sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Muita terra para pouco fazendeiro

Márcio Santilli e Raul do Valle



Ganhou espaço nesta Folha a divulgação de pesquisa encomendada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) com a pretensão de traçar um perfil da população indígena do país.

Uma de suas conclusões deixa clara a tese que pretende comprovar: "A situação territorial também causa preocupação, mas não é o maior problema, como afirmado por ONGs, movimentos sociais e certas áreas de governo".

A pesquisa foi feita entre junho e julho, mas só foi divulgada agora, quando voltam à mídia os conflitos territoriais entre fazendeiros e índios guarani-caiová (MS) e xavante (MT). Os bens de consumo usados pelos índios caracterizariam "urbanização". A enquete aponta que a principal preocupação dos índios seria seu precário atendimento de saúde.

Sempre houve interesse dos índios por bens de consumo que não produzem, desde ferramentas, alimentos, remédios até televisão e celular, o que não implica serem eles menos índios ou necessitarem de menos terra. Os demais brasileiros, a começar pelos patrocinadores da pesquisa, têm interesse por bens importados e nem por isso deixam de ser brasileiros.

A própria enquete mostra que 94% dos indígenas entrevistados praticam agricultura, 85% caçam e 86% pescam frequentemente, atividades que dependem de áreas extensas e preservadas. Mostra ainda que 68% dos índios da região Sul, que têm apenas 0,18% das terras demarcadas, recebem cestas básicas, apesar de a maioria (52%) ter trabalho remunerado. No Norte, que abriga 81% das terras, só 7% dos índios depende de cestas básicas, embora poucos tenham emprego.

A tese de que a terra não é importante para os índios não é confirmada pela própria pesquisa, mas a CNA pretende deformar seus resultados para defender a aprovação de projetos no Congresso que buscam alterar a Constituição para inviabilizar a demarcação de novas terras, sobretudo quando ocupadas por grandes produtores.

A estratégia de propagar teses infundadas para justificar uma posição política já foi usada pela CNA para fragilizar o Código Florestal. Agora, pretende-se induzir a ideia de que os próprios índios não querem mais terra, embora 57% dos entrevistados na enquete tenham respondido que seus territórios são menores do que o necessário (o número chega a 92% no Sul).

A CNA sugere que "há muita terra para pouco índio", já que 520 mil indígenas aldeados vivem em 113 milhões de hectares de terras indígenas. Ocorre que 98,5% dessa área está na Amazônia, onde vivem 60% dos indígenas do país. Os outros 40% dispõem de apenas 1,5% de todas as terras, em geral em áreas exíguas. O Mato Grosso do Sul é um caso emblemático.

Muita terra têm os grandes produtores rurais, representados pela CNA. Segundo o IBGE, os 67 mil maiores proprietários possuem 195 milhões de hectares, 72% a mais que os índios. Além disso, as terras indígenas preservam 98% da sua vegetação nativa e prestam serviços ambientais a toda sociedade.

Quem mais precisa de terra são os 45 mil guarani-caiová, alvo principal da CNA, confinados em 95 mil hectares oficialmente reconhecidos, mas ainda ocupados em grande medida por fazendeiros. Eles dispõem de área muito menor que os 700 mil hectares destinados a 28 mil famílias assentadas da reforma agrária no Estado.

Melhor faria a CNA se, em vez de insistir em impedir a demarcação de terras, trabalhasse para que os governos estaduais que, no passado, emitiram títulos de propriedade inválidos, porque incidentes sobre área indígena, sejam agora responsabilizados a indenizar aqueles que, de boa fé, hoje os detêm.


MÁRCIO SANTILLI, 57, é coordenador de política e direito socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA). Foi deputado federal e presidente da Funai

RAUL DO VALLE, 35, advogado e coordenador-adjunto de Política e Direito Socioambiental do ISA

Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/11/2012.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Os dois Barbosas

Marcelo Coelho





Ainda prossegue o julgamento do mensalão, e há muitos ajustes de penas, revisões, recursos e intercorrências institucionais pela frente.

De todo modo, um clima de trabalho encerrado, coincidindo talvez com as festas de fim de ano, tomou conta do STF na última semana.

O espírito comemorativo pairou sobre a despedida do presidente Ayres Britto; alargou-se, em dia de casa cheia, com a posse de Joaquim Barbosa no cargo; irradiou-se, finalmente, numa explosão estroboscópica, com as cenas do ministro Luiz Fux tocando guitarra elétrica na festa em homenagem ao colega.

Tenho comentado bastante o julgamento do mensalão no caderno “Poder”, de modo que não entro aqui no conteúdo das decisões do tribunal. Mas o STF também é cultura, e há algo a dizer, sem dúvida, sobre algumas imagens que vão ficando do julgamento em curso.

Numa foto que faz sucesso, Joaquim Barbosa aparece de costas, com a capa drapejante, no estilo homem-morcego. É a figura do vingador, um tanto curvado e cabisbaixo pelo peso da própria obstinação, mas ao mesmo tempo rápido e decidido no passo. As dobras da capa sinalizam velocidade, altitude, independência e solidão.

O reverso da medalha são as máscaras que se fabricam para o Carnaval. Onde tínhamos a toga de Barbosa, temos agora o rosto de Joaquim. As rugas na testa e a expressão severa não tiram, claro, o sentido debochado da ideia, ou melhor, a falta de qualquer sentido na ideia.

Em outros anos, apareceram máscaras de Saddam Hussein, de Obama, de Lula e de Bin Laden. Tanto faz o personagem; o que importa é deslocá-lo do contexto, sublinhando que o Carnaval pode engolir tudo na mesma falta de lógica.

Seja como for, o Joaquim Barbosa trágico, espécie de Batman perseguido, convive com o Joaquim Barbosa cômico, camarada, ao alcance de todos. Não há maior sinal dessa ambiguidade do que o modo com que várias pessoas se referem a ele.

Imagino que não revelo segredo nenhum ao publicar isto: chamam Joaquim Barbosa de “Juiz Negão”.

O curioso é que a denominação, de óbvio histórico racista, vem em contexto positivo. Do gênero: “Tomara que o Negão ponha todo mundo na cadeia mesmo”. Ou: “Se fosse por mim, dava plenos poderes para o Juiz Negão resolver logo essa parada”. Numa sociedade como a nossa, o racismo por vezes está onde menos aparece, e vice-versa.

Os que chamam Barbosa de “Negão” parecem inconscientemente atribuir-lhe uma força vingadora e revolucionária, que admiram, mas da qual também gostariam de se afastar.

É o simétrico, digamos assim, da frase “vocês são brancos, que se entendam”. Algo que sempre pareceu aplicar-se, por sinal, ao mundo altamente codificado e técnico de uma corte superior de Justiça.

Nesse aspecto, os dois Barbosas se combinam. O Barbosa vingador, sozinho num mundo de “brancos”, se identifica com o Barbosa carnavalesco, da máscara que está “na boca do povo”. O branco de classe média, com raiva de Lula e José Dirceu, torna-se “negro” como Barbosa em sua luta contra “os poderosos” que fazem e desfazem em Brasília.

O termo “Negão”, certamente “incorreto”, torna-se estranhamente “correto” nesse contexto. E o contrário acontece com alguns termos “politicamente corretos”.

Foi o caso do discurso feito pelo presidente da OAB, Ophir Cavalcante, homenageando Barbosa na semana passada.

A situação, naturalmente, sugeria celebrar o fato de pela primeira vez se ter um negro na presidência do tribunal.

Ao mesmo tempo, como fez o próprio Barbosa, cabia passar por cima desse fato: ver os méritos da pessoa, não a cor de sua pele.

Cavalcante saiu-se com uma referência ao “multiculturalismo da brava gente brasileira”, que “se faz presente com o ministro Joaquim Barbosa”.

Como assim, “multiculturalismo”? Tendo estudado em Paris e dado aulas nos Estados Unidos, por que seria Barbosa mais “multicultural”, ou menos, do que Gilmar Mendes ou Celso de Mello?

De modo parecido, a severidade de Barbosa é frequentemente relacionada a alguma dose de revolta ou rancor que traga do próprio passado. Talvez; mas por que não culpar a sua dor nas costas, por exemplo, pelo mau humor que o acompanha?

Num país em que se esconde o racismo, o racismo surge mesmo onde ele não está. O fato é que ninguém fecha os olhos para o fato de ele ser negro; e fingir que se ignora o fato tende a ser muito revelador também.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 28/11/2012.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O papel dos empresários no desenvolvimento

Eliana Cardoso


Quando Augusto e Haroldo de Campos publicaram o Panaroma do Finnegans Wake (isso mesmo, Pan-aroma: um panorama dos aromas da obra quase impenetrável de James Joyce), fizeram-no antes mesmo que Ulisses (livro menos cabeludo e mais conhecido do mesmo ficcionista) tivesse encontrado um tradutor no Brasil. Por aqui somos craques: começamos pelo mais difícil.

No Panaroma encontra-se a tradução de um trecho da leitura de Finnegans Wake feita por Joseph Campbell. Campbell compara a divisão do livro de Joyce em quatro partes com a separação da história universal em quatro fases (segundo Giambattista Vico): a teocrática, a aristocrática, a democrática e a caótica.

No caso do Brasil - comento, durante um almoço com colegas da FGV -, pulamos da fase teocrática para a caótica, o que explica tantas falhas no entendimento do nosso desenvolvimento. E, é claro, a conversa logo se desvia para a formação econômica do País.

O professor André Portela de Souza me garante que não sobra um único especialista em história econômica que ainda acredite no caso brasileiro do velho modelo do latifúndio escravagista, fundado unicamente na exportação de bens primários. O professor Leonardo Weller ri, pois, ensinando história econômica, pode lamentar que os textos usados nas universidades ainda se articulem ao redor dos equívocos de Caio Prado Jr. e sua Formação do Brasil Contemporâneo, onde se lê: "Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodão e em seguida café, para o mercado europeu. Nada mais que isso".

Entretanto, a tese de Caio Prado e Gilberto Freyre encontra-se desmentida pela evidência acumulada desde 1980 em pesquisas acadêmicas. Dizem Francisco Vidal Luna e Herbert Klein (Economia e sociedade escravista, no livro Escravismo em São Paulo e Minas Gerais): "Nos últimos trinta anos, emergiu no Brasil uma nova compreensão da sociedade escravista organizada nos períodos colonial e imperial, especialmente no aspecto do modo como a mão de obra cativa foi usada. Esses novos estudos sobre a posse e o trabalho escravo questionaram a visão tradicional da escravidão brasileira exposta por Gilberto Freyre, que em sua obra sobre os engenhos do Nordeste propôs o modelo da grande lavoura escravista. Essa visão dominante começou a ser contestada na década de 1980 com estudos mostrando que os pequenos proprietários de escravos predominaram na economia extrativa de Minas Gerais nos períodos colonial e imperial".

Pouco a pouco, tornou-se injustificável a hipótese da predominância do modelo da grande lavoura. A maioria dos proprietários de escravos em Minas Gerais possuía menos de cinco cativos e a base da economia estava na roça de subsistência ou na propriedade de criação pecuária. Amílcar Martins Filho e Roberto Martins (Slavery in a Non-Export Economy, na Hispanic American Historical Review, 1983) explicam a imposição do uso da mão de obra escrava pela imensidão da fronteira agrícola. Não havia suprimento voluntário de trabalho assalariado, porque era sempre possível encontrar terra para sobreviver como produtor independente.

Na mineração de ouro de aluvião em Minas Gerais no século 18, pequenos proprietários prevaleceram. Estudos sobre a agricultura em várias regiões do País também mostraram a predominância de pequenos proprietários de cativos ao mesmo tempo que os grandes proprietários de terras exploravam parcelas reduzidas de seus domínios, por causa do número relativamente pequeno de escravos que possuíam e da disponibilidade limitada de tecnologia.

Francisco Vidal Luna e Herbert Klein também questionam a tese de uma dicotomia entre, de um lado, uma minoria de senhores de engenhos (exportadores e donos de escravos) e, de outro, a maioria dos brancos, pardos e negros livres que não possuíam escravos. Pelo contrário, a mão de obra escrava esteve presente em todas as áreas da economia, quer orientada para o mercado interno, quer para a exportação.

Também desacreditada fica a hipótese de que uma produção para a exportação e outra para o mercado interno se desenvolveram sem elos entre si. Escreve Iraci Del Nero Costa em Arraia miúda - um estudo sobre os não proprietários de escravos no Brasil: "O crescimento econômico, mesmo quando orientado pela expansão do comércio exterior, vinha acompanhado de oportunidades das quais usufruíam também os não proprietários, de sorte que os mesmo não eram excluídos de áreas economicamente dinâmicas, nem perdiam sua posição numericamente dominante".

Os produtores independentes ocupavam o espaço colonial, ao contrário da afirmação de Caio Prado Jr. de que a população livre da economia colonial era formada por "desclassificados, indivíduos de ocupação incerta ou aleatória". Em 1819, deixando de lado as estimativas do número de índios livres, a população brasileira - de 3,59 milhões de pessoas - dividia-se entre 70% de pessoas livres e 30% de escravos. Os brancos (menos da metade da população livre), pardos e negros emancipados eram na sua maioria produtores independentes.

História do Brasil com Empreendedores, de Jorge Caldeira, conta detalhes da economia colonial e suas instituições. Um bom livro, se você ignorar o vocabulário recheado de expressões como "acumulação primitiva" e "trabalho morto". E, como o título do livro indica, o desenvolvimento econômico do Brasil colonial e imperial se deu graças aos numerosos empreendedores independentes.

Hoje não é diferente. O desenvolvimento da economia depende dos empresários inovadores, pois são eles que farejam as oportunidades de lucro e guiam o investimento para as atividades em que inovações e práticas gerenciais avançadas produzem progresso econômico.


* PH.D. PELO MIT, É PROFESSORA TITULAR DA FGV-SÃO PAULO
SITE: WWW.ELIANACARDOSO.COM

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 28/11/2012.

Muita terra, pouco índio

Marcelo Leite



Os 20 mil ianomâmis do Brasil vivem numa terra indígena com 96.650 km², área maior que a de Portugal.

Na reserva indígena Dourados (MS), cerca de 12 mil guaranis (caiovás e nhandevas) dispõem de 35 km². São mais que 340 pessoas por km².

Quem acha que os índios do Brasil têm terra demais deveria ser confrontado com dois pedidos: defina "índios" e defina "terra demais".

De aicanãs a zuruahãs, há 238 etnias no diretório "Povos Indígenas do Brasil", do Instituto Socioambiental (ISA). Vivem em 680 terras indígenas e falam 180 línguas.

Fazendeiros --em especial pecuaristas, vanguarda do atraso no campo-- gostam de citar que as terras indígenas ocupam 13,3% do território brasileiro, 1.128.702 km² de 8.514.877 km². Poucos sabem, porém, que 98,5% dessas áreas ficam na longínqua e pouco valorizada Amazônia.

Todas as outras terras indígenas do país abarcam 1,5% do território nacional. Aí se incluem as minúsculas "reservas" sul-mato-grossenses (era esse o nome na década de 1910, quando o Serviço de Proteção ao Índio, precursor da Funai, passou a instituí-las para confinar "bugres", um termo eivado de racismo e ainda utilizado na região).

Sem as reservas, não haveria hoje fazendas em Mato Grosso do Sul. Com elas, são os cerca de 50 mil guaranis brasileiros que se acabam. Alcoolismo, suicídios e violência completam a obra iniciada pela escravização nas mãos de portugueses e espanhóis. Quatro séculos atrás.

Isso quer dizer que o Estado todo deve ser devolvido aos guaranis? Nunca vai acontecer. Não dá para rebobinar a história. Os proprietários que possuem títulos fundiários de boa-fé podem e devem ser indenizados, não só pelas benfeitorias, mas pela "terra nua".

Para isso foi criado, neste ano, o Fundo Estadual de Terras Indígenas. Os fazendeiros mais estouvados preferem aferrar-se a intermináveis recursos judiciais, quando não ao emprego de violência.

Os guaranis têm do seu lado a Constituição, que reconhece os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam (mas nunca se cumpriu o prazo de cinco anos --vencido há 19-- para a União concluir a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil).

O barulho em torno do despejo dos 170 guaranis confinados em um hectare (0,01 km²) da fazenda Cambará, em Iguatemi (MS), decorre de o Estado brasileiro enfim ter começado a se mexer na região em litígio. Um acordo firmado em 2007 entre Ministério Público Federal e Funai determina que se faça a demarcação de 30 territórios tradicionais, emperrada pelas ações na Justiça.

As áreas já demarcadas somam 1.240 km², segundo o ISA. Menos de 0,4% do Estado de Mato Grosso do Sul.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 03/11/2012.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Um futuro para o PSDB?

José Augusto Guilhon Albuquerque e Elizabeth Balbachevsky



Na noite das eleições municipais, a mensagem de uma jovem universitária chegou com lágrimas na voz: "A oposição vendeu São Paulo para o governo". Tão desafiadora que merece uma resposta igualmente franca.

A derrota do PSDB na cidade onde nasceu, e no Estado que domina há 20 anos, se deve exclusivamente ao próprio partido. Não pode ser atribuída a intuições geniais do adversário, pois o candidato tucano - um dos mais expressivos nomes do partido - obteve menos de 30% do eleitorado contra um mar de 33% de votos não válidos.

É triste admitir, mas José Serra não precisou de adversários para ser derrotado.

O PSDB foi vítima de seu próprio sucesso. Nascido como uma federação de dissidências regionais do PMDB e do antigo PFL, logrou conquistar o eleitorado de centro graças ao gênio político de Franco Montoro, que lhe deu voz e horizonte político, reunindo um leque admirável de lideranças regionais com experiência e capacidade governativa.

Com a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1994 e, sobretudo, com sua reeleição, em 1998, o PSDB cresceu demais e desordenadamente, mas não o bastante para garantir uma maioria governativa. As vacas gordas transmitiram doenças crônicas: o esgarçamento das bandeiras, o caciquismo e uma crise de identidade que o impede de entender o seu próprio eleitorado e definir rumos coerentes.

Fernando Henrique, o líder de maior sucesso eleitoral e político na história tucana, jamais foi unanimidade no próprio partido. Seções inteiras do PSDB repudiaram o Plano Real, que não teria passado sem o apoio do PFL. Seções inteiras apoiaram Lula nas eleições de 1994. Em 1998, além de Lula, também apoiaram outro candidato. Lideranças expressivas renegam até hoje a maior fonte da popularidade e da base eleitoral do partido - o reconhecimento da estabilidade econômica e da robustez financeira conquistadas sob sua liderança. Alinhando-se à visão míope do PT, as candidaturas tucanas à Presidência no pós-FHC esmeraram-se em tratar seu legado como a vergonha da família - abertura da economia, privatizações, responsabilidade fiscal, reforma bancária, moeda forte -, permitindo que Lula e o PT fossem os únicos beneficiários do sucesso dessas políticas.

A perda da identidade abre as portas para o caciquismo: setores inteiros do PSDB preferem perder para o adversário a ter de dividir a vitória com o rival no próprio partido. Os caciques regionais bloqueiam a ascensão de futuros rivais nas capitais, tática que explica como lideranças fortes em 30 anos de domínio político - se contarmos desde Mário Covas como prefeito de São Paulo - só conseguiram emplacar um candidato em condições realmente competitivas em 2004, com Serra.

Sua quintessência é a coalizão de vetos, em vigor desde a sucessão de FHC em 2002. Diferentes lideranças, por diferentes razões, embora minoritárias, reúnem recursos de resistência suficientes para frustrar a eleição do eventualmente consagrado pela maioria do partido.

Foi assim em 2002 com Serra, que chegou a ser derrotado em Estados onde a coalizão tucana obteve vitória incontestável. Foi assim em 2006 com Geraldo Alckmin, que chegou ao segundo turno para ser hostilizado publicamente por seu próprio partido. Foi assim em 2010 com Serra, que, em que pesem seus erros de percurso, foi indiscutivelmente hostilizado por seus próprios pares antes, durante e depois da campanha.

O esgarçamento das bandeiras resulta diretamente da extensão das coalizões tucanas, para além do útil e do desejável. Para dar conta desse esgarçamento basta deixar uma pergunta no ar: quem sabe quais as posições da oposição tucana sobre a matriz energética brasileira desde o ministério Dilma Rousseff; sobre o atual modelo de crescimento; sobre a missão do Banco Central, sua tolerância com a inflação e o gasto público; sobre o desmantelamento da Petrobrás e a paralisia da política de exploração do pré-sal; sobre a política federal para enfrentar as mudanças climáticas; sobre o nacionalismo comercial e cambial; sobre o "controle social" da liberdade de imprensa?

Vivemos uma década de despolitização graças à capacidade do ex-presidente Lula para manipular corações e mentes. Os partidos, as ideias, os anseios de parte significativa do eleitorado foram ofuscados pelo culto à personalidade e pelo maniqueísmo do "nós contra eles".

Em artigo publicado em Opinião Pública (vol. 13, n.º 2, 2007), Elizabeth Balbachevsky e Denilde Holzhacker mostraram que o eleitor de Lula em 2006 diferiu significativamente do seu eleitor em 2002. Naquela eleição o voto em Lula não foi determinado, como nas eleições anteriores, pela identidade do eleitor com o PT nem por sua inclinação ideológica. Variáveis demográficas, como o nível de renda e de escolaridade, foram mais importantes na propensão para votar em Lula. Uma controvérsia foi criada sobre a emergência de uma nova realidade social e política, o "lulismo", capaz de alterar definitivamente a matriz do sistema partidário nacional.

As últimas eleições municipais, entretanto, evidenciam a perda de fôlego do personalismo. Lula considerou questão de honra bater seus adversários em dúzia e meia de cidades. Venceu em pouco mais de meia dúzia. É visível, ademais, um realinhamento do voto nacional, com as administrações municipais concentradas novamente em três grandes partidos, um ao centro (PSDB), outro à direita (PMDB) e outro à esquerda (PT). Com isso os tucanos precisam tomar algum rumo, pois há dois partidos emergentes prontos para ocupar o seu lugar ao centro (PSB) e à direita (PSD).


* PROFESSOR TITULAR DA USP, É PESQUISADOR SÊNIOR DO CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA UNICAMP; PROFESSORA ASSOCIADA DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP, É VICE-COORDENADORA DO NUPPS/USP E MEMBRO DO CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA UNICAMP

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 26/11/2012.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

As novas percepções na escalada da violência

Washington Novaes


Que quer dizer exatamente a onda redobrada de violência na Grande São Paulo e no interior paulista, em Santa Catarina, Goiás, Paraíba, Bahia, Ceará e outros Estados? O tema está a cada dia mais presente na comunicação e suscita, até mesmo em entrevistas e artigos assinados, muitas interpretações. Na verdade, a questão já era muito forte e só agora temos uma nova visão? Ou se trata de uma escalada na violência? Por quê? Será coincidência ou um salto de consciência?

Carmo Bernardes, o falecido escritor mineiro/goiano, costumava dizer que os acontecimentos (e a consciência sobre eles) em nossa vida não escorrem lentamente, e sim dão saltos repentinos: de um momento para outro, vem-nos a consciência de que houve uma mudança forte, um salto. Será assim neste momento? Ou se trata apenas de coincidência, situações momentâneas? Por um lado, as estatísticas de crimes mostram que a situação não é nova, embora possa ter-se agravado - apenas se estaria dando mais ênfase. De fato, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, citado pelo ministro da Justiça (Estado, 14/11), diz que já tínhamos no ano passado 471.200 pessoas presas em 295.400 vagas, com um déficit de 175.800 vagas e 1,6 preso por vaga. Só no Estado de São Paulo, 195 mil presos, ou 1,9 por vaga. Nas 28 prisões da Região Metropolitana, no ano passado, 43.600 presos. E 250 mil pessoas detidas provisoriamente.

Então, por que não percebemos antes a enormidade do quadro e só lhe damos atenção agora? Há indícios de que ocorreram mudanças importantes e certas coisas parecem mais visíveis. Entre elas, um aparente deslocamento geográfico do crime organizado, em busca de novos territórios, desde que cessou o acordo não declarado que havia no Rio de Janeiro, desde o governo Chagas Freitas, na década de 1970, entre a polícia e o tráfico de drogas - "vocês não descem o morro e nós não subimos". Com a ocupação de morros e favelas pelo programa das Unidades de Polícia Pacificadora, o crime (tráfico de drogas, especialmente) teve de migrar - inclusive para fora do Estado. São Paulo e Santa Catarina parecem ser novos territórios, ou a busca deles.

Mas essa busca tem implicado uma escalada. Os comandos de organizações na área do tráfico têm recorrido até à requalificação técnica de seus membros, matriculando-os em cursos que ensinam a manusear explosivos (Folha de S.Paulo, 18/11). Tem significado a exigência de que os devedores aos mandantes do tráfico sejam obrigados a saldar suas dívidas executando policiais - seis PMs e dois agentes prisionais foram executados em 20 dias (Estado, 15/11), quando 154 pessoas foram assassinadas. Em um ano, foram mortos 93 policiais (19/11). Ordens de ataques têm partido de dentro de prisões (15/11), a ponto de os governos federal e paulista cogitarem de instalar bloqueadores de celulares em presídios, ao custo de R$ 1 milhão em cada um deles, levados para 143 unidades prisionais (19/11). A evidência de que esses novos fatores influenciam a visão das autoridades paulistas está no processo, já iniciado, de transferir líderes de organizações criminosas para penitenciárias de segurança máxima fora do Estado (17/11) e no anúncio de que haverá ações importantes em "14 pontos estratégicos do Estado".

Para completar o quadro da redistribuição geográfica do crime organizado: parece claro que o Centro-Oeste brasileiro se transformou no ponto de recepção e redistribuição de drogas advindas das regiões de fronteira. Goiânia teve quase 500 homicídios no ano passado, mais de 500 este ano, até agora - quase invariavelmente relacionados com o tráfico e o não pagamento de dívidas. Em Rio Verde, cidade de 185 mil habitantes, quase cem assassinatos em 2011. Este ano, mais (O Popular, 19/11).

De certo modo, os fatos estavam diante dos nossos olhos há muito tempo. Na Paraíba, a Polícia Federal prendeu mais de 30 policiais e agentes de segurança "envolvidos em grupos de extermínio" (Estado, 10/11). "De 1984 para cá", escreve o leitor Marcelo de Lima Araújo, "mais de 1 milhão de pessoas foram assassinadas intencionalmente no Brasil", o "20.º país mais violento do mundo" (Fórum dos Leitores, 7/11).

E mesmo deixando de lado as razões sociais desse quadro não há como entrar nessa seara abominável do crime e do crime organizado sem referência à situação calamitosa do Judiciário, que implica também a ausência de ressocialização de quem está na prisão - parte da pena quase inexistente. Nada menos que 423.400 processos, ao todo, estão paralisados em tribunais federais e estaduais (Agência Globo, 16/11), aguardando julgamento. Nos tribunais federais, nada menos que 26 milhões de processos foram abertos em 2011 (eram 5,1 milhões em 1990). E com isso 90 milhões de processos tramitam nos tribunais. Mas no ano passado cada ministro do Superior Tribunal de Justiça julgou 6.955 ações; no Tribunal Superior do Trabalho, 6.299 cada um; no Tribunal Superior Eleitoral, 1.160. Como dar conta da papelada toda?

É evidente que nossos modos de viver, acotovelados em grandes cidades e megalópoles, criam condições favoráveis - geográficas, econômicas, sociais, de dificuldade de cobertura policial em toda a área, etc. Mas as verbas previstas para a construção de presídios até 2014 são de apenas R$ 1,1 bilhão, com 24 mil vagas implantadas, 42 mil contratadas; apenas 7.106 entregues (Folha de S.Paulo, 18/11).

E quanto a novas condições sociais e econômicas nas grandes cidades, não há muitas razões para otimismo. Estudo de 40 especialistas da Universidade de São Paulo (USP), ao lado de 81 técnicos da Prefeitura, para o governo paulistano, diz que "a São Paulo dos sonhos" "poderá estar pronta em 2040", nas áreas de transportes coletivos, habitação, despoluição de rios, etc. E custaria R$ 314 bilhões.

Haja paciência e fé! E ainda a crença ilusória de que algo será possível, principalmente nas áreas de segurança e Justiça, sem reformas mais amplas, de caráter global mesmo. Migração de fatores sociais e da criminalidade, escaladas de violência, etc., não se detêm diante de fronteiras municipais, estaduais ou nacionais.


E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 23/11/2012.

O mercador de Veneza

Fernanda Torres

Cruzei com Barbara Heliodora em uma estreia de teatro. Barbara declamou para mim um trecho da cena um do quarto ato de "O Mercador de Veneza", onde Pórcia reflete sobre a cobrança de uma libra da carne do devedor, feita pelo judeu agiota Shylock: "A graça do perdão não é forçada; / Desce dos céus como uma chuva fina / Sobre o solo; abençoada duplamente, / Abençoa quem dá e quem recebe".

"Vou mandar para o Joaquim Barbosa", concluiu a crítica com ironia. Barbosa anda mesmo impiedoso na sua dosimetria.

É difícil acreditar que José Dirceu vá entrar para a história como o maior corrupto que esse país já conheceu. Não é. Talvez, Dirceu seja o mais heroico dos revolucionários, ao aceitar a culpa para salvar o partido. Ou o mais perigoso dos políticos, ao conduzir um esquema para perpetuar o PT no poder pelas próximas décadas.

A alegação de que o caixa dois não é corrupção demonstra o quanto o PT operou dentro das controversas regras monetárias que imperam na política. Caso permanecesse fiel à retidão acusatória dos tempos de oposição, o partido enfrentaria o paradoxo do inflexível delegado de "Medida por Medida", do mesmo W. Shakespeare, que descobre ser impossível governar sem violar a lei.

É melhor fazer cumprir um mandamento que a sociedade não respeita, ou compactuar com o malfeito que não se pode erradicar?

O valerioduto mineiro do tucano Eduardo Azeredo, tudo indica, serviu de modelo para uma estratégia de âmbito nacional. É grave. Mas por que o PT encara o paredão enquanto as acusações ao PSDB correm o risco de prescrever? Estaria certo Dirceu, ao defender a teoria conspiratória? Ou foi obra do soberano acaso?

Como em "Édipo Rei", aquele que mais procura a justiça descobre ser ele mesmo o culpado.
Perguntei a amigos informados o porquê de o mensalinho mineiro ter morrido no tempo, enquanto o mensalão enfrenta a fúria exemplar. Os analistas de quintal apontam para mais de uma razão.

O PSDB foi obrigado a seguir o moroso caminho da Justiça comum, enquanto o PT foi julgado pelo Supremo. Parte dos magistrados assumiu o cargo durante o governo Lula e, presumivelmente, as chances dos processados, ali, seriam maiores.

A indignação de Gilmar Mendes com o ex-presidente, provocada pela insinuação de que o ministro teria visitado a Alemanha na companhia de Demóstenes Torres, envolvido no caso Cachoeira, teria contribuído para o endurecimento do STF. E, também, a desastrosa defesa do caixa dois.

A sequência lógica, repartida em núcleos, imposta pelo relator do processo, tornou difícil a contestação dos fatos e o resultado foi o derramamento de penas.

Dirceu insiste que o tribunal agiu sob pressão da opinião pública atiçada pela imprensa. Mas quem soltou as feras no Coliseu romano foi Roberto Jefferson, de olho roxo, cantando vingança, depois de dar com a língua nos dentes em cadeia nacional. O tom de escândalo não partiu das Redações. O termo mensalão é de autoria do deputado.

A crítica mais pertinente sobre o comportamento dos meios de comunicação eu ouvi de Jânio de Freitas, no "Roda Viva". Segundo o oráculo, um veículo pode e deve tomar posição, mas não tem o direito de fingir neutralidade.

Dirceu e Genoino foram enredados porque soava absurda a explicação de que Delúbio Soares teria sido, à revelia do partido, o arquiteto solitário dos empréstimos milionários e da negociação com a bancada. Mesmo sem provas irrefutáveis, foi preciso responsabilizar o alto escalão. Os autos levaram a isso.

O Partido dos Trabalhadores sempre se viu como o partido do povo brasileiro. Para o PT, o PT é o povo, nascido dos sindicatos e da mão de obra que ergueu o país. Havia uma simbiose entre a vontade do partido e a da nação que legitimava, para alguns envolvidos, as transações criminosas.
Nos últimos dez anos, o PT sofreu o linchamento de quadros do calibre de Palocci, Gushiken, Erenice Guerra e sempre se manteve coeso. Se serve de consolo, o mesmo não se pode dizer do PSDB.

A herança guerrilheira de muitos de seus fundadores sabe que o projeto comum está acima do indivíduo, mesmo quando o custo é uma libra da carne em torno do coração.

"Data venia".

Publicado na Folha de S.Paulo, em 23/11/2012.

A segurança e a força

Demétrio Magnoli



“Em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência, vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro.” O intercâmbio assimétrico de projéteis entre Israel e o Hamas evidencia que a definição clássica das relações internacionais, exposta por Thomas Hobbes em 1651, não perdeu sua validade. A insegurança é o motor das operações militares israelenses na Faixa de Gaza. O Estado judeu, contudo, esqueceu-se há mais de uma década daquilo que, antes, sabia: a maximização do uso da força não conduz, necessariamente, à maximização da segurança.

Israel é filho dos pogroms, dos campos de extermínio, de Auschwitz. Desde o início, o Estado judeu confiou na força: a “nação em armas” da guerra de 1948 construiu as forças armadas letais da guerra de 1967 e, em seguida, um poderoso dispositivo de dissuasão nuclear. Entretanto, os dirigentes israelenses não perderam de vista o objetivo principal, de inserir seu Estado na ordem regional. A cooperação estratégica com a Turquia, os tratados de paz com o Egito e a Jordânia, concluídos à custa de uma concessão territorial, e os Acordos de Oslo, de 1993, representaram a busca da segurança por meio da política. Isso, porém, ficou no passado. Desde a falência do “processo de paz”, intoxicados pela eficácia aparente das ações militares, os israelenses debilitam as fundações de segurança de seu próprio Estado.

O “assassinato seletivo” de Ahmed Jabari, o chefe militar do Hamas, evento deflagrador da crise em curso, reflete a incapacidade israelense de diagnosticar o fracasso de sua estratégia de desengajamento unilateral, que tomou o lugar da busca pela paz, e de eliminação do Hamas do tabuleiro diplomático. O cenário atual do Oriente Médio não se parece com o de quatro anos atrás, quando Israel promoveu uma massiva operação de invasão de Gaza, mas não alcançou o objetivo de destruir politicamente o Hamas. Sob intensa pressão da opinião pública doméstica, a Turquia considera a hipótese extrema de ruptura de relações com o Estado judeu. Uma exibição exagerada de força no território palestino poderia desestabilizar a monarquia jordaniana, já abalada pelas ondas de choque da Primavera Árabe, e dissolver o tecido esgarçado do tratado de paz com o Egito.

“Israel testa o pulso de nossa nação, testa o Egito, testa os árabes e os muçulmanos” para saber “se é capaz de ditar ordens, como no passado, ou se os líderes de hoje têm uma visão diferente”. Na frase de Khaled Meshaal, o líder do Hamas, a palavra crucial é “Egito”. O Hamas nasceu de uma costela da Irmandade Muçulmana egípcia, mas alinhou-se à Síria e ao Irã. No início do ano, sob o impacto da sublevação na Síria, Meshaal transferiu-se de Damasco para o Cairo. O gesto representou um brusco realinhamento do partido islâmico palestino na direção do novo Egito, governado pela Irmandade Muçulmana. No segundo dia de bombardeios israelenses, o primeiro-ministro egípcio visitou Gaza, enquanto o presidente Mohamed Morsi tentava articular um cessar-fogo. Afrontar o Egito e a Turquia, aliados regionais dos EUA, é algo bastante diferente de confrontar iranianos e sírios. À primeira vista, Israel agiu sem examinar o dia seguinte à operação militar. Contudo, as coisas são menos simples do que parecem.

Na hora do “assassinato seletivo” de Jabari, o ministro do Exterior israelense, Avigdor Lieberman, acenou com a hipótese de “derrubar” o governo da Autoridade Palestina na Cisjordânia caso Mahmoud Abbas obtenha na ONU o estatuto de Estado observador. Lieberman é um extremista, mesmo para os padrões do atual gabinete de Israel, mas sua ameaça sinaliza uma inflexão estrutural do Estado judeu. O “desengajamento unilateral” de Gaza, promovido por Ariel Sharon em 2005, veiculava a ideia de que a paz poderia ser imposta por Israel, prescindindo de interlocutores e negociações. De lá para cá, os israelenses radicalizaram ainda mais o pressuposto de Sharon, tratando de desmoralizar a liderança moderada de Abbas. Meshaal venceu: como produto das opções do Estado judeu, o Hamas converte-se no eixo principal da política palestina.

O carro em que se deslocava Jabari foi transformado em uma bola de fogo dias depois da conclusão de uma trégua informal entre o Hamas e Israel, mediada pelo Egito e negociada pelo próprio Jabari. Três semanas antes, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, anunciara a fusão do grupo parlamentar de seu partido, o Likud, com o do Yisrael Beytenu, o partido ultranacionalista de Lieberman; eles apresentarão uma lista única de candidatos às eleições de janeiro. “Não mais lascas de partidos, caprichos que se coligam para um único mandato e depois se dissipam. Oferecemos uma verdadeira alternativa e uma oportunidade para os cidadãos estabilizarem a liderança e o governo”, explicou Lieberman, no tom celebratório de quem obteve um triunfo histórico.

De seu ponto de vista, o ministro do Exterior tem razão. A fusão da direita tradicional com a direita ultranacionalista representa, na prática, a ruptura do Likud com a visão de uma paz negociada e baseada em dois Estados. O projeto da nova direita unificada é traçar, unilateralmente, as fronteiras definitivas entre Israel e Palestina e promover intercâmbios compulsórios de populações destinados a conferir “homogeneidade étnica” ao Estado judeu. A eliminação de Jabari, no momento em que se realizou, constituiu o passo inicial na estratégia comum de Netanyahu e Lieberman.

A utopia regressiva da “paz pela força” tem como pressuposto a negação da existência de interlocutores políticos, tanto entre os palestinos como no entorno árabe mais amplo. O isolamento regional de Israel e a maximização da insegurança em Israel e na Palestina são os meios coerentemente selecionados para esse fim.


Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 22/11/2012.

De Gaza para onde?

Gareth Evans


As palavras mais sábias sobre a segunda guerra de Gaza talvez tenham sido proferidas por um israelense que vive num kibutz perto da fronteira com Gaza. "Se querem me defender... Não mandem as Forças de Defesa de Israel para 'vencer' em nosso nome", escreveu Michal Vasser no jornal Haaretz, no dia 15. "Comecem a pensar no longo prazo, não apenas na próxima eleição. Tentem negociar até que a fumaça branca saia pela chaminé. Parem com os 'assassinatos seletivos' e olhem nos olhos dos civis que estão do outro lado também." Obviamente, Israel tem todo o direito de se defender. Mas a lição das últimas duas décadas é que os ataques com foguetes param, e as intifadas não começam, quando há perspectiva de paz - e também que, quando essa perspectiva não existe, não há como conter a militância.

Talvez sejam cada vez mais escassas as chances de que as negociações em curso com a Autoridade Palestina (AP) resultem num acordo abrangente e sustentável, culminando com a solução de dois Estados - e na sua aceitação, ainda que de má vontade, pelo Hamas. Mas a única alternativa a isso é um ciclo interminável de violência entre israelenses e palestinos.

A prioridade agora é estabilizar a situação em Gaza. Mas se autoridades israelenses têm alguma intenção de evitar novas - e ainda piores irrupções no futuro - elas precisam se fazer algumas perguntas.

De que maneira contribui para a paz eliminar ou reduzir drasticamente os recursos do Hamas, deixando Gaza nas mãos de grupos ainda mais radicais e oferecendo aos islamitas de toda a região mais um incentivo de recrutamento? Como a segurança nacional de Israel é fortalecida quando, em razão de sua ação em Gaza, e de sua inação com Abbas, o país põe em risco os tratados de paz conquistados há tanto tempo com Egito e Jordânia? Como Abbas pode manter um mínimo de credibilidade para negociar se concordar com o pré-requisito imposto pelos israelenses para o início das conversas, isto é, que os palestinos abdiquem da exigência de que a política de assentamentos nos territórios ocupados seja congelada? Por mais que Israel minimize seu significado, a Iniciativa Árabe de Paz, de 2002, ainda contém uma oferta de importância crítica: a completa normalização das relações com todo o mundo árabe, em troca de um acordo de paz abrangente. Por quanto tempo essa posição da Liga Árabe poderá ser sustentada com as negociações patinando como agora? Outra pergunta fundamental que Israel precisa se fazer é se tem como arcar com as consequências, caso a solução de dois Estados desapareça completamente. Israel, como advertiu seu herói David Ben Gurion, pode ser um Estado judeu, pode ser um Estado democrático e pode ser um Estado cujas fronteiras se confundam com os limites históricos de Israel; mas não pode ser as três coisas ao mesmo tempo.

De acordo com o CIA World Factbook, na área da Palestina histórica, há atualmente 6,4 milhões de judeus para 5,6 milhões de não judeus. Mas com uma taxa de natalidade mais baixa e a imigração em queda, é só um questão de tempo para que os judeus fiquem em minoria.

Com a Faixa de Gaza ainda conflagrada, os israelenses têm outro dilema pela frente. O que Israel e seus defensores têm a ganhar resistindo à proposta de resolução que reconhece a Palestina como um "Estado observador" (o mesmo status do Vaticano) na ONU? A proposta, ao que tudo indica, será submetida à votação - devendo ser aprovada por uma vasta maioria internacional - no dia 29.

Um Estado palestino sempre foi uma condição indispensável para a paz e a segurança de Israel no longo prazo, e é para o seu próprio bem que os israelenses deveriam fazer todo o possível para reduzir as tensões em torno da questão. E, tendo em vista as novas realidades das configurações de poder na região, esse imperativo tornou-se mais urgente que nunca.


Gareth Evans é ex-Chanceler da Austrália
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 22/11/2012. 
TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A favor das ações afirmativas

Marta Suplicy



Tenho muito forte a convicção da necessidade de ações afirmativas para os negros. Essa posição vem de minha experiência morando nos EUA nos anos 1960, vivendo a batalha pela inclusão por meio de cotas raciais desta parcela excluída.

Por não falar bem inglês, fui colocada num curso de proficiência, juntamente com outros estudantes. Para minha surpresa, eu era a única branca numa classe de estudantes americanos. Eles quase que falavam pior que eu. Era um dialeto que na versão oral virava outra língua.

Não demorei para entender o porquê daquele grupo. As consequências para o país passei a entender mais tarde.

Entrar numa universidade da Ivy League (a seleção das 10 melhores dos EUA) só era e continua sendo possível com notas muito altas. Aqueles estudantes não tinham a mais leve chance de estar ali ou acompanhar as aulas sem um reforço forte. Passados 50 anos, eles formariam uma sólida classe média e ocupariam altos postos na condução do país. Um deles, estudante em outra destas universidades de excelência, chegaria à presidência dos EUA.

Essas oportunidades propiciaram a qualificação de milhares de jovens que levariam gerações para chegar ao patamar que hoje conquistaram. Eu vi acontecer, por isso acredito.

Sei que há negros que conseguem quebrar a barreira do preconceito. Não é a realidade da maioria. Olhe em volta. Quantos negros colegas no seu escritório? No seu clube? Na escola de seus filhos? Na fila do cinema ou nos restaurantes que você frequenta? Repare, agora, quantos em situação de serviçal.

Os números mostram que tanto brancos pobres como negros que ingressaram por cotas nas universidades brasileiras têm se superado.

Daqui a algumas gerações não necessitaremos mais de cotas. Entretanto, toda ação para agilizar esta ascensão ainda é necessária. Nos beneficiários da Lei Rouanet, poucos são os que apresentam projetos e menos ainda os que, se aprovados, conseguem captar recursos.

Neste Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra -em São Paulo, declarado feriado na nossa gestão- o Ministério da Cultura lança editais em diversos segmentos para criadores, produtores e artistas que se declarem negros.

A Fundação Biblioteca Nacional (FBN) fará a implantação de 30 pontos de leitura e formação de autores negros em todas as capitais. Estes novos talentos serão publicados em livros e irão percorrer o Brasil na "Caravana de Escritores", ao lado de nomes já consagrados. Também serão oferecidas bolsas para pesquisadores negros.

Estamos instituindo o Prêmio Funarte Grande Otelo para investir em criação, produção e fazer com que artistas e produtores negros ocupem palcos, ruas, escolas e galerias de arte de todo o país. Fomentaremos 33 projetos nas categorias artes visuais, circo, dança, música, teatro e preservação da memória, além de pesquisa da produção artística negra no Brasil.

Por meio de nossa Secretaria do Audiovisual, vamos premiar seis produções em curta-metragem. Trabalhos dirigidos e produzidos por jovens negros, de 18 a 29 anos, com temática livre e a possibilidade de utilização de técnicas de animação.

Estas propostas amparam-se no Plano Nacional de Cultura e no Estatuto da Igualdade Racial, que prevê o combate à discriminação e às desigualdades étnicas e a implementação de incentivos e prioridade no acesso aos recursos públicos.

O governo Dilma, através destas ações afirmativas do Ministério da Cultura, combate o preconceito e investe na expressão artística para preservar nossas raízes. Neste caminho, todos nós sairemos maiores.


MARTA SUPLICY, 67, é ministra da Cultura. Foi prefeita de São Paulo (2001-2004), ministra do Turismo (2007-2008) e senadora (2011-2012)

Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/11/2012.

Correto demais

Vladimir Safatle



Em Paris, neste final de semana, houve uma passeata contra o projeto do governo de permitir o casamento entre homossexuais. Depois de agressões a grupos feministas e a jornalistas, alguns manifestantes se voltaram contra a "ditadura do politicamente correto".

Há alguns meses, na época da Olimpíada, uma atleta grega foi suspensa da equipe de seu país por comentários racistas em sua conta do Facebook. À notícia na imprensa europeia, seguiam-se necessariamente centenas de posts denunciando a "ditadura do politicamente correto" que impedia a atleta de enunciar suas opiniões sobre a quantidade de imigrantes em seu país.

No Brasil, discussões sobre o conteúdo racista de um livro de Monteiro Lobato degeneraram, por sua vez, em denúncias violentas contra a mesma "ditadura do politicamente correto" que, ao que parece, deve ser o resultado de um grande complô mundial contra livres pensadores travestidos de atletas gregas, manifestantes que gostam de agredir feministas e defensores da clarividência política de Lobato.

Na verdade, por trás da defesa de tal modalidade de "livre expressão" há o desejo mal escondido de continuar repetindo os mesmos velhos preconceitos e a mesma violência contra os grupos vulneráveis de sempre.

Por trás da atitude do adolescente que parece se deleitar com a descoberta de que é capaz de enunciar, à mesa do jantar, comentários "chocantes" que fazem seus pais liberais revirarem-se, há a tentativa de travestir desprezo social com a maquiagem da revolta do homem comum contra a ditadura dos intelectuais. Não por acaso, essa era uma estratégia clássica para dar direito de cidade a comentários antissemitas.

No entanto, é bom lembrar que uma democracia sabe separar a opinião do preconceito. Uma opinião é aquilo que é, por definição, indiferente. Ela abre um espaço de indiferença a respeito de enunciados e discursos. Mas há enunciações que não podem ser recebidas em indiferença, já que trazem, atrás de si, as marcas da violência que produziram ao serem enunciados. Uma sociedade tem a obrigação moral de defender-se deles.

Colocar uma advertência em um livro por ter conteúdo que pode ser sentido por minorias raciais como violência, impedir que pessoas escarneçam de grupos socialmente vulneráveis é condição para um vínculo social mínimo.

Claro, tais pessoas que julgam normal fazer piadas com negros nunca mudarão de ideia. Mas elas devem saber que há certas coisas que não se diz impunemente.

A falsa revolta é apenas mais uma arma daqueles que querem continuar com as exclusões de sempre.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/11/2012.

Irã deve ser a prioridade imediata para Obama

Henry Kissinger



Depois de uma exaustiva campanha eleitoral, o desafio para o presidente Barack Obama é encontrar uma maneira de impedir que o Irã continue seu programa nuclear militar. Presidentes de ambos os partidos declararam há muito que, para atingir esse objetivo, "nenhuma opção está previamente descartada". No terceiro debate presidencial, ainda que com formulações distintas, falando em impedir uma "arma nuclear" ou a "capacidade de produzir uma arma nuclear" (Obama); ou um "Irã com capacidade nuclear" (Mitt Romney), os dois concordaram que essa é uma questão em que está em jogo o interesse dos EUA. Enquanto o Irã continua a ampliar sua capacidade de enriquecimento de urânio e a transportá-la para instalações subterrâneas, o premiê israelense, Binyamin Netanyahu, estabeleceu abril como prazo final para uma reação. Nesse ambiente conturbado, que significado operacional deve ser dado aos objetivos dos EUA?

Aparentemente, os EUA e o Irã vêm conduzindo negociações bilaterais - uma mudança em relação ao procedimento anterior, com base em conversas multilaterais. O histórico das negociações em torno do programa nuclear iraniano não é encorajador. Por mais de uma década, o Irã só fez protelar, primeiro com o chamado UE-3 (França, Alemanha e Grã-Bretanha), e então com o P5+1 (os países-membros do Conselho de Segurança da ONU, mais a Alemanha). Enquanto alternavam sinais de uma possível flexibilização com períodos de intransigência, os iranianos tratavam de expandir, ocultar e dispersar suas instalações nucleares. Se nenhum limite for imposto a esse processo, o progresso tecnológico do Irã dominará os acontecimentos. Mas em que estágio, e de que maneira, o Irã deve ser privado de uma capacidade nuclear militar?

São três as etapas envolvidas no desenvolvimento de uma capacidade nuclear militar: um sistema de descarga, a capacidade de enriquecer urânio e a produção de ogivas. O Irã vem aumentando o alcance e o número de seus sistemas de mísseis desde, pelo menos, 2006. Sua capacidade de enriquecimento - que por muito tempo foi subestimada nos relatórios elaborados pela Agência Internacional de Energia Atômica - foi expandida para milhares de centrífugas (os aparelhos que enriquecem o urânio). O nível ultrapassa qualquer definição razoável de usos pacíficos autorizados pelo Tratado de Não Proliferação. O fim inevitável desse processo é uma arma nuclear.

Seria inviável determinar, como sugerem alguns, um ponto a partir do qual as negociações seriam abandonadas em favor de ações unilaterais. Assim que a quantidade necessária de material físsil é produzida, as coisas ficam mais fáceis: construir e equipar uma ogiva é um processo relativamente curto e tecnologicamente simples - e seria quase impossível detectar isso em tempo hábil.

Se o que emergisse de uma década de esforços diplomáticos empreendidos pelos membros do Conselho de Segurança fosse uma linha vermelha tão ineficaz, o resultado seria uma proliferação nuclear essencialmente incontrolável por toda uma região já convulsionada por revoluções e conflitos sectários sangrentos. Assim, o Irã conquistaria o mesmo status da Coreia do Norte, com um programa nuclear militar na iminência de se tornar operacional.

Os países com opção nuclear competiriam para reduzir o tempo necessário para completar sua capacidade. Ao mesmo tempo, países à mercê do poderio militar iraniano, mas sem uma opção nuclear, seriam levados a reorientar seu alinhamento político, aproximando-se de Teerã. As tendências reformistas que se manifestaram na Primavera Árabe seriam engolfadas por esse processo. O objetivo de redução global de armas nucleares, acalentado pelo presidente Obama, sofreria um golpe - talvez fatal.

Cenários. Alguns argumentam que, mesmo no pior dos cenários, um Irã nuclear poderia ser contido com uma estratégia de dissuasão. No entanto, isso ignora as realidades imensamente dispendiosas, complexas e carregadas de tensão que marcavam essa estratégia na época da Guerra Fria, além de fazer pouco da inclinação apocalíptica da teocracia iraniana e da quase certeza de que várias potências regionais conquistarão sua capacidade nuclear, se o Irã o fizer.

A partir do momento em que um equilíbrio nuclear for forjado em condições em que as tensões não são mais puramente bilaterais, como na Guerra Fria, e envolvendo países ainda em desenvolvimento, cuja tecnologia para prevenir acidentes é rudimentar, a probabilidade de disparos nucleares aumentará dramaticamente.

É por isso que os Estados Unidos insistem em impor limites ao enriquecimento iraniano, restringindo o acesso aos elementos precursores de uma arma. Ao abandonar a exigência original de acabar com todo o enriquecimento, o P5+1 considerou que níveis de material físsil seriam compatíveis com os usos pacíficos autorizados pelo Tratado de Não Proliferação. Quanto mais alto o nível de enriquecimento, menor o tempo necessário para obter resultados militarmente aplicáveis. A opinião predominante é que o limite mais alto que seria praticável aplicar corresponde a um enriquecimento de 5%, e isso só se todo o material físsil que ultrapassasse esse teto fosse mantido em um lugar seguro, fora do Irã.

O tempo disponível para uma solução diplomática encolhe na proporção direta em que cresce a capacidade de enriquecimento dos iranianos e em que eles se aproximam de uma capacidade nuclear militar. Assim, o processo diplomático precisa chegar a um ponto de decisão. O P5+1 - ou os Estados Unidos unilateralmente - precisa estabelecer um programa preciso para reduzir o enriquecimento iraniano com prazos específicos.

Isso não implica em traçar uma linha vermelha autorizando qualquer país a optar pela guerra. Por mais respeitosos que sejamos com os pontos de vistas de nossos amigos, a decisão final sobre a paz ou a guerra deve permanecer nas mãos do presidente. Por que negociar com um país que demonstra tamanha hostilidade e adota estratégias tão evasivas? Precisamente porque a situação é muito delicada. Pode ser que a diplomacia chegue a um acordo aceitável. Ou seu fracasso mobilizará o povo americano e o mundo. Isso deixará claro as causas do agravamento da crise, até o nível de uma pressão militar ou da aquiescência derradeira com um programa nuclear iraniano. Qualquer um dos resultados demandará o empenho em enxergar suas implicações últimas. Não podemos nos permitir outro desastre estratégico.

Se o Irã demonstrar a disposição de se comportar como um Estado-nação, e não como uma causa religiosa revolucionária, e desde que aceite verificações, suas preocupações com segurança devem ser levadas a sério, incluindo um gradual relaxamento das sanções, conforme os limites estritos ao enriquecimento forem implementados e aplicados.

Mas o tempo urge. É preciso fazer Teerã entender que a alternativa a um acordo não é simplesmente mais um período de negociações, e usar as negociações para ganhar tempo terá graves consequências. Uma diplomacia criativa, aliada a uma estratégia determinada, ainda pode ser capaz de evitar uma crise, desde que os Estados Unidos tenham um papel decisivo na definição de resultados aceitáveis.


HENRY KISSINGER É EX-SECRETÁRIO DE ESTADO DOS EUA ENTRE 1973, 1977
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 21/11/2012. Publicado originalmente no THE WASHINGTON POST. TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Um caminho que se amplia

Condoleezza Rice



A guerra civil na Síria pode vir a ser o último ato na história da desintegração do Oriente Médio tal como o conhecemos. Estamos deixando escapar a oportunidade de manter a região coesa e, assim, reconstruí-la com base nos pilares da tolerância, liberdade e estabilidade.

Egito e Irã são Estados com histórias extensas e contínuas e identidades nacionais fortes. A Turquia também, mas lá há a questão dos curdos, que permanecem em grande medida desassimilados, são vistos com desconfiança por Ancara e mantêm a esperança de formar uma nação independente.

Quase todos os outros Estados importantes da região foram criados modernamente pelos britânicos, que estabeleceram suas fronteiras como se estivessem traçando linhas pretas no verso de um envelope, sem a menor preocupação com diferenças étnicas e sectárias. Resultado: um Bahrein no qual os 70% de xiitas estão submetidos à autoridade de um monarca sunita; uma Arábia Saudita em que os 10% de xiitas ocupam as províncias mais ricas, situadas no leste do país; um Iraque com 65% de xiitas, 20% de sunitas e 15% de curdos e outros grupos - todos até 2003 governados com mão de ferro por um tirano sunita; uma Jordânia em que os palestinos chegam a quase 70% da população; um Líbano dividido em porções mais ou menos iguais de sunitas, xiitas e cristãos; e, por fim, a Síria: um conglomerado de sunitas, xiitas, curdos e outros, governados pela minoria alauita.

Durante várias décadas, a coesão dessa estrutura frágil foi assegurada pela presença de monarcas e ditadores. Mas quando o desejo de liberdade ganhou força e eclodiu em Túnis e se alastrou pelo Cairo e por Damasco, os governos autoritários da região perderam força. O perigo é que esses Estados artificiais acabem por se desintegrar.

O grande equívoco cometido ao longo desse último ano foi atribuir um caráter humanitário ao conflito com o regime de Bashar Assad. As ações de Damasco foram bárbaras e selvagens e muitas pessoas inocentes foram assassinadas. Mas não estamos diante de um replay do que ocorreu na Líbia. Há muito mais coisas em jogo.

O desmoronamento da Síria impele sunitas, xiitas e curdos na direção de uma rede regional de alianças confessionais. Em 1848, Karl Marx exortou os trabalhadores de todo o mundo a ignorar as fronteiras nacionais e unirem-se, tentando convencê-los de que eles tinham mais em comum uns com os outros do que com as classes dirigentes que os oprimiam em nome da unidade nacional.

O Karl Marx de hoje é o Irã. O país sonha com a expansão de sua influência entre os xiitas, unindo-os sob a bandeira teocrática de Teerã - pondo fim à integridade do Bahrein, da Arábia Saudita, do Iraque e do Líbano. Os iranianos empregam os grupos terroristas, o Hezbollah e as milícias xiitas do sul do Iraque para apregoar sua oferta. A Síria é a ponte para o Oriente Médio árabe. Teerã já não esconde o fato de que suas forças de segurança agem no país para dar sustentação a Assad. Nesse contexto, as aspirações nucleares iranianas são um problema não só para Israel, mas para a região como um todo.

E onde estão os EUA? Os americanos passaram 12 meses à espera de que russos e chineses concordassem com ineficazes resoluções da ONU pedindo "o fim do derramamento de sangue", como se Moscou fosse abandonar Assad e Pequim realmente se importasse com o caos que impera no Oriente Médio. Vladimir Putin não é um homem sentimental. Mas enquanto estiver convencido de que Assad consegue se aguentar, não fará nada para enfraquecê-lo.

Nos últimos dias, a França resolveu ocupar o vácuo diplomático e reconhecer um recém-formado movimento de oposição que, em termos gerais, pretende representar todos os sírios. Os EUA deveriam seguir o exemplo de Paris, examinar as intenções desse grupo unificado a fim de, eventualmente, armá-lo. O peso e a influência dos EUA se fazem necessários. Agora é preciso agir.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 20/11/2012. TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER. Publicado originalmente em Washington Post

Uma antropologia imóvel

Kátia Abreu



Toda antropologia é política. Mas nada justifica que as extensas e profundas informações que essa ciência vem acumulando sobre as diversas formas de organização da sociedade indígena sejam usadas como instrumento de dominação e manipulação.

Ainda mais neste Brasil de autores consagrados, nacionais e estrangeiros, com seus fartos estudos sobre a vida e os costumes de nossos índios e suas etnias.

Nossos tupis-guaranis, por exemplo, são estudados há tanto tempo quanto os astecas e os incas, mas a ilusão de que eles, em seus sonhos e seus desejos, estão parados no tempo não resiste a meia hora de conversa com qualquer um dos seus descendentes atuais.

Quem observar com atenção o Censo Demográfico de 2010 percebe que não se sustenta a opinião única sobre os índios, sua distribuição espacial ou modo de viver.

Até mesmo estudos e levantamentos mais antigos já revelavam que "povos da floresta" -pescadores, nômades e coletores- não são, há muitos anos, a cara e o coração predominante dos índios brasileiros dos nossos dias.

Foi o que comprovou recente pesquisa encomendada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) ao Datafolha, revelando a antropologia imóvel praticada pela Funai.

A instituição teoricamente encarregada de compreender os povos indígenas para poder protegê-los busca eternizar os índios como personagens simbólicos da vida simples e primitiva.

Pensando em seu lugar, a Funai tenta manter o controle sobre eles, fingindo não ver que a maioria assiste televisão e tem geladeira e fogão a gás, embora continue morrendo de diarreia porque seus tutores não lhes ensinaram que a água de beber deve ser fervida.

Há tempos o isolamento em áreas remotas da floresta amazônica, salvo raríssimas exceções, não corresponde mais a uma necessidade vital dos índios e das suas diversas etnias.

Ao contrário, esse status aparentemente romântico serve, na verdade, para justificar o contrato de tutela que ainda os mantém como brasileiros pobres.

A Constituição de 1988 determinou que "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente

ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar os seus bens".

Com a opção pelo verbo "ocupar" no presente do indicativo, o constituinte estava seguro de que as terras tradicionalmente ocupadas eram uma parte da justiça. Mas, a partir daí, reduzir o índio à terra é o mesmo que continuar a querer e imaginá-lo nu.

Quando a Funai e o Ministério Público viram as costas a essa determinação constitucional -não demarcando ou demarcando além do que era ocupado até 5 de outubro de 1988-, não somente aumentam o conflito nas áreas, como também criam falsas expectativas para toda a sociedade.

Um verdadeiro discurso do falso enraizamento é que serve para produzir mais poder político para as instituições que se sentem "proprietárias" dos históricos índios brasileiros. E seguem indiferentes à sorte dos atuais brasileiros índios.

Kátia Abreu é senadora (PSD-TO) e a principal líder da bancada ruralista no Congresso. Formada em psicologia, preside a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).


Publicado na Folha de S.Paulo, em 17/11/2012.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Entrevista: Ayres Britto

Entrevista: Ayres Brito





A vida começa aos 70

Ayres Britto se aposenta e colhe os louros do julgamento do mensalão



Entrevista concedida a VALDO CRUZ FELIPE SELIGMAN

RESUMO "A impunidade no Brasil sofreu um duro revés, um tranco", diz Ayres Britto, que presidiu o STF durante o julgamento do mensalão. O ministro, que hoje completa 70 anos, aposentando-se compulsoriamente, comenta o processo e suas convicções filosóficas, como o vegetarianismo e a meditação diária.

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"Em estado contemplativo", revela o ministro Carlos Ayres Britto em entrevista exclusiva à Folha, "eu observo coisas interessantíssimas". Uma delas, diz, "é que nenhum pássaro carnívoro canta. Nunca vi ninguém dizer isso. Os pássaros carnívoros, corujas, águias, falcões, ou crocitam, ou piam, ou grasnam, nenhum deles canta". E completa: "Todos os animais herbívoros, mesmo os mastodontes, elefantes, por exemplo, nenhum agride."

Quem ouvisse apenas essa conversa sobre passarinhos e animais herbívoros poderia imaginar que não se tratava do mesmo Ayres Britto que presidiu o Supremo Tribunal Federal nos últimos sete meses, do qual se afasta ao completar hoje 70 anos de idade, limite para a aposentadoria compulsória.

Foi, porém, da condição de herbívoro -ou melhor, de vegetariano- que tirou forças para contemplar e conduzir uma "coisa interessantíssima" a que assistiu de camarote, na mais alta cadeira da mais alta corte do país: o maior julgamento da história do Supremo, o do mensalão, um dos maiores escândalos da era republicana.

Os últimos três meses, marcados por tensões e explosões no plenário, foram o auge da carreira do pacato Britto, a quem coube apaziguar os ânimos das aves carnívoras -advogados, réus, testemunhas, ministros- que crocitavam, piavam, grasnavam ao seu redor.

Autor de seis livros de poesia, ele diz conciliar "atenção e descontração" em suas meditações diárias, que infundem uma boa dose de espiritualismo na rigidez habitual da ciência jurídica. É mais fácil vê-lo citar místicos indianos como Krishnamurti e Osho do que juristas canônicos.

Para explicar os conflitos no tribunal, recorre a frases como "sem o eclipse do ego, ninguém se ilumina". Em sua visão de mundo (ou "mundivisão", como prefere), é preciso "expulsar de si o ego" para que o espaço dentro de você seja "preenchido pelo universo, pelo Cosmos, pela existência, que outros preferem dizer por Deus".

Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto recebeu a Folha na última segunda-feira (12), em seu gabinete. Já com ar de saudosismo, foi até a janela, que dá para a praça dos Três Poderes, e elogiou a "linda vista", da qual desfrutou nos sete meses em que presidiu o tribunal, ao qual chegou há nove anos, por indicação do ex-presidente Lula.

Durante a entrevista, tomou água e café. Só interrompeu a conversa para atender uma ligação do relator Joaquim Barbosa, que o informou da inversão da pauta do dia: em vez do núcleo financeiro, como estava previsto, Barbosa decidiu começar a semana fixando as penas do núcleo político do mensalão. A surpresa voltou a acirrar os já inflamados ânimos entre o relator e o revisor do processo, Ricardo Lewandowski.

Horas depois, Ayres Britto acompanharia o voto de Joaquim Barbosa e ajudava a fixar a pena do ex-ministro José Dirceu (Casa Civil) em dez anos e dez meses, o que deve custar ao petista pelo menos um ano e nove meses na prisão.

Foi sua penúltima sessão no comando do julgamento do mensalão, que não tem data para terminar, mas já condenou 25 réus, entre deputados e ex-deputados, empresários e ex-ministros, por crimes como corrupção, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. Ele faz uma avaliação realista e entusiasmada do resultado.

"Eu não posso dizer que a impunidade está com os dias contados, eu estaria dourando a pílula, sendo ufanista. Agora, diria que a impunidade sofreu um duro revés, um tranco", afirmou. Em sua opinião, o Supremo está "quebrando paradigmas ultrapassados", exercendo a "sabedoria da coragem, do desassombro, para vedar comportamentos antijurídicos".

Nascido em 1942, na pequena Propriá (SE), filho de um juiz e de uma professora de francês, Britto sonhava em ser jogador de futebol profissional. Acabou na profissão do pai e virou poeta nas horas vagas, tendo publicado livros como "Ópera do Silêncio" e "Varal de Borboletras" (sim, "borboletras").

Casado, pai de cinco filhos, ele diz não querer seguir a carreira política: seria um retrocesso para quem já militou no PT por 18 anos e chegou a tentar uma vaga na Câmara dos Deputados. Foi com o amargo "gosto de jiló, de mandioca roxa ou de berinjela crua", como disse recentemente, que ele puniu inclusive antigos colegas de partido, como José Dirceu e José Genoino. E recorre novamente à sua formação eclética para resumir sua visão tanto sobre o PT como o PSDB: "Eles perderam o que os gregos chamam de Deus dentro da gente, entusiasmo".

Na segunda parte da conversa de quase duas horas (veja em folha.com/ilustrissima), Britto comentou questões jurídicas como o aborto e descriminalização das drogas (para a qual afirma ter uma "tendência, não ponto de vista formado"). Também falou da rotina de meditações e pequenos prazeres, como tocar MPB ao violão -e cantar, presume-se.

Pois foi ele quem disse: é "como se a natureza dissesse 'só tem direito de cantar se for herbívoro'".

"No olhar de um herbívoro, não tem chispa, não tem estresse. Todos os carnívoros são estressados no olhar."

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Folha - Quando foi sua iniciação no campo da meditação?

Carlos Ayres Britto - De uns 20 anos para cá, tanto a meditação quanto o cardápio vegetariano. Eu tinha em torno de 50 anos, um pouco antes, até.

Como o sr. se converteu?

Eu recebi influências positivas, de, por exemplo, [Jiddu] Krishnamurti [1895-1986, guru indiano], Osho [Rajneesh, 1931-90, místico indiano], Eva Pierrakos [1915-79, médium austríaca], Eckhart Tolle [pseudônimo de Urich Leonard Tolle, escritor espiritualista nascido em 1948], autor do livro "O Poder do Agora", e a pessoa que mais me influenciou, Heráclito [de Éfeso, c. 540-c. 480 a.C., pré-socrático que elegeu o fogo e a permanente transformação como princípio da ordem universal].

Depois, de uns 12 anos para cá, comecei a me interessar por física quântica, e ela me pareceu uma confirmação de tudo o que os espiritualistas afirmam. A física quântica, sobretudo os escritos de Dannah Zohar [especializada em aconselhamento espiritual e profissional]. Venho lendo os livros dessa mulher, uma americana que escreveu uma trilogia maravilhosa: "O Ser Quântico", "A Sociedade Quântica" e "QS - Inteligência Espiritual". Também passei a me interessar muito por neurociência.

O sr. tinha religião?

Católica, só que, de 20 anos para cá, me tornei um espiritualista.

Houve um momento de transformação?

Foi meio gradativo. Fui abolindo carne, depois abolindo frango, depois aboli peixe.

Há países que reconhecem em suas leis os direitos dos animais de forma mais abrangente. Podemos chegar a isso?

É possível que haja uma consciência maior. Pelo menos nas técnicas de abate, mais humanizadas, isso já se observa hoje em dia. Por exemplo, vocês sabem que os frangos são criados sobre um tratamento hormonal intenso e sem possibilidade de dormir? Uma luz acesa em cima dele para ele ficar acordado, o frango de granja? Isso é de uma violência...

O sr. condena a forma como o gado é abatido?

Condeno. Tudo. Vou dizer uma coisa, é uma observação minha, não falei em lugar nenhum. Sou contemplativo. Não confundir atenção com contemplação. Atenção é um foco, uma centralização do sentido tão intensa, que o mais das vezes resvala para a tensão. A tensão está muito próxima da atenção. Eu sou um contemplativo, porque na contemplação você concilia atenção e descontração. Isso é fato. Quando você é contemplativo, você contempla essa água, o copo antes de beber. O toque da sua mão no cristal. Eu estou acordado, como quem está atento. Mas estou descontraído, como quem está dormindo.

Então, contemplação é isso, é a conciliação entre a atenção e a distração. É impressionante. É um descarrego, um êxtase. Como vivo em estado contemplativo, eu observo coisas interessantíssimas. Uma dessas coisas é que nenhum pássaro carnívoro canta. Nunca vi ninguém dizer isso.

Os pássaros carnívoros, corujas, águias, falcões, ou crocitam ou piam, ou grasnam, nenhum canta, como se a natureza dissesse: só tem direito de cantar se for herbívoro. E todos os animais herbívoros, mesmo os mastodontes, elefantes, por exemplo, nenhum agride. Eles não são ativos nem pró-ativos na agressão, são reativos. No olhar de um herbívoro não tem chispa, não tem estresse. Todos os carnívoros são estressados no olhar, todos.

Assim se dá com o ser humano?

Assim se dá com o ser humano.

Por que houve tamanha tensão entre o relator Joaquim Barbosa e o revisor Ricardo Lewandowski?

[Se responder] eu vou dar uma de psicólogo, prefiro ficar na objetividade. Eu quero deixar claro: fui presidente, mantive a taxa de cordialidade.

O ego prevaleceu no julgamento?

Não subscrevo suas palavras, de que foi o ego que deu as cartas.

Não digo que pautou, mas que se manifestou em vários momentos.

Os ministros do Supremo são seres humanos, suscetíveis a influências, a percalços existenciais. Ora sabemos administrar esses percalços com o consciente emocional no ponto, ora ele baixa um pouco de patamar.

Mas não houve impasse, não houve pane. Tudo foi administrável. E não precisei, em nenhum momento, suspender a sessão para ver os ânimos refluírem. Quanto à questão de ego, ele prejudica a atuação não só de ministros do Supremo, mas de todo ser humano.

Quando Sartre disse que o inferno é o outro, ele quis dizer que o outro, com sua diversidade, a sua mundividência, seu peculiar modo de conceber e praticar a vida, afeta o nosso ego. Então, podemos traduzir as palavras dele como "o inferno é outro" ou como "o inferno é o ego". Tenho dito para mim mesmo que, sem o eclipse do ego, ninguém se ilumina.

Como o sr. definiria a atuação do Ministério Público e a do relator Joaquim Barbosa no julgamento?

Acho que a história vai registrar que [Roberto] Gurgel e Joaquim Barbosa foram médicos-legistas na autópsia dos fatos delituosos. Eles tiveram merecimento extraordinário para reconstituir com fidedignidade os fatos em sua materialidade. E o "link" entre esses fatos e respectivos autores e partícipes.

Eu só vejo por esse prisma técnico. Joaquim Barbosa, transido de dor [nas costas], um homem "baleado", em linguagem coloquial, a tantos meses, conseguiu levar a termo um processo com quase 600 mil páginas, 600 testemunhas, 40 réus no ponto de partida, sete crimes teoricamente graves e imbricados no mais das vezes.

O sr. chegou a pensar em suspender as sessões?

Pensei, houve um momento em que pensei.

Chegamos a ter ofensas pessoais.

Mas no limite palatável.

Mas nunca houve um julgamento com clima tão tenso, às vezes com atritos tão fortes.

É que esse julgamento é peculiaríssimo. Quando dizem que o Supremo está tomando decisões novas, eu digo que os fatos é que são novos, o imbricamento é que novo, o gigantismo da causa é que é novo, é inédito. O Supremo Tribunal Federal está produzindo decisões afeiçoadas ao ineditismo da causa.

Advogados reclamam da introdução de novos conceitos como a teoria do domínio do fato [segundo a qual autor de um crime não é só quem o executa, mas também quem detém o poder de decidir e planejar a sua realização].

Assim como o dançarino, que se disponibiliza de corpo e alma para a dança -chega o momento em que se funde com ela, e você já não sabe quem é o dançarino e quem é a dança, é uma coisa só-, o intérprete do dispositivo jurídico pode, também, numa relação de profunda identidade e empatia, se fundir com esse dispositivo. Aí você compõe uma unidade. Você é um com o dispositivo, e o dispositivo é um com você.

E isso não é invencionice, decola de um juízo de Einstein, que em 1905, físico quântico que era, cunhou uma expressão célebre: "efeito do observador". Ele percebeu que o observador desencadeava reações no objeto observado.

Ele disse que o sujeito cognoscente, em alguma medida, faz o objeto cognoscível, a depender do grau da intensidade interacional entre eles. Claro que quando você joga teoria quântica para a teoria jurídica, se expõe a uma crítica mordaz. O sujeito diz: "Mas isso não é ciência jurídica".

O julgamento também é inédito pelo desfecho, com políticos condenados à prisão em regime fechado?

Sabe por que está sendo inédito? Porque vocês esquecem, a sociedade esquece, [mas] nós, ministros, não esquecemos. Isso vem num crescendo, só que agora é no campo penal. No campo científico, liberamos o uso das células tronco embrionárias. No dos costumes, decidimos em prol da homoafetividade, da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, no ético cortamos na própria carne proibindo o nepotismo no Judiciário.

No campo político, afirmamos a Lei da Ficha Limpa. Isso é um crescendo, o Supremo vem tomando decisões que infletem sobre a cultura do povo brasileiro. E agora chegou o campo penal.

O Brasil muda?

Não se pode dizer que muda, sinaliza mudanças. Há um vislumbre de mudanças. Ninguém pode garantir nada. Agora, há uma sinalização. Mas a decisão não tem nada a ver com reverência à opinião pública, com submissão à opinião pública, com uma postura de cortejamento à opinião pública.

Os políticos terão mais cuidado, com o risco de irem para a prisão?

Se respondesse sim, estaria fazendo um corte abrupto, radical, de que essa decisão é, sim, um divisor de águas. Não quero ser categórico. Eu digo que essa decisão do Supremo vem num crescendo, que agora alcança o plano criminal. Sinaliza uma nova época, de mais qualidade na vida política.

Eu não posso dizer que a impunidade está com os dias contados, eu estaria dourando a pílula, sendo ufanista, não posso dizer isso. Agora, eu diria que a impunidade sofreu um duro revés, um tranco, por efeito dessa decisão.

Este é o julgamento de um partido?

Na minha opinião, não tem nada a ver com julgamento de um partido. Não é o julgamento do PT, são réus, que alguns ocuparam cargos de direção no PT.

O sr. foi um dos fundadores do PT?

Sabe que não fui? Fazia conferências em aulas e congressos, em seminários, e advogava para coletividades. Só entrei mesmo no PT acho que em 1988, não fui fundador. Passei lá quase 18 anos.

O sr. costuma dizer que é página virada, mas, olhando no que o PT se transformou ao chegar ao poder, isso de certa forma o entristece?

É interessante. A resposta não seria "me entristece". Vou dizer por quê. Eu vejo a vida por um prisma muito do dinamismo, heracliticamente, meu filósofo preferido.

Veja o que aconteceu: qual dos dois partidos que encarnaram a resistência ao regime de exceção [1964-85]? São, hoje, o PSDB e o PT. Esses dois, que encarnaram a resistência, foram premiados, chegaram ao poder. O primeiro, por intermédio de Fernando Henrique. O que aconteceu com esse partido, que teve origem no MDB, no PMDB? Foi perdendo um pouquinho do elã, do entusiasmo na sua militância de esquerda.

Aí, a sociedade disse: está na hora do outro. Qual foi o outro que encarnou a resistência? O PT. Então, vejo por um prisma do exaurimento de fases. A fase ideológica do PSDB se exauriu, a do PT também se exauriu. Não de todo, não podemos ser injustos, porque o PT continua com quadros muito bons. Um desses quadros chegou a escrever um artigo a favor do Supremo, o Tarso Genro [governador do RS]. Vejo isso como parte de um processo histórico previsível.

Os dois partidos se contaminaram?

Não vejo por esse prisma negativista. Eles perderam o que os gregos chamam de "Deus dentro da gente", entusiasmo. Aquele ímpeto depurador das instituições, aquela ânsia de voltar à democracia. Com o retorno à democracia, você chega à conclusão: foi mais fácil alcançar o objetivo do que preservá-lo. Às vezes você conquista uma mulher dos seus sonhos e não sabe manter o amor dela. Isso é um processo histórico.

Alguns ministros me disseram, reservadamente, terem recebido reclamações, cobranças, de que, indicados pelo ex-presidente Lula, acabaram traindo-o. O sr. acha que traiu Lula, que o indicou?

Em nenhum momento me senti assim. Ninguém nunca me cobrou, menos ainda o presidente Lula, ele nunca se acercou de mim, se aproximou de mim para cobrar, fazer queixa. Até porque, vamos convir, cargo de ministro não é cargo de confiança. Não é.

Você não pode ser grato a quem nomeia com a toga. O modo de você, pelo contrário, de honrar a indicação é sendo independente, é transformar os pré-requisitos de investidura no cargo em requisitos de desempenho no cargo. Fui nomeado a partir de dois pré-requisitos, reputação ilibada e notável saber jurídico. Eu transformei isso, como me cabia, em requisitos de desempenho. Então, eu honrei minha nomeação.

Dos dez ministros no julgamento, sete foram nomeados por Lula ou por Dilma. Essa independência conta a favor deles? Os presidentes petistas erraram nas nomeações?

Isso honra os nomeantes. A nossa postura técnica, independente, isenta, desassombrada, é uma postura que honra os nomeantes. Não só os nomeados.

Apesar de membros do PT afirmarem que o julgamento foi político?

Sim, a despeito disso. Isso faz parte da liberdade de expressão. Esse tipo de queixa eu recebo como pura liberdade de expressão, aceito sem maiores queixas.

Como foram os três meses de julgamento? Sua rotina mudou?

Não mudou em nada. Continuei meditando todos os dias, tocando violão quase todos os dias. Eu apenas diminuí muito, o que foi ruim para mim, minhas saídas de casa para me deleitar com espetáculos públicos, teatro, música.

O vegetarianismo é um passo para a iluminação?

Não chegaria a isso, não. Agora, tudo tem uma lógica elementar. É claro que não vou explicar tudo pela lógica, porque o mundo do mistério existe e o mistério está fora da lógica convencional. Quando você olha para você e diz: "Não há ninguém dentro de mim, o meu corpo não está abrigando ninguém", quando você diz "eu sou um vazio", você enxota o ego.

Mas não há vácuo na natureza. O que acontece? O vácuo vai ser preenchido pelo universo, pelo Cosmos, pela existência, outros preferem dizer por Deus. Expulse de si o ego que o espaço deixado por ele vai ser instantaneamente ocupado pela existência. Aí você dialoga com a existência, isso é elementar. Aí você tem um vislumbre do eterno, do definitivo, mais clarividente, você abre os poros da lógica, do seu cartesianismo, você vê o direito por um prisma novo.

Agora, você paga um preço por isso. Qual é? Quando vê as coisas por um prisma totalmente novo, a sociedade não tem parâmetro para avaliar seu prisma diante do inédito para ela. Você é um antecipado, viu antes dela. O que ela faz, lhe desanca, lhe derruba, se não ela vai se sentir menor, inferiorizada, aturdida. O que ela faz, ela lhe desanca, você está errado, ou então você não é um cientista, você é um mistificador.

A sociedade não tem parâmetro para analisar os antecipados no tempo. Veja a lógica das coisas, o tempo só pode se guiar por quem anda adiante dele. São os espiritualistas, os artistas, porque eles não têm preconceitos, pré-interpretações, pré-compreensões.

Como definiria os sete meses no comando do Supremo?

Uma honra muito grande, pela oportunidade de, a partir do Supremo, servir à sociedade brasileira. Só faz sentido exaltar a figura da presidência nessa perspectiva, do serviço da coletividade. Fora disso, não é viagem de alma, é viagem de ego.

E como resumiria os nove anos que passou no Supremo?

Diria o seguinte: Em tudo o que faço, já não faço questão de ser reconhecido. O que faço questão é de me reconhecer. Fui eu mesmo nessas questões. Não perdi minha essência, minha mundividência.

Eu gravitei em torno dos valores que dão sentido, dão grandeza, dão propósito à existência individual e coletiva. Eu não perdi a viagem. A frase é essa.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/11/2012.