cidadãos" e menos "consumidores"? Seja lá o que signifiquem os rótulos, parece conversa fiada. O eleitor é uma mistura adúltera de tudo em termos de "práticas sociais", não é isto ou aquilo.

O sujeito que votava em Maluf porque gostava de ver bandido morto e de trejeitos mussolinianos era "cidadão" ou "consumidor" de segurança? Era um afascistado pobre e ignaro que, por ganhar uns reais a mais, agora pensa mais em TV de plasma e no Corsa "zero bala" do que na Rota?

Há uma "onda de consumismo por aí"? A família que ganha até três salários mínimos, R$ 1.866, uns R$ 500 per capita (mais de metade do eleitorado), tem o luxo de ser "consumista"? Francamente.

O eleitor passou a "consumir a cidade" só agora? Não se incomodava antes com transporte e serviço de saúde ruins? Quando a esquerda fazia (ou mais escrevia sobre) "movimentos sociais", o sujeito que queria hospital era "cidadão" e agora é "consumidor"? Os mais "ricos" atolados no trânsito não "consomem" a cidade? Francamente.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 23/09/2012.

Imprensa da liberdade

Janio de Freitas


O autor do filmeco e os extremistas da idolatria islamista deram-nos, a nós ocidentais, mais uma oportunidade de fazer o que não faremos: refletir sobre a liberdade de imprensa sem ideias prefixadas.

O tema é dificílimo em dois sentidos. Por si mesmo, é claro, e pela resistência ainda intransponível à busca de sua conceituação sem interesses e sem hipocrisias.

Não sou adepto da ideia de liberdade de imprensa plena: tenho convicção de que a imprensa não possui a liberdade de difundir o que ponha em risco pessoas inocentes. A decisão do semanário francês "Charlie Hebdo", de redobrar o ataque à intolerância do extremismo islamista, não foi defesa e afirmação do princípio da liberdade de imprensa.

Foi provocação utilitária, com a qual os dirigentes e acionistas da publicação obtiveram, como poderiam esperar, resultado financeiro e promocional muito acima do seu histórico (a publicação esgotou em horas). Os editores de "Charlie" aliaram-se ao autor do filmeco de origem suspeita, causa do assassinato miseravelmente covarde do embaixador dos Estados Unidos em Benghazi, na Líbia que ele ajudou a livrar de Gaddafi.

A edição anti-islamista de "Charlie Hebdo" não trouxe nem uma só contribuição positiva, por mínima que fosse, a não ser para o seu comando. Mas forçou o governo francês à humilhação de fechar suas embaixadas no mundo islâmico afora, para salvaguardar a vida de funcionários posta em risco pelas respostas à provocação do semanário.

O argumento é admissível: ainda que em nome da vida inocente, a restrição à liberdade de imprensa plena pode abrir caminho a restrições por causas deploráveis. A que liberdade de imprensa, porém, se refere o argumento, eis o problema.

Está sujeito à punição legal o jornalista que chamar de ladrão a quem não o é. Se punido pelo que fez, é porque não tinha a liberdade de fazê-lo. Abusou daquela que lhe foi concedida, mas concedida sob limitação legal -e quase sempre com desconsideração pelas especificidades do jornalismo, que ficam pendentes da sagacidade e da isenção do juiz.

A liberdade de imprensa plena, parte da plena liberdade de expressão, é alimentada também por doses variáveis de hipocrisia. O governo dos Estados Unidos e a justiça da Califórnia disseram não agir contra o tal filmeco em respeito à liberdade de expressão. Mas só um tolo acreditará que, se em vez de Maomé, o filmeco retratasse do mesmo modo George W. Bush, por exemplo, o governo americano deixaria as cenas correndo o mundo pelo YouTube. E o autor isentado de processo.

A França da "Charlie Hebdo" proibiu, judicialmente, as fotos do topless de Kate Middleton, mulher do príncipe William, e fez a polícia buscar os originais na revista "Closer" (cujo valor para a liberdade de imprensa é mensurável pela propriedade de Silvio Berlusconi).

Jornalistas e "scholars" americanos, poucos embora, deixaram e ainda fazem trabalhos sobre a violação da Primeira Emenda, a da liberdade de imprensa na Constituição dos Estados Unidos, por medidas impostas pelo governo Bush a partir da derrubada das Torres Gêmeas. A própria história do 11 de Setembro ainda tem partes sob censura, como o ocorrido com o quarto avião, "caído".

"A possibilidade de crítica ampla" e "manifestações que poderiam ser classificadas como provocação" relacionam-se de modo diferente com a liberdade de imprensa, sem paralelismo algum entre crítica e provocação -razão da discordância em que me situo diante do editorial "Subdesenvolvimento puro", da Folha de 21/9/12.

A liberdade de crítica, de debate cultural, político ou científico, e mesmo religioso, não se confunde com a liberdade de pregar racismo, de incentivar arbitrariedades, de provocar impulsos criminosos. Aquelas práticas são a grandeza da imprensa. E as últimas, o lixo.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 23/09/2012.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Os EUA 'divididos em dois grupos' e um candidato insensível

David Brooks




Em 1980, cerca de 30% dos americanos recebiam algum benefício do governo. Hoje, como destacou Nicholas Eberstadt do American Enterprise Institute, são 49%.

Em 1960, a ajuda do governo totalizava US$ 24 bilhões. Em 2010, este total tinha aumentado 100 vezes. Mesmo levando em conta a inflação, estas subvenções concedidas pelo governo aos cidadãos aumentaram mais de 700% nos últimos 50 anos. E este aumento dos gastos, observa Eberstadt, cresceu muito mais nos governos republicanos do que nos democratas.

Destes fatos é possível tirar algumas conclusões práticas. Podemos dizer que o Estado que distribui estas verbas está se expandindo a um ritmo insustentável e levará o país à falência. Também podemos dizer que os EUA estão gastando demais com assistência médica para os idosos e muito pouco com as famílias jovens e em investimentos para o futuro. Mas não são estes os argumentos práticos usados por Mitt Romney numa reunião para arrecadação de fundos, há alguns meses. Romney, que critica o presidente Barack Obama por dividir a nação, dividiu a nação em dois grupos: os que fazem e os que "pedem".

O seu comentário sugere algumas coisas. Em primeiro lugar, que ele não conhece o país onde vive. Quem são esses "aproveitadores"? Será o veterano da guerra do Iraque que procura o Departamento de Assistência aos Veteranos de Guerra? É o estudante que pede um empréstimo para ir à universidade? O aposentado da Previdência Social ou do Medicare? Sugere ainda que Romney desconhece a cultura dos EUA.

Indubitavelmente, o Estado que distribui benefícios aos cidadãos se agigantou, mas os EUA continuam sendo uma das nações que mais trabalham na face da terra. Os americanos têm uma jornada de trabalho maior do que a de qualquer outro país. Os americanos acreditam no trabalho mais do que praticamente qualquer outro povo - 92% afirmam que o trabalho duro é a chave do sucesso, segundo um estudo do Pew Institute.

Os americanos não são crianças que adoram um governo que interfere demais. Ao contrário, a confiança no governo tem declinado. O número de pessoas que acham que as subvenções concedidas pelo governo promovem a mobilidade social declinou.

Os beneficiados por uma parcela desproporcional dos recursos do governo não são os que adoram o governo que tudo controla. São os republicanos. São os idosos aposentados. São brancos com grau de formação superior. Longe de serem servas do liberalismo, os que recebem esses benefícios são mais hostis ao governo do que o americano médio. Os comentários de Romney revelam também que ele perdeu todo senso de convenção social. Em 1987, durante o segundo mandato de Ronald Reagan, 62% dos republicanos acreditavam que o governo tem a responsabilidade de ajudar os que não podem cuidar de si mesmos.

Agora, segundo o Pew, apenas 40% dos republicanos acreditam nisto.

A parte final do comentário sugere que Romney não sabe o que seja ambição e motivação. A fórmula que ele cria é: as pessoas que são forçadas a contar com o próprio esforço são autônomas. As que recebem benefícios são dependentes.

As pessoas são motivadas quando se consideram competentes. E são motivadas quando têm mais oportunidades. A ambição aumenta com a possibilidade, não pela privação, como uma viagem aos lugares mais pobres do mundo mostra claramente.

É evidente que há alguns programas do governo que cultivam esquemas de dependência em algumas pessoas. Nesta categoria eu incluiria a ajuda federal aos deficientes e o seguro-desemprego. Mas, como se descrevesse os EUA dos nossos dias, o comentário de Romney é uma fantasia de country clube. É o que os milionários muito satisfeitos com a própria condição comentam entre si e reforça toda visão negativa que as pessoas têm a respeito deles.

Pessoalmente, acho que ele é um homem gentil, decente, que diz bobagens porque finge ser o que não é - uma espécie de inimigo do governo caricaturado. Mas isso não importa. O fato é que ele está realizando uma campanha presidencial acanhada e inepta. Sr. Romney, suas ideias sobre a reforma dos benefícios distribuídos pelo governo são fundamentais, mas quando vai parar com a incompetência?


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 19/09/2012. Originalmente publicado no New York Times. TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Russomano, o católico

Cláudio Gonçalves Couto




Diante do questionamento sobre seus vínculos com a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), o candidato do PRB à Prefeitura de São Paulo, Celso Russomanno, replica ser católico fervoroso. Diz que católico é não apenas ele, mas 80% de seu partido, que teria apenas 6% de membros da Igreja Universal. Não informa a fonte dos números, mas, mesmo admitindo sua correção, ainda é o caso de questionar sua relevância.

Afinal, as características do conjunto de filiados de um partido diz pouco sobre seus rumos ou propósitos gerais. Agremiações partidárias são organizações de poder concentrado, decisões centralizadas e relações hierárquicas. Isso não é característica do PRB, mas de quaisquer partidos políticos relevantes, mundo afora. Mesmo agremiações originalmente abertas à participação da base militante, como PT e PSDB, se tornaram partidos de poder concentrado.

A concentração decorre da profissionalização da política em geral e dos partidos, em especial. Tal como as empresas, agremiações não profissionalizadas não prosperam: não vencem eleições, não gerem bem suas finanças, não elaboram estratégias vitoriosas de conquista e manutenção do poder. E é para isso que os partidos servem - ainda que acalentemos fins mais nobres para eles.

É fundamental compreender o que realmente importa no funcionamento dos partidos e na definição dos reais interesses por eles defendidos, a saber: a composição de seu grupo dirigente. Logo, tanto faz se de fato houver 80% de católicos entre os filiados do PRB, pois o que, na verdade, conta é a composição dos ocupantes dos cargos de comando na organização.

Levantei estes dados do partido de Russomanno, observando dois tipos de informação: 1) a composição da Executiva Nacional e 2) a presidência dos órgãos estaduais. Ressalte-se ainda que, no que concerne aos Estados, o PRB está organizado (sem nenhuma exceção) em "Comissões Provisórias", um tipo de estrutura que priva os órgãos estaduais de autonomia em relação à direção nacional (como poderia haver no caso de diretórios); assim, pode-se afirmar que os presidentes estaduais são prepostos da Executiva Nacional. Em alguns Estados, como Roraima, tal "provisoriedade" dura desde 2007 e em todos os casos seu prazo de vigência é indeterminado. Assim, o partido reflete nos Estados a diretriz dada pelo centro.

A Executiva Nacional é composta por 18 membros, sendo dez deles (55%) oriundos da Igreja Universal do Reino de Deus ou da Record (em alguns casos, de ambas). No caso dos sete cargos hierarquicamente mais importantes na Executiva, todos os membros são igualmente oriundos da Iurd ou da Record. É bom frisar que essa é uma estimativa modesta, pois não foi possível obter informações sobre sete dos membros (que, aparentemente, não têm uma vida pública de relevo).

Nos órgãos estaduais os números são mais impressionantes. Dos 27 presidentes, só quatro (15%) não têm ou não tiveram vínculo formal aparente com a Igreja Universal ou a Record. Todos os demais ou são eclesiásticos da Iurd ou foram funcionários da Record, ou ambas as coisas. Se Russomanno considera que um partido com 80% de católicos não é vinculado a uma denominação neopentecostal específica, o que dizer de uma agremiação em que nada menos que 85% dos dirigentes estaduais são não apenas fiéis de uma igreja, mas seus funcionários e dirigentes?

Não há como ignorar os vínculos orgânicos entre a igreja, o grupo de comunicação e o partido. A presença simultânea e/ou a circulação de dirigentes nas três organizações evidenciam haver um mesmo grande empreendimento. Iniciado nos anos 70 por Edir Macedo, teve tanto sucesso no acúmulo de recursos que logrou comprar a Rede Record no início dos anos 90 e, após a eleição esparsa de parlamentares por diversos partidos, encampar uma agremiação própria nos anos 2000.

A presença de não membros da Iurd tanto na Record como no partido não desmente a lógica de conglomerado empresarial. Ora, por que motivo uma emissora vinculada a uma igreja evangélica tem em sua grade de programação um programa de forte apelo erótico como A Fazenda? Simples: porque dá audiência e, consequentemente, lucro. E por que um partido controlado por essa igreja evangélica tem como candidato na maior cidade do País um "católico fervoroso"? Simples: porque viu nele a opção mais competitiva para disputar (e, talvez, ganhar) a eleição. Nos dois casos, trata-se de lançar mão do melhor instrumento disponível para alavancar o empreendimento. É de negócios que se trata.

Para que ninguém se iluda, a própria Igreja Universal, por meio de seu veículo próprio de imprensa, a Folha Universal, deu boa mostra de como operam as relações de lealdade entre a direção da organização e seu corpo de funcionários. Desde 30 de agosto, em diferentes cidades do País, foi lançado um livro que traz a autobiografia do bispo Edir Macedo - com o sugestivo título Nada a Perder. Ao lançamento compareceram e adquiriram a obra, prestigiando o patrão, leais funcionários cuja trajetória não tem nada de fidelidade religiosa à Iurd: os jornalistas Paulo Henrique Amorim e Jorge Pontual, a modelo e apresentadora Ana Hickmann - para quem "o bispo Edir Macedo é uma inspiração pelas lutas que enfrentou e venceu" - e a atriz Bianca Rinaldi.

Celso Russomanno é também empregado da Record, cujos funcionários demonstraram sua lealdade ao bispo, chefe maior da igreja, que controla o grupo de comunicação. Tendo em vista que vínculo equivalente há entre igreja e partido, que conduta se pode esperar dos membros da agremiação que forem eleitos? Certamente, mandatários em cargos importantes, como o prefeito de São Paulo, podem gozar de autonomia política considerável. Desde que, claro, estejam dispostos a exercê-la. Será o caso aqui?


* CIENTISTA POLÍTICO, É PROFESSOR DO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA FGV-SP E PESQUISADOR DO CEPESP-FGV E DO CNPQ

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 18/09/2012.

Limites dos EUA para Israel

Eric L. Lewis



Já deveríamos saber, embora aparentemente seja o contrário, que a trágica crise que toma conta do Oriente Médio exige mais diplomacia do que postura política. O assassinato do embaixador americano numa Líbia recentemente libertada, a carnificina praticada pelo regime sírio contra a população do país, a emergência de um governo conduzido pela Irmandade Muçulmana no Egito e o enigma representado pelas ambições nucleares iranianas mostram que essa região apresenta décadas de desafios complexos resumidos em tempo real.

Respondendo a esses desafios, Mitt Romney mistura teatro político com slogans conservadores. Ao atacar o presidente Barack Obama por, supostamente, ter pedido desculpas a radicais islâmicos, ele parece incapaz ou não disposto a compreender as responsabilidades de um presidente que tenta lidar com uma situação volátil enquanto americanos correm perigo.

Romney demonstra não ter nenhum respeito pela diplomacia em geral. Declara que "Deus não criou esse país para ser uma nação de seguidores" e defende que "num século americano, os EUA lideram o mundo livre".

Seus delegados zombam do "tour de desculpas" de Obama e seus principais assessores, John Bolton e Dan Senor, pertencem a um grupo radical conservador contrário a qualquer política que diminua a liberdade de ação americana. Mas diante do problema exasperante de mais turbulência no Oriente Médio em consequência de um ataque israelense contra o Irã, para acabar com o programa nuclear iraniano, Romney pretende deixar a decisão para o premiê israelense Binyamin Netanyahu.

Discursando no dia primeiro de setembro, Netanyahu afirmou que, se o governo Obama não estabelecer "limites" fixos aos quais o Irã deveria se ater, ele "não tem nenhum direito moral" de impedir Israel de empreender uma ação militar sozinho.

O problema político, moral e fundamental está em saber se é uma prerrogativa soberana dos Estados Unidos decidir se uma guerra regional deve ser iniciada, guerra esta que certamente exigirá recursos americanos e talvez tropas americanas para pôr fim a ela.

A ameaça à segurança dos EUA representada pelo programa nuclear iraniano não deve ser subestimada e o governo Obama a leva muito a sério. Continua mantendo todas as opções sobre a mesa, mas acha que é preciso mais algum tempo para as sanções surtirem efeito.

Romney está disposto a delegar para Netanyahu a decisão de iniciar um conflito que o Exército americano acha prematuro, que não será plenamente eficaz e provocará um enorme aumento dos preços do petróleo, além de desestabilizar ainda mais o Líbano e a Síria, provavelmente consolidando o apoio doméstico a um regime iraniano profundamente impopular.

Mas a questão na campanha presidencial não é se um ataque contra o Irã agora ou mais tarde é uma boa ideia, mas se uma decisão com enormes consequências estratégicas deve ser tomada pelo presidente americano ou pelo líder de um aliado dependente do poderio americano.

Fortes defensores de Israel deveriam se inquietar com a perspectiva de o governo israelense não apenas ignorar as alternativas políticas do seu poderoso aliado, mas também querer se imiscuir na política interna americana para tentar influenciar a política externa do presidente.

Imagine, por exemplo, se a Coreia do Sul decide invadir a Coreia do Norte para destruir suas instalações nucleares. Isso desencadearia uma guerra na Península Coreana que traria a China para o conflito e possivelmente outros países da região. Na verdade, a Coreia do Sul poderia tirar diretamente do website de Romney seu argumento para atacar: "A capacidade de possuir armas nucleares por parte de uma ditadura imprevisível com uma liderança desconhecida e uma cadeia de comando nada clara representa uma ameaça direta às forças americanas na Península Coreana e em outras partes do Leste da Ásia, ameaça a Coreia do Sul e Japão, nossos aliados, desestabiliza toda a região do Pacífico e pode levar à transferência ilícita de um dispositivo nuclear para outra nação renegada ou um grupo terrorista". Mas Romney não sugere um ataque a Pyongyang e certamente não está dando carta branca a Seul.

Certamente Israel é um aliado especial, mas não tem o direito de adotar uma decisão em assuntos em que o poder e o interesse dos EUA estão inextricável e fundamentalmente envolvidos. É inconcebível que os EUA permitam que um outro aliado dependente de fundos americanos e sistemas de defesa americano tome uma decisão como essa unilateralmente. É também inconcebível que os EUA permitam que um governo estrangeiro intervenha diretamente no processo político americano para conseguir apoio popular para suas políticas envolvendo as objeções do governo.

Mas autoridades do alto escalão israelense acham que o governo de Israel pode desafiar o desejo americano e circundar o presidente. De acordo com o jornal Haaretz "Ehud Barak (ministro da Defesa) diz que, se Israel agisse agora contra a vontade dos EUA, o Congresso estaria a favor de Israel contra o Irã". Michael Oren, embaixador de Israel em Washington, nomeado por Netanyahu, afirma que "o povo e o Congresso americanos apoiariam Israel agora se o país entrar em guerra com o Irã". As atitudes em Israel são fluídas e Ehud Barak parece ter se posicionado contra um ataque imediato, mas é surpreendente que autoridades do alto escalão de um governo estrangeiro cheguem a sugerir que os julgamentos do presidente americano podem ser contornados.

A campanha de Mitt Romney parece achar tudo isso ótimo. "Se Israel tiver de agir sozinho para impedir o Irã de desenvolver armas nucleares, o governador respeitará essa decisão", disse Dan Senor, assessor na campanha para questões de segurança nacional de Romney, que deve assumir esse posto num governo Romney.

A política americana sempre foi no sentido de corroborar o direito de Israel de existir dentro de fronteiras seguras e os EUA têm apoiado o seu aliado com bilhões de dólares e armamentos sofisticados.

Esse apoio deve ter uma reciprocidade em termos de cooperação e respeito pela política americana, sem falar na não interferência na política doméstica dos EUA.

Apesar de tudo o que se fala sobre poder e soberania americanos, Romney parece disposto a deixar que outra pessoa decida se começa a que pode ser a primeira guerra regional potencial do novo "século americano". Essa não é uma liderança de fato. É uma posição indulgente perigosa e um forte indício de um eventual presidente sem uma política externa genuína. Mais uma vez fica a questão de saber se Romney acredita no que está dizendo e se governaria com sensatez. Mas como aprendemos, em nosso grande detrimento na última década, o Oriente Médio não é lugar sobre o qual se fala negligentemente e sem refletir.



Publicado em O Estado de S.Paulo, em 18/09/2012. Originalmente publicado no The New York Times. Tradução de Terezinha Martino

Para que servem as Universidades

José Goldemberg




A universidade está sob ataque e os atacantes são internos e externos. Entre os "inimigos" externos, um dos mais atuantes no momento é Peter Thiel, um importante executivo americano da área de informática que oferece bolsas para que estudantes abandonem as universidades e criem empresas nos Estados Unidos e na Europa, onde já existe, segundo ele, suficiente tecnologia disponível.

Em países industrializados já existe, de fato, muita tecnologia disponível, o que não significa, contudo, que novos avanços não estejam ocorrendo todos os dias. O mesmo se aplicaria aos países em desenvolvimento na Ásia, na África e na América Latina, que poderiam simplesmente copiar o que deu certo nos Estados Unidos, na Europa e no Japão.

Essa visão imediatista e colonialista de Peter Thiel encontra aliados nos "inimigos" internos das universidades públicas em nosso país, com greves infindáveis baseadas, em geral, em reivindicações corporativas, que prejudicam não só estudantes, como também as pesquisas em andamento. Se vivesse no Brasil, o executivo americano provavelmente apoiaria a greve e a consideraria uma demonstração viva de que as universidades não são necessárias.

As ideias de Peter Thiel são incorretas em número, gênero e grau. Se fossem levadas a sério, matariam a "galinha dos ovos de ouro" que é a pesquisa científica, na qual se origina a inovação tecnológica.

Cientistas, de modo geral, são movidos por uma profunda curiosidade intelectual de entender como as coisas funcionam. A glória, para eles, é conseguir estabelecer claramente a relação entre causas e efeitos. Essas descobertas podem ter imensas consequências práticas e resultar em ganhos financeiros. Raramente, no entanto, isso é feito pelos próprios cientistas, e sim por empreendedores que põem em prática os seus ensinamentos.

Pode parecer divertido e lucrativo fazer jogos eletrônicos, iPads, Facebook, com as inúmeras variantes dos computadores de hoje, e se tornar bilionário. Sucede que esses desenvolvimentos só se tornaram possíveis com a invenção dos transistores na década de 50 do século passado, a qual não teria sido possível sem a evolução da física moderna nos anos 1930.

Além disso, nos países em desenvolvimento o problema não é só copiar o que os países industrializados fizeram antes, mas escolher o que copiar. Para fazê-lo é preciso haver cientistas capazes de entender a ciência e a tecnologia moderna, que é o que universidades normalmente fazem. Em muitos casos, copiar não basta porque são necessárias adaptações ao uso de materiais disponíveis nessas nações e às condições locais.

Países como a China estão se beneficiando extraordinariamente desse modo de fazer as coisas, combinando boas escolhas com mão de obra barata. A prioridade para a China não tem sido o mercado interno, mas o imenso mercado mundial, onde os padrões de qualidade dos produtos consumidos são elevados e existe competição. Daí a necessidade de usar tecnologias modernas e também o papel da inovação, cuja função é descobrir a melhor maneira - e a mais econômica - de fabricar os produtos.

Não é o que está ocorrendo no Brasil, onde o protecionismo alfandegário dificulta a entrada de produtos do exterior e a indústria se concentra em atender o mercado interno, que é pequeno, apenas cerca de 2% do mercado mundial, abrindo mão de competir nos 98% restantes, como faz a China. Na ausência de competição, a indústria nacional utiliza frequentemente tecnologias obsoletas, por não ter motivos fortes para inovar. Quando as barreiras alfandegárias caem, a indústria pode simplesmente ser levada à falência, como se deu em 1990 com a indústria têxtil, que não tinha acesso à tecnologia moderna.

Qual o papel das universidades neste panorama?

Historicamente, o sistema produtivo, tanto nos países industrializados como nas nações em desenvolvimento, gera demandas do setor universitário. As principais das quais são as seguintes:

A necessidade de garantir acesso a novas matérias-primas à medida que as tradicionais se tornam difíceis de obter.

A procura de novas soluções, forçada pelas restrições ambientais.

Automatização crescente dos processos industriais, que resolve problemas de aumento de produção, mas pode criar gargalos técnicos cuja solução exija inovações.

Mudanças de padrões de consumo e os desenvolvimentos tecnológicos que eles possam exigir.

A competição é o grande motor da busca de inovações. Quando ela não existe, o sistema produtivo definha e morre. Exemplo disso é o que ocorreu na extinta União Soviética, onde os setores científicos e universitários que trabalhavam em áreas em que o governo tinha grande interesse - armas nucleares e foguetes para lançamento de ogivas nucleares - foram privilegiados e tiveram enorme sucesso. Já o desenvolvimento de produtos de consumo que melhorariam as condições de vida da população tinham baixa prioridade e baixo envolvimento dos cientistas e das universidades, e essa foi uma das causas do desmoronamento do sistema soviético.

Daí a necessidade de manter universidades de alto nível, isto é, centros de estudos, pesquisas e inovação, como é feito na Europa há quase mil anos. São as grandes universidades de hoje, algumas delas no Brasil, que produzem as novas ideias e novas tecnologias que vão dar, amanhã, origem a empreendimentos comerciais, e não o contrário. É uma ilusão esperar que elas, por si sós, modernizem o sistema produtivo, mas precisam estar preparadas para responder às demandas da sociedade.

É por essa razão que qualquer medida que leve à redução da qualidade e do potencial das universidades brasileiras, como a criação de cotas raciais, por exemplo, é equivocada.


* PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, FOI REITOR DA USP E MINISTRO DA EDUCAÇÃO

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 17/09/2012.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Quem quer salvar os corruptores?

Rubens Bueno


Por trás da polidez erudita, da pose de bom moço e do protocolo de boas intenções de grande parte dos membros da CPI mista do Cachoeira, esconde-se uma trama indigesta que começou a mostrar sua face na no último dia 4, data em que o presidente da comissão, senador Vital do Rego (PMDB-PB), e o relator, deputado Odair Cunha (PT-MG), anunciaram, após uma reunião de cartas marcadas, a paralisação, por um mês, das reuniões do colegiado.

A decisão é um presente para os participantes do esquema criminoso que envolve a Delta Construção, o bicheiro Carlinhos Cachoeira e políticos dos mais diversos partidos.

Na prática, foi o primeiro passo para enterrar a CPI, deixando de lado uma investigação que poderia revelar os bastidores de negociatas envolvendo propina e financiamento ilegal de campanhas em troca de contratos bilionários entre governos e as maiores construtoras do país.

E por que isso acontece? Em primeiro lugar, está claro que a quadrilha se infiltrou na CPI. Quem acompanha de perto as reuniões da comissão consegue identificar sem muito esforço a chamada "bancada da Delta". Esse grupo, que cresce a cada dia, faz de tudo para restringir as investigações.

Na avaliação deles, a CPI já cumpriu o seu papel, delineado lá atrás pelo ex-presidente Lula para se vingar dos desafetos do mensalão: cassar o senador Demóstenes Torres e desgastar o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB).

Por resistência de alguns membros da CPI, felizmente esse grupo não conseguiu cumprir outros dois objetivos: levar jornalistas ao banco dos réus e enxovalhar o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, que conduz as acusações contra o PT no julgamento do mensalão. Mesmo assim, já se dão por satisfeitos.

Levar adiante as investigações da CPI significa ir atrás dos corruptores, os mesmos que desviam dinheiro público e financiam as campanhas eleitorais dos ocupantes do poder. E a "bancada da Delta" não quer isso. Esse medo ficou patente quando o ex-diretor do Dnit, Luiz Antônio Pagot, confessou na CPI que, atendendo a pressão do tesoureiro de campanha da presidente Dilma, deputado José de Filippi (PT-SP), pediu pessoalmente a empreiteiras com contratos com o órgão doações para a petista.

Esse temor se tornou ainda maior, indo além do PT, quando a CPI esbarrou em outro personagem controverso, o empresário Adir Assad. Se quebrar o sigilo bancário de 12 empresas de fachada ligadas a ele, vai caminhar na direção de outras empreiteiras, o que pode revelar que há muitos outros "Cachoeiras" por aí.

As empresas do grupo de Assad, é bom lembrar, receberam mais de R$ 200 milhões da Delta fora do eixo Centro-Oeste, em operações consideradas atípicas pela Coaf. Mas, como já se viu na própria CPI, Assad está blindado. Em depoimento, sequer foi submetido a perguntas.

Como bem lembrou o senador Pedro Simon (PMDB-RS), não é a primeira vez que o Congresso se omite de investigar corruptores.

Em 1993, na CPI do Orçamento, grandes empreiteiras que pagavam propina a políticos para garantir obras com o governo foram poupadas. O relatório final, que acusou 18 parlamentares, só foi aprovado por meio de um acordão que deixou os corruptores de fora. Havia, no entanto, o compromisso de, na sequencia, se instalar a CPI das Empreiteiras, coisa que nunca aconteceu.

A reunião que selou o enterro da CPI do Cachoeira apontou na mesma direção: salvar os corruptores. Alegar que os trabalhos precisavam ser interrompidos para que a CPI não fosse contaminada pelo embate eleitoral é pura desfaçatez. A verdade é que daqui a um mês, quando os trabalhos forem retomados, não haverá mais tempo para quebrar sigilos, aprofundar investigações e punir os corruptores.

Restará a frustração com a farsa armada para impedir que o Congresso cumpra seu papel constitucional de fiscalizar o dinheiro público.



RUBENS BUENO, 64, deputado federal pelo PPS-PR, líder do partido na Câmara dos Deputados e membro da CPMI do Cachoeira

Publicado na Folha de S.Paulo, em 16/09/2012.

sábado, 15 de setembro de 2012

Abraços e beijinhos

Marcelo Coelho
 
 
Quando se fala em "bate-boca", a impressão é que todos os envolvidos são desequilibrados ou perderam o controle.
Se houve "bate-boca" na sessão de ontem do Supremo, a responsabilidade coube exclusivamente ao relator do mensalão, Joaquim Barbosa.
Podemos admirar muito a minúcia com que ele analisa o escândalo e concordar com todos os seus votos.
Mas traços desagradabilíssimos da sua personalidade confirmaram-se ontem. Qualquer pessoa, no lugar de Ricardo Lewandowski, teria reagido de forma muito mais violenta do que ele ao ser atacado como foi.
Lewandowski começou tratando de duas acusadas do crime de lavagem de dinheiro, cuja situação, disse, era completamente diferente da dos outros réus. Ou seja, anunciava que iria condenar muita gente no final de seu voto.
Ayanna Tenório já tinha sido absolvida na segunda-feira. O problema era Geiza Dias, funcionária da SMPB, agência de Marcos Valério.
Tratava-se, disse Lewandowski, de personagem menor, subalterna, "transeunte" nos feitos da organização. Era ela quem informava, junto ao Banco Rural, o nome das pessoas que iriam sacar os cheques emitidos por Marcos Valério.
Lewandowski distribui cópias da carteira trabalhista de Geiza: ela ganhava cerca de R$ 1.500 mensais.
Pouco, para um crime tão sofisticado como o de lavagem de dinheiro. Leem-se trechos da correspondência eletrônica entre Geiza e funcionários do Banco Rural. Terminavam com abraços e beijinhos.
Conclusão de Lewandowski: havia certa "candura" da parte de Geiza, mandando esses emails, sem ocultar nada.
"Candura": o termo incluía uma provocaçãozinha amigável. Joaquim Barbosa já tinha estrilado quando o revisor usou a palavra em outra absolvição.
Tudo bem. Foi quando Lewandowski soltou o raciocínio fatal. Era importante ver o lado dos advogados, afirmou, porque é disso que se fala quando se requer a presença do "contraditório" no processo.
Barbosa interrompeu. "Vossa Excelência está insinuando que não levo em conta o contraditório no meu voto?" A pergunta não tinha razão de ser. Mas Barbosa foi daí para pior: reclamou de outros comentários de Lewandowski sobre o andamento "heterodoxo" do julgamento e pediu que ele se ativesse ao próprio voto, emitindo-o "de forma sóbria".
Como assim? Não estou sendo sóbrio? A reação de Lewandowski se fez sem elevar a voz. Explicou que estava dizendo isso apenas em atenção aos estudantes de direito que visitavam o tribunal etc...
Não era o lugar para preocupações acadêmicas, insistiu Barbosa. Houve panos quentes de Celso de Mello e Ayres Britto. Sempre fofinho, Lewandowski ainda disse que estava aprendendo com todos os votos, tal e coisa.
Barbosa continua, insaciável: todos temos suficiente saber para dar nosso julgamento.
Sem dúvida. Não falta saber, nem falta rigor, a Barbosa. Mas falta um mínimo de tranquilidade e disposição para não ver intenções malignas a todo instante. Qualquer hora, sentencia Lewandowski a vários anos de prisão também.
 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/09/2012.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Reféns do fanatismo

Milton Hatoum





É invejável o fervor religioso dos principais candidatos a prefeito de São Paulo. Esses homens pios, indulgentes e generosos causam boa impressão. Juntos, formam uma seleta santidade nesta pecaminosa e desregrada terra Brasilis.

Haja santidade, caros leitores. Haja beija-mão a bispos, pastores, ao clérigo em geral. Um dos candidatos é católico fervoroso e autor de dezenas de livros de autoajuda. Outro tem laços estreitos com uma poderosa igreja neopentecostal. E tudo leva a crer que esse candidato usa o templo e a estrutura dessa igreja. O ideal seria agradar a todos os fiéis num espetacular ato ecumênico. Deus lhes agradeceria, indistintamente. Mas não é bem assim: as disputas inter-religiosas tornam-se cada vez mais acirradas no período pré-eleitoral. Além disso, não há apenas fiéis sob o vasto céu poluído de São Paulo. O que esses candidatos têm a dizer para um número nada desprezível de agnósticos, homens e mulheres que não praticam a fé das três religiões monoteístas nem as dos demais fiéis? O que eles vão dizer aos pecadores sem culpa, que fazem parte de um amplo arco ideológico? Aos libertários e anarquistas radicais, que não são poucos? Como agradar ao mesmo tempo aos milhões de participantes da parada GBTL e aos milhões da Marcha com Jesus? Eis aí um dilema moral. Ou um dilema dos pregadores da moral.

No dia das eleições, será que a maioria do povo vai pensar na devoção religiosa ou nos projetos sociais de cada candidato? Vai pensar em Jesus ou nos princípios éticos e na capacidade administrativa de fulano ou sicrano?

Deus, que em sua infinita piedade é onipresente e onipotente, sabe muito bem como sofrem as paulistanas que moram longe do lugar onde trabalham. São essas mulheres, crentes ou agnósticas, que votam; são elas que não têm onde deixar suas crianças numa creche. Elas e milhões de trabalhadores que, de manhã cedo e no começo da noite, passam horas dentro de um ônibus e de um vagão lotado da CPTM ou do metrô.

A crença ou o sentimento religioso faz parte da esfera íntima de cada pessoa e nada tem a ver com o proselitismo histérico contra o Demônio e suas tentações, ou com curas milagrosas em nome de Jesus. Os candidatos deviam parar com essa romaria bajuladora em busca de votos de fiéis e lembrar que o Estado brasileiro é laico. Deviam esclarecer seus programas e metas, dizer o que é factível em quatro anos de governo municipal, explicar se há recursos para construir creches, escolas, moradias e postos de saúde, melhorar o transporte público e o saneamento básico. Devem expor com clareza um programa de ação para enfrentar os problemas mais sérios da cidade, mas sem demagogia e proselitismo, sem recorrer a promessas delirantes. Prometer o impraticável é golpe baixo. E já se sabe que a promessa vã é a morte do político.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 14/09/2012.