sábado, 28 de abril de 2012

Hoje o STF julgará as cotas

Elio Gaspari



O Supremo Tribunal Federal julgará hoje a constitucionalidade das cotas para afrodescendentes e índios nas universidades públicas brasileiras. No palpite de quem conhece a Corte, o resultado será de, pelo menos, sete votos a favor e quatro contra. Terminará assim um debate que durou mais de uma década e, como outros, do século 19, expôs a retórica de um pedaço do andar de cima que via na iniciativa o prelúdio do fim do mundo.

Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos condenava-se as crianças ao desamparo e à mendicância. "Lei de Herodes", segundo o romancista José de Alencar.

Quatorze anos depois, tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos. Em 1888, veio a Abolição (a última de país americano independente), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem na capoeira e na cachaça.

Como dizia o Visconde de Sinimbu: "A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo". A votação do projeto foi acelerada pelo clamor provocado pelo linchamento de um promotor que protegia negros fugidos no interior de São Paulo. Entre os assassinos, estava James Warne, vulgo "Boi", um fazendeiro americano que emigrara depois da derrota do Sul na Guerra da Secessão.

As cotas seriam coisa para inglês ver, "lumpenescas propostas de reserva de mercado". Estimulariam o ódio racial e baixariam a qualidade dos currículos da universidades. Como dissera o barão de Cotegipe, "brincam com fogo os tais negrófilos". Os cotistas seriam incapazes de acompanhar as aulas.

Passaram-se dez anos, pelo menos 40 universidades instituíram cotas para afrodescendentes e hoje há milhares de negros exercendo suas profissões graças à iniciativa.

O fim do mundo ficou para a próxima. Para quem acha que existe uma coisa como ditadura dos meios de comunicação, no século 21, como no 19, todos os grandes órgãos de imprensa posicionaram-se contra as cotas. Ressalve-se a liberdade assegurada aos articulistas que as defendiam.

Julgando a constitucionalidade das iniciativas das universidades públicas que instituíram as cotas, o Supremo tirará o último caroço da questão. No memorial que encaminharam na defesa do sistema, os advogados Márcio Thomaz Bastos, Luiz Armando Badin e Flávia Annenberg começaram pelos números:

"Em 2008, os negros e pardos correspondiam a 50,6% da população e a 73,7% daqueles que são considerados pobres. (...) Em 1997, 9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos de 25 ou mais idade tinham nível superior".

E concluíram: "A igualdade nunca foi dada em nossa história. Sempre foi uma conquista que exigiu imaginação, risco e, sobretudo, coragem. Hoje não é diferente".

O senador Demóstenes Torres, campeão do combate às cotas, chegou a lembrar que a escravidão era uma instituição africana, o que é verdade, mas não foram os africanos que impuseram as escravatura ao Brasil.

Nas suas palavras: "Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram...."

Hoje o Supremo virará a última página da questão. Ninguém se lembra de James Barne, mas Demóstenes será lembrado por outras coisas.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 25/04/2012.

terça-feira, 24 de abril de 2012

A Argentina tem razão

Luiz Carlos Bresser-Pereira
A Argentina se colocou novamente sob a mira do Norte, do "bom senso" que emana de Washington e Nova York, e decidiu retomar o controle do Estado sobre a YPF, a grande empresa petroleira do país que estava sob o controle de uma empresa espanhola. O governo espanhol está indignado, a empresa protesta, ambos juram que tomarão medidas jurídicas para defender seus interesses. O "Wall Street Journal" afirma que "a decisão vai prejudicar ainda mais a reputação da Argentina junto aos investidores internacionais". Mas, pergunto, o desenvolvimento da Argentina depende dos capitais internacionais, ou são os donos desses capitais que não se conformam quando um país defende seus interesses? E, no caso da indústria petroleira, é razoável que o Estado tenha o controle da principal empresa, ou deve deixar tudo sob o controle de multinacionais?
Em relação à segunda pergunta parece que hoje os países em desenvolvimento têm pouca dúvida.
Quase todos trataram de assumir esse controle; na América Latina, todos, exceto a Argentina.
Não faz sentido deixar sob controle de empresa estrangeira um setor estratégico para o desenvolvimento do país como é o petróleo, especialmente quando essa empresa, em vez de reinvestir seus lucros e aumentar a produção, os remetia para a matriz espanhola.
Além disso, já foi o tempo no qual, quando um país decidia nacionalizar a indústria do petróleo, acontecia o que aconteceu no Irã em 1957. O Reino Unido e a França imediatamente derrubaram o governo democrático que então havia no país e puseram no governo um xá que se pôs imediatamente a serviço das potências imperiais.
Mas o que vai acontecer com a Argentina devido à diminuição dos investimentos das empresas multinacionais? Não é isso um "mal maior"? É isso o que nos dizem todos os dias essas empresas, seus governos, seus economistas e seus jornalistas. Mas um país como a Argentina, que tem doença holandesa moderada (como a brasileira) não precisa, por definição, de capitais estrangeiros, ou seja, não precisa nem deve ter deficit em conta corrente; se tiver deficit é sinal que não neutralizou adequadamente a sobreapreciação crônica da moeda nacional que tem como uma das causas a doença holandesa.
A melhor prova do que estou afirmando é a China, que cresce com enormes superavits em conta corrente. Mas a Argentina é também um bom exemplo. Desde que, em 2002, depreciou o câmbio e reestruturou a dívida externa, teve superavits em conta corrente. E, graças a esses superavits, ou seja, a esse câmbio competitivo, cresceu muito mais que o Brasil. Enquanto, entre 2003 e 2011 o PIB brasileiro cresceu 41%, o PIB argentino cresceu 96%.
Os grandes interessados nos investimentos diretos em países em desenvolvimento são as próprias empresas multinacionais. São elas que capturam os mercados internos desses países sem oferecer em contrapartida seus próprios mercados internos. Para nós, investimentos de empresas multinacionais só interessam quando trazem tecnologia, e a repartem conosco. Não precisamos de seus capitais que, em vez de aumentarem os investimentos totais, apreciam a moeda local e aumentam o consumo. Interessariam se estivessem destinados à exportação, mas, como isso é raro, eles geralmente constituem apenas uma senhoriagem permanente sobre o mercado interno nacional.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 23/04/2012.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Polícia para oligopólios

Vinicius Torres Freire



O leitor vai a uma padaria. Pede um pãozinho, mas recebe um pedaço de massa embolorada. Vai achar que o balconista endoidou. No limite, troca de padaria. Há um mercado de pães para vários gostos e bolsos.

Se acontecer tal coisa em bancos, telefônicas ou TV paga, lá vão dizer não apenas que a gente coma o pão bolorento, mas que pague por isso.

De resto, tal insulto virá depois de termos ficado horas a ouvir um analfabeto mal pago recitar um texto demencial escrito por um analfabeto marqueteiro mais bem pago, dirigido pelo esperto que contratou um exército de subempregados para manter os clientes à distância.

É o que se chama de SAC, serviço de atendimento ao cliente, acrônimo que apropriadamente pronunciamos "SAQUE": de nosso dinheiro, tempo e humor.

O seu banco presta um serviço porco? A quem reclamar? Não há agência que proteja o consumidor de serviços bancários nem de supervisão da concorrência bancária. O Banco Central, em tese, seria vagamente responsável por isso. Essa tese é uma piada.

O oligopólio da TV a cabo está livre para barbarizar. Para as teles, há a Anatel. No papel. O esbulho cotidiano, as indignidades, os prejuízos, nada disso ocupa as agências reguladoras, quando as há.

Economistas, em especial os pululantes na mídia, adoram encher a boca para falar de "respeito a contratos" (entre empresas e governos). Mas esses porta-vozes do dinheiro grosso jamais tratam do respeito ao consumidor (notem: essa é uma queixa liberal). Quantos milhares de horas de trabalho e lazer são perdidas na enrolação do SAC?

Para piorar, muito burocrata de agência de hoje é o diretor de banco ou de telefônica de amanhã. Não tem incentivo para criar caso com o oligopólio. Isso quando a agência inteira não é capturada política ou ideologicamente pelo mercado que deveria regular.

O governo Dilma Rousseff está irritadinho com a banca. Mas qual instituição a presidente propôs para dar um jeito em oligopólios que espoliam a clientela?

O que fazer? Criar agências independentes de fato, com voto para o cidadão. Tipificar precisamente o crime de esbulho do consumidor. Sim, transformar a coisa toda em caso de polícia. As leis de hoje são para inglês ver e faltam delegacias, promotores e tribunais para cuidar do assunto.

O consumidor reclamaria por escrito. A empresa teria prazo para resolver, por escrito. Passou do prazo, delegacia. Não resolveu, inquérito policial para o responsável. Não resolveu? O nome do diretor da empresa vai também para o inquérito.

Sim, a Justiça é o que sabemos. Mas a mera visão de uma delegacia, o nome num inquérito inquietante e a perspectiva de cadeia seriam incentivos para recalcitrantes se emendarem. Apenas multar não basta. E a multa tem de ser pesada o bastante para ameaçar a posição de mercado da empresa que tentasse repassar o custo da punição para o consumidor.

As empresas teriam metas de controle de erros e de solução de problemas. Estourou alegre e repetidamente a meta? Abre-se um processo de inabilitação dos diretores, que ficariam todos impedidos de dirigir empresas por "n" anos.

Algum partido ou parlamentar se habilita?


Publicado na Folha de S.Paulo, em 15/04/2012.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Não é só chilique

Claudia Antunes


Existe uma dissonância maior do que o normal entre o que os opositores de Cristina Kirchner falam dela e a avaliação expressa nas urnas pelos argentinos. Para os críticos, Cristina é uma caricatura: autoritária, dada a chiliques e manipuladora do nacionalismo para encobrir problemas de uma economia que estaria quase falida.

A presidente argentina pode ter um pouco desses traços, mas foi reeleita no ano passado. Agora, tem apoio inclusive da União Cívica Radical, rival histórica do peronismo, para reestatizar a participação da espanhola Repsol na petrolífera YPF.

Condenada com virulência no exterior, a medida é mesmo arriscada. Poderá causar mais dificuldades a um país que já tem pouco acesso a crédito no mercado internacional desde a moratória de 2001. Mas esse não é o único aspecto do caso.

Para começar, a privatização da empresa nos anos 90 -no governo peronista de Carlos Menem, com aval da própria Cristina- foi um ponto fora da curva da tendência que prevalece no mundo. Em geral, petróleo e gás continuam a ser tratados como bens estratégicos, e a maioria dos países produtores tem estatais do setor, o que inclui ditaduras árabes e democracias avançadas.

Depois, há os questionamentos ao desempenho da YPF privatizada. Dados publicados pelo "Valor" mostram que a empresa passou a investir muito menos do que a Petrobras, invertendo a situação anterior. A produção caiu mais de 40% desde 2003, quando os Kirchner chegaram ao poder.

A Repsol argumenta que o controle interno do preço do barril, a um valor menor do que o internacional, tolhia investimentos. Mesmo assim, a operação na Argentina continuava permitindo a remessa de lucros ao exterior.

Há mais do que voluntarismo no rompimento desse contrato.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 19/04/2012.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Caetano Veloso e os elegantes uspianos

Entrevista concedida por Caetano Veloso a Paulo Weneck


 
RESUMO Caetano Veloso comenta o ensaio recém-publicado "Verdade Tropical: Um Percurso do Nosso Tempo", em que Roberto Schwarz faz uma crítica ao livro de memórias do compositor, mas também destaca sua qualidade literária. Caetano fala de silêncios da esquerda, do estigma de conservador e reponde ao ensaísta.

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"Gosto de atrito. É a base do sexo", diz Caetano Veloso à Folha. "Mas não rejeito o antagonismo."

Quinze anos depois de publicar suas memórias da Tropicália em "Verdade Tropical", um antigo antagonista bate à porta de Caetano: o crítico marxista Roberto Schwarz, no ensaio "Verdade Tropical: Um Percurso do Nosso Tempo". O texto, inédito, foi incluído no recém-lançado "Lucrécia versus Martinha" (veja crítica na pág. 6), que a Companhia das Letras lhe enviou em primeira mão.

O ensaio "reconta" criticamente a narrativa, transformando-a na história da conversão de um "menino portador de inquietação" de província a um "novo Caetano", que "festejou a derrocada da esquerda como um momento de libertação". Ao mesmo tempo, põe nas alturas a prosa do baiano.

Schwarz critica seu "traço de personalidade muito à vontade no atrito mas avesso ao antagonismo", as "ambivalências" do tropicalismo, o "patriotismo fantasioso" e "supersticioso" do compositor, sua "defesa do mercado", seu "confusionismo", sua "cumplicidade" com os agentes que o prenderam -e por aí vai.

Em suma, o ensaísta afirma que "Verdade Tropical" "compartilha os pontos de vista e o discurso dos vencedores da ditadura". Em outro momento, recrimina o "regressivo" "amor aos homens da ditadura" que Caetano e Gil expressaram.

"Esse parágrafo de Schwarz é cruel e tolo", rebate Caetano. "A prisão me pôs mais profundamente em inimizade com o projeto dos militares de direita que tomaram o Brasil". Ele reafirma sua "teimosia em permanecer no campo da esquerda", mas também diz ter deixado de temer, em 1967, "palavras como 'conservador' ou 'de direita', como se fossem xingamentos que ostracizam", diz. Direita e esquerda, nos anos da ditadura e hoje, são o foco desta entrevista, concedida por e-mail.

Ele aponta o silêncio de Schwarz e de outros expoentes do pensamento de esquerda, como a filósofa Marilena Chaui, a respeito do totalitarismo em regimes comunistas como a China e a Coreia do Norte: sobre isso, diz ele, "nossos elegantes uspianos nada dizem".

"Verdade Tropical" volta à pauta não somente pelas mãos de Schwarz, mas também pela edição em separado de um de seus capítulos, "Antropofagia", na coleção Grandes Ideias [Penguin Companhia, 72 págs., R$ 10,90].

Em agosto, o compositor completa 70 anos. A gravadora Universal abre as comemorações neste mês, com o relançamento, em CD e LP, de seu cultuado "Transa". Quarentão, o álbum foi remasterizado pelo produtor original, Steve Rooke. Em maio, sai por aqui "Live at Carnegie Hall With David Byrne", já lançado nos EUA. E, em agosto, um tributo com artistas brasileiros e estrangeiros.

Depois de produzir "Recanto", disco de Gal Costa com canções suas, Caetano volta-se para a composição de um novo CD a ser gravado com a banda Cê, que o acompanhou em "Cê" (2006) e "Zii & Zie" (2009).

***

Folha - Roberto Schwarz faz um misto de valorização literária e severa crítica ideológica de "Verdade Tropical", 15 anos depois da publicação. O que retém em sua leitura?

Caetano Veloso - É envaidecedor que Schwarz tenha escrito tanto (e com tanta energia) sobre meu velho livro. Claro que não coincido com o grosso da crítica ideológica. No entanto, retenho a observação de que o argumento desenvolvido a partir da cena central de "Terra em Transe" seja, no livro, um tanto mal concebido.

Por que Schwarz só publica o ensaio 15 anos depois do seu livro?

Não sei. Talvez ele o tenha lido com grande atraso (não 15 anos de atraso, é claro) e demorado muito para decidir-se a discuti-lo publicamente. Talvez ele tenha tardado também em metabolizar o que leu.

Por que o livro renasce agora, com a edição de bolso de um de seus capítulos e a crítica de Schwarz?

Não sei.

Como foi a recepção do livro nos países em que foi publicado?

Foi publicado, em boas traduções, na Itália e na Espanha (e países de língua espanhola). A tradução francesa é horrível. A grega eu não sei ler. De qualquer modo, todas as traduções partem da edição americana (os direitos fora do Brasil e de Portugal são da Knopf), que deformou muito a estrutura do original. Todos os elogios literários que o livro mereceu de Roberto não seriam justificados para quem só lesse as traduções.

Me lembro de que a "New York Times Book Review" deu resenha favorável. Ouço comentários positivos de amigos argentinos, espanhóis e italianos. Também de alguns gregos. Na França parece que, além da tradicional mania francesa de traduzir como quem corrige o original, deram o longo texto a pessoas totalmente desqualificadas intelectualmente: já que se trata de um livro de cantor pop, por que pedir a alguém que saiba ler e escrever para traduzir?

Schwarz vê a relação dos tropicalistas com a esquerda como uma "comédia de desencontros", na qual haveria mais afinidades do que divergências. Seu livro descreve longamente as divergências, e Schwarz agora as reitera. Ainda é possível falar em afinidades?

Claro que há e sempre houve afinidades. Gil e eu, além de Tom Zé e Rogério Duprat, sempre fomos "de esquerda". Nossos amigos foram sempre majoritariamente de esquerda. Na altura do tropicalismo deu-se uma virada em mim, e também em Gil, pelo menos, que exigia repensar tudo por conta própria, desfazendo adesões automáticas. O maior inimigo era esse automatismo.

A cena de "Terra em Transe" é positiva porque expõe a quebra do automatismo ideológico a que artistas e intelectuais se viam presos. Quando o protagonista fala, o tom blasfemo revela tratar-se de um momento liberador. Claro que, uma vez olhando as coisas mais livremente, os males da esquerda apareceriam.

O ensaio atribui a você uma "generalização para a esquerda do nacionalismo superficial dos estudantes que o vaiavam" e a visão da "esquerda como obstáculo à inteligência". Desde então, que renovação você vê na esquerda do ponto de vista cultural?

Toda cartilha ideológica, pode ser -e frequentemente é- obstáculo à inteligência. Eu tinha amigos na extrema esquerda que gostavam do que eu fazia e nada opunham ao tropicalismo.

Já contei em minha coluna no "Globo" como quase dei apoio logístico ao grupo de Marighella, através de minha amiga Lurdinha, uma guerrilheira que foi torturada e a quem [o delegado Sérgio Paranhos] Fleury se refere, numa entrevista, como a pessoa mais corajosa que ele conheceu.

Aliás, Hélio Oiticica, Glauber e Zé Celso eram de esquerda, além de Rubens Gerchman, Zé Agrippino e Rogério Duarte. O "desbunde" foi sobretudo um evento interno ao mundo das esquerdas. Hoje em dia, quando Delfim é defensor de Lula e Dilma e se opõe a FH, gosto da revista "Fevereiro", de Ruy Fausto, e detesto blogs como o de Paulo Henrique Amorim.

Sempre me pergunto por que Roberto Schwarz ou Marilena Chaui nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte (não vale dizer que a "grande imprensa já diz"). Por que Lula e Tarso Genro mandaram de volta, num avião venezuelano, os atletas cubanos que tinham pedido asilo político ao Brasil? Isso é admissível? Ninguém na esquerda reclama de nada disso?

Os esforços intelectuais de [Theodor] Adorno para igualar a vida americana ao Terceiro Reich e à União Soviética só servem para provar repetidas vezes que as liberdades nas democracias liberais são suspeitas: a ostensiva falta de liberdade em países comunistas nunca é combatida, nem eloquentemente, nem cedo.

Quando eu era moço, intelectuais de esquerda dizerem-se anti-stalinistas representava um piso mínimo de elegância: quase nunca passava de uma declaração para se poder continuar sendo comunista. Não havia (como Tony Judt mostrou que não havia na França) um esforço crítico, por parte de intelectuais de esquerda, de se opor aos estados policiais.

É interessante notar que Zizek elogia o imperialismo chinês no Tibete e desculpa as paradas fascistas da Coreia do Norte. Nossos elegantes uspianos nada dizem.

Qual foi a novidade em termos de crítica ao tropicalismo no Brasil e no exterior?

Não leio quase nada sobre tropicalismo. Às vezes esse movimento é citado em publicações sobre música popular, às vezes em artigos acadêmicos (de estudos sobre América Latina ou língua portuguesa). Nada me impressiona muito.

Augusto de Campos e Ferreira Gullar polemizaram em torno de acontecimentos dos anos 1950 e 60, o país discute a Comissão da Verdade, torturadores têm sofrido "esculachos" na porta de casa. A conta dos anos 1960 e 70 não fecha?

Que conta fecha? Mas vamos andando. O ser humano é um desequilibrador. Pessoalmente, sou pela Comissão da Verdade. Há um trecho crucial em "Verdade Tropical", que Schwarz sintomaticamente ignora, em que conto o quanto aprendi sobre a verdade da sociedade brasileira ao ouvir, na cadeia, urros de dor de torturados, os quais não eram nossos companheiros de prisão política. Havia quem dissesse que se tratava de presos políticos vindos de outros quartéis. Mas chegou-se à conclusão de que eram presos comuns, ladrões da Zona Norte, bandidos.

Pois bem, antes da ditadura, durante e depois, esses maus tratos vêm se dando nas delegacias e prisões civis e militares. Se não denunciarmos (e mesmo punirmos) os torturadores que trabalhavam para o Estado, não teremos a saúde social mínima necessária para começar a acabar com isso.

Há um paralelo entre o público dos festivais e os comentaristas de internet e blogueiros de hoje?

Deve haver. Mas não interessa.

O que pensa da Comissão da Verdade e da Lei da Anistia?

Senti que o modelo espanhol da Anistia serviria para o Brasil. Hoje sou totalmente pela Comissão da Verdade e não acho que torturadores devam ser perdoados. Os guerrilheiros foram punidos (inclusive com tortura e morte). É enganoso equiparar os dois tipos de crime.

Você é retratado como um memorialista "comprometido com a vitória da nova situação, para a qual o capitalismo é inquestionável". Como responde à acusação de "conservadorismo" político?

Deixei de temer palavras como "conservador" ou "de direita", como se fossem xingamentos que ostracizam, em 1967. Minha teimosia em permanecer no campo da esquerda vem de minha crença na possibilidade de mudar para melhor o jeito de a gente viver sobre a Terra. Não descarto sequer a eventualidade de alguma violência. Mas estou certo de que o que se chama de esquerda também atrapalha muito.

O mito do Brasil e de sua oportunidade de originalidade me põe numa situação em que posso sonhar mais alto, pondo os horrores das revoluções e seus desdobramentos sob crítica. Por essa razão me atraem mais as sugestões de Mangabeira Unger do que as repetições da esquerda uspiana.

Ele abre espaço para a originalidade do Brasil. Para mim isso é fatal: somos originais, seremos originais ou desapareceremos. O capitalismo não é inquestionável: que a gasolina americana tivesse sido enriquecida com chumbo porque isso a fazia mais rentável, e que o empresário que usou essa vantagem tenha mantido em segredo a descoberta de que o chumbo era prejudicial à saúde pública para não ver cair o lucro; e que, depois de essa descoberta ter-se tornado pública, a gasolina americana tenha reduzido gradativamente até zero seu teor de chumbo, mas a brasileira não, por razões de lucro (com todas as implicações de acumulação de capital e de reafirmação de poderes imperialistas), é algo que expõe a que graus de irracionalidade e de desumanidade pode chegar uma organização social que se submeta à exclusiva força da grana. Sou contra.

Mas não quero que os que lutam contra isso possam ganhar poderes autocráticos. Uma revolução feita a partir da originalidade benigna de um Brasil de sonho deveria não precisar ser sangrenta e poderia, de qualquer modo, orientar os serviços que alguém queira prestar à Justiça de um jeito diferente daquele que tem sido desenvolvido pelos movimentos revolucionários da esquerda convencional. Estes têm levado à autocracia e a Estados policiais. Sou contra.

Além disso, quando se diz "capitalismo" o que é mesmo que se está querendo dizer? O capítulo sobre o conceito no livro de Mangabeira é instigante. E Lacan disse uma vez que "o inconsciente é capitalista".

Schwarz critica o "amor aos homens da ditadura" expresso por Gilberto Gil ao tomar ayahuasca e comenta os seus elogios à letra de "Aquele Abraço": "A lição aplicada pelos militares havia surtido efeito". Como vê essa avaliação severa?

Esse parágrafo de Schwarz é cruel e tolo. A prisão me pôs mais profundamente em inimizade com o projeto dos militares de direita que tomaram o Brasil. A descrição dos solavancos por que passamos não poderia ser desinfetada para agradar aos revolucionários de gabinete. Sou muito franco e apaixonado pela clareza e pela luz.

Gosto mais do esclarecimento do que da Dialética do Esclarecimento, que tanto obscurece. (Aliás, desconfio dessa escolha da palavra "esclarecimento" em lugar de "Iluminismo".)

A lição aplicada pelos militares surtiu efeito em mim: me fez mais realista, mais conhecedor dos pesos concretos da vida. Foi sob a ditadura, sobretudo na prisão, que aprendi a odiar o odiável em nossa sociedade.

Para o ensaísta, há uma discrepância entre as visões de "Verdade Tropical" sobre o Brasil pré-64: ora é descrito como um "ascenso socializante", com sua experiência em Santo Amaro e em Salvador, ora como "um período incubador de intolerância e ameaça à liberdade". Você enxerga essa discrepância?

Eu poderia ter sido um garoto de esquerda, sem desconfianças a respeito sequer do stalinismo. Mas não fui. Me atraiu o livro de Luís Carlos Maciel sobre Beckett, Kafka e Ionesco: a esquerda que eu conhecia era lukacsiana e ninguém falava em Adorno em 1963 em Salvador (embora se falasse muito em Gramsci, o que era pioneiro).

Poderia ter sido um garoto assim e, depois, descoberto que nos países comunistas (não só na URSS e seus satélites, mas na China de Mao, em Cuba, na Coreia do Norte) o Estado desrespeitava oficialmente os mais básicos direitos humanos -e ter me revoltado contra o projeto comunista.

Mas eu era um garoto desconfiado da "ditadura do proletariado", além de ser um sujeito pacato da baixa classe média que sentia natural horror pelo aspecto violento das revoluções.

Descobrir que a experiência do "socialismo real" era de fazer temer os esboços de implantação do comunismo entre nós não foi uma surpresa assustadora. Foi um gradual reconhecimento da complexidade das coisas. Isso aparece em meu livro com todas as idas e vindas por que minha mente passou. Com as nuances e sem evitar as questões que não ficaram resolvidas dentro de mim.

Não é um livro de propaganda ideológica. É um relato em que as reflexões relembradas -ou as sugeridas pela lembrança- acompanham cada passo.

Você se reconhece na descrição que o crítico faz de seu "traço de personalidade muito à vontade no atrito mas avesso ao antagonismo"?

Gosto de atrito. É a base do sexo. Mas não rejeito o antagonismo.

Sou nitidamente contra o Brasil ter devolvido os atletas cubanos. Sou nitidamente contra o manifesto dos militares reformados. Sou nitidamente contra Lula ter apoiado a eleição de Ahmadinejad antes de o próprio Irã decidir se as eleições tinham sido fraudadas ou não.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 15/04/2012.

Os limites do lulismo

Vladimir Safatle


Há alguns anos, o cientista político André Singer cunhou o termo "lulismo" para dar conta do modelo político-econômico implementado no Brasil desde o início do século 21.

Baseado em uma dinâmica de aumento do poder aquisitivo das camadas mais baixas da população por meio do aumento real do salário mínimo, de programas de transferência de renda e de facilidades de crédito para consumo, o lulismo conseguiu criar o fenômeno da "nova classe média".

No plano político, esse aumento do poder aquisitivo da base da pirâmide social foi realizado apoiando-se na constituição de grandes alianças ideologicamente heteróclitas, sob a promessa de que todos ganhariam com os dividendos eleitorais da ascensão social de parcelas expressivas da população.

O resultado foi uma política de baixa capacidade de reforma estrutural e de perpetuação dos impasses políticos do presidencialismo de coalizão brasileiro.

No entanto é bem possível que estejamos no momento de compreensão dos limites do modelo gestado no governo anterior. O aumento exponencial do endividamento das famílias demonstra como elas, atualmente, não têm renda suficiente para dar conta das novas exigências que a ascensão social coloca na mesa.

É fato que o país precisa de uma nova repactuação salarial. As remunerações são, em média, radicalmente baixas e corroídas por gastos que poderiam ser bancados pelo Estado. Por isso, é possível dizer que a próxima etapa do desenvolvimento nacional passe pela recuperação dos salários.

A melhor maneira de fazer isso é por meio de uma certa ação do Estado. Uma família que recebe R$ 3.500 mensais gasta praticamente um terço de sua renda só com educação privada e planos de saúde. Normalmente, tais serviços são de baixa qualidade. Caso fossem fornecidos pelo Estado, tais famílias teriam um ganho de renda que isenção alguma de imposto seria capaz de proporcionar.

Entretanto a universalização de uma escola pública de qualidade e de um serviço de saúde que realmente funcione não pode ser feita sob a dinâmica do lulismo, pois ela exige investimentos estatais só possíveis pela taxação pesada sobre fortunas, lucros bancários e renda da classe alta. Ou seja, isso exige um aumento de impostos sobre aqueles que vivem de maneira nababesca e que têm lucros milionários no sistema financeiro.

Algo dessa natureza exige, por sua vez, uma mobilização política que está fora do quadro de consensos do lulismo.Porém a força política que poderia pressionar essa nova dinâmica ainda não existe no Brasil. Ela pede uma esquerda que não tenha medo de dizer seu nome.

 Publicado na Folha de S.Paulo, em 17/04/2012.

Na defensiva: A esquerda após a crise de 2008. Entrevista com Göran Therborn


Para o sociólogo Göran Therborn, que vem ao Brasil para lançar "Do Marxismo ao Pós-Marxismo?", movimentos como o Occupy e os indignados espanhóis se caracterizam como defensivos, sem virar o jogo político. Aqui, ele analisa economia e política na Europa e nos EUA.

A entrevista é de Eleonora de Lucena e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 08-04-2012.

A crise financeira não tirou a esquerda da defensiva; a direita derrotou a social-democracia na Europa. Mas a falta de saídas neoliberais deve fazer o pêndulo do ciclo eleitoral mudar de tendência. A avaliação é do sociólogo marxista Göran Therborn, professor emérito aposentado da universidade de Cambridge. Nesta entrevista, concedida por e-mail, Therborn, 70, fala das principais eleições no mundo neste ano, do declínio dos EUA e do individualismo.

Ele estará no Brasil nesta semana para o lançamento de seu livro "Do Marxismo ao Pós-Marxismo?" [trad. Rodrigo Nobile, Boitempo, 160 págs., R$ 39]: na terça (10), fala no Tucarena, em São Paulo; na quarta (11), em Porto Alegre, e na sexta (13) em Belém.

Eis a entrevista.

No seu livro "Do Marxismo ao Pós-Marxismo", de 2008, o sr. diz que a esquerda está na defensiva. Ainda está?

No conjunto, sim. O crash financeiro e a aceleração da desigualdade econômica não colocaram a esquerda na ofensiva social em lugar nenhum. Existiram, e ainda existem, alguns movimentos inovadores, como a Democracia Real Ya! e o 15-M, na Espanha, e o Occupy Wall Street. Mas eles não foram capazes de mudar os parâmetros básicos do jogo político nacional. Os grandes protestos na Grécia têm sido claramente lutas defensivas. O movimento estudantil chileno, contra a mercantilização do ensino superior, é uma exceção. Ele foi capaz de se conectar com outras forças sociais e empurrou o arrogante governo Piñera para a defensiva.

Muita coisa mudou de 2008 para 2012: a crise financeira global, a Primavera Árabe. As mudanças o surpreenderam? O seu livro ficou desatualizado por causa delas?

Crises em economias capitalistas não surpreendem um cientista social ou um historiador social, embora prever as datas dos seus surtos seja tão difícil como prever as datas dos verões europeus. Os problemas sociais estavam se acumulando sob as envelhecidas ditaduras e oligarquias árabes, como indico em meu livro. Os incipientes movimentos de protestos foram colocados em um livro que publiquei depois, em dezembro de 2010 - "The World" (ed. Polity). Mas eu não esperava a primavera de revoltas.

É possível dizer que, com essas mudanças, o neoliberalismo está perdendo a hegemonia?

Muitas mudanças estão acontecendo sem uma causa em comum. O crash financeiro do Atlântico Norte não estava conectado com a Primavera Árabe, por exemplo. O crash sacudiu as próprias bases do sistema bancário anglo-saxônico. A crise de 2011 na Eurozona mostrou a capacidade de autodestruição das bolhas de fluxo de capital.

A Primavera Árabe também destacou que a liberalização das economias árabes nada havia conseguido de significativo em relação ao desemprego e às perspectivas sociais dos grandes grupos de jovens. Por enquanto, nenhuma força política está argumentando que a única via para um futuro melhor são mais privatizações e desregulamentações. Por outro lado, nos países mais ricos nenhuma alternativa articulada apareceu.

Alguns pensam que a crise põe a democracia em perigo, como nos anos 1930. O sr. concorda?

A democracia, no seu sentido mais limitado, de eleições livres e competitivas, não está em perigo. O amplo e diversificado estabelecimento do Estado de bem-estar social capitalista significa que os efeitos sociais dos choques econômicos hoje são incomparáveis com a miséria e o desespero criados pela depressão dos anos 1930.

Na Europa Ocidental não há movimentos fascistas com algum significado. O que há são xenófobos, principalmente islamofóbicos. Mas eles não ameaçam a democracia. Na Europa Ocidental, a ameaça à democracia vem da tecnocracia. A crise na Eurozona levou à suspensão de governos democráticos, eleitos, na Grécia e na Itália. Na Europa Oriental a situação é mais incerta.



A social-democracia perdeu credibilidade ao ser parceira do neoliberalismo europeu?

Sim, foi claramente o que aconteceu nas derrotas social-democratas na Grã-Bretanha, na Hungria, em Portugal e na Espanha. Mas, como não há solução liberal, o pêndulo do ciclo eleitoral tende a mudar. A social-democracia alemã está crescendo em pesquisas e nas eleições provinciais, e a vitória do socialista François Hollande na França é ainda uma boa aposta.

Como o sr. analisa as eleições na França, na Grécia e no México?

Hollande está à frente em questões sociais e econômicas. A guerra na Líbia não impulsionou a posição precária de Sarkozy, mas ele agora está ganhando força entre a direita xenófoba. A França é o único grande país capitalista com significativas correntes de extrema esquerda, que ganham entre 10% e 20% dos votos.

A Grécia tem uma esquerda com organização bem mais forte do que a Espanha. Tem chance de se tornar a maior força eleitoral no país. Mas está dividida entre três partidos e outras correntes que não convivem bem entre si. O conservador Nova Democracia pode ganhar por causa da divisão da esquerda. Os social-democratas, que se renderam às pressões da crise, serão os grandes perdedores.

O México tem um habilidoso porta-bandeira da esquerda, López Obrador, que organizou um vasto movimento com raízes nacionais. Mas tem a oposição da mídia e das máquinas do clientelismo. Não é provável que vença.

Qual sua previsão para os EUA?

Obama se revelou um presidente fraco, moderadamente conservador, completamente subserviente aos interesses imperiais dos EUA, o que eu esperava. Está enfrentando uma notável reação da direita. O movimento Tea Party logrou explorar a crise financeira com uma linha de extrema direita, que habilmente deixou de lado questões da crise e da desigualdade econômica. Comparativamente, o movimento Occupy Wall Street é pequeno e pobre. Como as primárias têm demonstrado, o Tea Party e os cristãos fundamentalistas moveram o Partido Republicano de volta para uma era [Barry] Goldwater. Com a incipiente recuperação econômica, é provável que Obama vença, mas certamente não de forma esmagadora como a de Lyndon Johnson em 1964.


Por que o sr. considera a influência dos EUA decadente?

Não considero "decadente", que é um termo moralista, mas em declínio, enfraquecida. O declínio é óbvio. No Egito, os EUA nada puderam fazer para preservar o seu segundo cliente mais caro do mundo (depois de Israel), nem foram capazes de impor um novo regime satélite. Em dezembro, Hugo Chávez lançou uma nova organização latino-americana fora da influência dos EUA, a Celac. Antes de 2000, isso seria impensável.

O declínio da influência norte-americana é acima de tudo geopolítico e ideológico. Suas bases são a ascensão de novos e grandes agentes econômicos (China, Índia, Brasil). Há perda de significado da liderança ideológica dos EUA após o fim da Guerra Fria e a óbvia incapacidade das receitas neoliberais anglo-saxônicas para a nova economia mundial.

A tentativa de substituir a Guerra Fria por uma caçada em grande escala, a guerra ao Terror, nunca foi levada a sério por ninguém fora dos EUA. Cada vez menos pessoas e políticos enxergam os seus interesses como coincidentes com os dos EUA. O risco de ignorar os interesses norte-americanos também diminuiu.

É preciso enfatizar onde não há declínio ou onde ele é muito pequeno. Enquanto a relativa predominância econômica dos EUA decai significativamente, não se deve esquecer que boa parte da vanguarda da economia mundial ainda é norte-americana: Apple, Microsoft, Facebook, Amazon, Boeing. Os EUA ainda são o centro do entretenimento de massa e da pesquisa científica. São a única superpotência militar, e seus gastos militares são mais do que o dobro dos gastos de China, Reino Unido, França, Rússia e Japão juntos.


Como analisa o marxismo hoje?

O marxismo é uma original unidade entre filosofia, análise social e política. Muito dessa unidade foi quebrada. Os políticos comunistas se desvincularam de Marx. Foi decisiva a transformação do capitalismo, com desindustrialização, revolução eletrônica e emergência do capital financeiro.

Tudo isso parou e inverteu a tendência de longo prazo anterior: propriedade coletiva, regulação pública e fortalecimento da classe trabalhadora. A queda da URSS foi um propulsor político, mas, sob uma perspectiva histórica de longo prazo, os impasses do socialismo soviético e da social democracia europeia tiveram as mesmas raízes. O marxismo como identidade coletiva foi seriamente enfraquecido e é improvável que torne a ter a sua força anterior.

Como o sr. analisa a questão do individualismo hoje?

É crucial distinguir entre o individualismo egoísta, fundamentado, do individualismo econômico, do solidário, essencialmente um individualismo existencial. O individualismo egoísta econômico existe no Tea Party. Exemplo. Uma apresentadora de TV protesta contra uma abordagem coletiva para a crise: por que ela deveria pagar a hipoteca do vizinho?

É um individualismo burguês na sua forma extrema, e tanto hoje como historicamente é coabitado com familismo patriarcal. O polo oposto está em movimentos juvenis mais progressistas. É um individualismo existencial, que afirma o direito a um estilo de vida individual, ter cabelo verde, ser bissexual, vegan, punk etc. Mas é capaz de ter empatia com os outros, dando apoio e solidariedade

Publicado na Folha de S.Paulo, em 08/04/2012.

terça-feira, 17 de abril de 2012

O suicídio econômico da Europa

Paul Krugman


No sábado, o jornal The New York Times reportou um fenômeno aparentemente crescente na Europa: "suicídio por crise econômica", pessoas tirando as próprias vidas por desespero com a situação de desemprego e falência de empresa. A matéria é de cortar o coração. Mas estou certo de que não fui o único leitor, especialmente entre economistas, a se perguntar se a história maior não diz respeito tanto a indivíduos como à aparente determinação dos dirigentes europeus de cometer o suicídio econômico do Continente como um todo.

Há apenas alguns meses, eu tinha alguma esperança com a Europa. O leitor talvez se lembre de que, perto do fim do ano passado, a Europa parecia estar à beira de um derretimento financeiro.Mas o Banco Central Europeu (BCE), contraparte europeia do Federal Reserve (Fed) americano, saiu em defesa do Continente. Ele ofereceu linhas de crédito ilimitadas aos bancos europeus desde que eles aceitassem bônus de governos europeus como garantia. Isso sustentou diretamente os bancos e sustentou indiretamente os governos, e acabou com o pânico.

A questão de então era se essa ação corajosa e eficaz seria o começo de um repensar amplo, se os líderes europeus usariam o espaço de desafogo bancário que criaram para reconsiderar as políticas que levaram as coisas àquele ponto.

Mas eles não usaram. Em vez disso, reforçaram suas políticas e ideias falidas. E está ficando cada vez mais difícil acreditar que alguma coisa os fará mudar de rumo.

Considerem o estado de coisas na Espanha, que está agora no epicentro da crise. Nem é o caso falar de recessão. A Espanha está em plena depressão, com a taxa de desemprego total em 23,6%, comparável à dos Estados Unidos nas profundezas da Grande Depressão, e a taxa de desemprego de jovens acima de 50%. Isso não pode continuar - e a percepção disso é que está jogando os custos de captação espanhóis ainda mais para cima.

De certa maneira, realmente não importa como a Espanha chegou a esse ponto, mas quer isso valha ou não, a história espanhola não tem nenhuma semelhança com os contos morais tão populares entre autoridades europeias, especialmente na Alemanha.

A Espanha não estava fiscalmente irresponsável - na véspera da crise, ela estava pouco endividada e com superávit orçamentário. Infelizmente, tinha também uma enorme bolha imobiliária, uma bolha possibilitada, em grande parte, pelos enormes empréstimos de bancos alemães a seus congêneres espanhóis. Quando a bolha estourou, a economia espanhola foi deixada à míngua. Os problemas fiscais da Espanha são uma consequência de sua depressão, não a sua causa.

No entanto, a receita que vem de Berlim e Frankfurt é, o leitor acertou, ainda mais austeridade fiscal.

Isso é, sem medir as palavras, simplesmente insano. A Europa teve vários anos de experiência com programas duros de austeridade, e os resultados são exatamente o que estudantes de história lhes disseram que ocorreria: esses programas empurraram economias deprimidas ainda mais fundo na depressão. E como os investidores olham para o estado da economia de um país quando vão avaliar sua capacidade de saldar dívidas, os programas de austeridade nem sequer funcionaram como uma maneira para reduzir os custos de captação.

Qual é a alternativa? Bem, nos anos 30 - uma era que a Europa moderna está começando a reproduzir em detalhes cada vez mais fiéis - , a condição fundamental para a recuperação era a saída do padrão ouro. A medida equivalente agora seria sair do euro, e a restauração de moedas nacionais. Pode-se dizer que essa medida é inconcebível, e seria de fato enormemente disruptiva tanto econômica como politicamente. Mas o inconcebível é mesmo continuar no curso presente, impondo uma austeridade ainda mais dura a países que já estão sofrendo um desemprego de era da Depressão.

De modo que se os dirigentes europeus realmente quisessem salvar o euro, eles estariam buscando um curso alternativo. E a forma dessa alternativa já está bastante clara, aliás. O Continente precisa de mais políticas monetárias expansionistas, na forma de uma disposição - uma disposição anunciada - da parte do BCE de aceitar uma inflação um pouco mais alta. O banco precisa de mais políticas fiscais expansionistas, na forma de orçamentos na Alemanha que compensem a austeridade na Espanha e em outros países em dificuldade na periferia do Continente, em vez de reforçá-la. Mesmo com essas políticas, os países periféricos enfrentariam anos de tempos difíceis. Mas ao menos haveria alguma esperança de recuperação.

O que estamos vendo realmente, contudo, é uma absoluta inflexibilidade. Em março, líderes europeus assinaram um pacto fiscal que na verdade se fixa na austeridade fiscal como resposta para qualquer e todos os problemas. Enquanto isso, autoridades de peso do banco central estão fazendo questão de enfatizar a disposição do banco de elevar as taxas ao menor indício de um aumento da inflação.

É difícil evitar, portanto, um sentimento de desespero. Em vez de admitir que estiveram errados, os dirigentes europeus parecem determinados a empurrar sua economia - e sua sociedade - para um abismo. E o mundo inteiro pagará o preço.


Tradução de Celso Paciornik

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 17/04/2012.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Primeiros sinais da teia



Janio de Freitas


É uma teia imensa, intrincada e surpreendente que se forma com pessoas, situações e instituições de algum modo incluídas na história, que apenas se começa a perceber, centrada até agora em Carlinhos Cachoeira.

Se a CPI mista decidida pelos presidentes do Senado e da Câmara, José Sarney e Marcos Maia, conseguir aprovação das duas Casas; se conseguir razoável composição; se conseguir fazer trabalho sério e produtivo, nem assim conseguirá penetrar em certos meandros da teia para explicá-los. Seja porque nem o seu grande poder bastaria, seja por dificuldade excessiva.

A Operação Satiagraha, por exemplo, nada tinha a ver com Carlinhos.

Cachoeira e redes clandestinas de jogo. Mas o hoje deputado, e delegado da operação, Protógenes Queiroz, já se vê colhido pela vigilância sigilosa ao círculo de Cachoeira.

O deputado dispõe de incontáveis modos de citar sua atividade policial como motivo dos contatos. Mas não é tão simples.

Protógenes e o então juiz Fausto De Sanctis eram os alvos imediatos da exaltada acusação do ministro Gilmar Mendes, à época da Satiagraha, de que vivíamos "um Estado policial". Como provava, dizia ele, a gravação grampeada de um telefonema seu, no próprio Supremo Tribunal Federal. Com quem era o telefonema?

Com o senador Demóstenes Torres, que confirmou: "Sim, eu conversei por telefone com o ministro Gilmar". E nada mais disse nem lhe foi perguntado, por ninguém. Nem ao menos para saber se tinha ideia de como fora feita a gravação. Sobre a qual também Gilmar Mendes não teve ou não pôde dar qualquer esclarecimento.

Uma coisa, porém, ficou clara à época. A Satiagraha ultrapassou as finalidades que lhe estavam atribuídas e, com isso, tornou-se ela o alvo, por intermédio também dos ataques do ministro ao juiz De Sanctis. Eram muitos a querer encerrá-la. Algo havia batido em uma casa de maribondos.

Ninguém duvide: tanto os arquivos da PF guardam material valioso daquela fase, como parte dele é uma das inspirações da Operação Monte Carlo - esta que levou Cachoeira para a prisão, em fevereiro. E deu nos espantos que aí estão.

Mas por que, se há tanto tempo coletava gravações e outros materiais em torno de Carlinhos Cachoeira, a PF decidiu desfechar sua investida em fevereiro passado?

Tal explicação não aparece no pinga-pinga de seus vazamentos para a imprensa. Em todo caso, por falar em fevereiro, nesse mês ressurgiu das sombras um processo que lembra Carlinhos Cachoeira sem, no entanto, incluí-lo ou sequer citá-lo.

Esse processo ficou cinco anos guardado com o ministro Cezar Peluso, que desde 2005 o recebera para relatá-lo. É a ação do Ministério Público de Goiás contrária, por inconstitucionalidade, a um decreto e uma lei aprovada pela Assembleia goiana em 2000, ambas liberando a exploração de uma tal loteria instantânea.

Outro nome para o jogo em caça-níqueis, especialidade de Cachoeira. O Tribunal de Justiça de Goiás derrotou os procuradores do Ministério Público, que voltaram a recorrer. Mas, como jogo de azar é assunto federal, o recurso foi para o Supremo Tribunal.

Na redistribuição dos processos em mãos de Peluso, quando feito presidente do STF em 2010, o de Goiás foi entregue a Gilmar Mendes. Em abril, foi mandado ao procurador-geral da República para dar parecer. Roberto Gurgel demorou 20 meses para fazê-lo, até meados de dezembro do ano passado. E, afinal, a solução: em fevereiro, o ministro Gilmar Mendes mandou o processo ao arquivo. Com o argumento de que, ainda em Goiás, os procuradores queixosos perderam o prazo para recorrer.

Mas não perderam. Um agravo seu já demonstrara a antecedência da entrega, feita em 19.8. 2002, conforme o recibo. A data posta no recurso pelo tribunal goiano foi, porém, 25.8.2002, adotada por Gilmar Mendes para o arquivamento.

Erro de um dia, dois, seria compreensível. Mas sete dias de erro, uma semana, ao registrar a data do dia em curso, é impossível. Só por má-fé. O poder dos interesses no decreto se preveniram com esperteza.

O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, recorreu para reconsideração de Gilmar Mendes. Não ocorrida, até ontem. O ministro limitou-se a dar entrevista afirmando que uma decisão vinculante do STF, em caso de 2007, já negava validade à exploração do jogo em caça-níqueis.

A decisão de arquivar a ação dos procuradores de Goiás, contra a inconstitucionalidade da liberação do jogo naquele Estado, não considerou a sentença do caso de 2007.

E estamos no começo da história.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 12/04/2012.

Vai fugir da guerra, Dilma?

Denis Russo Burgierman


Os chefes de Estado das Américas vão passar o fim de semana na linda Cartagena das Índias, na costa da Colômbia. O encontro promete as cenas de sempre: discursos sobre o bloqueio a Cuba, provocações de Chávez, sorrisos luminosos de Obama com o mar caribenho ao fundo.

Enquanto isso, a América Latina está se afogando em um banho de sangue. É o pedaço mais violento do mundo, bem mais do que a África. Dos 14 países com maior taxa de assassinatos, sete ficam na América Latina, a começar pelo primeiro da lista, El Salvador, onde a chance de morrer perfurado por uma bala é maior do que no Iraque em guerra.

O Brasil está olímpico competindo pelas posições do topo do ranking dos homicídios: é o 18º colocado, com 26 assassinados em cada 100 mil habitantes, mais que Palestina, Afeganistão e Moçambique. Em números absolutos, levamos o ouro: somos o país onde mais se assassina no mundo.

O motivo de tanta violência é claro como o mar do Caribe: a guerra contra as drogas.

Nos últimos 40 anos, desde que Richard Nixon sentava na cadeira de Obama, os Estados Unidos lideram uma ofensiva repressiva contra as drogas no continente inteiro.

As leis duras dão aos criminosos o monopólio de um mercado muito lucrativo, o que permite que eles sejam mais bem armados e bem pagos do que as forças de segurança.

O resultado é que os índices de violência vão às alturas. Paradoxalmente, o uso de drogas não para de crescer, por causa da falta de investimento em saúde e educação, já que o dinheiro está comprometido com armas e prisões.

A guerra contra as drogas é hoje o maior empecilho ao desenvolvimento latino-americano, afundando empresas, aumentando custos e estraçalhando o turismo. Mas, por muitos anos, nenhum político da região teve coragem de enfrentar esse problema -morriam de medo do grande irmão do norte e de perder votos nas eleições.

Isso começou a mudar. Mês passado, Otto Pérez Molina, presidente da Guatemala, sétimo país mais violento do mundo, defendeu que os países do continente comecem a conversar sobre soluções para o problema -incluindo aí a ideia de criar mercados controlados para a maconha, de forma a diminuir a lucratividade do tráfico e, consequentemente, o tamanho de suas armas.

Não pense que Perez Molina seja um bicho-grilo cabeludo: na verdade, ele é um general linha-dura que se elegeu dizendo que iria "esmagar os carteis com punho de ferro".

Mas ele não é burro. Sabe que não terá chance de vencer enquanto as nossas políticas de drogas enriquecerem o exército inimigo. Apoios à atitude corajosa de Molina pipocaram em países importantes, como Colômbia, México, Argentina, Uruguai e Chile.

Os Estados Unidos fizeram o que se espera deles: mandaram o vice-presidente dar uma bronca em Molina, fizeram pose de indignados. Estão jogando para a torcida: é ano de eleição e Obama não quer a fama de ser "mole com as drogas".

O ex-presidente da Colômbia, Cesar Gaviria, disse que a maioria dos principais oficiais do governo americano já sabe que a guerra contra as drogas foi um erro e que ela só não acaba porque está "funcionando no piloto automático".

No meio dessa confusão, um país é fundamental: o Brasil. Se Dilma apoiar claramente o debate, Brasil, México e Colômbia, as três maiores economias da América Latina, estarão do mesmo lado, defendendo a região de um banho de sangue. Isso precipitaria mudanças no mundo todo.

Mas o Brasil finge que não é com ele. O Itamaraty se recusou a comentar qualquer coisa, além de soltar uma vaga declaração de que o país "não se opõe ao debate". Nossos governantes devem estar ocupados demais escrevendo discursos sobre Cuba.


DENIS RUSSO BURGIERMAN, 38, jornalista, é autor do livro "O Fim da Guerra: a Maconha e a Criação de um Novo Sistema para Lidar com as Drogas" (Leya)

Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/04/2012.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O carnaval acabou

Bill Hinchberger




Com aprovação de 77%, a presidente Dilma Rousseff fez inveja a Obama, mas a "quarta-feira de cinzas" pode chegar antes do esperado

Ao chegar à Casa Branca na segunda feira, a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, trouxe consigo algo que sem dúvida provocou inveja em seu anfitrião, o presidente americano Barack Obama - uma aprovação de impressionantes 77% ao seu governo. Como um dos Brics, instalado confortavelmente no topo do mundo, como queridinho dos investidores internacionais, preparando-se para organizar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, o Brasil se vê arrebatado por um surto nacional de adrenalina comparável - talvez do ponto de vista caricatural - àquilo que as passistas sentem quando entram no sambódromo do Rio para receber os aplausos do público.

A euforia era evidente na mais recente edição do Fórum Econômico Mundial em Davos, na qual o contribuinte brasileiro financiou o evento oficial da noite de sábado. É costume incluir em Davos sessões voltadas especificamente a determinados países, e o Brasil foi mais uma vez o tema de uma sessão do tipo este ano. A principal conclusão pareceu ser a de que os governantes do País devem tomar cuidado para evitar o superaquecimento da economia brasileira.

Ao fim da reunião, um correspondente internacional veterano comentou: "Os brasileiros se consideram mesmo incríveis. Parece que solucionaram todos os problemas". Havia mais do que uma pitada de ironia no que ele disse, talvez porque esse correspondente tenha coberto o "milagre brasileiro" do fim dos anos 60 e início dos 70. Apresentando um crescimento de dois dígitos por um período de cinco anos consecutivos, o "milagre" levou a um excesso de empréstimos e culminou numa "década perdida" de inflação e estagnação após a crise de endividamento da América Latina, em 1982.

Aplicando consistentemente políticas fiscais e sociais extremamente responsáveis do ponto de vista macroeconômico depois de vencer a hiperinflação em meados dos anos 90, o Brasil cresceu constantemente, ainda que não espetacularmente. O País suportou com sucesso o atual declínio global, e começou finalmente a reduzir a desigualdade social, criando uma classe média relevante pela primeira vez em sua história: com atualmente 95 milhões de pessoas, a classe média finalmente passou a representar metade da população.

Talvez tenha de fato chegado a hora de esquecer a antiga piada: "O Brasil é o país do futuro - sempre o será". Talvez seja hora de dar ao autor austríaco Stefan Zweig, mais conhecido no País como autor de Brasil, país do futuro, publicado em 1941, o crédito que merece enquanto profeta.

Os brasileiros estão satisfeitos consigo mesmos. E não estão sozinhos.

Os estrangeiros estão rumando para o Brasil como as hordas que foram à Califórnia em busca do ouro em 1849. O número de moradores estrangeiros cresceu mais de 50% no último ano, passando de pouco menos de 1 milhão para 1,5 milhão de pessoas, de acordo com reportagem do Washington Post. "Agora as pessoas estão nos vendendo o Brasil", disse-me o primeiro presidente da Comissão de Valores Mobiliários brasileira, Roberto Teixeira da Costa, em conversa recente. Hoje membro do conselho diretor de várias das principais empresas brasileiras, Teixeira da Costa resumiu a situação da seguinte maneira: "Como o restante do mundo vive uma situação tão difícil, as pessoas acham que o Brasil é o grande salvador. Antes, éramos o problema. Agora, somos a solução".

Junto com outros membros dos Brics, como Índia e China, o Brasil deve ajudar a manter a economia global funcionando até que todos os demais arrumem a casa. O Banco Santander, principal credor entre os bancos espanhóis, ganha atualmente mais dinheiro no Brasil do que em qualquer outro dos mais de 30 países em que opera: um quarto do seu lucro vem do gigante latino-americano. A General Electric projetou recentemente um aumento total na renda de 25% em toda a América Latina até 2016, esperando que a região apresente desempenho superior ao da Ásia; executivos previram que Brasil, México e Peru estarão na vanguarda dessa tendência. O investimento estrangeiro direto no Brasil atingiu novo recorde pelo segundo ano consecutivo, passando de US$ 48,5 bilhões para US$ 66,7 bilhões em apenas 12 meses.

Mas essa mentalidade típica de uma corrida do ouro parece cegar tanto os governantes quanto os investidores. Alguns brasileiros astutos descrevem a psique do País como bipolar. Todos conhecem o lado positivo do carnaval, do samba, do futebol e das praias. Mas poucos compreendem o lado negativo. Os brasileiros afirmam ter um tipo próprio de melancolia, definido pela palavra "saudade", supostamente impossível de traduzir para outros idiomas. O mais elogiado compositor brasileiro, Tom Jobim, o ícone da Bossa Nova, compôs com o parceiro Vinicius de Moraes uma canção chamada Felicidade, cujo refrão destaca que Tristeza não tem fim / Felicidade, sim. Para tudo se acabar na quarta-feira (de cinzas), como dizem os versos da música e ocorre com o carnaval.

No caso da economia brasileira, o despertador da quarta-feira deve ter soado com o anúncio do crescimento de 2,7% em 2011, uma acentuada queda em relação aos 7,5% de 2010 e muito abaixo do apresentado na maioria dos demais emergentes. De fato, o Santander atribuiu seu lucro abaixo do esperado no último trimestre de 2011 a problemas no Brasil e na Grã-Bretanha.

Nouriel Roubini, o economista que ficou famoso ao prever o colapso do mercado imobiliário americano e a recessão global de 2008 que se seguiu, visitou o Brasil em fevereiro, precisamente durante o período de carnaval. Ao deixar o País, ele não se mostrou nem um pouco eufórico: "Uma sóbria avaliação realista sugere que o Brasil pode desapontar em muitos aspectos nos próximos anos, a não ser que importantes reformas estruturais sejam promovidas". Prevendo um futuro desanimador, ele acrescentou que "esse baixo crescimento potencial deixa o Brasil vulnerável a um ciclo de prosperidade e quebra conforme o País se aproxima rapidamente de sua velocidade máxima".

Por mais que outros fatores como o crescimento da classe média desempenhem um papel claro, o recente crescimento brasileiro decorreu principalmente da capacidade do País de injetar minerais e produtos agrícolas na China. Entre 2000 e 2010, a parcela das exportações brasileiras para a China saltou de 3% para 16%. O dinheiro que entra no País, somado ao investimento estrangeiro direto e ao capital em portfólios de ações, impôs pressão ao real, a moeda brasileira. Os juros brasileiros, mantidos altos para combater a inflação em lugar de reformas envolvendo o sistema tributário e a administração pública, politicamente mais complicadas, atraem os investidores estrangeiros mesmo com o controle de capitais. Os juros americanos, muito próximos do zero, e os problemas na zona do euro exacerbam esse quadro conforme o dinheiro deixa as regiões de baixa lucratividade em busca de oportunidades melhores.

Como resultado, o real apresenta supervalorização de 35% em relação ao dólar americano, de acordo com o índice Big Mac da revista The Economist. O Brasil pode já estar sofrendo da chamada doença holandesa, com sua moeda supervalorizada tornando as exportações mais caras no exterior e os produtos importados mais baratos para os consumidores brasileiros. Isso pode levar o País a uma desindustrialização incipiente: a fabricação doméstica de bens de consumo caiu quase 2% em 2011, enquanto as vendas prosperavam por causa do crescimento na demanda.

O governo brasileiro atribui a culpa pela supervalorização do real àquilo que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, chama de "guerra cambial" - a entrada de um fluxo intenso de capital especulativo que busca lucro no Brasil. Representantes do governo aplicaram medidas pouco expressivas para conter esse fluxo, como um ajuste na tributação dos empréstimos no exterior anunciado em março, prorrogando a aplicação de um imposto de 6% aos empréstimos com vencimento em três anos - antes o imposto incidia sobre os empréstimos com vencimento em dois anos.

Em resposta aos apelos da indústria local, o governo aplicou gradualmente uma série de medidas protecionistas que causaram inquietação do Japão ao México. "O Brasil continua improvisando nas políticas industrial e comercial", queixou-se a colunista Miriam Leitão, que cobre a área de economia para o jornal carioca O Globo. "Ao tentar encontrar saídas de afogadilho para o déficit que apareceu na balança, e para o magro número da indústria em 2011, tudo o que se consegue no governo é repetir o cacoete: protecionismo, vantagens para lobbies e corporações."

Como no filme O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, no qual os convidados de um jantar não conseguem ir embora conforme a noite avança, apesar da inexplicável ausência de barreiras físicas, as soluções para os problemas do Brasil parecem óbvias, mas nunca são implementadas. A maioria dos economistas atribui a responsabilidade pela maioria dos problemas do País àquilo que é chamado de "custo Brasil", um conjunto de fatores que torna mais caros os empreendimentos no Brasil do que na maioria dos países. O Brasil ocupa a 126.ª posição (são 183) no índice do Banco Mundial que lista os países de acordo com a facilidade de conduzir os negócios, perdendo para Bangladesh, Uganda, Suazilândia e Bósnia-Herzegovina.

Suas recomendações para uma mudança costumam incluir as seguintes medidas: simplificar a estrutura tributária, reformar a administração pública e a Previdência Social para aumentar a eficiência e reduzir os gastos, alterar a legislação trabalhista para diminuir o custo da contratação de novos empregados e investir em infraestrutura.

Além disso, uma reforma fiscal daria aos governantes uma ferramenta adicional de combate à inflação, possivelmente permitindo que os juros sejam reduzidos mais rapidamente, estimulando a economia e, ao mesmo tempo, ajudando a conter o capital especulativo.

É verdade que a pauta para redução do custo Brasil é ambiciosa, mas o País progrediu pouco nessas frentes - se é que houve progresso. A infraestrutura poderia parecer vital para a preparação para a Copa do Mundo de 2014 e para a Olimpíada de 2016, mas os investimentos estão tão atrasados que chegaram a render um desagradável episódio diplomático. Um funcionário do alto escalão da federação internacional de futebol, a Fifa, sugeriu recentemente que os organizadores precisavam de "um chute no traseiro" porque estavam atrasados nos preparativos. Os eufóricos brasileiros não gostaram nem um pouco.

Talvez o Brasil esteja vivendo no próprio vácuo. Poderíamos dizer isso sobre sua política econômica. Por mais que fosse de uma popularidade sem igual, o predecessor de Dilma, Luiz Inácio Lula da Silva, teve como principal contribuição à política econômica a atitude de seguir a recomendação do médico e "em primeiro lugar, não causar nenhum mal". Como afirmou o Globo em matéria especial dedicada ao fim do mandato, "o presidente Lula chega ao fim do seu oitavo ano de governo com uma popularidade nunca antes vista por um presidente do País, apesar do seu legado contraditório. Não houve avanços nem melhorias no ensino, na saúde, na segurança pública, no saneamento básico e na infraestrutura, e as reformas necessárias não foram implementadas". De acordo com o sociólogo Ted Goertzel, da Universidade Rutgers, autor de biografias de Lula e seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, "Lula optou por se aposentar com uma popularidade na casa dos 80% em vez de usar essa popularidade para pressionar por reformas controvertidas".

O maior feito de Lula foi provavelmente sua habilidade - digna de Reagan - de fazer com que os brasileiros se sentissem bem a respeito de si mesmos e do seu país - e, vencendo Reagan em seu próprio jogo, convenceu também os estrangeiros: as provas disso são a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.

Mas essa confiança levou ao tipo de convencimento que causou má impressão no correspondente veterano em Davos, cegando os líderes para a necessidade de tratar do problema do custo Brasil. Em sua campanha pela Presidência em 2010, Dilma repreendeu um repórter da Reuters numa entrevista, quando este sugeriu que talvez fosse impossível manter um crescimento de 7% sem a implementação de reformas.

"O ritmo atual de crescimento do Brasil está próximo (desta marca)?", perguntou ela, incisiva. O jornalista teve de reconhecer que a resposta era afirmativa. "Bem, então, me parece que isso é possível, sim." Claramente, o crescimento atual de 2,7% mostra que essa possibilidade não está ocorrendo no momento. E, se Dilma pretende retomar o crescimento da época de Lula, ela terá de lidar com os aliados políticos escolhidos pelo partido dela, o Partido dos Trabalhadores - o PMDB, um partido heterogêneo que não possui nenhuma ideologia política identificável. Tecnicamente, o PMDB confere à presidente a maioria no Congresso, mas seus membros tendem a trabalhar com extrema lentidão nas questões legislativas, a não ser que recebam algum benefício pessoal.

O fato de as pessoas se importarem com o destino da economia brasileira mostra o quanto o País avançou desde que começou a lutar contra a hiperinflação, há quase duas décadas. Mas a história econômica mostra que tudo funciona de acordo com ciclos. A pergunta é: será o próximo declínio do Brasil profundo e prolongado, como a "década perdida" que se seguiu ao "milagre" dos anos 70, ou curto e relativamente indolor, como ocorreu em 2009 quando o País se recuperou prontamente do choque global de 2008? Na ausência de reformas, a primeira opção parece mais provável.

Como os americanos, os brasileiros são donos de um otimismo típico do Novo Mundo, permanecendo animados mesmo durante períodos de crescimento medíocre. Entretanto, sobreviver aos maus momentos não é o suficiente para um salvador, nem para um novo pilar da economia global. A quarta-feira de cinzas pode chegar antes do esperado.


Tradução de Augusto Calil

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 13/04/2012, e na Foreign Affairs