quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Miséria tucana e urbana



Claudia Antunes


A violência da polícia e a ausência de preparação para dar abrigo às famílias expulsas na desocupação do Pinheirinho indicam que o PSDB paulista interpretou de forma literal o artigo em que FHC dizia que o partido não iria longe se insistisse em disputar influência sobre o "povão" e os movimentos sociais.

Mas o episódio não veio só confirmar o reacionarismo crescente de líderes tucanos e lançar gasolina na fogueira do PSTU -que, no vácuo de um PT acomodado, liderava o movimento pela posse da área. Ele joga luz sobre um problema de todas as cidades do país, em maior ou menor grau.

Trata-se da incapacidade política de implementar o Estatuto da Cidade -aprovado, aliás, no governo FHC. A lei dá instrumentos a prefeituras e Câmaras para conter a especulação imobiliária e prover moradia para os mais pobres em bairros com infraestrutura, evitando a formação de favelas e guetos periféricos.

Parte da massa falida de uma empresa que devia milhões em IPTU, o terreno do Pinheirinho era um caso óbvio de uso do estatuto. Se declarado zona especial de interesse social, seu preço cairia, facilitando a desapropriação e a regularização dos lotes ocupados há oito anos.

No entanto, até pouco antes da controvertida reintegração de posse ditada pela Justiça, a Prefeitura de São José dos Campos dizia que o impasse era entre invasores e proprietários. Revelava um desprezo pela função social da terra urbana que também explica, em última instância, por que tanta gente ainda mora e morre em áreas de risco na serra do Rio.

A ironia é que, do ponto de vista do mercado de consumo, parte dos ocupantes poderia ser enquadrada nas "novas classes médias" que FHC apontou como alvo preferencial do PSDB. Gente com mobília e eletrodomésticos novos, como se observa nas fotos, mas sem acesso à habitação legal.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/01/2012.

O que houve em Pinheirinho?

Janio de Freitas


A ação realizada pelo governo paulista por intermédio de sua Polícia Militar em Pinheirinho, São José dos Campos, usou o nome técnico de "reintegração de posse". Algum juiz chamaria, com base no direito que aprendeu, de reintegração de posse o que houve em Pinheirinho? Ou haveria como fazê-lo com base nos artigos e princípios reunidos pela Constituição?

Se o nome técnico de reintegração de posse é insuficiente para designar a ação realizada em Pinheirinho, o que houve lá, com a utilização abusiva de um mandado judicial, ato tecnicamente legítimo de um magistrado?

O ataque foi às seis da manhã. Para surpreender, como se deu, os ocupantes da ex-propriedade de Naji Nahas ainda dormindo ou nos seus primeiros afazeres pessoais.

O governo Alckmin e o prefeito de São José dos Campos, ainda que há muito sabedores de que a reclamada reintegração exigiria a instalação das 2.000 famílias desalojadas, não incomodaram nesse sentido o seu humanitarismo de peessedebistas.

Sair para onde? -Eis o impulso da resistência dos mais inconformados ou menos subjugados pelos séculos de história social que lhes cabe representar.

Não posso dizer o que acho que devessem fazer já à primeira brutalidade covarde da polícia. Seja, porém, o que for que tenham feito, o direito de defesa está na Constituição como integrante legítimo da cidadania. E se foi utilizado, duas razões o explicam.

Uma, a ação policial de maneiras e formas não autorizadas pelo mandado de reintegração de posse, por inconciliáveis com os limites legais da ação policial.

Segunda razão, a absoluta inexistência das alternativas de moradia que o governo Alckmin e o prefeito Eduardo Cury tinham a obrigação funcional e legal de entregar aos removidos, para não expulsar, dos seus forjados tetos para o danem-se, crianças, idosos, doentes, as famílias inteiras que viviam em Pinheirinho há oito anos.

Atendidas essas duas condições, só os que perdessem o juízo prefeririam ficar na área ocupada, e alguns até resistirem à saída. Logo, ficam ali caracterizadas as responsabilidades de quem faltou com seus deveres e, por ter faltado, recorreu à arbitrariedade plena: tiros e vítimas de ferimentos, surras com cassetetes e partes de armamentos (mesmo em pessoas de mãos elevadas, indefesas e passivas, como documentado); destruição não só das moradas, mas dos bens -perdão, bem nenhum- das posses mínimas que podem ter as pessoas ainda carentes de invasões para pensar que moram em algum lugar.

O que houve em Pinheirinho, São José dos Campos, SP, não foi reintegração de posse.

Essa expressão do direito não se destina a acobertar nem disfarçar crimes. Entre eles, o de abuso de poder contra governados.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/01/2012.

Pinheirinho, a estratégia da tensão

Elio Gaspari


Num conflito sempre há alguém que joga com a carta da tensão. Ele ganha quando ocorrem choques, prisões, feridos e incêndios. Na operação militar que desalojou 1.600 famílias da área ocupada do Pinheirinho, em São José dos Campos, ganhou quem jogou na tensão. Conseguiram mobilizar 1,8 mil PMs, numa operação que resultou em dois dias de choques, no desabrigo de 2.000 pessoas, dez veículos destruídos, quatro propriedades incendiadas e 34 presos.

A gleba foi invadida em 2004 e está avaliada R$ 180 milhões. É o caso de se perguntar o que poderia ter sido feito ao longo de sete anos para evitar que o maior beneficiado pelo espetáculo fosse a massa falida de uma empresa do financista Naji Nahas, que deve R$ 17 milhões à prefeitura.

Intitulando-se líder dos moradores, está no elenco Valdir Martins, o "Marron", candidato a deputado estadual pelo Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, o PSTU, residente em Vila Interlagos e diretor do Sindicato dos Metalúrgicos local, como representante dos trabalhadores de uma empresa que não existe mais.

Pelo lado do poder público, o elenco inclui o governador Geraldo Alckmin em cujo primeiro governo ocorreu a invasão e o prefeito Eduardo Cury, que está no cargo desde 2005. Ambos são do PSDB.

Em 2008, o advogado André Albuquerque, fundador da empresa paranaense Terra Nova, especializada em regularização fundiária, foi convidado para estudar o caso do Pinheirinho. Ele resolveu 18 litígios, legalizando lotes de 10 mil famílias, das quais 2.000 já têm escritura.

Sua metodologia é simples. A Terra Nova negocia um valor aceitável com o proprietário da gleba e os moradores, vai ao juiz que está com processo de reintegração da posse e homologa o acordo.

Retirado o obstáculo que impede obras de infraestrutura na área, a empresa apresenta um projeto de urbanização à prefeitura. O proprietário recebe seu dinheiro num prazo que vai de cinco a dez anos, e os moradores pagam prestações mensais que, na média, custam R$ 200.

No Pinheirinho, o lote poderia valer entre R$ 3.000 e R$ 6.000, com prestações de R$ 60 a R$ 100 por dez anos. Jamais um dono de lote perdeu a casa por falta de pagamento.

"Marron" ouviu a proposta e informou que seu movimento não aceita negociar indenização, muito menos pagamento. O outro caminho seria o da desapropriação, pelo Ministério das Cidades, mera promessa da Viúva federal. Nada feito. Uma reunião posterior foi boicotada pelos representantes dos moradores. Há poucas semanas, diante da ameaça de uso da força policial, apareceu uma milícia de fancaria, com escudos de latão e perneiras de PVC. Deu no que deu.

Deu no que deu porque os organizadores do PSTU, o governo de São Paulo e a Prefeitura de São José aceitaram a estratégia da tensão. O governo da doutora Dilma achou que o caso podia esperar e, depois do conflito, fantasiou-se de São Jorge para matar o dragão que já havia devorado a princesa.

Desde 2008, enquanto o caldeirão do Pinheirinho ficava em fogo brando, a Terra Nova de André Albuquerque resolveu quatro litígios fundiários urbanos. Três em São Paulo (Casa Branca, Jardim Conquista e 1º de Maio) e um no Paraná (Vila Nova, em Matinhos). Segundo ele, mais de 1.500 famílias foram beneficiadas, sem polícia.

Publicado na Folha de S.Paulo, em25/01/2012.

Além do Pinheirinho

José Luiz Portella


O que gera o Pinheirinho ou os tantos "Pinheirinhos" existentes?

É a falta de foco no problema principal. Enquanto temos, no Brasil, um déficit de novas moradias estimado em 6 a 7 milhões de unidades, existe um número cerca de três vezes maior de habitações irregulares.

Novas moradias são aquelas que precisam ser construídas para atender o crescimento vegetativo da população ou a reposição de habitações perdidas. Já no universo de habitações irregulares, que é diferente, incluem-se: moradores em áreas de risco, em habitações subnormais (favelas não urbanizadas) e ocupações legalmente irregulares. Algumas construídas pelo próprio poder público.

O foco da política habitacional das três esferas de governo (União, Estados e municípios), com honrosas e escassas exceções, tem sido o das moradias novas. É mais fácil e só o anúncio dá ibope imediato. Não tem a longa e exaustiva batalha jurídica da regularização.

O foco dos governos deveria ser a habitação irregular. Pois são mais numerosas e (porque) podem gerar um Pinheirinho a qualquer momento. Basta a Justiça dar uma ordem de reintegração de posse.

Isso não quer dizer abandonar a construção de novas moradias. Significa dar prioridade, esforçar-se mais e colocar mais dinheiro -antes-- nas habitações irregulares.

Priorizar não quer dizer excluir. É dar preferência.

Outro erro de foco é criar planos mais voltados à população com renda mensal acima de seis salários-mínimos, pois é mais fácil montar-se a equação do financiamento. O maior problema está na faixa de zero a três salários-mínimos, que precisa de financiamento de mais longo prazo e, sem dúvida nenhuma, de subsídio dos governos.

Dá-se incentivo fiscal a tanta coisa, como estádios. Dá-se financiamento a grandes empresas com juros subsidiados pelo BNDES, por que não para quem tem renda insuficiente?

Não é o mercado que vai resolver esse problema. É uma questão de política pública. O caminho é as prefeituras fazerem um mapeamento rigoroso e definitivo dessas áreas de risco (alguma coisa já foi feita pelo Brasil, mas falta completar). Com as áreas identificadas e os hábitos e necessidades dessas populações conhecidos --em primeiro lugar a questão do local onde trabalham ou possam trabalhar--, são necessárias três providências: mergulhar na solução do conflito jurídico, resolvendo-o precocemente para não deixar chegar ao estágio de desocupação forçada ou emergencial; produzir áreas urbanizadas para a recepção das pessoas; e ter profissionais para gerenciarem os conflitos existentes.

Os governos têm que produzir permanentemente, todo ano, sem parar, áreas para absorverem essas moradias, com o problema de transporte resolvido ou já planejado. E a inserção dos moradores nas redes sociais.

A mulher precisa deixar os filhos em alguma creche. A família saber onde é o posto de saúde. São pessoas vulneráveis, não podem ser largadas à própria sorte, ainda mais em local desconhecido. Para isso existem os gerenciadores de conflito. Não basta ter a casa. As pessoas precisam viver. E, para isso, de ajuda do poder público.

E resolver o problema jurídico com a participação de todos, como ocorre no modelo dos Termos de Ajustamento de Conduta, onde todos os envolvidos participam e assumem responsabilidades e prazos. Antes de virar uma ação na Justiça.

A questão da habitação, que é a origem dos "Pinheirinhos", padece do nosso pior mal: a falta de discussão e da elaboração de políticas públicas, que em muitos casos podem ser consensuais ou compartilhadas por expressiva maioria. Sem partidarizações e "fulanizações" que só atrasam o processo.

As campanhas de prefeito vêm aí. Vamos ver, novamente, que em vez da discussão e compromissos com políticas públicas tão urgentes, como a da habitação, haverá mais ataques pessoais e a famosa pasteurização dos marqueteiros, que tornam todos os candidatos iguais.

A ausência de soluções práticas que se consolidam com a discussão e com planos concretos e impessoais é, no fundo, a maior geradora de "Pinheirinhos".

Não é fácil. É duro.

Não é de uma hora para outra, mas é possível resolver.

É preciso ter o foco certo.

A grande festa (das cervejarias)

Joaquim Melo


O Carnaval, uma das festas mais populares do país, infelizmente evidencia um modelo bastante difundido e incentivado socialmente por aqui: o de beber excessivamente.

E, só para não perder o costume, as festas das principais cidades brasileiras estão sendo patrocinadas por grandes cervejarias. Empresas que, fornecendo uma série de aparatos para a realização dos eventos, têm como principal objetivo incentivar o consumo de álcool.

Para quem ainda duvida que o patrocínio de eventos culturais por fabricantes de bebidas estimule o consumo, um bom exemplo é o último Rock in Rio.

A cervejaria apoiadora divulgou ter atingindo o maior número de vendas da companhia mundialmente nesse tipo de ação, comercializando 1,7 milhão de copos de chopp. A marca reforçou ainda o enorme sucesso com o público jovem -público que, vale lembrar, por fatores físicos e psicológicos, é mais vulnerável a desenvolver dependência do álcool.

Como patrocinadoras, as fabricantes divulgam amplamente sua marca e estimulam livremente o consumo. Por isso, é no mínimo preocupante a posição do governo que, cedendo às pressões comerciais da Fifa, liberou a venda de bebidas alcoólicas nos estádios durante a Copa de 2014. Independentemente das regras estipuladas para o consumo, o país aceitou transpor uma lei muito bem constituída e amplamente apoiada pela população em prol de uma marca de cerveja.

A decisão contraria o que se espera do poder público em seu compromisso de zelar pelo bem-estar e pela saúde dos brasileiros. Contaria também a expectativa de leis mais rígidas com relação à publicidade de bebidas alcoólicas.

Assim como já ocorre com o cigarro, proibir a propaganda de cerveja nos meios de comunicação é fundamental para moderar o consumo. As restrições à publicidade de cigarros e derivados do tabaco, por exemplo, reduziu a prevalência de fumantes na população de 32% em 1989 para 19% em 2006.

É uma medida essencial ainda para proteger os jovens. A publicidade é um dos principais estímulos para o consumo de álcool entre crianças e adolescentes. Não por acaso, os comerciais de cerveja trazem mulheres bonitas, jovens de plásticas perfeitas, atletas e artistas consagrados. Tudo para reforçar os ideais de beleza e sucesso para quem consumir a marca da vez.

O patrocínio e a publicidade institucional também não ficam atrás. Eles respaldam a equivocada concepção do álcool como algo indissociável da organização social e cultural do país, com evidentes prejuízos para a população e para o sistema público de saúde.

No Carnaval, uma festa que já é associada à "bebedeira", a situação é ainda pior quando fica evidente o apoio do poder público local a esse tipo de patrocínio.

As empresas oferecem recursos estruturais para o evento, e o Estado parece então ver uma oportunidade de se eximir da responsabilidade de proporcionar a infraestrutura adequada para a comemoração, aceitando de bom grado o investimento cervejeiro.

É uma associação que, certamente, vai causar muitos prejuízos. Basta lembrar dos malefícios do álcool à saúde e dos mais variados tipos de violência relacionados ao seu consumo. Só no ano passado, durante o feriado de Carnaval, ocorreram 4.165 colisões no trânsito. Como saldo, 2.441 mil feridos e 213 mortos nas estradas federais.

Considerando o enorme custo social do álcool para o país, é imprescindível uma legislação mais rígida com relação à publicidade de bebidas alcoólicas, restringido inclusive o patrocínio de eventos culturais. A realidade é bem diferente de toda a alegria vista durante as comemorações. Definitivamente, cerveja não é confete de carnaval.

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JOAQUIM MELO, 58, médico do trabalho e gastroenterologista, é presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead)

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 23/01/2012.

Ampliar o debate

Marina Silva


O STF está para julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) nº 2.404, que visa anular parte do artigo 254 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que trata da classificação indicativa dos programas de rádio e TV.

Na TV aberta, por exemplo, a classificação impede que programas inapropriados para crianças e adolescentes sejam exibidos nos horários em que eles estão mais expostos para assistir. Prevê ainda sanções a quem a desobedece. É essa possibilidade de punição que vem sendo questionada no STF.

A ação foi proposta pelo PTB com o apoio da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão). Para eles, ao Estado cabe apenas indicar a classificação, e não punir quem veicula os programas que estariam inadequados, em determinados horários, à faixa etária indicada. Argumentam que o dispositivo fere a liberdade de imprensa e funciona como censura.

A classificação indicativa vem sendo defendida pelo Conselho Federal de Psicologia e por quem trabalhava na defesa dos direitos da criança, como Andi, Conectas Direitos Humanos, Instituto Alana e Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos).

A regulamentação do horário de exibição de certos con-teúdos é comum em países democráticos, como Canadá, França e EUA, visando essa proteção à infância e à adolescência, e só os programas de entretenimento estão sujeitos, não os jornalísticos.

A TV está presente em 96% dos lares, e as crianças brasileiras assistem, em média, a quase cinco horas de TV por dia. É inegável o seu impacto na formação e na saúde mental e emocional delas.

O argumento de que cabe apenas aos pais o controle sobre o que os filhos assistem desconsidera que a formação psicossocial das crianças e dos adolescentes extrapola o espaço familiar.

A proteção dos jovens é tarefa dos pais, sim, mas com o apoio da sociedade e do governo, que é quem dá as concessões de rádio e TV. Esse é o grande avanço do ECA. Se aprovada a Adin, o estatuto perde força. A punição acaba, de fato, impondo limites e evitando abusos e distorções.

É inequívoca a relevância da discussão sobre um assunto que envolve a formação das futuras gerações de brasileiros. Portanto ela não pode ser tratada como uma mera questão de gabinete, mas, sim, ganhar a participação de cada um dos lares do país.

Como queremos criar nossos filhos? Que contribuição queremos dar a eles? Quais princípios éticos desejamos que eles vivam e replicam em seus relacionamentos? Em que medida queremos a interferência do Estado em nossas famílias? Como expressamos nosso amor aos nosso filhos?

Enfrentando tais questionamentos vamos poder decidir como queremos cuidar do futuro do Brasil.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/01/2012.

A falta que o PT nos faz

Renato Janine Ribeiro



O PT está fazendo muita falta ao Brasil: na oposição... Dizendo isso, não estou criticando - aliás, nem elogiando - seu governo; só constato que desde 2003, quando ele ganhou as eleições para a Presidência da República, não tivemos mais oposição digna desse nome. Mas, na verdade, pode ser que em quase dois séculos de história independente tenhamos tido apenas dois ou três partidos que realizassem uma significativa oposição democrática. Dois: o MDB (depois, PMDB), no período de 1965 a 1985, e o PT, de sua fundação até 2002. Talvez três, se incluirmos o pequeno Partido Democrático, no final da República Velha e com atuação restrita a São Paulo.

Tivemos outras oposições, mas não foram significativas e, quando o foram, não foram democráticas. Em nosso primeiro século de vida independente, as eleições foram manipuladas (no Império) ou fraudadas (na República Velha). Na Primeira República, dominada pelas oligarquias, só dava para enfrentá-las de armas na mão - daí, a interminável guerra civil do Rio Grande do Sul, a mais breve no Ceará e a rebelião de Princesa, em 1930, na Paraíba. Nosso primeiro período democrático, de 1945 a 1964, teve um partido significativo de oposição, a UDN, mas desde o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, ela tendeu ao golpismo, largando suas iniciais intenções democráticas. Só em 1965 surge nosso primeiro grande partido democrático, o Movimento Democrático Brasileiro, que reunirá as oposições à ditadura, mas tardará 20 anos a pôr-lhe fim.

O MDB (desde 1980, PMDB) marca uma mudança na história do Brasil. Enfrentou a ditadura, mas com métodos e ideais da democracia. Adotou uma política de alianças, reunindo de tudo, inclusive gente pouco digna, mas sob a liderança de nomes notáveis, como Ulysses Guimarães. Praticou, assim, o diálogo. Sua moderação, embora incomodasse a vários, assegurou aos radicais um guarda-chuva protetor. Teve sucesso, pois seu trabalho de formiga concorreu seriamente para o fim da ditadura; e não o teve, já que após 1985 se converteu, rápido demais, em partido fisiológico. Mas sua história merece respeito.

Nosso segundo partido democrático também demorou duas décadas para chegar à Presidência. O PT conseguiu uma façanha admirável: uniu os descontentes de esquerda, somando ideais até divergentes num propósito comum, e o fez com muito trabalho (este é meu ponto, aqui: não se faz oposição sem suar). Esses dois partidos verteram muitíssimo suor, um tanto de sangue e provavelmente muitas lágrimas. No caso do PT basta pensar, primeiro, nos mortos do partido ou próximos a ele, em lutas de sem-terra e outros perseguidos. Eldorado do Carajás marcou um corte nítido entre os petistas e os tucanos, pois era do PSDB o governador do Pará, quando sua polícia massacrou os sem-terra, em 1996. Pensemos, segundo, nas ações petistas que exigiram disciplina e trabalho, como a Caravana da Cidadania. Tudo isso rendeu frutos, desde 2002.

O que falta à oposição atual, para se tornar significativa e ao mesmo tempo agir nos quadros da democracia? Antes de mais nada, a disposição a dar o sangue (em sentido figurado) ou, em sentido literal, a suar de tanto trabalho. Infelizmente, isso mal se vê. Uma dirigente da Associação Nacional de Jornais disse há dois anos que, na falta de uma oposição consequente, a grande imprensa assumiu o papel de opositora. A frase é infeliz, porque o compromisso da imprensa não é fazer oposição, mas dizer a verdade - ideal nada fácil, mas que não se pode abandonar - porém expressa uma triste realidade: o PSDB terceirizou o papel de se opor. Ele o delegou a alguns jornais e revistas que, por preguiça, preferiram o caminho fácil dos escândalos ao mais difícil de um monitoramento sério das ações de governo (e da oposição).

Será também uma certa preguiça a principal razão para a inércia da assim chamada oposição? Suas duas vertentes, o PSDB e em menor medida os verdes, parecem acreditar que basta ter razão para atingir o poder. Mas na política o fundamental não é ter razão, é convencer. Apostar tudo na ideia de que temos razão nos faz acreditar que quem pensa de outro jeito é patife ou, na melhor das hipóteses, ignorante - o que é um desrespeito ao soberano na democracia, o povo. Vejam, nas redes sociais, o desdém de alguns simpatizantes da oposição pela maioria de pobres. Mas não dá para fazer oposição preguiçosa. Pensemos na história dos tucanos. O PSDB, desde que nasceu, em 1988, esteve perto do poder. Alguns de seus grandes nomes foram ministros de Collor, e o próprio partido por pouco não o apoiou. Em 1994, a escolha pessoal de Itamar Franco, quase no estilo do PRI mexicano, levou Fernando Henrique à Presidência - mas qualquer nome, no bojo do Plano Real, ganharia as eleições daquele ano.

FHC é alguém especial. Ele soube converter a fortuna em virtù, para usar os termos de Maquiavel, isto é: converteu a sorte em capacidade própria. Mas perdura o fato de que o PSDB não parece disposto a suar na oposição. Isso é pena. Se ele não fizer suas caravanas da cidadania, se seus militantes não se esfalfarem, se seus líderes continuarem esperando que o poder lhes caia nas mãos, nunca serão oposição de verdade. Ora, numa democracia, para um partido se tornar governo, é preciso primeiro fazer oposição. Não sendo assim, só com sorte. É como se o partido esperasse que a imprensa de oposição faça por ele, nas próximas eleições, o que Itamar fez em seu tempo: dar-lhe o poder de presente. Mas, para nossa maturidade democrática, precisamos de uma oposição que trabalhe, lute, em suma, repetindo-me mais uma vez: que dê seu suor pela política.


Publicado em O Valor Econômico, em 23/01/2012.

Nova mídia x velha mídia

Álvaro Pereira Júnior


Em meio ao tiroteio, os astutos políticos americanos decretaram: "Meia volta, volver!". Aconteceu nesta semana. Grandes empresas e organizações da internet lançaram uma campanha virtual contra dois projetos de lei antipirataria que estavam a ponto de ser aprovados, com facilidade, no Senado e na Câmara dos EUA. Webativistas do mundo todo abraçaram a causa.

A primeira a perceber a virada da maré foi a Casa Branca. No sábado, disse em comunicado que não apoiaria leis que "ameaçassem uma internet aberta e inovadora".

Deputados e senadores vieram na sequência. Passaram a esconjurar os dois projetos, conhecidos pelas siglas "Sopa" e "Pipa" (é só coincidência que essas palavras queiram dizer alguma coisa em português).

Com apoio de Hollywood e do que restou das grandes gravadoras, "Sopa" e "Pipa" comporiam, em tese, uma nova legislação de combate à pirataria na web. Mas, na visão dos empresários e/ou pensadores do Vale do Silício, sede das grandes corporações on-line, também causariam um cerco brutal ao fluxo livre de informações na rede.

Sites americanos poderiam ser condenados se trouxessem qualquer link para endereços em que a pirataria rola solta, como thepiratebay.org ou isohunt.com. Por exemplo: se você procurasse no Google "como baixar filmes de graça" e a busca indicasse um site de pirataria, o Google poderia ser punido.

Até os provedores de acesso estavam na mira. Com uma simples ordem do "attorney general" (misto de ministro da Justiça e procurador-geral), eles poderiam ser obrigados a bloquear endereços de pirataria. Se alguém digitasse thepiratebay.org, receberia a resposta: "Esse site não existe".

Diante de tantas ameaças, o Vale do Silício caprichou na grita.

Na quarta passada, a Wikipedia pintou de preto sua página principal, em inglês, e praticamente saiu do ar. Google, Yahoo, Twitter e muitos outros também engendraram alguma forma de protesto.

O site da revista "Wired", há décadas a porta-voz do Vale, saiu com partes de seus títulos principais cobertas por tarjas. Era uma alusão à vocação censora dos projetos de lei.

Clicando na manchete da "Wired", chegava-se a um editorial explicando a revolta. O texto tinha a linguagem guerrilheira típica da publicação. Com desdém, referia-se a gravadoras e estúdios de Hollywood, apoiadores das novas leis, como "Big Content" -ou seja, os grandes produtores de conteúdo.

É o jeito "Wired", tão influente e clonado mundo afora, de descrever a realidade atual: a "velha mídia", paquidérmica e desorientada, sofrendo bombardeio dos arautos do novo, vindos do Vale do Silício.

É um discurso de forte apelo romântico, sedutor para a juventude "hi-tech" que se vê como franco-atiradora contra as velhas corporações "do mal". Mas cabe perguntar: até quando Google (valor de mercado: US$ 186 bilhões), Facebook (US$ 70 bi), Yahoo (US$ 19 bi) e outros vão conseguir posar de "angry young kids", os garotos revoltados contra o status quo?

Mesmo a Wikipedia -que não tem fins lucrativos, não aceita anúncios, nem transformou seus fundadores em bilionários- ainda merece essa marca de ponta de lança revolucionária? Será que sua influência colossal já não a credencia a um posto no "mainstream", no establishment das comunicações?

Não sei até quando bater no moribundo "Big Content", na chamada "velha mídia", vai garantir às empresas de web da Califórnia essa pose de revolucionárias.

O discurso vanguardista da "Wired", ela própria um império editorial, tem muito de hipócrita. Os "revolucionários" Google, Facebook, Yahoo etc. também são conglomerados bilionários, como são/foram os estúdios de Hollywood e gravadoras. Têm as mesmas aspirações monopolistas, são igualmente obcecados pelo lucro (e esta não é uma crítica, é só uma constatação).

Já são um novo establishment, que pressiona com sucesso a Casa Branca e faz com que políticos, em um passe de mágica, mudem de opinião e posem de defensores da liberdade de expressão.

Claro que os políticos só pensam em seus próprios interesses e em se reeleger. Mas, em sua face visível ao grande público, seguiram 100% a cartilha que a "nova mídia" lhes impôs. Repetiram direitinho o discurso libertário que pega bem com o eleitorado jovem e os hipercapitalistas do Vale do Silício. A pose adolescente das corporações do mundo on-line vive seus últimos dias. Quem manda agora são elas, e seria honesto assumirem isso.

cby2k@uol.com.br

Publicado na Folha de S.Paulo, em 21/01/2012.

A falta do poder brando chinês

Joseph S. Nye Jr.


O presidente da China, Hu Jintao, saudou 2012 com um importante ensaio, advertindo que a China está sendo agredida pela cultura ocidental. “Precisamos perceber claramente que forças hostis internacionais estão intensificando a conspiração estratégica de ocidentalização e divisão da China, que os campos ideológico e cultural são as áreas focais de sua infiltração no longo prazo”, escreveu Hu, acrescentando que “a cultura internacional do Ocidente é forte enquanto nós somos fracos”.


Basicamente, Hu disse que a China está sendo atacada pelo poder brando do Ocidente – a capacidade de produzir resultados mediante persuasão e atração, em vez de coerção ou de pagamento – e precisava revidar. Na última década, o poderio econômico e militar da China cresceu significativamente e isso assustou seus vizinhos, fazendo-os procurar aliados para equilibrar o crescente poder duro de Pequim.

No entanto, se um país puder aumentar também seu poder brando, seus vizinhos sentirão menos necessidade de buscar alianças compensadoras. Por exemplo, Canadá e México não buscam alianças com a China para servir de contrapeso ao poder americano da maneira como os países asiáticos buscam uma presença dos EUA para contrabalançar a China.

Já em 2007, Hu disse ao 17º Congresso do Partido Comunista Chinês que o país precisava investir mais em seus recursos de poder brando. Assim, a China está gastando bilhões de dólares em uma ofensiva de charme.

O estilo chinês enfatiza os gestos grandiosos, como a reconstrução da sede do Parlamento cambojano ou do Ministério das Relações Exteriores de Moçambique. Os Jogos Olímpicos de Pequim de 2008, cuidadosamente organizados, melhoraram a reputação da China e a Expo Xangai 2010 atraiu mais de 70 milhões de visitantes. O Fórum Boao para a Ásia, na ilha de Hainan, atrai quase 2 mil políticos e líderes empresariais da Ásia ao que chamam de “Davos Asiático”. E os programas de ajuda chineses à África e à América Latina não são constrangidos pelas preocupações institucionais ou com direitos humanos que limitam a ajuda ocidental.

Poder de atração. A China sempre teve uma cultura tradicional atraente. Agora, ela estabeleceu várias centenas de institutos Confúcio em todo o mundo para ensinar sua língua e sua cultura. A matrícula de estudantes estrangeiros na China aumentou: de 36 mil, há uma década, para 240 mil, em 2010. Enquanto a Voz da América reduzia suas transmissões em chinês, a China Radio International aumentava suas transmissões em inglês para 24 horas por dia.

Em 2009, Pequim anunciou planos para gastar bilhões de dólares para desenvolver gigantes de mídia globais para competir com Bloomberg, Time Warner e Viacom. A China investiu US$ 8,9 bilhões em trabalhos de publicidade externa, incluindo um canal de noticias a cabo Xinhua, 24 horas, para imitar a Al-Jazira.

Pequim também levantou defesas. O país limitou os filmes estrangeiros a apenas 20 por ano, subsidiou companhias chinesas que criam produtos culturais e restringiu os programas de televisão chineses que são imitações de programas de entretenimento ocidentais.

No entanto, apesar de todos seus esforços, a China teve um retorno apenas limitado de seu investimento. Uma recente pesquisa da BBC mostra que as opiniões sobre a influência da China são positivas em boa parte da África e da América Latina, mas predominantemente negativas nos EUA e na Europa, assim como na Índia, no Japão e na Coreia do Sul. Uma sondagem realizada na Ásia após a Olimpíada de Pequim revelou que a ofensiva de charme da China não foi eficaz.

O que a China parece não entender é que usar cultura e narrativa para criar poder brando não é fácil quando elas são inconsistentes com as realidades domésticas. Os Jogos Olímpicos de 2008 foram um sucesso, mas, pouco tempo depois, a repressão doméstica da China a ativistas de direitos humanos, no Tibete e em Xinjiang, solapou seus avanços no poder brando.

A Expo Xangai também alcançou um grande sucesso, mas foi seguida pela prisão do prêmio Nobel da Paz Liu Xiaobo e do artista Ai Weiwei. E, apesar de todos os esforços para transformar a agência Nova China e a Televisão Central da China em concorrentes de CNN e BBC, há pouca audiência internacional para uma propaganda tosca.

Restrições. Agora, na esteira das revoluções no Oriente Médio, a China vem aumentando a repressão na internet e prendendo defensores dos direitos humanos, de novo torpedeando sua campanha de poder brando. Como disse Han Han, um romancista e blogueiro popular, em dezembro, “a restrição às atividades culturais torna impossível a China influenciar a literatura e o cinema numa base global ou nós do meio cultural levantarmos com orgulho nossas cabeças”.

O desenvolvimento do poder brando não precisa ser um jogo de soma zero. Todos os países podem ganhar encontrando atrativos nas culturas alheias. Entretanto, para a China obter sucesso, terá de liberar os talentos de sua sociedade civil. Infelizmente, isso não parece perto de ocorrer tão cedo.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 23/01/2012.

“Big Brother” (chinês) x “Big Brother”

Clóvis Rossi


O corte no que o Estado chinês considera excesso de programas de entretenimento pela TV não é apenas uma medida burocrática adotada por um censor mal-humorado.

É parte de uma guerra ideológica declarada pelo próprio presidente Hu Jintao contra valores ocidentais.

Ou, se você preferir uma simplificação, é o "Big Brother" de fato chinês, que tenta vigiar cada escaninho da sociedade, e o "Big Brother" da tevê, que os ocidentais inventaram para diversão da massa (ou irritação de uma parte dela).

A guerra foi anunciada em artigo de Hu Jintao para a revista "Seeking the Truth" (buscando a verdade), publicação política do Partido Comunista. Nele, o presidente chinês dizia: "Nós deveríamos entender profundamente a seriedade e a complexidade da luta ideológica".

Sempre segundo Hu Jintao, "os campos ideológico e cultural são as áreas focais da infiltração [ocidental] a longo prazo", o que ele considera um "complô para ocidentalizar a China e dividi-la".

Não sei se há ou não o tal complô, que os comunistas sempre identificaram na indústria norte-americana de entretenimento. Basta lembrar que, antes da queda do Muro de Berlim, houve teorias que viam no Pato Donald um perigoso agente do capitalismo, a envenenar desde cedo as mentes das criancinhas.

Mas que é tremenda a força da indústria cultural e de entretenimento norte-americana, não creio restar a menor dúvida.

E que ela transmite o "american way of life" também é óbvio.

A China acaba sendo um bom exemplo da força da mensagem. Acabou adotando o que Francis Fukuyama chama de "combinação de governo autoritário com uma economia parcialmente de mercado".

Desnecessário lembrar que economia de mercado é a nau capitânia dos Estados Unidos.

Fukuyama, como todo o mundo sabe, é o autor de o "Fim da História", o decreto segundo o qual a democracia liberal e o capitalismo haviam triunfado para sempre no mundo (ele reviu sua tese em artigo para o número janeiro-fevereiro de "Foreign Affairs", mas deixo esse tema para outro dia, por falta de espaço).

Só vou dizer que Fukuyama considera a China "o mais sério desafio à democracia liberal no mundo de hoje", o que significa que ele também, indiretamente, enxerga uma batalha ideológica entre o Ocidente e a China.

A pergunta seguinte inevitável é quem vai ganhar essa batalha. Eu nunca me animo a fazer previsões. Por isso, aceito a avaliação para o presente do próprio Hu Jintao: "A força geral da cultura chinesa e sua influência internacional não são compatíveis com o status internacional da China", diz ele, com razão. Completa: "A cultura internacional do Ocidente é forte enquanto nós somos fracos".

Tão forte que a "BBC Brasil" relata uma mini-rendição de Pequim aos costumes ocidentais: "Embora o Ano-Novo chinês só seja celebrado no próximo dia 23, a administração de Pequim organizou pela primeira vez na história uma celebração para a contagem regressiva do início de 2012 no Templo do Céu, um dos pontos turísticos mais visitados da capital".

Agora é esperar 2013 para ver se a batalha de Hu Jintao ganha pelo menos esse "round".


 
crossi@uol.com.br
Publicado na Folha de S.Paulo, em 05/01/2012.

Orgulho oriental

Raul Juste Lores


Toda criança chinesa aprende que a China era a maior potência mundial em 1800 e que sua dolorosa decadência começa a partir das guerras contra a Inglaterra. Invasões japonesas, alemãs e francesas resultaram em "um século de humilhação".

Até hoje, a imprensa local martela o termo "complô internacional para derrubar a China". Há muito que o nacionalismo substituiu o comunismo como ideologia oficial.

Todo império ensina sua história de forma um tanto acrítica. Americaninhos e inglesinhos também acham que seus países sempre foram "forças do bem a civilizar o planeta" e desconhecem algumas barbaridades cometidas pelos antepassados.

A declaração do presidente chinês, Hu Jintao, de que o país precisava "combater" a colonização cultural ocidental, faz muito sentido para quem acompanha o país.

Primeiro, porque até o fim do ano, haverá a troca de guarda no politburo do Partido Comunista. Quem fala mais grosso ganha aliados.

Mas, mais importante, a China quer de volta seu status de superpotência. O orçamento do Ministério da Cultura dobrou em três anos. Foram criados uma CNN chinesa em vários idiomas e 400 institutos Confúcio pelo mundo, para ensinar mandarim e promover a cultura do país.

Melhorar a imagem do "made in China" é prioridade e a Olimpíada de Pequim foi só uma amostra. Mas fora alguns filmes de artes marciais, a cultura chinesa é doméstica.

Num país onde os Beatles são desconhecidos, deve escandalizar os velhinhos comunistas que Beyoncé e Lady Gaga sejam superstars. A TV chinesa não se cansa de piratear reality shows como o "American Idol." A estatal CCTV ainda é bem mais alegrinha que a federal TV Brasil.

O regime quer combater a sua versão do "complexo de vira-lata". Mas a linha "exótico-ridicularizante" com que se trata a China prevalece. E não ajuda a entender essa potência com impacto sobrenatural sobre o Brasil.

 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 07/01/2012.

China busca ideologia para ampliar poder e unidade interna

Claudia Antunes

As túnicas cinza-azuladas, símbolo do igualitarismo pregado pelo maoísmo, faziam sucesso entre os mais radicais dos revoltosos de Maio de 1968 no Ocidente.

Em seguida veio a denúncia dos desmandos da Revolução Cultural, e o dirigente então reabilitado Deng Xiaoping, mentor das reformas econômicas iniciadas no fim dos anos 1970, afirmou: "Enriquecer é glorioso".

Agora, ante "complôs de potências inimigas para ocidentalizar e dividir" a China, o presidente Hu Jintao convocou o Partido Comunista a reforçar a batalha de ideias em defesa do "socialismo com características chinesas".

"A esfera cultural e ideológica é aquela em que eles [os inimigos] conduzem sua infiltração de longo prazo", disse ele em discurso em outubro, recém-publicado como ensaio numa revista oficial.

O texto precedeu a ordem do governo para a redução dos programas de entretenimento na TV baseados em modelos ocidentais. Menciona 66 vezes as palavras "socialista" ou "socialismo".

Os termos nunca sumiram da retórica oficial, mas o slogan confucionista e mais brando da "sociedade harmoniosa" era o preferido contra tendências vistas como ameaçadoras à legitimidade do PC, entre elas o consumismo e a alta da desigualdade.

Já eram frequentes as advertências contra o exibicionismo dos "novos ricos", ameaças à "harmonia" num país que ainda tem renda per capita anual de US$ 5.000, pouco mais de um décimo da americana (US$ 48 mil).

Agora, dois episódios pontuais e duas tendências mais gerais estão sendo ligados à convocação feita por Hu.

Primeiro, houve o acidente em que uma menina de dois anos, Wang Yue, foi atropelada duas vezes por uma camionete num mercado de rua e, sangrando no chão, foi ignorada pelos passantes.

Depois, veio a cena de um programa tipo namoro na TV em que uma aspirante a modelo, convidada pelo candidato a namorado a um passeio de bicicleta, retrucou: "Prefiro chorar numa BMW".

Os casos causaram barulhento debate sobre a falta de moral e ética social, no momento em que a economia chinesa ameaça desacelerar e os EUA põem a contenção da China como meta central de sua estratégia de defesa.

No ensaio, Hu afirma buscar um sistema de ideias que, além de reforçar a unidade interna, amplie o "soft power" chinês. "A força cultural e a influência de nosso país não correspondem à sua posição internacional, e a percepção da opinião pública de que o Ocidente é forte e nós somos fracos não foi completamente superada", diz.

O interessante, por outro lado, é que ele não vira as costas à "diversidade" (propõe encorajá-la) nem a influências externas -afinal, o próprio marxismo foi importado pelos intelectuais chineses no Movimento 4 de Maio, que em 1919 deu origem ao PC.

Entre os ingredientes necessários ao "grande florescimento da cultura socialista", Hu cita o intercâmbio cultural internacional e o estudo de "todas as experiências e conquistas úteis".


Folha de S. Paulo, em 08/12/2012.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Entrevista com Francis Fukuyama

Entrevista concedida à jornalista Claudia Antunes, da Folha de S.Paulo 





Cientista político Francis Fukuyama defende "novo populismo" e maior regulação estatal contra problemas do liberalismo



O cientista político americano Francis Fukuyama, que há 23 anos previu a vitória global do liberalismo econômico e político no famoso artigo sobre o "fim da história", está preocupado com o futuro dessa conquista do "século americano".

Em artigo na primeira edição de 2012 da revista "Foreign Affairs", ele afirma que a ausência de competição ideológica resultou em políticas ultraliberais regressivas, que acentuam o declínio da classe média nos países desenvolvidos, pondo em risco a própria democracia.

No texto, Fukuyama convoca agentes políticos e teóricos a desenvolverem um "novo populismo", que "reafirme a supremacia da política democrática sobre a economia". Ele explica sua proposta, decorrente da preocupação com a "latino-americanização" dos EUA.


Folha - Quando o sr. diz que preceitos do liberalismo viraram pura ideologia, está propondo que a democracia abandone o rótulo "liberal"?

Francis Fukuyama - Não é uma questão de abandonar o liberalismo, é uma questão de grau. Houve uma revolução liderada por [Ronald] Reagan e Margaret Thatcher nos anos 80 que reduziu o tamanho do Estado e aumentou a liberdade individual. Essa correção era necessária, mas a revolução foi longe demais e aprisionou os EUA numa ideologia muito rígida. Uma sociedade liberal será sempre necessária, mas vamos precisar de uma volta de maior regulação estatal e políticas sociais que preservem os ganhos da classe média e encorajem a ascensão dos pobres para a classe média.

O sr. diz que a social-democracia não é uma resposta adequada. Por quê?

Acho que as velhas formas social-democratas não vão funcionar porque em muitos casos o Estado é problemático e não tem a habilidade de implementar políticas. Isso explica bastante a debilidade da esquerda nos EUA e na Europa. Só uma volta à velha social-democracia não será sustentável fiscalmente nem melhorará os serviços públicos. Esse é o dilema.

Quando o sr. propõe um novo populismo, quais são as referências históricas?

O problema com alguns movimentos populistas é que eles não são democráticos, querem mudanças tão grandes que se apoderam do Estado. Não é o tipo de populismo de que precisamos. Seja o que for, tem que ser na tradição democrática. Acho que nos EUA há dois precedentes. Um do início do século 20, o movimento progressista liderado por Theodore Roosevelt [1901-09], que teve o objetivo de limpar a política da influência do poder econômico e aprovou leis antitruste que desmembraram o monopólio Rockefeller. O outro foi, claro, o presidente Franklin Roosevelt [1933-45], que usou a crise dos anos 30 para criar uma coalizão em torno do New Deal que ficou no poder por 40 anos. Todo mundo esperava que Obama fizesse algo semelhante, mas por várias razões -eu acho que ele não era um político habilidoso o bastante- isso não aconteceu. Ele nunca explicou o problema que enfrentamos de maneira mais ampla; as soluções também não tinham amplitude.

O sr. vê nos EUA forças capazes de construir essa ideologia alternativa?

Não, por isso escrevi o artigo. Estamos precisando.

Por que se criou nos EUA e na Europa um fosso entre as medidas contra a crise e os sentimentos das pessoas comuns?

É um mistério. Nos EUA, em contraste com a Europa, boa parte da classe média tendeu, nos últimos 30 anos, a votar nos republicanos, em conservadores, mesmo quando as políticas implementadas por eles prejudicaram seu interesse econômico. Há razões para isso. Uma é que esse eleitorado tende a ser culturalmente conservador e não se sente representado por democratas ou esquerda tradicional. Outra é o enfraquecimento de sindicatos e organizações sociais. Finalmente, há na cultura política a crença de que esta é uma terra de oportunidades, de que você pode se dar bem no futuro mesmo que seja pobre agora. Então as pessoas são contra aumento de impostos para os ricos porque, se elas ficarem ricas...

Essa fatia se identificaria mais com o Tea Party do que com o "Ocupe Wall Street"?

Acho que há uma divisão. Houve grande controvérsia a respeito do "Ocupe" porque ele é formado principalmente por jovens, com uma ideologia de esquerda, que não representam os sindicatos ou a classe média trabalhadora em termos mais amplos. Não aposto muito nas perspectivas do movimento a longo prazo. Sua base social é muito estreita. Se a classe média trabalhadora se mobilizar por políticas mais progressistas, terá a forma de um movimento populista poderoso.

Nos EUA, é a direita que tem sido populista, no ataque às elites culturais, aos poderosos. Ao mesmo tempo, se opõe à regulação financeira, a aumento de impostos. Por que os democratas resistem ao discurso populista?

É outra peculiaridade da cultura política americana. Em certo sentido, a esquerda ainda é dominante na academia, na mídia. A direita tem sido mais bem-sucedida na política, controla hoje as duas casas do Congresso, muitos governos estaduais. Apesar disso, muita gente de direita ainda acha que os liberais [esquerda, nos EUA] controlam o establishment. Isso não reflete o balanço real de poder, mas o sentimento continua forte e alimenta o ressentimento populista contra as chamadas "elites liberais" que teriam destruído o país. Obama é parte delas.

O sr. associa a força da classe média com a consolidação da democracia, mas em países como China e Índia a nova classe média pode ser bastante conservadora.

O fortalecimento da democracia depende de que proporção da sociedade chega à classe média. Quando a classe média é pequena e parte da elite tradicional, ela vê o governo como protetor de seus interesses e teme que, se houver uma democracia integral, ela sairá perdendo. É o que acontece na China agora. Na Índia, é mais complicado. A questão lá é que a grande massa de pobres se beneficia da democracia por meio de clientelismo, que a classe média considera como uma forma de corrupção.

Como avalia a democracia em países como Brasil, Indonésia, onde parte dos pobres está entrando no mercado?

Essas democracias estão emergindo justamente porque mais gente começa a alcançar um status de classe média. Mas a situação ainda é muito frágil; se houver uma grande recessão global e a economia brasileira voltar a ter mau desempenho, muitos vão recair na pobreza. No passado, foi a desigualdade que provocou a polarização política no Brasil e em toda a América Latina, em que se enfrentavam uma direita autoritária e uma esquerda populista que nem sempre tinha compromisso com a democracia liberal. Para superar isso, só criando uma classe média ampla e reduzindo o fosso entre os pobres e a elite privilegiada. O que é de fato importante no Brasil agora é que a desigualdade está diminuindo, em parte devido ao crescimento econômico, em parte a programas sociais como o Bolsa Família. Mais brasileiros poderão fazer parte da economia, ter propriedades e um maior interesse no sistema político democrático.

Os EUA estão se latino-americanizando?

Uma das coisas que me chocam é que os EUA começam a parecer a velha América Latina. Se você pedir aos ricos que paguem mais impostos, eles vão dizer que não, que o governo desperdiçará o dinheiro com corrupção e serviços de má qualidade. O desempenho do governo não pode melhorar, já que não tem fundos suficientes, mas ninguém quer pagar mais impostos porque o desempenho é ruim. Os EUA saíram dessa armadilha nos anos 30 e agora voltam a cair.

O seu artigo é uma mudança de 180 graus em relação ao do fim da história?

Não concordo. Eu ainda acredito que a democracia liberal é o melhor sistema político. A questão é que está sob ameaça nos EUA e devemos preservá-la. Meu objetivo é o mesmo, só que em 1989 estávamos nos primeiros anos da virada conservadora e agora a realidade mudou, a desigualdade aumentou, as instituições se deterioraram.

Há um deficit democrático nos EUA e na Europa?

São situações diferentes. O deficit democrático nos EUA tem a ver com o poder do dinheiro e de grupos de interesse, de lobbies, cujo peso no sistema político é desproporcional em relação aos grupos sociais que eles representam. Na Europa em geral, o maior problema não é em cada país, mas em nível europeu, uma vez que a tentativa de integração resultou em instituições falhas, com união monetária mas sem união fiscal.

 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 15/01/2012.

EUA não são uma empresa

Paul Krugman


"E a cobiça -guarde bem minhas palavras- vai salvar não apenas a Teldar Paper, mas também essa outra corporação que não funciona corretamente, chamada EUA."

Foi assim que o fictício Gordon Gekko encerrou seu discurso no filme "Wall Street - Poder e Cobiça".

No filme, Gekko recebeu o castigo merecido. Na vida real, porém, a política baseada na noção de que a cobiça é uma coisa boa é a razão principal pela qual a renda dos 1% mais ricos vem crescendo tão mais rapidamente que a da classe média.

Hoje, porém, vamos voltar nossa atenção ao resto da frase, a parte que compara a América a uma corporação. Também esta é uma ideia que vem sendo amplamente aceita. E é a base principal do argumento de Mitt Romney de que ele deve ser presidente: concretamente, ele afirma que o que precisamos para consertar nossa economia é alguém que já fez sucesso nos negócios.

É claro que, com isso, Romney abriu as portas para sua carreira como empresário ser sujeita a escrutínio intenso.

Na Bain Capital, ele foi comprador e vendedor de empresas, muitas vezes em detrimento dos empregados delas, e não alguém que administrou empresas com vistas para seu sucesso no longo prazo.

Mas há um problema mais profundo em toda a noção de que aquilo de que este país precisa é um empresário de sucesso para ser seu presidente: na verdade, a América não é uma corporação.

Por que uma economia nacional não é como uma corporação? Para começo de conversa, não existe um resultado final simples. Outra coisa: a economia é muitíssimo mais complexa que mesmo a maior empresa privada.

O que é mais relevante para nossa situação atual, contudo, é que até mesmo as corporações gigantes vendem a maior parte do que produzem para outras pessoas, não para seus próprios funcionários. Enquanto isso, mesmo os países pequenos vendem a maior parte do que produzem para eles mesmos, e os grandes países, como a América, são quase completamente seus próprios maiores clientes.

Considere o que acontece quando uma empresa pratica cortes implacáveis de despesas. Desde o ponto de vista dos donos da empresa, quanto mais custos são cortados, melhor. Quaisquer dólares tirados do lado dos custos serão acrescentados ao resultado final.

Mas a história muda de figura quando um governo reduz seus gastos diante de uma economia deprimida. Veja o caso da Grécia, Espanha e Irlanda, todas as quais adotaram políticas de austeridade intransigentes. Em cada um desses casos o desemprego aumentou, porque os cortes nos gastos do governo atingiram principalmente produtores domésticos. E, em cada um desses casos, a redução dos deficits orçamentários foi muito menor que o previsto, porque a receita fiscal caiu na medida em que a produção e o desemprego desabaram.

Agora, para sermos justos, ser político de carreira não constitui necessariamente uma preparação melhor para administrar a política econômica que ter sido um empresário. Mas é Romney quem está afirmando que sua carreira anterior o torna adequado para a Presidência.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 14/01/2012.

Aquele beijo

Marta Suplicy


Em entrevista à Mônica Bergamo ("Arrasa, bii!" 8/1), Marcelo Serrado, o inverossímil humilhado personagem gay da novela "Fina Estampa", diz que acha "chato" personagem gay que levanta bandeiras e que não gostaria que sua filha visse um beijo gay na TV.

Em relação à dramaturgia, qualquer pregação é insuportável. Mas é possível fazer uma boa obra que eduque e combata preconceitos, como fez Gilberto Braga na novela "Insensato Coração".

Com um desenrolar didático e dramático da questão homofóbica, ele mostrou a dor e o sofrimento de quem é perseguido por ser do jeito que nasceu, as consequências violentas do preconceito e as dificuldades em superá-lo. Ajudou mais que qualquer campanha.

Sobre o beijo, o preconceito homofóbico introjetado é supercomum e passa batido para a maioria das pessoas. Acredito que Marcelo Serrado não se veja como homofóbico, tampouco tenha consciência de que o seu divertido e irreverente personagem Crô possa trazer como consequência danosa para a imagem e a autoestima de homossexuais. E menos ainda para o incentivo, o desencadeamento de violência, o deboche e as humilhações de toda ordem.

Como tantos que respeitam, acolhem, têm amizade, mas não têm noção do preconceito que abrigam "dentro do armário", como disse Alexandre Vidal Porto em instigante artigo ("Marcelo Serrado, o equivocado", Tendências/Debates, ontem), raramente essas pessoas ficam à vontade frente à demonstração de afeto explicitado por um casal gay.

O verniz civilizado cai frente à demonstração inequívoca do diferente, do aprendido como errado e do que a sociedade esconde a não ser para caricaturar ou pregar o "pecado".

Com o desconforto, aparecem as explicações que não elucidam nada além do preconceito: "poderiam fazer isso reservadamente", "aqui não é o lugar próprio", "crianças não deveriam assistir cenas como essas".

Por que o que não constrange no comportamento afetivo hétero provoca outra reação quando se trata de um homossexual? Pelo mesmo motivo que o comportamento hétero também pode incomodar quando vai além do que cada um acredita adequado. E cada pessoa tem a sua medida, o seu parâmetro e seus adereços preconceituosos, que são construídos desde a mais tenra infância pela cultura à qual pertence, pelos exemplos familiares, seus valores e preconceitos.

Podem mudar no decorrer da vida? Sim, podem. Com consciência e esforço do que desejamos ser. Às vezes, sobra aquele beijo.


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 14/01/2012.

O direito de se defender

Nélio Machado


A Folha, no último dia 5, publica reflexões de Wellington Cabral Saraiva ("Jacques Chirac seria Condenado no Brasil?"), que é membro do Ministério Público da União, representando-o no Conselho Nacional de Justiça.

Em meio à discussão sobre o órgão incumbido do controle externo da magistratura, com a interpretação que o STF acaba de dar em liminar sobre seus limites de atuação, o artigo merece objeção, diante de nossa realidade judiciária.

A Constituição e os códigos penal e de processo penal não são diplomas de má qualidade técnica. Ao contrário. Da lei maior do país tem-se a expressão "Constituição cidadã". O Código de Processo Penal foi elaborado em período ditatorial e longe está de ser liberal. O mesmo ocorre com o Código Penal, que nada tem de leniente e foi alterado em 1984, sob inspiração da lei alemã.

O manejo da legislação pressupõe boa ação dos protagonistas: bons juízes, promotores, advogados e policiais, reverentes à letra e ao espírito da lei. Realizá-la nunca será condenar a qualquer preço, com prejulgamentos e manifestações opinativas. A não ser assim, que se entreguem os réus aos julgamentos em praça pública, para que a turba promova a execração, enfim, a antítese do devido processo legal.

O que se lê no texto publicado arranha a Justiça de nosso país e nossas leis penais. Ao habeas corpus, tão diminuído no artigo, foram feitas críticas candentes. Também aos tribunais que os julgam, como se esse remédio jurídico não fosse a marca da civilização a separar o país de ontem -quando tal garantia foi suprimida, pelo AI-5 de 1968-, do país de hoje.

Sobre o habeas corpus, destaque-se que o conselheiro comete a indelicadeza de dizer que os advogados juntam "só as provas que interessam". Nada mais inexato: em tais julgamentos não são examinadas provas. Ao contrário, exige-se a demonstração de abuso de poder ou da ilegalidade. Se a violência logo é reparada, nada mais apropriado.

Não é, tampouco, exato afirmar-se a existência de quatro instâncias criminais. A ação penal é decidida em primeiro grau, por um juiz que julga sozinho. Contra a sentença cabe um único recurso de amplo espectro, o de apelação. Os outros recursos têm admissibilidade restrita: exige-se demonstração de violação à lei federal ou de infringência à Constituição.

Da acusação contra Jacques Chirac -fosse possível sua tramitação aqui-, o mínimo a se dizer é que a ele se garantiria, ou deveria se garantir, o devido processo legal e o amplo direito de defesa. Um julgamento jurídico e não político.

Não podemos afirmar, sem conhecer o processo, que a decisão tomada tenha sido certa ou errada, severa ou generosa. No entanto, no artigo comentado, fez-se exaltação à punição. Criticou-se nossa legislação sobre prescrição. Afirmou-se que aqui nem haveria processo.

Mas fazer justiça não é condenar, é respeitar-se o devido processo legal e o direito de defesa.

Anote-se que os fatos atribuídos ao ex-presidente francês teriam ocorrido em 1995 e a ação penal só foi iniciada em 2009. Catorze anos depois! Veio a calorosa censura do autor ao salientar que no Brasil nem processo haveria. Talvez sim, talvez não. Não só aqui, mas também em muitos outros países civilizados, submissos ao império da lei.

O que se pode dizer é que Chirac, no Brasil, teria o direito de se defender, sem que se estabelecesse de antemão a inexorabilidade de uma condenação, afastando-se a sempre medíocre satisfação de apetites acusatórios, nem sempre equilibrados, nem sempre justos. Até porque, não raro, o que se busca nos casos de repercussão, atropelando-se direitos, é o estrelato das luzes midiáticas.

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NÉLIO MACHADO, 60, é advogado criminal. Foi conselheiro federal da OAB e presidente do Conselho Penitenciário do RJ; teve como clientes Daniel Dantas, Anthony Garotinho e José Roberto Arruda, entre outros; e é autor de livros sobre direito criminal

Publicado na Folha de S.Paulo, em 12/01/2012.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Catástrofes vergonhosas e gastanças obscenas

Roberto DaMatta


O início de cada ano-novo nos apresenta as mesmas imagens das catástrofes causados pelas secas e chuvas. Acidentes ocorrem em todos os lugares e são hoje agravados pela incômoda presença de uma não prevista "razão planetária" dentro do nosso mundinho individualista, construído debaixo do pressuposto de que somos motivados por uma racionalidade de interesses e desejos ilimitados. Alguém já disse que o individualismo só existe para ser perseguido pelo seu contrário. E o oposto de um individualismo consumista que beira a irresponsabilidade e o crime contra plantas, animais e clima é essa Terra que nos pariu, como diziam nossos esquecidos ancestrais, e que reage como uma totalidade na forma daquilo que chamamos de catástrofes porque a nossa cosmologia (fundada numa paradoxal fé científica) nos impede de concebê-la como uma pessoa.

Mas se todos os lugares estão sujeitos a acidentes nem todos respondem aos imprevistos de modo tão catastrófico como ocorre no Brasil. Para tanto, basta olhar o Japão ou qualquer país consciente de sua honra nacional. Pois se há acaso, deve haver prevenção, exceto no caso paradoxal desse nosso país abençoado por Deus, cuidado pelo lulo-petismo, e bonito por natureza. Somente aqui as chuvas nos mesmos lugares e períodos resultam no vergonhoso desamparo de suas vítimas. Esses dependentes de larápios que não têm o menor pudor em embolsar os recursos destinados a reparar o seu sofrimento. O que os acidentes revelam no Brasil é uma gastança obscena e clientelisticamente direcionada. Elas expõem a gulodice eleitoral cujo alvo é enriquecer e permanecer no poder. Seu traço típico é distribuir pelo parentesco e pelos elos partidários. E assim jamais conseguimos sair do reagir para o proagir. As catástrofes desmascaram uma obscena gastança.

* * *

Elas também exibem a nossa profunda alergia ao republicanismo, pois os atingidos são sempre os "pobres": os que vivem na passividade cívica e que, graças a autoridades irresponsáveis, vivem em locais arriscados. Eles são o espelho de nossa alergia a igualdade que - levada a sério - nos obrigaria a optar por planejamentos urbanos destinados a todos. É ofensivo descobrir que "conjuntos populares" são construídos sem infraestrutura! Insulta testemunhar a ladainha dos aflitos conformados com a "vontade de Deus", sem a revolta contra os que foram eleitos para administrar a sua cidade e o seu Estado. Esse conformismo de raiz, mostra quanto somos penetrados por valores hierárquicos que constroem o mundo como sendo feito por superiores e inferiores - aqueles mandando em tudo; estes, destinados ao sofrimento e à dor.

* * *

No Brasil, até a ideologia política moderna que, a partir da Revolução Francesa dividiu o mundo, como mostra o desconhecido estudo de J. A. Laponce entre "direita e esquerda", dentro de um projeto igualitário, foi desmantelada pelas hierarquias que desintegram ministérios inventados para integrar a nação. Tudo em nome do povo, mas, de fato, operando vertical e pessoalmente: em favor do partido X ou de Sicrano ou Beltrano. Mas, eis que surgem as catástrofes naturais para mostrar como as antigas verticalizações, que Laponce situa como típicas dos sistemas tradicionais (divididos entre os que lutam e governam, os que rezam e salvam e os que trabalham; entre irmão, parente, compadre, amigo e o resto), retornam e canibalizam as orientações de índole mais igualitária que estão nas leis e organogramas republicanos, mas que jamais foram inscritas no coração dos que mandam. Daí o absurdo quando se descobre que o ministério destinado a socorrer o País, apenas ajuda a região à qual pertence o seu ministro. E a vergonhosa revelação de que tudo o que foi construído - barragens, estradas, diques, etc... - se desmantelam nas primeiras chuvas porque foram malfeitas e sem dúvida (com as notáveis exceções de praxe) hiperfaturadas e construídas por empresários amigos de infância.

* * *

A despeito de toda enxurrada modernizadora que tem corrido debaixo da ponte brasileira, continuamos a viver o dilema de construir uma sociedade coerente com uma nação republicana (como está no papel) ou de deformar a igualdade numa perversa hierarquia, na qual - como naquele famoso livro de Orwell, certos cargos são mais iguais do que outros. E, mais que isso, certos papéis sociais se confundem com seus ocupantes de modo que qualquer planejamento a longo prazo é impossível. O critério de nomeação é a família e a confiança; jamais a competência. Essa é a chave mestra - em que pese as ideologias - da administração pública à brasileira. O chamado nepotismo é o maior inimigo das rotinas administrativas responsáveis pelos ideais de justiça social. E sem rotinas, não há como ter instituições. Pois as instituições são animadas e dirigidas por meros mortais que passam, mas elas, como o Brasil, não devem morrer.


* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 11/01/2012.

Os conservadores e o mito da igualdade de oportunidades

Paul Krugman


No mês passado, Barack Obama invocou o espírito de Teddy Roosevelt em defesa de ideais progressistas - e os republicanos não gostaram. Mitt Romney disse que Roosevelt acreditava que "o governo deveria preparar terreno para criar condições iguais para todos", enquanto Obama acredita que deveríamos ter uma sociedade na qual todos recebem uma remuneração igual, independentemente do esforço e dos riscos.

Como muitos ressaltaram, esse retrato do presidente é falso. O que nem todos observaram, porém, é que o retrato que Romney faz de si mesmo, como político que acredita na igualdade de oportunidades, também é ficção. Onde estão as provas de que ele ou seu partido preocupam-se com a igualdade de oportunidades? Os americanos acham que vivem em uma meritocracia, mas essa imagem que eles têm de si mesmos é uma fantasia. Segundo reportagem do New York Times da semana passada, os EUA são o país desenvolvido que dá mais valor à origem familiar e onde os que vêm de camadas inferiores têm menos chance de ascender ao topo.

Os EUA são assim porque seu governo fracassa na criação da igualdade de oportunidades. No país, os furos na rede de proteção social fazem com que mães de famílias de baixa renda e seus filhos sofram de desnutrição e tenham acesso a um sistema de saúde inadequado. A situação piora quando as crianças chegam à idade escolar. Os ricos mandam seus filhos para escolas boas com financiamentos polpudos, enquanto as crianças pobres têm acesso a uma educação inferior.

Quando se trata do ensino superior, poucos das classes baixas conseguem entrar em universidades. Em escolas mais seletivas, 74% dos jovens que ingressam vêm dos 25% de famílias ricas. Só 3% dos que chegam vêm dos 25% da parte de baixo da escala social. Se filhos de camadas inferiores ingressam na universidade, a falta de apoio financeiro faz com que eles sejam obrigados a deixá-la com mais frequência do que os filhos de ricos.

Um estudo do Departamento de Educação concluiu que estudantes com notas altas, mas com pais de baixa renda, tinham menos chance de concluir um curso superior do que estudantes com notas baixas, mas de pais ricos - ou seja, jovens inteligentes e pobres têm maior probabilidade de terminar os estudos do que jovens ricos e tapados.

Não surpreende que as histórias de Horatio Alger, sobre crianças pobres, mas bem-sucedidas, sejam pouco comuns. O que me traz de volta a pessoas como Romney, que diz acreditar na igualdade de oportunidades. Onde estão as provas? Aqueles que querem oportunidades iguais deveriam lutar por mais verbas para a alimentação de mães grávidas de baixa renda, procurar melhorar a qualidade das escolas públicas, aumentar o financiamento de estudantes universitários pobres e apoiar um sistema de saúde universal. Se Romney lutou por alguma dessas coisas, não fiquei sabendo.

E os republicanos parecem determinados a dificultar ainda mais a ascensão social. Por exemplo, eles defendem a redução dos programas destinados a mulheres, recém-nascidos, crianças e exigem cortes de bolsas de estudos. Evidentemente, repudiam a reforma do sistema de saúde que proporcionaria aos americanos a assistência que é direito inalienável em todos os outros países desenvolvidos.

Portanto, onde está a prova de que Romney e seu partido acreditam em oportunidades iguais? A julgar por suas ações, eles preferem uma sociedade na qual a situação econômica é determinada pelo status dos pais, na qual os filhos ricos herdarão propriedades com isenção de impostos.


Tradução de Anna Capovilla
* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 11/01/2012.