quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Mudanças climáticas na política

Vinicius Torres Freire

A possível debandada do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, e seu grupo para o PMDB e, talvez assim, para a coalizão governista pode vir a ser apenas uma nota de pé de página da história partidária, um acontecimento isolado, mais um movimento passageiro das placas gelatinosas da política brasileira.

Pode ser também a evidência anedótica do desconcerto das forças políticas que não têm participado das vitórias do petismo, forças que por falta de nome melhor a gente vez e outra chama de oposição. Mas pode bem ser um dos vários desdobramentos da reorganização ideológica e partidária posta em marcha nos anos do governo Lula.

Kassab era uma extravagância pefelista, do DEM, plantada exoticamente em São Paulo pelas conveniências de José Serra, do PSDB. O DEM subsiste quase apenas como resquício acidental, marginal e periférico de uma forma de fazer política falecida nos anos 1990, uma sobrevivência do atraso autoritário, de caciques, familismos localizados e heranças de coronéis da ditadura.

No que tinha de mais vivo, o PFL-DEM era agenciador de interessados em se agregar ao poder, mas sem bastante poder para vencer eleições nacionais. Nesse "nicho de mercado", perdeu o lugar para o PMDB, partido que no fim das contas foi capaz de agregar as novas elites regionais do atraso, justamente aqueles grupos que sucederam as oligarquias mais velhas, ligadas à Arena, ao PDS, ao PFL e ao DEM.

Além do caso Kassab, outra evidência anedótica da crise da "oposição" é o fato de políticos como Gabriel Chalita (PSB) terem adotado dupla cidadania -Chalita tem alguma voz no governo de Geraldo Alckmin (PSDB) e é aliado de Dilma Rousseff. De resto, as lideranças restantes do PSDB comem-se vivas.

Talvez os conchavos, acertos menores e as estratégias de sobrevivência de grupos políticos reflitam uma mudança climática importante e mais duradoura. As mudanças ocorridas no governo Lula, devidas ou não à gestão petista, redundaram em mais do que a mera desmoralização do governo tucano, de FHC. O relativo sucesso econômico e os desastres da ideologia mercadista (devidos à crise de 2007-09) abafaram os reclamos de "reformas" (liberais) até entre as elites interessadas em defendê-las ainda ontem.

A resistência do país à crise, a discreta melhoria social e a manutenção de um nível razoável de estabilidade econômica ajudaram, por outro lado, a reforçar um caminho adotado faz mais de 20 anos no Brasil (na Carta de 1988), de desenvolvimento de um Estado de Bem Estar Social "tropical". Não se trata aqui de discutir a qualidade desse modelo, mas os acontecimentos recentes deram ainda mais sustentação à ideia de um Estado grande e provedor de serviços sociais de caráter universal. Ainda mais importantes, os "sucessos" desse modelo social e suas vitórias políticas deixaram pouco espaço para a oposição reconquistar bases sociais e eleitorais.

Essa mudança climática sociopolítica modificou os nichos ecológicos em que viviam grupos políticos e partidos. Temos visto migrações que parecem movimentos isolados, circunstanciais, de quem pretende melhorar suas chances de sobrevivência. Mas pode bem ser que estejamos assistindo a um processo de extinções em massa e de surgimento de novas espécies políticas.


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 27/1/2011.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O aeroporto tá parecendo rodoviária

Antonio Prata

O funcionário do supermercado empacota minhas compras. A freguesa se aproxima com sua cesta e pergunta: "Oi, rapazinho, onde fica a farinha de mandioca?". "Ali, senhora, corredor 3." "Obrigada." "Disponha."

A cena seria trivial, não fosse um pequeno detalhe: o "rapazinho" já passava dos quarenta. Teria a mulher uma particularíssima disfunção neurológica, chamada, digamos etariofasia aguda? Mostra-se a ela uma imagem do Papai Noel e outra do Neymar, pergunta-se: "Quem é o mais velho?", ela hesita, seu indicador vai e vem entre as duas fotos, como um limpador de para-brisa e... Não consegue responder.

Infelizmente, não me parece que a mulher sofresse de uma doença rara. Pelo contrário. A infantilização dos pobres e outros grupos socialmente desvalorizados é recurso antigo, que funciona naturalizando a inferioridade de quem está por baixo e, de quebra, ainda atenua a culpa de quem tá por cima.

Afinal, se fulano é apenas um "rapazinho", faz sentido que ele nos sirva, nos obedeça e, em última instância, submeta-se à tutela de seus senhores, de suas senhoras.

Nos EUA, até a metade do século passado, os brancos chamavam os negros de "boys". Em resposta, surgiu o "man", com o qual os negros passaram a tratar-se uns aos outros, para afirmarem sua integridade.

No Brasil, na segunda década do século XXI, o expediente persiste.

Faz sentido. Em primeiro lugar, porque persiste a desigualdade, mas também porque todo recurso que escamoteie os conflitos encontra por aqui solo fértil; combina com nosso sonso ufanismo: neste país, todo mundo se ama, não?

Pensando nisso, enquanto pagava minhas compras, já começando a ficar com raiva da mulher, imaginei como chamaria o funcionário do supermercado, se estivesse no lugar dela. Então, me vi dizendo: "Ei, "amigo", você sabe onde fica a farinha de mandioca?", e percebi que, pela via oposta, havia caído na mesma arapuca.

Em vez de reafirmar a diferença, reduzindo-o ao status de criança, tentaria anulá-la, promovendo-o ao patamar da amizade. Mas, como nunca havíamos nos visto antes, a máscara cairia, revelando o que eu tentava ocultar: a distância entre quem empurra o carrinho e quem empacota as compras.

"Rapazinho" e "amigo" -ou "chefe", "meu rei", "brother", "queridão"- são dois lados da mesma moeda: a incapacidade de ver, naquele que me serve, um cidadão, um igual.

Não é de se admirar que, nesta sociedade ainda marcada pela mentalidade escravocrata, haja uma onda de preconceito com o alargamento da classe C, que tornou-se explícito nas manifestações de ódio aos nordestinos, via Twitter e Facebook, no fim do ano passado.

Mas o bordão que melhor exemplifica o susto e o desprezo da classe A pelos pobres, ou ex-pobres que agora têm dinheiro para frequentar certos ambientes antes fechados a eles, é: "Credo, esse aeroporto tá parecendo uma rodoviária!". De tão repetido, tem tudo para se tornar o "Você sabe com quem está falando?!" do início do século XXI. Se o Brasil continuar crescendo e distribuindo renda, os rapazinhos, que horror!, ganharão cada vez mais espaço e a coisa só deve piorar. É preocupante. Nesse ritmo, num futuro próximo, quem é que vai empacotar nossas compras?


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 19/1/2011.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Tempestade no deserto

Vladimir Safatle


Na semana passada, o mundo viu um evento capaz de abrir novos rumos numa das regiões mais turbulentas do planeta. Depois de 23 anos de um regime ditatorial apoiado de maneira incondicional pelo Ocidente, o povo tunisiano derrubou o governo Ben Ali.

Durante um mês de protestos reprimidos de maneira brutal pela polícia, com dezenas de mortos, não se ouviu uma única frase de dirigentes ocidentais cobrando respeito aos direitos humanos.

Ao contrário, depois de um dia particularmente sangrento de confronto, tudo o que o governo francês (antiga potencial colonial que ainda mantém sua influência sobre o país) sugeriu foi "uma cooperação policial". Talvez os franceses imaginassem assim colaborar com os direitos humanos, quem sabe ensinando os policiais tunisianos a usarem o cassetete sem estourar a cabeça de manifestantes.

O que se passou na Tunísia nos mostra claramente a real matriz dos problemas no mundo árabe. Regimes corruptos e ditatoriais como o do "presidente" Ben Ali são apoiados, sem reserva alguma, por aqueles que pregam "democracia" contra seus inimigos do dia. EUA, França, Reino Unido não veem problemas em tratar como aliados os autocratas instalados em Marrocos, Egito (com seu "presidente" no poder há 30 anos), Arábia Saudita, Jordânia, Paquistão, sem falar do vergonhoso governo do Afeganistão com suas eleições de fachada.

Ou seja, para um árabe, "democracia ocidental" é um sintagma associado necessariamente aos governos que apoiam ditaduras na região e que lutaram para destruir regimes nacionalistas como os de Mossadegh, no Irã.

Nos últimos anos, principalmente após a revolução iraniana, os árabes lutaram contra esse fechamento do universo político por meio do retorno à força de mobilização identitária da crença religiosa. Ou seja, longe de ser um arcaísmo dessas sociedades, o fundamentalismo é um fenômeno recente resultante do esvaziamento do campo político.

Conhecemos o resultado catastrófico desse retorno do teológico. Agora, os tunisianos mostram que outra via é possível. A revolta tunisiana é uma recuperação do campo político, que pode permitir, a essa parte do mundo, reconstruir o sentido de uma democracia com participação popular efetiva. A maneira silenciosa com que os países árabes receberam a notícia da revolta no país demonstra como esse é o verdadeiro medo de seus governos.

No entanto, essa é a única arma realmente eficaz contra o fundamentalismo islâmico.

Quanto mais o espaço do político for o verdadeiro campo dos conflitos sociais, menos as derivas identitárias religiosas terão força.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/01/2011

domingo, 16 de janeiro de 2011

A autoridade que espero

Contardo Calligaris


"O que esperamos", em português, é uma expressão complexa: pode significar o que gostaríamos que acontecesse (é o sentido do francês "espérer" e do inglês "to hope") ou apenas o que antecipamos (é o sentido do francês "s'attendre à" e do inglês "to expect").

Na semana retrasada, uma reportagem da revista "Veja" me perguntou o que eu esperava dos primeiros cem dias do governo Dilma. Respondi: "Espero ser tratado como gente grande. (...) Espero que a presidente não ache que é meu pai nem a minha mãe".

Minha resposta respeitou o duplo sentido de esperar: escolhi algo que desejo e também antevejo que possa acontecer no governo Dilma.

Na presidência Lula (que foi, ao meu ver, uma grande Presidência para o país), a única coisa que realmente me ouriçou foi o paternalismo. Disso não vou sentir falta. E ninguém deveria -pois, no balanço positivo dos oito anos, acredito que quase todas as manchas tenham sua origem no paternalismo.

O paternalismo explica a escolha de colaboradores mais por vínculos afetivos do que por competência ou probidade e explica, em geral, a dificuldade em reconhecer que a lei se situa acima dos laços de amizade e de família (veja-se o caso final dos passaportes diplomáticos concedidos aos filhos de Lula).

Por que o paternalismo me incomoda tanto?

Tive pai e mãe ótimos e, ainda hoje, às vezes, gostaria que estivessem aqui para me orientar. Mas não deixo ninguém se colocar no lugar deles. Isso não me exige um esforço grande, pois o lugar da minha mente que eles ocupavam antes que eu alcançasse minha (relativa) autonomia já não existe mais, há tempos.

Desfazer-me desse lugar não foi automático; em grande parte, foi o resultado do processo de minha análise. Uma psicanálise, aliás, poderia se definir como o esforço para se desfazer de figuras paternas internalizadas, que tiveram uma função no atrapalhado caminho pelo qual nos tornamos adultos, mas das quais não precisamos mais.

O paternalismo é o avesso desse esforço: ele quer que a experiência adulta da autoridade seja moldada pela nossa neurose familiar básica.

O paternalismo acha bom que, para nós, toda figura de autoridade se pareça com uma mamãe ou um papai, cuidadosos e/ou severos. Também o paternalismo acha bom que, do agente de trânsito ao presidente, do professor à enfermeira, as figuras de autoridade pensem que elas podem mandar na gente porque nos amam como os pais amam seus filhos.

A neurose faz com que, na vida adulta, nós tendamos a viver todas as relações como extensões dos afetos familiares no meio dos quais crescemos. No caso que nos interessa, estaríamos prontos a sermos bons meninos diante de um governante que nos convença de que ele é nosso pai ou nossa mãe (o que não vai ser difícil, pois isso é exatamente o que queremos acreditar).

Minha esperança é que, com Dilma, o governo não se prevaleça dessa neurose quase universal. Espero, por exemplo, que a presidente me peça para pagar mais impostos porque a boa administração do país exige esse esforço -não porque ela é uma mãe para mim, e, portanto, eu me comportarei bem.

Por que espero isso? Simples: a autoridade que se funda num vínculo afetivo é descontrolada e incontrolável. Quem ousaria discutir e limitar a suposta intenção amorosa dos "pais"? Como o "filho" ousaria inquirir o pai e a mãe? O paternalismo é quase sempre tentado pelo autoritarismo mais arbitrário. Por seu trajeto, espero que Dilma tenha pouca simpatia pelo autoritarismo sob todas suas formas.

Alguém, tendo lido minha resposta à "Veja", perguntou: mas não é normal que a relação com o pai e a mãe seja para nós o modelo de toda relação com a autoridade? Não é isso que a psicanálise nos diz?

Não é. A família é o sistema que inventamos para lidar com as crianças estranhamente prematuras que todos somos -crianças que precisam de cuidados e orientação durante um quinto de suas vidas. Pensar que a família, por ser o quadro em que descobrimos a autoridade, seja também seu modelo "natural" equivaleria a pensar que toda sexualidade, por ter começado com papai e mamãe, deva ser edípica, para sempre.

A psicanálise pensa (e espera) o contrário, ou seja, que a gente cresça e, no caso, que nossa (inevitável) relação com a autoridade deixe de ser parasitada pelos restos da neurose familiar.


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/01/2011 e no blog www.contardocalligaris.blogspot.com

domingo, 9 de janeiro de 2011

Para compreender melhor o Irã

Marcia Camargos


Muito se tem falado sobre direitos humanos no Irã. O caso de Sakineh Ashtiani, presa em maio de 2006, acusada de adultério e envolvimento no assassinato do marido, levantou uma onda de protestos.

Ora, por mais abominável que seja sua condenação à morte por lapidação, comutada para forca ou prisão perpétua, é preciso notar como a mídia se mostrou tão indignada perante essa pena, mas complacente com as execuções nos Estados Unidos e cega diante das graves violações na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes, no Egito e em outras nações aliadas do Ocidente.

Isso sem mencionar Guantánamo e Abu Ghraib, os ilegais "assassinatos dirigidos" e os mais de 7.000 prisioneiros políticos mantidos pelo Estado de Israel, inúmeros dos quais como "presos administrativos", sem acusação formal ou processo na Justiça.

Na esteira do endosso ao isolamento do Irã, a imprensa tampouco informa sobre a resistência interna.

Dela participam clérigos não vinculados ao governo, que pregam uma reforma no sistema legal dentro das normas do islã. De acordo com Shirin Ebadi, advogada iraniana e Prêmio Nobel da Paz, o apedrejamento tem sido criticado, há tempos, por uma série de juristas islâmicos, notadamente o aiatolá Yousef Saanei.

Para além da falta de divulgação da dissidência no Irã, o fato é que a retórica de guerra dos Estados Unidos e da Europa, bem como sanções aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU, atrapalha o avanço do movimento de contestação ao regime.

Ao não dar voz aos que lutam por mudanças no âmbito doméstico, transmite-se a ideia de que a solução passaria por uma pressão ou "castigo" da comunidade internacional. Por trás disso esconde-se a noção colonialista de que os iranianos precisam do Ocidente para seu bem-estar e proteção.

Nesse contexto, a propaganda em torno de Sakineh ganha uma importância estratégica mundial, no sentido de convencer a opinião pública a enxergar com olhos favoráveis um eventual ataque ao Irã.

Qualquer tipo de sanção, porém, está fincada em razões econômicas, e não em questões humanitárias. Na verdade, diz respeito ao programa nuclear iraniano, cuja origem é igualmente "esquecida" pela mídia. Cabe lembrar que ele surgiu no final da década de 1950 e só passou a ser combatido após a substituição do governo colaboracionista do xá Reza Pahlavi pelo do aiatolá Khomeini, em 1979.

Antes disso, o país, que comprava combustível nuclear dos EUA, ergueu em 1967 seu primeiro Centro de Pesquisas Nucleares de Teerã e planejou a construção de até 20 usinas nucleares por orientação do Stanford Institute, indicando a necessidade de produzir 20 mil megawatts de energia atômica até 1994.

A partir da Revolução Islâmica, os Estados Unidos suspenderam o apoio, barraram a cooperação com empresas francesas e alemãs e impediram acordos com China, África do Sul e Argentina, alegando que o programa tinha finalidade bélica.

No entanto, os inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica, que monitoram o Irã desde 2002, não encontraram evidência da sua capacidade iminente de produção de armas nucleares.

Conclusão semelhante não impediu a invasão do Iraque.

MARCIA CAMARGOS é jornalista com pós-doutorado em história pela USP e autora do livro "O Irã sob o Chador", relato da sua viagem ao país em 2008.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/01/2011.

Ascensão na raça

Entrevista com BENEDICTO FONSECA FILHO

depoimento a Juliana Rocha


Meu pai foi agente de portaria, um contínuo (...) O preconceito nunca se apresenta claramente. No campo das relações humanas, você nota reação positiva ou negativa (...) É preciso que haja ações afirmativas (...) Eu não me beneficiei de nenhuma política. Na minha época, isso não havia.

Filho de um contínuo, Benedicto Fonseca Filho, 47, foi promovido em dezembro a embaixador, o primeiro negro de carreira. E o mais jovem. Passou por Buenos Aires, Tel Aviv e Nova York. Vai chefiar o departamento de Ciência e Tecnologia. Ele declara orgulho de ser negro e filho de pais humildes que o educaram para chegar ao topo na casa mais aristocrática do país.

Nasci no Rio, em 1963. Mudei para Brasília em 1970 porque meu pai veio ser funcionário do Itamaraty. Ele foi agente de portaria, que é um contínuo. Quando eu tinha nove anos, toda a família foi para a [antiga] Checoslováquia [no leste europeu], quando meu pai foi removido para Praga por três anos.


Naquele tempo, todos os funcionários das embaixadas eram de carreira. Hoje, esses são terceirizados. Foi essa experiência internacional que me despertou o interesse pelo Itamaraty. Talvez por ter estudado em escolas internacionais, na escola francesa e na americana.

Meu pai e minha mãe, na sua humildade, nunca pouparam esforços para nos proporcionar as melhores condições de estudo.

Hoje, meu pai tem 84 anos, já é aposentado há 14. Minha maior satisfação foi eu ser promovido com ele ainda vivo. Ele ficou tão ou mais contente do que eu.

Fiz o concurso [do Itamaraty] em 1985 e entrei de primeira, aos 22 anos. Quando saiu a lista dos aprovados, um jornal de Brasília fez uma matéria que dizia: "Mulher e negro passam em primeiro lugar no Rio Branco". A mulher foi o primeiro lugar e eu, o segundo.

Vinte e cinco anos depois, uma mulher passar em primeiro lugar já não causa tanto espanto. Naquela época, tinha só uma mulher embaixadora.

Hoje, são várias mulheres embaixadoras, acho que 20, ocupando postos importantes. Talvez chame muito mais atenção quando um negro ascende na carreira do que uma mulher.

Em relação à diversidade racial já avançamos muito, mas ainda temos muito que avançar. Houve um olhar para essa questão na gestão do ministro Celso Amorim.

PRECONCEITO

O preconceito nunca se apresenta claramente. No campo das relações humanas, você nota reação positiva ou negativa das pessoas.

Mas seria leviano dizer que eu experimentei uma situação que pudesse identificar como preconceito [no Itamaraty]. Nunca houve.

Me lembro de um caso [de reação positiva]. A primeira vez que fui à ONU em 2004, um colega do Caribe me chamou no canto para dizer que pela primeira vez via um diplomata negro na delegação brasileira.

Ele enfatizou: "It's the first time ever, ever. We are proud" [É a primeira vez. Estamos orgulhosos].

Eu faço um paralelo com os EUA, que tiveram um sistema de cotas importante para criar uma classe média negra que se autossustenta, que agora pode seguir em frente sem a necessidade de políticas diferenciadas.

No Brasil, as cotas das universidades vão produzir uma diversidade salutar.

COTAS NO ITAMARATY

É preciso haver políticas de ação afirmativa. No ministério, damos bolsas para proporcionar condições financeiras adequadas para que os afrodescendentes se preparem, o que tem tido um resultado muito positivo.

O objetivo é dar condições para pessoas que têm talento. Algumas vezes é visto como se estivessem recebendo um privilégio. Temos o cuidado de preservar as condições de preparação.

Eu não me beneficiei de nenhuma política. Na época, não havia. Mas olhando retrospectivamente, creio que me beneficiei de certas circunstâncias.

Tive oportunidades que raramente os negros têm. Morei no exterior, estudei idiomas com a ajuda do Itamaraty, porque ajudavam nos estudos dos filhos dos funcionários.

Os críticos das cotas têm uma contribuição que não é irrelevante. Eles dizem que, cientificamente, não há raças, não há diferenças entre brancos e negros.

É uma desmistificação para quem acha que há diferenças intrínsecas. Mas há uma falha no argumento. Do ponto de vista humano e das relações sociais, existem diferenças.

Basta ver os índices sociais, condições de saúde e de moradia para ver que existe um problema. Isso não é tratado de maneira séria e aprofundada [pelos críticos].

Nosso país tem muitos passivos. A preocupação social e racial tem que andar lado a lado. Ou deixamos as coisas acontecerem, ou tentamos uma intervenção. O assunto não pode ser jogado para debaixo do tapete.

ÁFRICA

Nos últimos anos, houve uma preocupação de diversificar as relações externas, ter um olhar novo não só em relação à África. Resgatar elementos de nossa identidade, cultura e sociedade.

Mas também avançamos na área comercial, levando em conta nosso interesse econômico. Tenho orgulho de ser negro. Faz parte da minha identidade. E de ser brasileiro. Mais do que isso, tenho orgulho de ser filho dos meus pais.


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/02011.

Elite

Fernanda Torres


Ser considerado parte da elite virou ofensa das mais graves. Um sinônimo daquilo que nas peças de Bertold Brecht é encarnado pelo burguês ganancioso, ameaçado pela ascensão dos mais humildes, cuja riqueza se baseia na exploração dos menos favorecidos.

Mas quem é a elite?

Quem, além dos que enriqueceram roubando, merece a acusação de ter contribuído ou desejado a desigualdade social? A classe A? B? Os profissionais liberais? Os engenheiros? Cientistas? Artistas? Empresários? Políticos? Latifundiários? Todos juntos?

Quem comanda a injustiça atávica, além dos que desviam milhões e lutam pelos votos da ignorância?

É bem verdade que não fomos formados pela mesma tradição protestante que fundou os Estados Unidos. Lá, desde os tempos de George Wa- shington, solidariedade se traduz em doações polpudas das grandes fortunas para instituições de caridade, hospitais, universidades, museus e pesquisa. Temos uma herança extrativista que culminou na lei de Gerson. A filantropia engatinha por aqui.

A recente estabilidade econômica possibilitou o milagre da distribuição de renda. O aumento do poder aquisitivo dos que ganham entre três e dez salários mínimos salvou o Brasil da crise de 2009 e continua prometendo.

Nenhuma revolução heroica deu voz ao povo; foi o crédito e a Bolsa Família. A classe C se transformou no Eldorado das grandes redes de TV, das poderosas agências de propaganda, do comércio varejista, dos bancos e de todas as demais forças geradoras de riqueza. Desvendar os seus anseios é o sonho de qualquer CEO com especialização em Harvard no momento.

O cacife dessa nova classe média multiplicou por sete nos últimos dez anos e, hoje, se equipara ao das classes A e B juntas.

As duas últimas abrigam o pessoal com bala na carteira para sonhar com mercado luxo.

Já é possível, sem sair de São Paulo, fazer fila para adquirir a sua bolsa de R$ 30 mil, vestir alta costura prêt-à-porter, harmonizar o vinho com a refeição e viver em ambientes paginados.

Antunes Filho considera uma tragédia a proliferação dos cadernos de culinária, moda e decoração. Jorge Mautner deu uma boa explicação para o fenômeno: até há pouco tempo, somente a nobreza e os reis tinham direito a tais requintes. A democratização do luxo se transformou na febre dos que têm direito à mais-valia.

Em um mundo que substituiu a ideologia pelo economia, não importa quanto dinheiro você tem no bolso, manda aquele que pode e deseja gastar, seja no crediário miúdo ou nas grandes tacadas dos cartões platinum. O resto é silêncio.

Tanto os que se endividam por um sapato Louboutin quanto os que o fazem pelo primeiro carro ou geladeira geram dividendos, aumentam o PIB e puxam as estatísticas mercadológicas para cima. Ambos alimentam a ciranda produtiva e estão perdoados. Quem se posicionou à margem deste rio de satisfação, arrisco dizer, foi o intelecto. O intelecto e seu imperdoável defeito de não ser consumista.

Lembro-me do choque que levei quando percebi que a primeira página da Ilustrada seria definitivamente ocupada por anúncios de meninas lânguidas e contorcidas em campanhas de estilo. A manchete podia se referir à um artista radical da Sibéria, mas a foto era de uma modelo adolescente de boca carnuda vestindo um jeans rasgado da Chanel.

Algo assim seria impensável na minha adolescência. Há 20 anos, a cultura servia de ponteiro; hoje, ela anda à mercê dos acontecimentos. Somente as manifestações de massa fazem sentido porque se justificam como mercado. Erudição é um crime.

Eu estive na posse de Darcy Ribeiro no Senado no fim da década de oitenta. Darcy fez um discurso belíssimo sobre a importância da educação e declarou que todo aquele que é capaz de ler, no Brasil, é responsável pelo analfabetismo.

Um ano de estudo significa 15% de aumento salarial. Eu espero que haja uma segunda revolução no Brasil, amparada pela reforma econômica, que se concentre não no comércio, mas na educação. Uma revolução que acabe com a ideia de que penso, logo escravizo.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 08/01/2011.

Vencedores e vencidos

Janio de Freitas

Por quanto tempo haverá ainda a disputa entre a busca das verdades documentais da ditadura e os autores diretos, patrocinadores e cúmplices da tortura, dos assassinatos e dos desaparecimentos não é questão que caiba em perspectivas, promessas e nem mesmo em compromissos. Mas não é questão cega.

Houve motivos para a espera de que o presidente-professor-sociólogo-intelectual levasse a busca a avanços decisivos. O que apareceu foi um governo acoelhado, fingindo enganar, um presidente ensaboado de maneirismo a escorrer-se quando o assunto se aproximava.

Veio o presidente-companheiro-operário-preso PT. Razões bastantes de passado, desprendimento e compromisso para dar dignidade ao trato do assunto.

Foi comovente o esforço dos fervorosos, Paulo Vannuchi capaz de representá-los todos, nos oito anos em que viram mãos estendidas do poder, em sua direção, com a condição de não as pegarem. Toda iniciativa, além de retardatária, era destinada ao primeiro impulso para perder-se no ar. Ainda assim, para evitar a perda de controle, com uns fardados nas canelas ou cortando a frente dos fervorosos.

Deputada de pouca exposição e presença muito qualificada, Maria do Rosário, nova ministra Especial de Direitos Humanos, já na posse deu a mensagem de sua determinação. A presidente, nos seus dois discursos de posse, não diminuiu, ao negar ódio e ressentimentos, o valor que atribui ao passado dos oponentes da ditadura.

O que os dois casos significam, porém, é, no máximo, o que se sabe em qualquer caso: o embate entre a busca das verdades documentais e os comprometidos com essas verdades criminosas será mais ou menos o mesmo. Não por acaso, ainda hoje cadetes saem da Academia Militar das Agulhas Negras na Turma Garrastazu Médici, uma turma com o dever de honrar, usualmente honrar em qualquer sentido, o símbolo do período reconhecido como de maior e pior marginalidade da ditadura.

Mas o embate, em certa medida, já está decidido. Os pretensos guardiães das verdades podem vencer as famílias, e talvez não todas, que procuram conhecer o destino dado aos seus que a ética e a honradez militares não pouparam de tortura, assassinato, desaparecimento. Podem vencer o desejo de alguns sobreviventes de identificar seus algozes. Isso ainda podem.

Todo o essencial das verdades, no entanto, está conhecido. O buscado conhecimento das verdades documentais é uma dívida moral para com o país. Se não quitada, por quem pode fazê-lo, é como um ato traidor à história do Brasil.

Não haverá, porém, capítulos brancos. Já não faltarão traços nem cores ao registro pleno da ditadura, quando se reproduza o exemplo inaugural do "Tortura Nunca Mais" com todos os acréscimos disponíveis. Aos quais não falta, sequer, o "outro lado" confessional, digamos, de um cabo Anselmo, entre outros já conhecidos ou por serem -que não faltarão- legados. O tempo, como sempre, fará o restante em favor da história.

No interior do embate que seguirá, embora já com o lado vencedor e o vencido, o novo ministro de Segurança Institucional, general José Elito Siqueira, e sua frase são representativos, sínteses da concepção contrária às verdades: "Os desaparecidos são história da nação, de que não temos que nos envergonhar ou nos vangloriar".

Nada a fazer: vergonha, quem tem, tem.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/01/2011.

Lulismo é fenômeno político recente e polêmico

Fernando de Barros e Silva


O lulismo é um fenômeno recente. Mais novo que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2002, quando ele se elegeu pela primeira vez, houve, na Folha, apenas quatro menções à expressão "lulismo" nas páginas do jornal. Em 2006, ano da reeleição, a palavra foi escrita 55 vezes. No ano passado, ela apareceu em 65 ocasiões. Neste ano, outras 128 até o final de novembro.

O lulismo está relacionado à consagração popular do presidente no segundo mandato. Mas vai além dela. Há quem o veja como sintoma de uma regressão política. Há quem o compare, a partir da empatia e do vínculo direto com as massas, ao getulismo -Vargas era o "pai do pobres". Isso aproximaria o lulismo da tradição populista.

Há, no entanto, quem discorde tanto da aproximação com Getúlio como do enquadramento populista. O significado político e o legado histórico do lulismo estão abertos e em disputa.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de formação, vê diferenças importantes entre Getúlio e Lula: "O Lula passou a se dirigir aos pobres, mais do que aos trabalhadores organizados. Há nele um componente messiânico, um traço de Antonio Conselheiro, mais do que de Getúlio, que era um membro das elites dominantes e incorporou os trabalhadores à política por meio de sindicatos atrelados ao Estado, num contexto de expansão do emprego industrial".

Segundo FHC, "classe social" é uma categoria que "não entra na cabeça" de Lula: "O negócio dele é a mesa onde exercita a conciliação geral das classes. Para ele, todo mundo é companheiro".

O cientista político Cláudio Gonçalves Couto, professor da FGV-SP, recusa a caracterização de Lula como político populista. Diz que o populismo não se define pelo apego à demagogia nem apenas pela liderança carismática: "A marca distintiva do populismo é o seu anti-institucionalismo. E Getúlio governou, de fato, por cima das instituições, destruindo várias e criando outras tantas, que formaram o arcabouço do Estado moderno e da burocracia pública brasileira".

Lula, lembra Couto, cometeu pecadilhos, como afrontar a legislação eleitoral, mas "nunca colocou sua liderança pessoal acima e à frente das instituições".

A discussão sobre o lulismo foi levada a um novo patamar pelo cientista político André Singer. Porta-voz de Lula no primeiro mandato e hoje professor da USP, ele publicou no final de 2009, na revista "Novos Estudos", do Cebrap, o ensaio "Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo", que logo ficou famoso.

Ali, identifica, durante a campanha de 2006, um deslocamento do eleitorado de baixíssima renda na direção de Lula, ao mesmo tempo em que setores das classes médias, historicamente simpáticos ao PT, dele se afastavam, impactados pelo escândalo do mensalão, que eclodiu em meados de 2005.

São dois, portanto, os fenômenos do que Singer chama de realinhamento eleitoral: a mudança da base social que vota em Lula e a desconexão, em 2006, entre as bases do lulismo e do petismo.

Se é verdade que o presidente, "só depois de assumir o governo, obteve a adesão do segmento de classe que buscava desde 1989" (quando Collor conquistou os "descamisados"), parece menos conclusiva a tese de que Lula e PT representam hoje segmentos sociais distintos.

Couto concorda com a análise de Singer, mas acredita que as bases do lulismo e do petismo tendem a se aproximar e mesmo a se confundir: "Isso em parte já aconteceu agora, na eleição de Dilma. E é o petismo que vai ser avaliado daqui em diante".

O lulismo, de qualquer forma, surge em 2006 sob os escombros do mensalão, que dizimou a cúpula do PT, lastreado no povão, como expressão política do que o economista Marcelo Neri, da FGV-RJ, chamou de "Real de Lula" -ou seja, a redução em torno de 20% das pessoas abaixo da linha da pobreza entre 2003-2005, índice semelhante ao obtido por FHC nos primeiros anos do Real.

As políticas de inclusão social (Bolsa Família, aumento do salário mínimo e expansão do crédito, além do avanço do emprego formal) convivem, sob Lula, com a defesa ortodoxa da estabilidade econômica, plataforma até então estranha ao PT. O lulismo, diz Singer, "uniu bandeiras que pareciam não combinar" ao "combater a desigualdade dentro da ordem".

Esse amálgama é o pulo do gato de Lula e corresponde, segundo o autor, a "nada menos que um completo programa de classe", a partir da construção de "uma substantiva política de promoção do mercado interno voltada aos menos favorecidos".

É claro que essa nova base social "lulista" se soma a setores organizados historicamente ligados ao PT, como o MST e as centrais sindicais, cooptados pelo governo pela transferência de recursos públicos em escala inédita.

Singer, em grande medida, escreve contra o diagnóstico de Francisco de Oliveira, sociólogo que se desligou do PT ainda no primeiro mandato e para quem o "lulismo é uma regressão política, a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda".

Em 2007, num artigo chamado "Hegemonia às Avessas", ele escreve que Lula "despolitiza a questão da pobreza e da desigualdade" e "funcionaliza a pobreza", transformando-as "em problema de administração".

Segundo Oliveira, o lulismo "não é nada parecido com qualquer das práticas de dominação exercidas ao longo da existência do Brasil", o que o tornaria especialmente nocivo para a esquerda.

Essa é uma visão que foi amplamente derrotada. Nas palavras de Cláudio Couto, "o maior legado do lulismo é um novo regime de políticas públicas voltadas à redução da pobreza".

Talvez fosse preciso acrescentar: e tê-lo feito sem contrariar os interesses dos mais ricos.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 19/12/2010.

Lula, democrata

Fernando de Barros e Silva


Faltam três dias para o fim da era Lula. O saldo da sua passagem pela Presidência é francamente positivo. Lula fez bem ao Brasil. Isso vale em especial para o que mais importa: o país hoje percebe melhor as suas desigualdades e a necessidade de combatê-las.

Se na área social houve avanço inequívoco (e se a consolidação da estabilidade com crescimento econômico foi outra grande conquista), o legado político de Lula é bem mais controverso. Já escrevi aqui, em mais de uma ocasião, sobre a capitulação do PT ao que existe de mais atrasado na política brasileira.

Em nome da governabilidade, ou usando-a como pretexto, o lulo-petismo sucumbiu às velhas formas de corrupção, fisiologia e compadrio que um dia teve a pretensão de combater ou reformar. Isso é verdade, mas não esgota a questão.

Lula deixa a Presidência com mais de 80% de aprovação popular. E deixa porque recusou a tentação do terceiro mandato. Hoje isso parece trivial, assunto velho, pão amanhecido. Mas o respeito às regras do jogo e a aposta na democracia é o que de melhor Lula legou ao país em termos de cultura política.

Anteontem, na sua última coletiva, Lula disse: "Acredito muito na democracia e acredito na necessidade de alternância. Você pega o terceiro e quer o quarto. Aí você pega o quarto e por que não o quinto? Em vez de criar uma democracia, está criando uma ditadurazinha".

Basta pensar em Hugo Chávez para perceber que diferença isso faz. Não se trata de tomar obrigação por virtude, mas imagine que retrocesso não seria se o primeiro presidente operário do Brasil decidisse virar a mesa para se manter no poder. É óbvio que Lula, ao agir como deve, também zela pela imagem que vai legar ao mundo e à história. Uma figura como ele está condenada a ser escrava da sua biografia.

Virou um lugar-comum aproximar, pela importância histórica, Lula de Getúlio Vargas. Mas é sempre bom lembrar que Vargas foi um ditador. Lula é um democrata.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/12/2010.

Deus foi brasileiro com Lula

Luiz Carlos Bresser-Pereira


No Brasil, há uma frase do saber popular, "Deus é brasileiro", através da qual as pessoas manifestam sua crença na boa sorte. Cacá Diegues, a partir de uma história de João Ubaldo, fez um maravilhoso filme sobre o tema no qual Deus, cansado dos erros dos homens, sai em busca de um santo do Nordeste que o substitua enquanto ele tira merecidas férias.

Não sei se Deus é mesmo brasileiro, mas estou seguro que o foi para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos oito anos em que governou o Brasil. Nestes anos, o Brasil mudou, e mudou para melhor. E o presidente saiu consagrado, com um índice de aprovação popular de 87%.

Lula teve muita sorte -mais do que seu antecessor. Os dois falharam em um ponto, foram impotentes diante da tendência cíclica à sobrevalorização da taxa de câmbio.

Não obstante, enquanto que nos oito anos do governo Fernando Henrique as exportações aumentaram 50%, nos oito anos de Lula, 200%. Por obra e graça do Espírito Santo, graças à elevação dos preços das commodities. A abundância de dólares corrigiu as contas externas do país, mas não criou demanda para as empresas.

Esta foi sustentada e o crescimento assegurado graças a decisões de governo: o aumento do salário mínimo e as transferências para os pobres.

Não devemos, portanto, subestimar os méritos de Lula. Ele soube ajudar a sua sorte. Fez um bom governo. Um governo de centro-esquerda que beneficiou os pobres (reduziu seu número para a metade) e a burocracia pública, mas, ao contrário do que dizia o consenso hegemônico, não trouxe inflação nem prejudicou o crescimento.

Um governo que não temeu desagradar os ricos. Que foi fiscalmente responsável, exceto no último ano. Que reagiu bem diante da crise financeira global de 2008 não obstante o atraso do Banco Central em baixar os juros.

Um governo que afinal logrou baixar a taxa real de juros para cerca da metade, para os atuais 5% ao ano, não obstante a advertência ortodoxa que a taxa "natural" de juros, abaixo da qual a inflação explodiria, era de 9%. Que não logrou impedir a sobreapreciação do câmbio, mas teve coragem de introduzir controles na entrada de capitais.


Um governo que afinal lembrou que existe o empresário e a empresa nacional ou, em outras palavras, que existe uma nação e que esta será tanto mais forte e mais capaz de competir com as demais quanto mais clara e coesa for a coalizão política unindo empresários, burocracia pública e trabalhadores.

Um governo que projetou no mundo a imagem de um Brasil independente e equilibrado.Em uma de suas últimas falas, Lula declarou emocionado: "A minha chegada ao poder tinha que mudar o patamar de governança. Eu tinha de provar a cada dia que teria condição de governar igual ou melhor que todos os doutores que passaram pela Presidência".

As comparações entre governos são sempre muito relativas, Lula abusou delas. Ele não recebeu uma "herança maldita" de seu antecessor. Nem deixa uma herança bendita para a presidente Dilma Rousseff: o câmbio sobrevalorizado está aí sem solução à vista. Mas, nesses oito anos, exerceu extraordinária liderança, provou ter espírito republicano, e bom êxito. Deus foi brasileiro em seu governo.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/01/2011.

A fonte do sucesso

Janio de Freitas

 
A aprovação espetacular da presidência de Lula se explica, é claro, pelo uso que fez dos instrumentos de governo, mas daí decorre uma indagação menos óbvia e mais interessante: o que levou a esse uso que se diferenciou do mesmismo governamental brasileiro?

dois mandatos de Lula são de presidentes e de governos que têm muito pouco em comum. Não foi por falta de memória que a caracterização do governo Lula como mero continuísmo, tão insistente no primeiro mandato, nunca mais foi repetida no segundo. Continuísmo que não era, como mal se defendiam os petistas, uma incompreensão da crítica nem, tampouco, uma contingência incontornável.

Era a escolha de um presidente e um governo temerosos dos setores dominantes, inseguros da resistência para manter-se no poder, e por isso decididos a apegar-se à cartilha do mesmismo governamental. Um estado muito evidente na contradição entre os ares serviçais voltados para o empresariado forte, em especial o financeiro, e a fúria desabafada por Lula, nas falas ao povão, contra "as elites desse país".

O convencionalismo do governo Lula confirmou-se na disputa pela reeleição. Geraldo Alckmin não era um competidor difícil, carecia de presença nacional e sustentava uma candidatura cujo único possível atrativo era a oposição a Lula. O qual, além do mais, mesmo valendo-se de facilidades e de meios de propaganda do governo, tal como Fernando Henrique em sua reeleição, teve uma vitória muito pouco expressiva.

Ainda há pouco se veio a saber, pelo WikiLeaks, que a derrota de Lula chegou a ser temida em seu círculo.

De qualquer modo, a vitória pareceu dar a Lula alguma confiança mais. Embora não suficiente para encorajá-lo a fazer um governo menos preso aos legados históricos e aos recentes -um país a serviço do setor financeiro privado, com o serviço público devastado, um ou outro programinha social para maquiar a face real, a inexistência de soberania nas relações internacionais, e o mais que se sabe.

Nesse vago andar, não seria apenas por acaso a junção de Guido Mantega, Dilma Rousseff e Celso Amorim em torno de Lula e, desde aí, a criação de um sentido para o governo. Lula conquistou, sem o cerceio do duo de regentes conservadores Antonio Palocci/Henrique Meirelles, o estímulo para a segurança pessoal e a redefinição de sua presidência. Afinal formava-se a unidade no centro de decisões do governo.

A velha ideia de crescimento conjugado a combate à inflação enfim teve a sua oportunidade. Nada a ver com o petismo, nada das modificações estruturais e das reformas institucionais que, antes, se esperariam de Lula. Mas ocorreu uma inovação decisiva, quase estritamente intuitiva, que veio a fazer o sucesso de Lula e do seu governo: a imaginação.

Uma das características do Brasil é a falta de imaginação política e, com ela, de imaginação governamental. O exemplo extremo, nesse sentido, é o governo Fernando Henrique, em que "o intelectual no Poder" só se afastou do roteiro mediocremente tradicional para submeter-se, e ao país, às diretrizes externas do neoliberalismo, feitas de muitos interesses e escassas ideias.

Aderido à proposta de crescimento, o governo Lula adotou (até por necessidade) uma dose razoável de imaginação, e agiu em função dela. O PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, é o exemplo mais apropriado. Não compõe um plano de ação, atira-se para todos os lados, mas deu o sentido de ação governamental a enfrentar buracos negros que, em seus variados gêneros, jamais viam ultrapassado o limite das palavras vazias, ou carregadas só de demagogia.

Geração de energia, retorno à indústria naval, transposição do São Francisco, estímulo a novas siderúrgicas, força total à Petrobras -fartas quantidade e variedade de iniciativas que criaram o clima de país em reelaboração. Nesse conjunto caótico do PAC, a urbanização de favelas juntou-se a programas como o Minha Casa, Minha Vida, o gigantismo do Bolsa Família e vários outros para grupos sociais e atividades pouco ou nada assistidos. Combinados, deram ao governo a face de poder voltado para o povo sempre sem governo. A imaginação deu frutos, a Lula e seu governo e, como melhoria das condições de vida, a grande parte da população.

Comparada à inovação nas relações exteriores, tanto políticas como comerciais, a ação interna foi ideologicamente moderada. Hoje se tem certeza, pelo WikiLeaks, de que a aqui tão criticada mediação no problema Irã foi a pedido dos Estados Unidos. Se esse episódio merece revisão, outros, como a insistência malsucedida para ingresso no Conselho de Segurança da ONU e a "aliança estratégica" com o governo francês de Nicolas Sarkozy, continuam deploráveis. Mas o governo imaginou ações que conquistaram uma nova inserção internacional do Brasil e lhe deram a voz de nação. A importância dessa novidade é tão grande que ainda não pode ser percebida na plenitude, como realizadora de nova configuração do país e mesmo do mundo. A imaginação deu frutos.

A própria candidatura de Dilma Rousseff foi o exercício de uma liberação imaginativa, de sentido político, imposta por Lula em uma exibição definitiva da autoconfiança e da autenticidade que lhe faltaram no primeiro mandato. E outra vez a imaginação deu frutos.

O Brasil merece que Dilma Rousseff os reproduza e aprimore.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/01/2011.


O STF e a tortura

Tarso Genro


A recente sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a repressão à guerrilha do Araguaia tratou diretamente de uma controvérsia que enfrentei como ministro da Justiça.

Tratava-se, na época, de defender a aplicabilidade, ou não, da Lei de Anistia para isentar de processo legal os violadores de direitos humanos que, inclusive fora da legalidade do próprio regime militar, cometeram barbáries contra “subversivos” sob custódia do Estado. É bom lembrar que, mesmo durante aquele período excepcional, não existia ordem de serviço ou qualquer outra norma legal que permitisse tortura ou execução de pessoas que estivessem sob custódia. Na Argentina de Videla e no Afeganistão de Bush isso ocorreu, em um momento de regressão às trevas de Torquemada.

No debate que ocorreu aqui no Brasil apareceu a indagação “quem estava defendendo o Brasil”? Sustentei que defender o Brasil era defender o prestígio do nosso Estado de Direito olhando para o futuro.

Era defender, portanto, a não aplicação desta Lei de Anistia aos torturadores. Disse isso na época e reafirmo agora.

Não só porque assim ordenam todos os diplomas de direito internacional -como declarou a Corte Interamericana- mas também porque essa é a posição que traduz a boa interpretação da nossa Constituição Federal.

A estratégia adotada pelos juristas -ou “juristas”- adversários desse pensamento -dentro e fora do Supremo- foi a de alegar que a nossa pretensão era “revisar a Lei de Anistia” e também “atacar as Forças Armadas”. Mentiram.

Nunca ninguém defendeu a “revisão” da Lei de Anistia, mas a sua interpretação adequada à Constituição do país. Nunca ninguém quis “revisar” o passado ou agredir as Forças Armadas como instituição, orgulho da nossa soberania.

A bem da verdade, o que tem sido revisado até agora, pela nova direita brasileira, é o papel dos mandatários da ditadura. Os revisionistas ressaltam a nobreza da atuação dos que policiavam e apontam que aqueles que resistiram ao regime fizeram-no de forma espúria. Uma total inversão da história, que reescreve a ditadura de maneira insolente.

De todos os argumentos -todos falsos-, o mais intrigante e covarde foi o último: que o pedido de processamento dos torturadores era um “ataque às Forças Armadas”.

Esse argumento tinha dois alvos: intimidar os julgadores (acho que o fizeram com parcial sucesso) e colocar contra os militares os que pretendiam julgar os criminosos.

Bem examinado, os adversários do julgamento dos torturadores é que, com seus argumentos, implicam diretamente as Forças Armadas com a tortura: “misturam” torturadores com a instituição, como se os delinquentes, nos porões do regime, estivessem a mando dela.

Eximem os torturadores, assim, de suas responsabilidades individuais como agentes públicos e, para garantir sua impunidade, os confundem com a corporação. O que sempre defendemos foi a responsabilização jurídica e política dos indivíduos que atuaram, sistematicamente, como carrascos, e não como agentes do Estado.

Assim como os “subversivos” foram responsabilizados jurídica e politicamente por seus atos e expostos, publicamente, antes e depois da redemocratização do país, o justo é que todos respondam perante a lei, mesmo que depois não sejam presos, pela idade avançada.

Os “subversivos” responderam perante os tribunais de exceção.

Que os torturadores respondam perante os tribunais do Estado de Direito, para que as novas gerações saibam de tudo. Para que nunca mais aconteça.


Tarso Genro é governador eleito do Rio Grande do Sul. Foi ministro da Justiça (2007-2010), ministro da Educação (2004-2005), ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República (2003-2004) e prefeito de Porto Alegre (1993-1996 e 2001-2002).


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 31/12/2010.

Problemas de educação

Vladimir Safatle


Escrevi, na semana passada, um artigo a respeito da maneira com que a experiência educacional implantada na Coreia do Sul virou referência nos debates educacionais brasileiros, principalmente por aqueles que compreendem "educação" como "formação de mão de obra qualificada".

Houve incompreensão a respeito de alguns aspectos.

Na verdade, não se trata de simplesmente desqualificar todo e qualquer ensino técnico, mas de recusar a tentativa de restringir o debate educacional ao paradigma "formação para o trabalho".

Esta tendência tem raízes profundas na história da educação brasileira, não é nova. A novidade é que ela vem associada, muitas vezes, a um certo anti-intelectualismo que visa levar a opinião pública a crer que as pesquisas, principalmente as da área de ciência humanas, de nada servem para o país, a não ser para criar "ideologia esquerdista".

Seria o caso de lembrar duas coisas. Primeiro, se há algo que impulsionou a educação coreana é um trinômio no qual insiste todo conhecedor da educação brasileira há décadas. Ele consiste em: valorização da carreira de professor (um professor coreano de educação fundamental ganha, em média, U$ 4.000), criação de uma rede extensa de escolas integrais públicas e consolidação de um currículo mínimo nacional a ser implementado em todas as escolas.

Implementação que deve ser objeto de inspetoria geral capaz de avaliar aulas, processos e estrutura física das escolas. Ou seja, ninguém precisou esperar o mito coreano para descobrir o que nos falta.

Segundo, foi esta "ideologia esquerdista" que construiu boa parte dos esquemas compreensivos fundamentais para o país conseguir pensar a si mesmo.

Pergunte-se o que seria da definição de nossos reais problemas e potencialidades se nossa universidade não tivesse produzido as pesquisas de Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, entre tantos outros.

Por fim, ninguém discute que uma das bases dos processos educacionais é o desenvolvimento da capacidade de resolver problemas e de intervir em situações práticas.

Daí a acreditar que devemos transformar os anúncios de empregos mal pagos dos departamentos de recursos humanos das grandes empresas em guia para o desenvolvimento de nossa formação educacional e de nossas pesquisas há um passo inaceitável.

Na antiga Alemanha Oriental, o governo definia, de antemão, a carreira de seus cidadãos a partir das necessidades da economia. Ao que parece, há gente neste país que, no fundo, não crê que algo parecido seja uma má ideia. Não deixa de ser cômico encontrá-los do outro lado do "espectro ideológico".

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 04/01/2011.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O mito coreano

Vladimir Safatle


Virou lugar-comum usar a Coreia do Sul como modelo de desenvolvimento educacional. Quando o assunto é educação, sempre há alguém a louvar o pretenso sucesso das políticas coreanas e a se perguntar, indignado, por que o Brasil é incapaz de seguir os passos daquele país.

No fundo, a comparação serve para mostrar o que certos setores da sociedade civil entendem por "educação".

Longe de terem visão inovadora, como propagam, tais setores apenas buscam fornecer nova roupagem a velhos dogmas da educação nacional.

No começo da formação efetiva do Estado nacional brasileiro, nos anos 30, um dos eixos das discussões educacionais girava em torno da necessidade de políticas maciças de "formação para o trabalho".

Partia-se da ideia de que o país deveria ter uma grande base de formação técnica especializada para fornecer mão de obra qualificada e prometer sólida empregabilidade a classes desfavorecidas. Por outro lado, bolsões de formação "humanista" seriam criados para uma elite que teria como função a reprodução de si mesma. Este sistema de duas velocidades era abertamente defendido pela intelectualidade que ocupava a imprensa, como Monteiro Lobato e Anísio Teixeira, entre outros.

Mas tais bolsões acabaram por produzir o pensamento crítico que iria, em larga medida, desconstruir a visão que as elites tinham do país, assim como mostrar sua incapacidade de construir um projeto nacional inclusivo. Esta formação não servia para os propósitos iniciais. Melhor seria mandar os filhos abastados estudarem economia financeira no exterior.

Sobrou martelar a ideia de que o Brasil deve reconstruir seu modelo privilegiando a antiga "formação para o trabalho", proliferando escolas técnicas e reduzindo o espectro de suas pesquisas universitárias aos interesses imediatos dos grupos econômicos hegemônicos. Neste contexto, aparece o mito coreano como promessa redentora.

De fato, para alguns, seria ótimo imitar o modelo de um país que, no fundo, nem sequer conhece o que é pesquisa em ciências humanas e não tem sequer uma universidade como polo real de influência em várias áreas do saber. Pois tais pessoas não acreditam que "educação" seja o nome que damos para um processo de formação do pensamento crítico, de desenvolvimento da criatividade e da força de mudança, de consolidação da capacidade de se indignar moralmente, de refletir sobre a vida social e de compreender reflexivamente as múltiplas tradições que nos geraram.

Para elas, "educação" é só o nome que damos ao processo de formação de mão de obra para empregos precários e mal pagos. Mesmo do ponto de vista do desenvolvimento social, tal escolha é catastrófica.

* Publicado na Folha de S.Paulo.

Lula é nosso Mao; FHC, nosso Deng

Carlos Alberto Sardenberg

Quando um governante tem ampla aprovação popular, decorre daí que está fazendo a coisa certa? Depende do que se entende pela coisa certa, é claro, mas a relação não é direta. É possível que um líder tenha prestígio enquanto faz uma administração absolutamente desastrosa, e isso vale tanto para os eleitos quanto para os ditadores.

O exemplo mais evidente é o de Mao. Até hoje a China reverencia o “grande líder”, que, entretanto, conduziu o País a grandes desastres: fome matando milhões, economia arrasada, assassinatos em massa, torturas. Já a potência econômica de hoje foi fundada por Deng Xiao Ping, aliás, ele próprio prisioneiro durante a revolução cultural maoista. Mas é a imagem de Mao que se vê por toda parte.

Agitação e propaganda são boa parte da explicação. Governantes bem-sucedidos na admiração popular têm isso em comum, a capacidade de falar diretamente às pessoas e vender gato por lebre. Criam slogans simples e de imediata compreensão, lançam um plano atrás do outro, não importa se o primeiro foi simplesmente abandonado. Tudo apoiado pelos instrumentos da propaganda.

Nas ditaduras é mais fácil. Como disse Lula no lançamento de seu balanço, no mundo todo os jornais não falam bem do governo, exceto na China e em Cuba. Verdade. O problema é que Lula fez esse comentário em tom de reclamação, como se, na democracia, com imprensa livre, tivesse que gastar muita energia e dinheiro (pagando publicidade na mídia) para passar a sua verdade.

Mas o fato é que Lula foi muito bem nesse quesito. Passou seu governo inteiro no palanque, anunciando planos e mais planos, metas e mais metas, inaugurando várias vezes a mesma obra. Uma parte da imprensa simplesmente aderiu ou foi obrigada a isso pelo volume das verbas oficiais de publicidade. A imprensa livre e independente, apesar das reclamações do presidente, sempre cobriu essas atividades, o que ampliou os palanques.

A Ferrovia Transnordestina é um caso exemplar: foi lançada e “inaugurada” cinco vezes, sempre apresentada pelo presidente como sua obra especial. Prometida para este final de ano, tem menos de 100 km prontos, para um projeto de quase 3 mil. Nada disso impediu que a obra aparecesse como resultado de sucesso na prestação de contas de Lula, aquela registrada em cartório. Claro que o texto não diz que a obra está pronta, mas, sim, em execução, que foi viabilizada “pela primeira vez”, sem nenhuma referência aos atrasos e problemas que ainda enfrenta.

Ou seja, não é prestação de contas, mas pura propaganda. Lula não perde a oportunidade de alardear sua elevada popularidade, suas virtudes de operário-presidente. Sua turma também. É o maior presidente de todos os tempos, disse uma vez Dilma Rousseff. E, quando criticado por esses excessos, Lula joga na cara dos críticos: o País nunca cresceu tanto, a renda aumentou, a pobreza diminuiu e o mundo respeita o Brasil. Por que ele não pode se vangloriar desses feitos?

Eis a quase-verdade (ou, claro, quase-mentira). É verdade que o País está de novo num bom momento. Mas não é verdadeira a conclusão que Lula tira disso: que isso tudo só está acontecendo porque ele é o presidente.

Basta olhar em volta. Os países emergentes em geral descreveram trajetória igual à brasileira: estabilidade macroeconômica construída nos anos 90 e, especialmente no período 2003/08, os benefícios de uma onda de prosperidade mundial que elevou espetacularmente os preços de nossos produtos de exportação, trazendo abundância de dólares. Na crise do final de 2008/09, o mesmo desempenho: dois ou três meses de recessão, seguidos de forte recuperação, situação atual.

No conjunto, todos os emergentes cresceram forte, acumularam reservas internacionais e têm hoje o mesmo problema da moeda local valorizada (exceto a China, que mantém sua moeda desvalorizada, um caso à parte). Mas reparem: nos anos dourados, 2003/08, o País cresceu menos que os emergentes em geral e menos que a média latino-americana. Todos reduziram a pobreza e em todos se formaram novas classes médias. E grande parte dos países tem programas sociais tipo Bolsa-Família. O Chile Solidário, por exemplo, para ficar na América Latina.

Mas por que o Brasil se tornou tão festejado no mundo? Ora, porque o Brasil, estável, é um enorme país, de amplas oportunidades econômicas. Isso já aconteceu antes na história deste país.

Isso é o lulismo: estabilidade macroeconômica ortodoxa, uma onda mundial favorável, um setor privado (agronegócio e mineração) capaz de atender à demanda global e dinheiro público para gastar com as diversas clientelas, dos mais pobres até as grandes empreiteiras. Um bom momento inflado pelo presidente no palanque.

O problema é que esse tipo de propaganda esconde os problemas. No que o Brasil é diferente dos demais emergentes importantes? É pelo pior: o País continua consumindo mais do que produz, investe menos que a média emergente (sim, com PAC e tudo, continua investindo menos de 20% do PIB), cobra impostos demais de suas empresas e pessoas, tem ainda a taxa de juros mais alta do mundo, um gasto público exagerado e ineficiente, uma bomba-relógio na Previdência.

O governo Lula simplesmente empurrou esses problemas para a frente. Vão cobrar um preço quando o mundo parar de ajudar. Aí surgirá uma nova interpretação da era Lula, assim como da era FHC, um período de reformas que se mostram duradouras.

Lula, claro, não é igual a Mao. Longe, muito longe disso. Há um oceano entre um ditador e um presidente eleito e reeleito. Mas o que têm em comum é a enorme capacidade de formar a opinião pública. Mao, transformando desastre em avanço heroico. Lula, herdando um bom momento, para multiplicá-lo e assumir pessoalmente todos os méritos.

E o presidente Fernando Henrique Cardoso certamente é o nosso Deng.

* Publicado no Estadão, em 21/12/2010.