quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Escravos da modernidade

Vladimir Safatle

A obra não era uma hidrelétrica na região Norte ou em algum lugar de difícil acesso, onde sempre é mais complicado descobrir o que se passa. Na verdade, a obra encontrava-se quase na esquina com a avenida Paulista.

Trata-se da reforma de um dos mais conhecidos hospitais da capital paulista, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Ironicamente, a empresa responsável pela obra chama-se "Racional" Engenharia.

Como não podia deixar de ser, a empresa afirmou que os trabalhadores respondiam a uma empresa terceirizada e que os dirigentes desconheciam realidade tão irracional. Este foi o mesmo argumento que a rede espanhola de roupas Zara utilizou quando foi flagrada servindo-se de mão de obra escrava boliviana empregada em oficinas terceirizadas no Bom Retiro.

É muito interessante como empresas que gastam fortunas em publicidade e propaganda institucional são tão pouco cuidadosas no que diz respeito às condições aviltantes de trabalho das quais se beneficiam por meio do truque tosco da terceirização. Quando se contrata uma empresa terceirizada, não é, de fato, complicado averiguar as reais condições a que trabalhadores estão submetidos, se seus turnos são respeitados e se seus alojamentos são decentes.

Há de se perguntar se tal desenvoltura não é resultado da crença de que ninguém nunca perceberá o curto-circuito entre imagens institucionais modernas, requintadas, "racionais", e sistemas medievais de exploração.

No fundo, essa parece ser mais uma faceta de um velho automatismo brasileiro de repetição: discursos cada vez mais elaborados e modernos, práticas cada vez mais arcaicas. Afinal, tal precariedade foi feita em nome de novas práticas trabalhistas, mais flexíveis e adaptadas aos tempos redentores que, enfim, chegaram.

Não mais a rigidez do emprego e do controle dos sindicatos, mas a leveza do paraíso da terceirização, onde todos serão, em um horizonte próximo, empresas. Cada trabalhador, um empresário de si mesmo.

Que essa flexibilidade tenha aberto as portas para uma vulnerabilidade que remete trabalhadores à pura e simples escravidão, isto não retiraria em nada o brilho da ideia. Pois apenas os que temem o risco e a inovação poderiam querer ainda as velhas práticas trabalhistas. Pena que o novo tenha uma cara tão velha.
Pena também que, como os gregos mostrem a cada dia, quem paga o verdadeiro preço do risco sejam, como dizia o velho Marx, os que já perderam tudo.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 21/02/2012.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A busca da felicidade

Marta Suplicy


Ele tem dez anos e tentou me explicar as suas relações familiares: "Minha mãe tem três filhos, dois com meu pai e uma menina com o Ricardo. Ele mora com minha mãe e, às vezes, as duas filhas dele também moram com a gente."

É dia marcado? "Claro! Terça, quinta e fins de semana alternados. Em alguns desses fins de semana, eu e meu irmão vamos para a casa do nosso pai, que se casou e tem mais um filho, que joga bem futebol." Explicação dada na maior tranquilidade.

Conversa com a menina de oito anos, única filha do casal: "Às vezes, meus irmãos implicam comigo. Mas minha mãe já me explicou: eles têm ciúmes. Porque a única que tem pai e mãe juntos sou eu."

Quando era pequena, não existia nenhuma criança na minha classe com pais separados nem mães que trabalhavam fora. Quando me casei, as separações, se bem que raras, já ocorriam. Divórcio não existia e algumas mães, pouquíssimas, já trabalhavam.

Lembro-me que, nos anos 60, minha ex-sogra, mãe de 11 filhos, não podia receber em casa seu irmão recém-separado de Maysa Matarazzo, pois a igreja não permitia. Aos poucos, alguns dos filhos e filhas se separaram e a regra mudou.

Com a pílula anticoncepcional, a liberdade sexual e a entrada para valer da mulher no mercado de trabalho, mudou muito a estrutura da família. Sem falar na justa reivindicação da comunidade gay para que reconhecessem a relação entre duas pessoas do mesmo sexo como união estável, processo que demorou 16 anos.

A sociedade melhorou. Basta lembrar o sofrimento das avós que não tinham alternativa e aturavam um casamento infeliz. E havia aquelas faziam o enfrentamento e eram socialmente discriminadas e outras que apanhavam em silêncio.

Lembro-me que, na época do "TV Mulher" (anos 80), fui convidada para uma palestra sobre psicologia no Piauí. Perguntei às organizadoras se uma senhora que me havia feito perguntas instigantes poderia nos acompanhar num jantar. Saia justa geral com a explicação encabulada: "É melhor não, porque ela é desquitada".

Os anos 80 estão na esquina! Entre "ficar", morar junto, divorciar e casar novamente, não se estranha mais. Foi acionado o gatilho da busca da felicidade. Escrevendo esta coluna, dei-me conta de que essa procura tornou-se mais importante do que a preservação da família tradicional.

As pessoas, quando podem, não ficam com quem não amam. Têm um limiar de tolerância mais baixo e a percepção que merecem ser felizes. O que não mudará no ser humano é a busca do que o psicanalista Wilfred Bion chama de "o encontro de corpo e alma".

Estamos fadados a buscar a felicidade com mais percalços que nossos avós e com mais chances de achar.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/02/2012.

O Irã, a guerra e saudades do Lula

Clóvis Rossi


Os tambores de guerra estão soando alto em torno do Irã e podem acabar levando a um escorregão fatal, sempre possível quando a retórica é incendiária.

Mas há razões objetivas para atacar o Irã de modo a evitar que tenha a bomba atômica? A resposta a essa pergunta vem, em geral, carregada da ideologia de quem a dá por escassas informações de fato confiáveis a respeito do programa nuclear iraniano. Não que, na minha opinião, um ataque se justifique, qualquer que seja o estágio do programa nuclear iraniano.

Mas essa é outra discussão que não cabe aqui, por enquanto.

Voltemos, pois, ao estágio do programa nuclear iraniano. Prefiro ficar com a análise de Cellu Rozenberg, historiador militar da Universidade de Haifa (Israel), exatamente por ser de um país em que o ambiente político-militar o induziria a dizer o contrário do que escreveu para o "Le Figaro": "É inútil tentar decifrar o enigma iraniano e avaliar quando o Irã será capaz de lançar mísseis nucleares sobre Israel ou sobre outros Estados da região. Do dilúvio de informações pretensamente confiáveis reproduzidas ao infinito pela mídia, decorre a impressão de que amanhã de manhã os iranianos vão apertar o botão vermelho. Nada é menos verdadeiro e pode-se mesmo assegurar que o Irã não disporá da arma nuclear em um futuro próximo".

Parece sensato, mas não basta para dissolver a incerteza que é o motivo ou o pretexto para todos os tambores de guerra. Escreve, por exemplo, Robert Farley (Universidade de Kentucky), especialista em assuntos militares:

"Nós não sabemos se os iranianos querem construir a bomba ou se eles podem construir uma bomba ou quando eles poderiam estar aptos a construí-la. Mesmo que a fizessem, as consequências permaneceriam imprevisíveis, porque não sabemos o que fariam com a bomba ou como seus vizinhos reagiriam a uma bomba iraniana."

É necessário acrescentar às incertezas corretamente apontadas por Farley uma outra coleção delas: a maior parte dos analistas duvida que um ataque israelense contra as instalações nucleares iranianas elimine a possibilidade de o país chegar à bomba. Ao contrário: tende a acentuar a disposição de fabricá-la no mínimo como prevenção contra outros ataques. Ninguém sabe também qual seria a reação do Irã e de grupos afins ao regime a um ataque.

Também ninguém sabe qual é a real disposição iraniana de negociar em torno do programa nuclear, apesar de o governo iraniano ter anunciado a disposição de retomar as conversas.

Tudo somado, tem-se que há dúvidas razoáveis sobre se o melhor caminho é apertar as sanções já em vigor, abrir mais espaço para a negociação ou partir para a ação militar.

Retroativamente, acaba ficando claro que, talvez, os Estados Unidos devessem ter dado uma chance para que prosperasse o acordo Brasil/Turquia/Irã de 2010, o último momento em que as posições do governo iraniano ficaram razoavelmente próximas das demandas ocidentais.

Trocar a negociação de então pelas sanções, dias depois, não só não resolveu o problema como, ao contrário, agravou-o, como o demonstra o soar dos tambores de guerra.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/02/2012.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Israel vai atacar o Irã?

Mark Weisbrot

Na semana passada, o "New York Times" divulgou um telefonema interessante ocorrido em janeiro entre o presidente Obama e o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu. De acordo com o jornal, Obama tentou convencer Netanyahu, com algum grau de êxito, de que este não é o momento certo para uma ação militar contra o Irã.

O artigo do NYT observou que "funcionários seniores de Israel viajaram a Washington nas últimas semanas para apresentar o argumento" de que o Irã vai em pouco tempo alcançar o ponto em que um bombardeio não conseguirá mais destruir seu programa nuclear.

Para os brasileiros e americanos que não acompanham essa questão de perto, um processo de lavagem cerebral em massa está sendo realizado por meio da grande imprensa. O Irã -que mesmo o atual secretário da Defesa dos EUA, Leon Panetta, já admitiu que não busca construir uma arma nuclear- é retratado como decidido a fazer isso.

E para quê? Para que possa atacar Israel com uma arma nuclear e assim tornar-se o primeiro país do mundo a cometer suicídio em massa, já que Israel possui armas nucleares suficientes para matar cada iraniano várias vezes. Faz sentido, desde que você parta da premissa de que o suicídio em massa é a maior aspiração iraniana.

Mas a maioria dos especialistas acredita que o Irã busca não armas nucleares, mas a capacidade de produzi-las. Trata-se de uma capacidade compartilhada por Brasil, Argentina, Japão e outros países dotados de reatores nucleares civis -e que poderiam produzir armas nucleares em questão de meses.
O Irã, como esses outros países -e diferentemente de Israel-, cumpre o Tratado de Não Proliferação Nuclear e continuará a fazê-lo mesmo que desenvolva tal capacidade.

Para voltar aos EUA: a boa notícia é que Israel não vai atacar o Irã antes da eleição presidencial americana. Muitas pessoas enxergam Obama como um banana: foi atropelado por seus generais no Afeganistão, por Wall Street na reforma financeira etc. Mas ai de quem tentar atrapalhar a reeleição de Obama. Ele os esmagará. E uma guerra com o Irã, não importa quem a inicie, seria arriscada demais para um ano eleitoral. Vale apostar que Obama tenha recordado aos israelenses quem manda e quem dá bilhões de dólares por ano para quem.

Para deixar a mensagem ainda mais clara, na semana passada dois funcionários da administração Obama que não foram identificados disseram à imprensa que Israel está financiando e treinando terroristas iranianos para que matem cientistas nucleares, incluindo cinco assassinados desde 2007.

Esse suposto vazamento foi mais uma maneira de mostrar aos israelenses que o presidente Obama está falando sério e, possivelmente, que neste momento ele não quer assassinatos políticos, coisas que poderiam aumentar as chances de escalada e guerra.

A má notícia é que a administração Obama, com a ajuda da grande imprensa, ainda está preparando o terreno para uma possível guerra com o Irã no futuro, assim como o presidente Bill Clinton preparou o terreno para seu sucessor invadir o Iraque. E essa é uma guerra que o mundo precisa impedir.

Tradução de CLARA ALLAIN
Publicado na Folha de S.Paulo, em 15/02/2012.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O que é sagrado

Luiz Fernando Veríssimo


Recomendo a quem não leu o artigo publicado na Folha de S.Paulo do último dia 9 de fevereiro, intitulado Ainda o Pinheirinho, do desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de direito civil José Osório de Azevedo Jr. (http://politiqas.blogspot.com/2012/02/ainda-o-pinheirinho.html). O artigo trata da violenta ação de reintegração de posse da área chamada de Pinheirinho, próximo a São José dos Campos, SP, quando 1.500 famílias faveladas foram despejadas e seus precários barracos arrasados num dia. Uma ação que só não teve mortos porque os favelados não tinham como se defender dos tratores e da truculência da polícia, que cumpria ordem da Justiça e do Executivo estadual.

Escreveu o professor Azevedo Jr.: “O grande e imperdoável erro do Judiciário e do Executivo foi prestigiar um direito menor do que aqueles que foram atropelados no cumprimento da ordem. Os direitos dos credores da massa falida proprietária são meros direitos patrimoniais. Eles têm fundamento em uma lei também menor, uma lei ordinária, cuja aplicação não pode contrariar preceitos expressos na Constituição.”

E quais são os preceitos expressos na Constituição que contrariam e se sobrepõem à autorização legal para a terra arrasada, como no caso Pinheirinho? O principal deles está logo no primeiro artigo da Constituição: a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República. Um valor, segundo Azevedo Jr., “que permeia toda a ordem jurídica e obriga a todos os cidadãos, inclusive os chefes de Poderes”. Mas que não deteve a violência em Pinheirinho. Outro princípio constitucional afrontado foi o da função social da propriedade. Que se saiba, a única função social da área em questão, até ser ocupada por gente à procura de um teto, era como garantia para empréstimos bancários do Nagi Nahas.

É comum ouvir-se falar no “sagrado” direito à propriedade. É um direito inquestionável, mas raramente se ouve o mesmo adjetivo aplicado ao direito do cidadão à sua dignidade. Prestigia-se os direitos menores e esquece-se os fundamentais. O maior valor de artigos como o do professor Azevedo Jr. talvez seja o de nos lembrar a espiar a Constituição de vez em quando, e aprender o que merece ser chamado de sagrado.

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 16/02/2012.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A ditadura esfola a Grécia

Clóvis Rossi

A União Europeia está dando mais um aperto na ditadura que impôs à Grécia. Para quem não se lembra, foi a UEquem derrubou George Papandreou, o primeiro-ministro legítimo, eleito fazia dois anos, para colocar em seu lugar o tecnocrata Lucas Papademos, sem passar pelo indispensável escrutínio das urnas.

O interventor nomeado faz tudo o que pede a troica UE/Banco Central Europeu/FMI, os ditadores de plantão. Não adianta nada.

É só conferir os números:

1- A dívida grega saltou para 159,1% do PIB, no terceiro trimestre de 2011, 20 pontos percentuais a mais que um ano antes, quando os ajustes impostos pelos europeus já estavam em curso;

2- A economia grega retrocedeu 5,5% em 2011 e uma nova contração é inevitável neste ano. Com a economia recuando, ninguém consegue pagar suas dívidas;

3- O desemprego já está em 20,9%, só atrás da Espanha na Europa. E só pode aumentar porque uma fatia do novo plano de ajuste exige a demissão de mais 150 mil funcionários públicos até 2015.

Mas a Europa não olha para os fatos e prefere apertar mais a ditadura, ao exigir que o Parlamento grego aprove o novo programa de austeridade, embora seja uma Câmara "pata manca" (as eleições para renová-la estão marcadas para abril). Ora, é elementar na democracia que um programa que afeta a vida do país anos à frente seja votado por um Parlamento renovado, não por um em fim de mandato.

O mais triste é que 11 de cada 10 análises sobre a Grécia culpam os gregos - e apenas os grego s- pela sua tragédia. A história convencional é a de que a Grécia viveu uma esbórnia de consumo financiada pelo endividamento e agora tem que pagar com dor. Não deixa de ser verdade, mas é só parte da verdade.

Primeiro, consumir é a música que mais toca no capitalismo. Logo, os gregos só fizeram o que é de praxe no sistema hegemônico. Segundo, tomaram empréstimos não porque tenham assaltado os bancos, mas sim porque os bancos os ofereceram sem olhar responsavelmente para a capacidade do tomador de devolvê-los algum dia.

Vejamos agora como funcionam as coisas em uma democracia: nos EUA, os bancos também foram irresponsáveis na concessão de créditos hipotecários (as famosas "subprime", origem da grande crise de 2008/09). Abusaram também na execução das hipotecas, quando o tomador não conseguia pagar.

O que fez o governo? Forçou uma negociação pela qual os bancos terão que pagar US$ 26 bilhões para aliviar o drama de 2 milhões de pessoas que ou já perderam suas casas ou estão na iminência de perdê-las porque não conseguem pagar as hipotecas. Ou, posto de outra forma: protegeu-se quem menos pode, e puniu-se quem mais pode.

Na Grécia, ao contrário, quem paga a crise são os trabalhadores de salário mínimo, a ser reduzido, e os aposentados, cujos vencimentos serão cortados. Os bancos só cedem anéis para poderem manter os dedos gordos, ainda mais engordados pelos juros obscenos que cobram para rolar a parte da dívida grega que não será reestruturada.

Ditadura - ainda mais ditadura de mercado - é assim.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 12/02/2012.

À mão armada

Janio de Freitas

A decisão das polícias civis de 22 Estados, de greve simultânea se a Câmara não aprovar logo o projeto chamado de PEC-300, clareia a situação em que o país está desde o primeiro brado na onda de greves com arma na mão. Nada menos do que isto: para fazer felizes os policiais e os bombeiros, é preciso que o Congresso aprove e o governo aplique uma deformação ao sistema constitucional e ao regime político. Sem que a população nem sequer faça ideia do que se esconde sob a sigla PEC-300.

Ainda que a maioria também não saiba, o nome deste país é República Federativa do Brasil. Trata-se de uma Federação, portanto. Ou seja, em termos bem simplificados, uma associação política e econômica de Estados dotados de autonomia administrativa e de um governo central, regidos e limitados todos por uma Constituição Federal, de toda a Federação.

Polícias militares, polícias civis e corpos de bombeiros levam todos o nome do Estado a que pertencem e em que têm jurisdição -Polícia Civil do Estado tal, e seguem os demais. Essas entidades integram a estrutura de administração sobre a qual os Estados têm autonomia. São de decisão estadual uniformes, contingentes, localizações, e outros muitos quesitos. Entre os outros: vencimentos. Como servidores estaduais que aquelas entidades são.

A PEC-300 -proposta de emenda constitucional nº 300- contém a criação de um piso idêntico, em todo o país, para os vencimentos das polícias e dos bombeiros. Como se fossem da estrutura administrativa federal. À primeira vista, não faz diferença para as polícias e os bombeiros que criaram e propagam a onda de greve e ameaças. A medida seria em benefício, acima de tudo, dos seus colegas de Estados com vencimentos piores.

Há mais do que isso, porém. O vencimento nacional é um fator de força inimaginável. A cada pretensão de melhoria, o peso da ameaça de greve não virá de uma polícia, em um Estado. Cobrirá, de cima a baixo, todo o país. A mera ideia de que as polícias militar e civil e os bombeiros podem abandonar a população em todo o país é, para um lado, uma percepção de força incalculável e, para o outro -os governos e a população- um calafrio de terror. Ainda mais com a confiança que as PMs infiltradas têm demonstrado merecer.

Apesar disso, a PEC-300 é tratada como se relativa apenas ao equilíbrio nacional de vencimentos. Pois bem, também por aí, ou sobretudo por aí, a proposta tem má direção. Seu resultado seria a amputação de atribuições estaduais próprias da autonomia no sistema de Federação. Logo, transgressão a um princípio tão essencial da Constituição, que foi elevado ao próprio nome do país.

Um dos problemas mais graves e menos considerados do Brasil é o descaso com seu regime de Federação. A centralização sem limites no governo federal assume tudo, dirige tudo, apropria-se de tudo, oprime tudo, e arrecada tudo.

Com tamanha deformação, os Estados estão reduzidos a pedintes, incapazes de impedir a evasão dos frutos de sua riqueza natural, incapazes de fazer uma pequena ponte ou umas quantas casinhas sem receber a benesse federal, incapazes de ser o que a Constituição diz que são.
E a PEC-300, tocada pela originalidade de greves à mão armada, ainda quer mais deformação.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 12/02/2012.

General do povo, não

Elio Gaspari

A cena de confraternização do general Gonçalves Dias, comandante da 6 Região Militar, com os PMs amotinados de Salvador foi constrangedora e impertinente.

Constrangedora porque o general foi aos amotinados, recebeu um bolo de aniversário e abraçou um deles. Esqueceu-se de que estava no comando de uma operação militar. Desde o início do motim, mais de 135 pessoas foram assassinadas em Salvador. A Assembleia Legislativa fora ocupada. Lojas e casas foram saqueadas. O prejuízo do comércio vai a centenas de milhões de reais, e os rebelados cantavam "Ôôô, o Carnaval acabou".

O general foi impertinente ao dizer o seguinte: "Peço aos senhores: se as pautas que estão sendo discutidas pelos políticos não forem atendidas, vamos voltar a uma negociação. Não poderá haver confronto entre os militares. Eu estarei aqui, bem no meio dos senhores, sem colete".

A primeira impertinência esteve na afirmação de que "as pautas estão sendo discutidas pelo políticos". A negociação estava na alçada dos poderes constituídos, aos quais as Forças Armadas estão subordinadas. A segunda impertinência estava na afirmação de que "não poderá haver confronto entre os militares". Os PMs amotinados não estavam ali como militares, mas como desordeiros, cabeças de ponte de um motim articulado que se estendeu ao Rio de Janeiro. A ideia de que a negociação estava nas mãos dos "políticos" e de que "não poderá haver confronto entre os militares" é subversiva e caquética.

A tropa do Exército é mobilizada para exercer um efeito dissuasório. O discurso do general e a cena do bolo transformaram o poderio militar em alegoria carnavalesca. Se "não poderia haver confronto", com que autoridade um coronel ordenaria a um capitão que respondesse a uma agressão? (No dia seguinte, no peito, cerca de 50 pessoas furaram o cerco da tropa e juntaram-se ao motim. Na quinta-feira, no Rio, a Polícia baixou o pau nos trabalhadores vitimados pela SuperVia.)

No século passado havia os "generais da UDN", e a eles contrapuseram-se os "generais do povo". Deu no que deu. O tenente que em 1964 comandava os tanques que guarneciam o Palácio Laranjeiras tornou-se um dos "doutores" da Casa da Morte, onde se assassinavam presos políticos. Em 1981, estava no carro que jogou a bomba na casa de força do Riocentro. Outra explodiu antes da hora, matou um sargento e estripou um capitão.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 12/02/2012.

Pequenas grandes coisas

Eliane Cantanhêde
Minha filha caçula, orientadora pedagógica e psicóloga de crianças e adolescentes, chorou emocionada ao ouvir pelo rádio a entrevista que o estudante Vitor Soares Cunha deu ao sair do hospital, depois de ser agredido covardemente por jovens como ele.
Vitor, 21, aluno de desenho industrial, passeava com um colega na Ilha do Governador, no Rio, quando viu cinco rapazes bem alimentados espancando um mendigo. Filho de uma assistente social (coincidência?), não pensou duas vezes ao tentar impedi-los. A violência irracional voltou-se contra ele.
Foram socos e pontapés violentos e ininterruptos, atingindo, sobretudo, a cabeça e o rosto de Vitor mesmo quando ele já estava caído no chão, totalmente indefeso.
Depois de horas de cirurgias, placas de titânio na testa e no céu da boca, 63 pinos para recompor os ossos da face e ainda com o risco de perder os movimentos do olho esquerdo, Vitor saiu com sua mãe do hospital e disse, com uma simplicidade atordoante, que não se sentia heroico e que faria tudo novamente.
"Pelo menos uma, duas, três pessoas vão pensar alguma coisa, vão ensinar para os filhos deles. Não adianta pensar que uma atitude vai mudar o mundo, mas pequenas coisas vão mudando", declarou.
Não podemos nem devemos desperdiçar episódios, personagens e frases assim, fundamentais para reforçar que, além do Estado, dos poderosos e dos ídolos, cada um de nós tem de dar o exemplo e ter responsabilidade diante do país e do outro. Uma delas, possivelmente a mais nobre, é a de criar os filhos para o bem.
A comparação entre Vitor e seus agressores nos faz refletir. O Brasil e o mundo serão muito melhores quando pais e escolas educarem as crianças para fazer a coisa certa sem se sentirem heróis, não para se arvorarem fortes e machos ao trucidar um ser humano -ou um animal- jogado na rua, no abandono e na dor.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 12/02/2012.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

EUA: nação indispensável?

Roberto Abdenur


Circula na internet artigo de Zbigniew Brzezinski, ex-assessor de Segurança Nacional dos EUA. Defende ele a tese de que, em caso de declínio e mesmo fracasso dos EUA no plano internacional, se seguirá um mundo perigosamente instável, onde não haverá uma única potência dominante, nem mesmo a China.

Nenhum país será capaz de exercer o papel de líder de uma nova ordem global mais cooperativa, como, segundo ele, se previa para os EUA após a dissolução da URSS. Um mundo hobbesiano tenderá a prevalecer. Certas nações procurarão dominar os respectivos contextos regionais (cita o Brasil como tendo essa pretensão no hemisfério Sul).



O artigo remete, implicitamente, à notória frase da ex-secretária de Estado Madeleine Albright: "Se tivermos que usar a força, o faremos porque somos a América; somos a nação indispensável".

O próprio presidente Obama bateu na mesma tecla, tanto ao receber o prêmio Nobel como no discurso sobre o Estado da União.



Tudo isso vem da longa tradição do "destino manifesto", que supõe mandato quase divino para que os EUA liderem a ordem global, ideia que aparecia em tons bíblicos numa famosa frase de Ronald Reagan, para quem os EUA e sua capital seriam "the shining city" -a nova Jerusalém, a iluminar o mundo.

Isso tudo traz à tona a visão do historiador Niall Ferguson, que em livro sobre a decadência dos impérios lamenta a incapacidade dos EUA de comportar-se como tal, por força de seus não resolvidos problemas econômicos, políticos e sociais.



Ele toca num tema atual: o corrente declínio se deve mais a erros domésticos -desigualdade, polarização ideológica, impasses políticos, pessimismo sobre o futuro- que propriamente a um debilitamento de sua presença nos cenários estratégicos. Esta, goste-se ou não, continua forte nas mais variadas regiões.

E agora, retirando-se dos atoleiros do Iraque e do Afeganistão, trata Washington de reafirmar e reforçar sua predominância militar na Ásia Oriental, como contrapeso à ascensão regional da China.

Mas o fato é que a "indispensabilidade dos EUA", se efetivamente válida para certas questões de índole militar e de segurança, não se afigura tão "indispensável" assim quando em jogo temas multilaterais.

Não raro se opõem os EUA a tratados internacionais (como o de mudança climática ou o do Tribunal Penal Internacional). Ou os cumprem de maneira unilateral e parcial, só naquilo que lhes interessa. Ou recusam a via multilateral para privilegiar negociações bilaterais.



Os EUA foram, inegavelmente, os grandes responsáveis pela organização da ordem internacional no pós-guerra, com a criação de ONU, Banco Mundial, FMI, Gatt (predecessor da OMC). A esta altura, contudo, diante de novos desafios, a "indispensabilidade" parece fazer-se sentir mais pela ausência -ou pela obstrução a arranjos globais- do que pela liderança na articulação de consensos internacionais.

Por isso, como costumava dizer a interlocutores americanos quando embaixador em Washington, para espicaçá-los amistosamente: "não se sabe se os EUA são realmente indispensáveis, mas é fato que são inevitáveis, em qualquer parte do mundo ou qualquer que seja o tema internacional em questão".


Publicado na Folha de S.Paulo, em 08/02/2012.

Na linha de risco

Janio de Freitas

O pior crime, por muitos pontos de vista, dos amotinados em Salvador perdeu suas características, e as atenções, dado o contraste entre a condição indefesa e forçada de suas vítimas e as violências muito mais exibidas pelo motim. O contraste nada muda de fato, porém.
Na reunião fechada de ontem de manhã com o arcebispo Murilo Krieger e outros, os PMs deixaram claro que sua exigência irredutível passa a ser, à margem das várias postas na mesa, a anistia para os 12 amotinados já presos e para os que venham a sê-lo. Não convém duvidar de que o governador Jaques Wagner se achegue, no final, à possibilidade da anistia -afinal uma- ampla, geral e irrestrita.

Nem com a maior capitulação haveria justificativa possível para os PMs pais que usaram ou ainda usam crianças como escudos, expondo-as a consequências gravíssimas. Foi isso mesmo que PMs amotinados fizeram com seus filhos, ao levá-los para invadir a Assembleia Legislativa e ali mantê-los na ocupação. Em meio a homens exasperados. E armados. E desde logo cientes de que outros homens armados viriam reprimi-los.

Até o momento em que escrevo, sete crianças foram retiradas da sua condição de escudos por ordem judicial. Como não há certeza sobre o número de soldados, mulheres -mães ou não- e crianças na invasão, é incerto que não haja outras crianças entre os amotinados.

Para a forma de abuso covarde feito pelos PMs pais, contra a ingenuidade infantil dos próprios filhos e com tantos riscos implícitos, o Estatuo da Criança e do Adolescente é pouco. Anistia seria ou será ato equiparado à atitude anistiada, se for concedida no acordo buscado pelo governo ou passado um tempinho conveniente, mas já previsto.

NO AR

Mal mesmo, muito pior do que o PT, com os negócios do governo envolvendo os aeroportos de Brasília (674% acima do valor mínimo de leilão), Guarulhos (373%) e Viracopos (160%), ficam a Infraero e o setor militar que a controlou por tantos anos, com os piores resultados em todos os sentidos.

Os ágios bilionários comprovam que a exploração de aeroportos, não só no exterior, é negócio de lucros estupendos. Só aqui foi arrasador. Por quê? Porque o Estado não deve ter e controlar aeroportos. São muitos os países e aeroportos que o desmentem. Ou por incompetência e outros problemas dos que impuseram, como militares e por improvados motivos militares, o domínio da Infraero e sua máquina de faturamento?

Devem ser vários os motivos que têm levado tantos jornalistas a chamar de privatização o negócio feito com os aeroportos e malhar o PT, que a teria feito depois das furiosas recusas a privatizações. Mas nem o governo é petista, como o de Lula não foi, nem o PT é mais PT: é um contingente de uso parlamentar do atual governo, assim como no anterior, sem influência em nenhuma política de governo.

Um longo segmento daqueles jornalistas integra a corrente dos nostálgicos do neoliberalismo, e, para eles, chamar de privatização o caso dos aeroportos é um modo de militância -aliás, constante.
Nenhum aeroporto foi privatizado. Nenhum passou a ser propriedade privada. Ninguém compra um aeroporto por 20 ou 25 anos. Foram feitas concessões para exploração a prazos determinados e, em princípio, prorrogáveis. O dono continua sendo o Estado.

Tal como se dá com canais de rádio e TV, com linhas aéreas, com certas explorações minerais e tanto mais. Mas é bom que os neoliberais se divirtam um pouco, esquecidos dos telefonemas, dos precinhos e outros truques das suas reais privatizações, e se esqueçam um pouco dos sucessos que não esperavam nos adversários.

INCORRETO

Pequeno engasgo técnico fez sair sem meu esclarecimento, no Painel do Leitor, a carta de Jair Pinheiro, professor do departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp. Diz ela que "está incorreta" minha afirmação de que "a imprensa não produz escândalo: usa-o". Considera o professor que "a imprensa não produz é a matéria-prima do escândalo: a corrupção. Dispondo desse material em abundância, ela produz escândalos ao sabor das conveniências políticas de cada um".

A imprensa publica notícia com a matéria-prima de fato captado: um gol, um roubo, um desabamento, (mais) um incêndio de favela. Em menor medida, o pudor ferido, a indignação, o desânimo, eventualmente advindos com o conhecimento do fato noticiado, constituem a reação pública que se chama escândalo.

Refiro-me à imprensa, não à imprensa marrom ou amarronzada, que integra outro capítulo.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/02/2012.

Ainda o Pinheirinho

José Osório de Azevedo Jr.


Os fatos são conhecidos: uma decisão judicial de reintegração de posse sobre uma favela. A ocupação começou em 2004, por pessoas necessitadas de moradia.

Segundo a Folha, a proprietária obteve reintegração liminar em 2004. Durante um imbróglio processual, os ocupantes permaneceram. Em 2011, uma nova decisão ordena a reintegração. Foi essa a ordem que o Poder Executivo cumpriu no dia 22 de janeiro, com aparato policial, caminhões e máquinas pesadas.

A ordem era, porém, inexequível, pois, em sete anos, a situação concreta do imóvel e sua qualificação jurídica mudaram radicalmente.

O que era um imóvel rural se tornou um bairro urbano. Foi estabelecida uma favela com vida estável, no seu desconforto. Dir-se-á que a execução da medida mostra que a ordem era exequível. Na verdade, não houve mortes porque ali estava uma população pacífica, pobre e indefesa.

Ninguém duvida da exequibilidade física da ordem judicial, pois todos sabem que soldados e tratores têm força física suficiente para "limpar" qualquer terreno.

O grande e imperdoável erro do Judiciário e do Executivo foi prestigiar um direito menor do que aqueles que foram atropelados no cumprimento da ordem.

Os direitos dos credores da massa falida proprietária são meros direitos patrimoniais. Eles têm fundamento em uma lei também menor, uma lei ordinária, cuja aplicação não pode contrariar preceitos expressos na Constituição.

O principal deles está inscrito logo no art. 1º, III, que indica a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Esse valor permeia toda a ordem jurídica e obriga a todos os cidadãos, inclusive os chefes de Poderes.

As imagens mostram a agressão violenta à dignidade daquelas pessoas. Outro princípio constitucional foi afrontado: o da função social da propriedade. É verdade que a Constituição garante o direito de propriedade. Mas toda vez que o faz, estabelece a restrição: a propriedade deve cumprir sua função social.

Pois bem, a área em questão ficou ociosa por 14 anos, sem cumprir função social alguma. O princípio constitucional da função social da propriedade também obriga não só aos particulares, mas também a todos os Poderes e os seus dirigentes.

O próprio Tribunal de Justiça de São Paulo já consagrou esse princípio inúmeras vezes, inclusive em caso semelhante, em uma tentativa de recuperação da posse de uma favela. O tribunal considerou que a retomada física do imóvel favelado é inviável, pois implica uma operação cirúrgica, sem anestesia, incompatível com a natureza da ordem jurídica, que é inseparável da ordem social. Por isso, impediu a retomada. O proprietário não teve êxito no STJ (recurso especial 75.659-SP).

Tudo isso é dito porque o cidadão comum e o estudante de direito precisam saber que o direito brasileiro não é monolítico. Não é só isso que esse lamentável episódio mostrou. Julgamento e execução foram contrários ao rumo da legislação, dos julgados e da ciência do direito.

Será verdade que uma decisão tem de ser cumprida sempre? Só é verdade para os casos corriqueiros. Não para os casos gravíssimos que vão atingir diretamente muitas pessoas indefesas.

Estranha-se que o governador tenha usado o conhecido chavão segundo o qual decisão judicial não se discute, cumpre-se. Mesmo em casos menos graves, os chefes de Executivo estão habituados a descumprir decisões judiciais. Nas questões dos precatórios, por exemplo, são milhares de decisões judiciais definitivas não cumpridas.

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JOSÉ OSÓRIO DE AZEVEDO JR., 78, é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de direito civil desde 1973

Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/02/2012.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O refundador da diplomacia

Rubens Ricupero



A maior contribuição de Rio Branco não foi haver assegurado ao Brasil 900.000 km de território. Foi obter esse resultado sem disparar um tiro, imprimindo à diplomacia brasileira duradouro caráter pacífico.

Se estamos prestes a completar 142 anos de paz ininterrupta com dez vizinhos (que já foram 11), isso se deve à maneira pela qual se processou a definição do patrimônio territorial.

O ato fundador da política externa de um país é traçar no terreno o espaço da soberania. Quando a definição se faz por conquista e guerra, a herança de rancor e antagonismo perdura às vezes para sempre. Países de passado imperial como a Rússia são condenados a viver quase em permanente estado de tensão e beligerância em relação aos seus vizinhos.

Rio Branco morreu em 10 de fevereiro de 1912, um século atrás. Tinha apenas 20 anos quando começou a Guerra do Paraguai, conflito sobre o qual escreveu extensamente. Compreendeu então que “o recurso à guerra é sempre desgraçado”. Da mesma forma que o barão de Cotegipe, poderia ter exclamado: “Maldita guerra! Vai nos atrasar 50 anos!”.

Embora o Brasil tivesse saído vencedor, a guerra foi interminável e cruenta, deixando sequelas como a “questão militar”, que enfraqueceram a monarquia e acabaram por levá-la à ruína. Seu impacto sobre a geração de Rio Branco e Joaquim Nabuco explica a opção que fizeram pela diplomacia e pelo direito para resolver conflitos.

Rio Branco desejava um Brasil forte e capaz de se defender de agressões. Não partilhava, porém, do fascínio pela força de seus contemporâneos –Bismarck, Theodore Roosevelt–, que conduziria à catástrofe da Primeira Guerra Mundial dois anos após sua morte. Embora valorizasse a herança da diplomacia do Império, considerava encerrada a orientação que, desde 1850, levara o país a envolver-se em sucessivos conflitos no Prata.

Foi o refundador e, a rigor, o criador da política externa contemporânea, ao modernizar o Itamaraty e deslocar o eixo da diplomacia de Londres para Washington, o centro do poder emergente da época. Soube usar a influência dos EUA em favor dos interesses brasileiros.

Antecipou o que hoje se chama de poder inteligente (“smart power”) ao empregar a erudição histórica para triunfar nas arbitragens. Em outros casos, como o do Acre, mostrou-se mestre do moderno conceito de poder brando (“soft power”) ao dosar concessões, trocas de território e compensações financeiras para evitar guerra de conquista. Liquidados os contenciosos de limites, pôde lançar as bases da unidade sul-americana com o Pacto do ABC (Argentina, Brasil e Chile).

No momento em que se começa às vezes a detectar no comportamento brasileiro laivos de recém-adquirida arrogância, convém voltar ao exemplo de equilíbrio e moderação do barão. Comentando a possibilidade de que países latino-americanos pudessem ceder à loucura das hegemonias e da prepotência, dizia ele que o Brasil do futuro continuaria a confiar na força do direito. E saberia conquistar “pela sua cordura, desinteresse e amor da Justiça a consideração e o afeto dos povos vizinhos, em cuja vida interna se absterá de intervir”.

Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda no governo Itamar Franco.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/02/2012.

O silêncio do PT

Aécio Neves


Já passa da hora de vermos a questão cubana além do limite da ótica ideológica.

É visível o incômodo de setores, que se dizem democráticos, de reconhecer o autoritarismo do regime cubano, como se existissem duas Cubas: a real, que muitos preferem não enxergar, e a outra, da fantasia, que cada um constrói no seu imaginário como quer.

Não podemos mais ver o país e o regime dinástico dos irmãos Castro como se a ilha fosse o último enclave da Guerra Fria. Precisamos, isso sim, mobilizar as melhores energias da nossa diplomacia e da comunidade internacional na direção da única realidade que, de fato, interessa: o povo cubano.

São 11,2 milhões de pessoas submetidas ao cotidiano cruelmente caricato das cotas de alimentos, esse malfadado regime das cadernetas, a uma carência crônica, ao desabastecimento histórico, que desmentem, há muito, a fantasia do socialismo igualitário.

Ao mal-estar econômico agrega-se o pior que uma sociedade pode vivenciar: a falta de horizonte para as novas gerações. A imensa maioria da população nasceu pós-Fidel e, portanto, desconhece o usufruto da palavra liberdade, o direito de ir e vir, de discutir, de recusar, de dissentir. "Me sinto como um refém sequestrado por alguém que não escuta nem dá explicações", diz a blogueira Yoani Sánchez, proibida pela 19ª vez de viajar a outros países.

No entanto nem mesmo o isolamento forçado tem conseguido impedir que, pelas frestas da fortaleza do castrismo, infiltre-se a brisa que dá notícia aos cubanos da mais simples equação da vida política de uma nação: não há dignidade possível numa ditadura.

Recordo o ainda nebuloso episódio do asilo-não-asilo aos boxeadores cubanos durante os Jogos Panamericanos do Rio, em 2007. Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara abandonaram a delegação, mas foram recambiados a Cuba pelo governo do PT. Lá os atletas sofreram retaliações. E pensar que o Brasil é tão pródigo em acolher até mesmo criminosos comuns

Os silêncios e os temas evitados na viagem da presidente Dilma a Cuba agridem as consciências democráticas. O mal disfarçado flerte com regimes fechados e totalitários, como o de Cuba e o do Irã, entre outros, expõe publicamente a tentação autoritária que o PT tenta dissimular e que, no entanto, parece estar inscrito no DNA do partido.

A ambiguidade explode em episódios como este. Quem no passado foi perseguida por defender ideias, deveria identificar-se com os perseguidos de hoje, e não sentir-se tão confortavelmente à vontade ao lado de dirigentes de um país onde não há resíduo de democracia há mais de meio século.

Volto a Yoani: "Dilma foi a Cuba com a carteira aberta e os olhos fechados". Foi pouco.


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/02/2012.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

A banalidade da tunga

Elio Gaspari


Os saques dos magistrados felizardos contra a bolsa da Viúva nada têm a ver com corrupção. É coisa pior. Têm a ver com a banalidade de um regime jurídico e tributário que tira dinheiro do andar de baixo e beneficia o de cima, até mesmo quando ele delínque. Quem paga impostos e tem dinheiro a receber se ferra, mas quem não os paga se beneficia.

Nos anos 90, o Congresso concedeu aos parlamentares um auxílio-moradia que hoje está em R$ 3.000 mensais. Seus defensores argumentam que um deputado do Paraná é obrigado a manter casa em Brasília ou a pagar hotel durante a duração do seu mandato e pode perdê-lo na próxima eleição.

Pouco a ver com a magistratura, função vitalícia, de servidores inamovíveis fora de regras estritas.

Em 2000, o Supremo Tribunal Federal estendeu o auxílio-moradia aos desembargadores (que vivem nas capitais e delas não são transferidos). Com o direito reconhecido, os doutores tinham direito aos atrasados.

Tome-se o exemplo do juiz Cezar Peluso, atual presidente do Supremo. Ele entrou na carreira em 1968, aos 26 anos, e passou pelas comarcas de Itapetininga, São Sebastião e Igarapava. Nessa fase deveria receber um auxílio-moradia. E depois? Em 1972, ele foi para São Paulo, onde viveu os 21 anos seguintes. (O crédito de Peluso teria ficado em R$ 700 mil.)

Os magistrados poderiam ter caído num regra perversa da Viúva: "Devo, não nego, pagarei quando puder". Em juridiquês ela se chama fila dos precatórios.

Tome-se outro exemplo, de um policial aposentado que teve reconhecido pela Justiça um crédito de R$ 1 milhão. Ele foi para a fila da choldra.

A dos magistrados seria outra, mesmo assim, os Tribunais de Justiça autorizaram pagamentos por motivos especiais. Um desembargador foi atendido porque estava deprimido; outro, porque choveu na sua casa; um terceiro adoeceu.

No andar de cima, alguns doutores levaram o seu. O policial, no de baixo, ficou na fila até que surgiu a mágica do mercado paralelo de precatórios. Em 2009, uma emenda constitucional permitiu que os créditos fossem negociados, e o policial vendeu o seu por R$ 250 mil.

Tudo bem, problema de quem comprou seu lugar na fila. Não. A emenda permite que os créditos dos precatórios sejam usados para que sonegadores quitem dívidas tributárias.

Diversos Estados regulamentaram esse comércio. No início de janeiro, no Rio, o governador Sergio Cabral promulgou uma lei da Assembleia pela qual os sonegadores de impostos podem quitar suas contas, livres das multas, com abatimento de 50% nos juros de mora, pagando 95% com papéis de precatórios e 5% em dinheiro.

Fica-se assim: o magistrado recebeu de uma vez tudo a que tinha direito. O policial aposentado cansou da fila e preferiu receber 25%. O sonegador que comprou seu precatório transformou R$ 250 mil em R$ 1 milhão.

Admitindo-se que ele devesse R$ 1,2 milhão, livrou-se de R$ 200 mil das multas e quitou o débito gastando R$ 300 mil.

O sonegador economizou R$ 900 mil. Para arrecadar um ervanário desses, a Viúva precisa que um policial cujo salário é de R$ 6.000 mensais pague todos os impostos que lhe deve, ao longo de 32 anos.

Tudo na mais perfeita legalidade.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 01/02/2012.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Operação desastrosa

Hélio Schwartsman


A julgar pelos resultados, a operação policial no Pinheirinho foi desastrosa: algumas pessoas saíram machucadas, famílias ficaram sem ter onde morar e o "imbróglio" judicial em torno da massa falida da Selecta não ficou mais perto do fim.

Boa parte das consequências era previsível antes de o juiz assinar a reintegração de posse e a polícia executá-la. A pergunta é: por que tanta gente participou de uma ação da qual claramente resultaria mais mal do que bem? Respondê-la é tarefa para os novos cientistas do mal, pesquisadores como Roy Baumeister, que se dedicam a estudar como a violência brota e se espalha pela sociedade.

Entre várias descobertas e "insights" valiosos, Baumeister mostra que um modo eficaz de arrebanhar perpetradores para ações cruéis é dividir a responsabilidade, de preferência entre muitos atores, incluindo figuras de autoridade. A psicologia de grupo ensina que, nessas situações, poucos ousarão levantar a voz para denunciar a imoralidade e, como ninguém se sentirá pessoalmente responsável, não deverá opor muita resistência em tomar parte no processo.

Uma receita quase infalível é a preconizada pelo sistema: um juiz defere a reintegração e não tem mais nada a ver com isso; o governador manda a polícia cumprir a determinação judicial e sai de cena; o comandante ordena à tropa que aja, e os soldados, que têm juízo, obedecem. Ninguém é responsável sozinho e, por isso, fica fácil espancar uns pobres diabos e pôr famílias no olho da rua.

Muitas vezes, essa divisão do trabalho e das responsabilidades funciona para o bem, mas nem sempre. Se a ideia é fazer justiça e não só cumprir leis, juízes talvez devessem visitar as áreas a ser reintegradas e conversar com os moradores antes de assinar despachos. Os americanos chamam isso de "igual consideração de interesses", um princípio moral que alguns filósofos consideram tão ou mais importante que a própria noção de direitos.

helio@uol.com.br
Publicado na Folha de S.Paulo, em 28/01/2012.

Pergunta: A reintegração de posse no Pinheirinho, em São José dos Campos, deveria ter acontecido?



João Antonio Wiegerinck

Sim

A manutenção das regras


No episódio ocorrido na comunidade Pinheirinho, é possível notar a evidente congruência de determinados fatores.

São eles: a ocupação e a permanência ilegais em uma área privada; a absoluta inércia de ministérios e secretarias estaduais e municipais vinculadas à habitação; e, ainda, uma decisão judicial mal conduzida pelas autoridades policiais e administrativas.

Com relação à ocupação de uma propriedade privada, só é possível solicitar o usucapião no caso de a posse ter acontecido pacificamente, ou seja, sem nenhuma manifestações do proprietário ao longo dos cinco anos previstos para a modalidade urbana desse instituto legal.

Contudo, o proprietário moveu a ação de reintegração de posse no devido tempo, mas o processo tramitou com lentidão. Tal situação não configura posse pacífica e lícita dos invasores.

É necessário verificar que os ocupantes, até onde foi noticiado, não recolhem impostos como o IPTU ou as taxas da prefeitura. Energia elétrica e água são desviadas da rede oficial. Logo, é presumível que os membros da comunidade soubessem das ilegalidades cometidas desde a fixação de suas moradias.

Ao longo dos oito anos de ocupação, cerca de 70 famílias residentes fizeram inscrições para planos de habitação popular. As demais, não.

Tendo em vista o fato de que o Estado deve agir preventivamente, não esperando que os problemas sociais se transformem em emergências socais, é lógico aferir a incompetência omissiva diante do quadro.

O direito à propriedade é um direito tão antigo quanto o direito à dignidade da pessoa humana na maior parte das constituições ocidentais. Como princípios constitucionais que são, inexiste uma hierarquia científica entre eles ou os demais princípios.

Cabe aos interpretes primários das normas (ou seja, procuradores, promotores, juízes e advogados) acharem a justa medida quando tais princípios entram em colisão.

Por mais que a legislação tenha que ser seguida em nome da ordem geral de uma nação, a parte mais importante do processo em si é a forma de concretizar a interpretação do direito e da Justiça.

No Pinheirinho, diante da omissão do Estado como um todo em agir -fosse construindo casas populares, fosse adquirindo e pagando pela área-, a decisão de desocupação foi embasada na Carta Magna e nas normas infraconstitucionais vigentes e aceitas no país.

Infelizmente, a concretização da decisão não foi conduzida de acordo com as mesmas normas. Seria preciso determinar quais os abrigos receberiam os retirados e conceder aos mesmos tempo suficiente para reunir os seus pertences.

O que não se deve confundir é a maneira equivocada de conduzir a desocupação com um ato desprovido de embasamento jurídico.

A retirada de invasores de uma propriedade adquirida honestamente e pela qual se paga tributos ao Estado é um ato lícito e voltado à boa observância da ordem.

Por isso, o Supremo Tribunal Federal decidiu manter a desocupação. O que precisa ser corrigido é forma de aplicar o direito adquirido.

O que todo cidadão de bem deseja é que a sociedade em que vive ofereça estabilidade na manutenção das regras a serem observadas por todos, sem favorecimentos ou discriminações. Quem tem consciência de estar vivendo ilegalmente sabe que um dia isso será cobrado. Tomara que de agora em diante com mais dignidade e prevenção.

JOÃO ANTONIO WIEGERINCK, 45, é advogado, especialista do Instituto Millenium e professor da Escola Paulista de Direito
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Plínio de Arruda Sampaio

Não

O conluio entre os poderes econômico e político


Até quando os noticiários dos jornais e da televisão mostrarão as cenas degradantes dos despejos de famílias sem-teto?

A mais recente delas, realizada em uma área de São José dos Santos, expulsou famílias que ocupavam, há oito anos, uma área periférica da cidade.

Oito mil policiais foram desviados das suas funções de manutenção da segurança da população para essa inglória tarefa.

Agindo com violência, esses policiais feriram as pessoas, destruíram as casas e os objetos dessa pobre gente, atingindo até as crianças. Foi uma barbaridade.

O promotor público, obrigado por lei a presenciar essas operações, brilhou pela ausência.

Chama a atenção igualmente a ausência de parlamentares, especialmente daqueles pertencentes aos partidos de esquerda.

Com a exceção honrosa do senador Eduardo Suplicy, é muito raro ver parlamentares presentes nesses eventos com a finalidade de prevenir excessos da força policial.

O mais incrível é que o mesmo Estado que realizou o despejo estava negociando com o proprietário do terreno a aquisição da área, para vender aos ocupantes.

Os advogados dessas famílias fizeram um grande esforço para demonstrar à juíza do processo que a solução do problema era uma questão de dias.

Indiferente ao drama humano que sua decisão causaria, a juíza aplicou mecanicamente a lei e determinou o despejo.

Não contente, um juiz de direito acompanhou o despejo e indeferiu de plano, em pleno local, todas as petições que foram apresentadas pelos advogados com o proposito de evitar a execução do mandado.

Só se justificaria a presença de um magistrado em eventos desse tipo se fosse para prevenir excessos da força policial.

No entanto, a presença de um juiz de direito no Pinheirinho não causou nenhuma inibição nos soldados, em uma evidente demonstração do conluio entre o poder econômico e o poder político nos Estados hegemonizados pela burguesia.

Nesses Estados, a prioridade primeiríssima é sempre a defesa do sacrossanto direito de propriedade. Todo o resto -os direitos humanos, a integridade física, os pequenos pertences das pessoas- fica subordinado ao direito maior.

Por isso, o direito à propriedade de um milionário relapso, que deve milhões de tributos não pagos ao Estado brasileiro, justifica o espancamento de pessoas e a destruição de seus bens.

E agora? Como ficam as famílias despejadas? Quem cuidará delas?

Elas obviamente irão ocupar outra área. Serão novamente expulsas e voltarão a sofrer os mesmos vexames e as mesmas violências.

Isso acontece e continuará acontecendo enquanto não houver uma legislação que coíba a especulação imobiliária, porque é ela que causa o aumento extorsivo do preço dos terrenos e, desse modo, exclui as famílias pobres do mercado.

Pacífica, despolitizada e sem organização, essa população tem aceitado a situação intolerável sem recorrer à violência. Até quando?

Isso vai continuar acontecendo enquanto os partidos de esquerda deixarem de cumprir seu papel de conscientizar e organizar essa massa, para que ela resista a esses ataques de armas na mão.

Na hora em que isto for uma realidade, não haverá violência, porque a consciência dessa realidade será suficiente para manter os cassetetes na cintura.

PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, 81, advogado, foi deputado federal pelo PT-SP (1985-1991), consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) e candidato a presidente pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade)