quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Uma vinheta da eleição paulistana

Elio Gaspai
 
 
Em agosto, quando o candidato Fernando Haddad prometeu a criação de um Bilhete Único Mensal, pelo qual o cidadão poderia comprar um passe livre para os ônibus municipais, a marquetagem tucana acusou-o de propor uma taxa, um "bilhete mensaleiro".

 
Dividia-se o eleitorado em dois grupos. Um, que já foi a Londres, Nova York ou Paris e sabia que esse tipo de bilhete com desconto não é uma taxa, pois ninguém é obrigado a comprá-lo. Noutro grupo estava a população que usa os ônibus. Para ela, bastava fazer a conta: se o novo bilhete custar R$ 150 e o cidadão fizer duas viagens por dia, a tarifa de R$ 3 cai para R$ 2,50.

 
Com o início da propaganda eleitoral gratuita Haddad tinha 16% nas pesquisas, bem atrás dos 35% de Celso Russomanno, que sobrevivia ao raquitismo de seu tempo de exposição e de uma ofensiva de parte da hierarquia católica. Uma semana antes da eleição, o "fenômeno Russomanno" começou a evaporar. Na véspera, tinha 27% das preferências. Abertas as urnas, ficou com 22%, fora do segundo turno. O que houve? No final de setembro Russomanno prometera a cobrança de tarifas diferenciadas nas viagens de ônibus. Simples assim: quem anda muito pagaria mais, como quem viaja muito é o trabalhador, lá vinha tunga. Até hoje a explicação mais convincente para a implosão de Russomanno está na migração dos eleitores mais pobres. Perceberam o perigo e saltaram.

 
O tucanato, que condenara o Bilhete Único Mensal acordou e, no segundo turno, correu atrás, propondo a extensão da sua validade. Desde 2004, quando a prefeita Marta Suplicy foi a primeira a instituir essa modalidade de tarifa numa grande cidade brasileira, governantes e candidatos do PSDB olham para a iniciativa com cara feia. Primeiro porque criticavam-na nos seus aspectos técnicos. Depois, porque ela parecia coisa do adversário. Acordaram com oito anos de atraso.

 
É uma exagerada temeridade atribuir o resultado eleitoral de São Paulo ao item do Bilhete Único, mas certamente ele foi um dos ingredientes do naufrágio, pela percepção oferecida ao eleitorado. No primeiro turno uma parte dele saltou de Russomanno porque o doutor queria cobrar mais caro pelas tarifas de quem fica duas horas no ônibus para chegar ao trabalho. Não se deve esquecer que os transportecas da prefeitura defenderam a instituição do pedágio urbano para veículos sobre pneus numa cidade em que a municipalidade nada cobra pelos pousos de helicópteros. Com uma cabeça dessas, um candidato tucano poderá ganhar a eleição em Fort Worth, no Texas, pois lá está a fábrica das aeronaves Bell.

 
A renovação de que o PSDB precisa e que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso vocalizou é de nomes mas, sobretudo, de ideias. Não só de propostas novas, mas sobretudo de uma faxina nas velhas, demofóbicas. Os candidatos do PSDB deveriam ser obrigados a usar a rede de ônibus todos os dias, durante pelo menos uma semana. A experiência valeria mais que sete seminários com ex-ministros tucanos reapresentando ideias de um governo que acabou em 2002. Algo como barões do Império amaldiçoando a República em 1899, durante o governo Campos Salles.
 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 31/10/2012.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Fato e opinião

Marina Silva
 
 
Há um pensamento arrogante, derivado de um positivismo rudimentar, que prega a superioridade dos fatos objetivos sobre as opiniões, consideradas meras suposições subjetivas. Aí esconde-se uma esperteza: os fatos são cuidadosamente selecionados para comprovar uma opinião já formada com base em interesses, estes, sim, muito objetivos.
Os que contrariam tais interesses e contestam a escolha dos fatos são levianamente desqualificados como ideológicos e radicais. No debate sobre o ex-Código Florestal, cabe perguntar aos idólatras dos "fatos":
1) É fato que o agronegócio (cuja importância na macroeconomia e no comércio internacional ninguém nega) não é que coloca "comida na mesa" do povo brasileiro, que 60% da cesta básica é garantida pela agricultura familiar, também responsável por 7 em cada 10 empregos no campo?
2) É fato que existem mais de 140 milhões de hectares de áreas degradadas, improdutivas ou com baixíssima produtividade e que é possível dobrar a produção agrícola e o rebanho bovino sem desmatar novas áreas, bastando agregar tecnologia simples e disponível?
3) As propriedades com menos de quatro módulos fiscais (na Amazônia são 400 hectares) nem sempre coincidem com a agricultura familiar, que muitas são agregadas à pecuária ou às empresas agrícolas?
Se assim for, as reformas no código perdem a justificativa de defender os pequenos agricultores e, de fato, atendem ao interesse de grandes empresas. Mesmo porque, entre as mudanças feitas, há fatos que vêm sendo omitidos.
O art. 67 dispensa imóveis menores que quatro módulos fiscais de recuperar reserva legal desmatada até julho de 2008. Isso é anistia. O Ipea calcula que 3,9 milhões de hectares deixarão de ser recuperados.
O art. 63 abre várias exceções que anistiam desmatamento ilegal em topos de morro e encostas, e o art. 61-A oferece as mesmas bondades, dependendo do tamanho do imóvel, a quem desmatou ilegalmente margens de rios, nascentes, olhos d'água, lagos e veredas.
Quem não foi anistiado, ainda pode usar 50% de plantas exóticas (comerciais) para recuperar áreas degradadas (artigos 61-A 13 e 66, parágrafo 3º).
Nos mangues e apicuns, as áreas degradadas não serão recuperadas e novas áreas podem ser ocupadas com criação de camarões e loteamentos urbanos (art. 11-A). A mata ciliar deixa de ser contada a partir do ponto de cheia do rio e muda a definição de "topo de morro", reduzindo, em alguns casos, até 90% da área protegida.
A liberdade de pensamento é uma das maiores conquistas de nossa preciosa democracia. O código deixa de ser florestal, torna-se um sistema de concessões para a ocupação predatória de quem quer aumentar terras em vez de agregar tecnologia. Vai na contramão do século 21 e é um retrocesso.
 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/10/2012.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Um sucesso para ninguém botar defeito

Elio Gaspari
 
 
A notícia pareceu uma simples estatística: entre 1997 e 2011, quintuplicou a percentagem de negros e pardos que cursam ou concluíram o curso superior, indo de 4% para 19,8%. Em números brutos, foram 12,8 milhões de jovens de 18 a 24 anos.
Isso aconteceu pela conjunção de duas iniciativas: restabelecimento do valor da moeda, ocorrido durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e as políticas de ação afirmativa desencadeadas por Lula.
Poucos países do mundo conseguiram resultado semelhante em tão pouco tempo. Para ter uma ideia do tamanho dessa conquista, em 2011 a percentagem de afrodescendentes matriculados em universidades americanas chegou a 13,8%, 3 milhões em números brutos. Isso depois de meio século de lutas e leis.
Em 1957, estudantes negros entraram na escola de Little Rock escoltados pela 101ª Divisão de Paraquedistas.
Pindorama ainda tem muito chão pela frente, pois seus negros e pardos formam 50,6% da sua população e nos Estados Unidos são 13%.
O percentual de 1997 retratava um Brasil que precisava mudar. O de 2011, uma sociedade que está mudando, para melhor. Por trás desse êxito estão políticas de cotas ou estímulos nas universidades públicas e no ProUni.
Em seis anos, o ProUni matriculou mais de 1 milhão jovens do andar de baixo, brancos, pardos, negros ou índios. Deles, 265 mil já se formaram. Novamente, convém ver o que esse número significa: em 1944, quando a sociedade americana não sabia o que fazer com milhões de soldados que combatiam na Europa e no Pacífico, o presidente Franklin Roosevelt criou a GI-Bill.
Ela dava a todos os soldados uma bolsa integral nas universidades que viessem a aceitá-los. Em cinco anos, a GI-Bill matriculou 2 milhões de jovens. Hoje entende-se que a iniciativa foi a base da nova classe média americana e há estudiosos que veem nela o programa de maior alcance social das reformas de Roosevelt.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 23/10/2012.

Serra presidente

Janio de Freitas
 
 
A solução de dar a José Serra a presidência do PSDB, noticiada como reação dos peessedebistas à sua prenunciada derrota na eleição paulistana, é mais do que um jogar precipitado da toalha de nocaute político.
A presidência de um partido não é prêmio de consolação. E muito menos o seria a presidência do PSDB, cuja perda de expressão entre as forças políticas tem a ver com José Serra, mas é anterior à disputa pela Prefeitura de São Paulo. A formação de direções partidárias por arranjos e interesses subalternos é, aliás, um dos fatores importantes na degeneração do sistema político brasileiro.
Os figurantes de mais relevo dentro do PSDB não se dão conta de que o seu partido está em uma encruzilhada, falta de percepção que o razoável desempenho nas eleições municipais vem acentuar. Não são muitas as hipóteses de futuro oferecidas ao PSDB. Nem muito tempo para definir o que é capaz de vir a ser, por meio do que seus integrantes influentes sejam capazes de querer e de fazer.
Uma das hipóteses é a volta do PSDB às suas origens, de partido com o propósito de representar ideias de social-democracia e de reformas democratizantes e moralizantes da política brasileira. Aquilo mesmo que levou Franco Montoro e Mario Covas a deixarem o PMDB de suas tantas batalhas.
A alternativa àquela hipótese, para o PSDB, é continuar no jogo de patotas em que se mediocrizou, tornando-se a bandeira do neoliberalismo por aqui, e logo descambando para a posição de centro-direita, como representação política do mercadismo e dos negócios financeiros. Por esse caminho tomou o lugar do hoje fantasmagórico PFL-DEM, e, pelo mesmo caminho, não é provável que tarde muito a chegar ao mesmo destino.
Se José Serra é capaz de fazer algo pelo PSDB, não sei dizer. Mas é certo que a tarefa não poderia ser de um só, e José Serra é um desagregador notório, como demonstrou em sua longa contribuição para o desarranjo interno do partido (só as suas brigas com os então senadores e dirigentes Tasso Jereissatti e Sérgio Guerra e com Aécio Neves já exemplificam o suficiente).
Gente em condições de recuperar o PSDB, se tal vier a ser o desejo dos que vivem à sua sombra, é material escasso -para dizer o mínimo a respeito. Carência comum a todos os partidos, em dimensões variadas. Com dificuldade adicional no PSDB: as inconvivências internas, muito agudas, desgastaram todos os que têm alguma presença no partido. E, afinal de contas, eles são os que demoliram o projeto PSDB.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 23/10/2012.

Um país estranho

Vladimir Safatle
 
 
A Islândia é uma ilha com pouco mais de 300 mil habitantes que parece decidida a inventar a democracia do futuro.
Por uma razão não totalmente clara, esse país que fora um dos primeiros a quebrar com a crise financeira de 2008 sumiu em larga medida das páginas da imprensa mundial. Coisas estranhas, no entanto, aconteceram por lá.
Primeiro, o presidente da República submeteu a plebiscito propostas de ajuda estatal a bancos falidos. O ex-primeiro-ministro grego George Papandreou foi posto para fora do governo quando aventou uma ideia semelhante. O povo islandês, todavia, não se fez de rogado e disse claramente que não pagaria nenhuma dívida de bancos.
Mais do que isso, os executivos dos bancos foram presos e o primeiro-ministro que governava o país à época da crise foi julgado e condenado.
Algo muito diferente do resto da Europa, onde os executivos que quebraram a economia mundial foram para casa levando no bolso "stock options" vindos diretamente das ajudas estatais.
Como se não bastasse, a Islândia resolveu escrever uma nova Constituição. Submetida a sufrágio universal, ela foi aprovada no último fim de semana. A Constituição não foi redigida por membros do Parlamento ou por juristas, mas por 25 "pessoas comuns" escolhidas de maneira direta.
Durante sua redação, qualquer um podia utilizar as redes sociais para enviar sugestões de leis e questionar o projeto. Todas as discussões entre os membros do Conselho Constitucional podiam ser acompanhadas do computador de qualquer cidadão.
O resultado é uma Constituição que estatiza todos os recursos naturais, impede o Estado de ter documentos secretos sobre seus cidadãos e cria as bases de uma democracia direta, onde basta o pedido de 10% da população para que uma lei aprovada pelo Parlamento seja objeto de plebiscito.
Seu preâmbulo não poderia ser mais claro a respeito do espírito de todo o documento: "Nós, o povo da Islândia, queremos criar uma sociedade justa que ofereça as mesmas oportunidades a todos. Nossas diferentes origens são uma riqueza comum e, juntos, somos responsáveis pela herança de gerações".
Em uma época na qual a Europa afunda na xenofobia e esquece o igualitarismo como valor republicano fundamental, a Constituição islandesa soa estranha. Esse estranho país, contudo, já não está mais em crise econômica.
Cresceu 2,1% no ano passado e deve crescer 2,7% neste ano. Eles fizeram tudo o que Portugal, Espanha, Grécia, Itália e outros não fizeram. Ou seja, eles confiaram na força da soberania popular e resolveram guiar seu destino com as próprias mãos. Algo atualmente muito estranho.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 23/10/2012.

Encrenca educacional

Hélio Schwartzman
 
 
Pesquisa da Faculdade de Educação da USP mostrou que quase metade dos alunos que ingressam nos cursos de licenciatura em física e matemática da universidade não estão dispostos a tornar-se professores. O detalhe inquietante é que licenciaturas foram criadas exatamente para formar docentes.
A dificuldade é que, se os estudantes não querem virar professores, fica difícil conseguir bons profissionais e, sem eles, o sistema de ensino brasileiro seguirá colecionando fracassos.
Embora exista muita polêmica sobre o que funciona ou não em educação, não há dúvida de que a qualidade do professor é fundamental. Trabalho de 2007 da consultoria McKinsey comparou sistemas de educação de todo o mundo e concluiu que o elemento de maior destaque nas redes de excelência era a capacidade de "escolher as melhores pessoas para se tornarem professores".
Na Coreia do Sul, por exemplo, os futuros mestres são recrutados entre os 5% de alunos com notas mais altas no equivalente ao vestibular. Na Finlândia, os docentes são selecionados entre os "top ten". Por aqui, segundo levantamento de 2008 da Fundação Lemann, apenas 5% dos melhores alunos do ensino médio pensam em abraçar o magistério. Ser professor no Brasil se tornou a opção dos que não têm melhores opções.
Resolver essa encrenca é o desafio. Salários são por certo uma parte importante do problema, mas outros elementos, como estabilidade na carreira e prestígio social, também influem. O tratamento quase reverencial que a sociedade coreana dispensa a seus mestres ajuda a explicar o sucesso educacional do país.
Essas considerações tornam difícil a situação do Brasil, que precisa transitar de um modelo em que os piores alunos viram docentes para um que prime pela excelência. E, como o deficit de professores já é enorme (200 mil só na área de exatas), teremos de achar um jeito de trocar o pneu com o carro em movimento.
 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/10/2012.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Compra de votos e governabilidade

Rogério Cezar de Cerqueira Leite
 
A afirmativa de que os fins justificam os meios sempre foi vista como antiética. Todavia, em nosso cotidiano, vemos exemplos claros dessa prática, que não censuramos.
Quando Fernando Henrique Cardoso foi pela primeira vez eleito presidente, José Serra, então seu fiel escudeiro, perguntado por um repórter se estaria preocupado com a "governabilidade", respondeu que não, pois dispunha-se de 20 mil cargos.
Entenda-se que estes cargos seriam distribuídos para obter governabilidade, o que significa apoio no Congresso, em votações que fossem de interesse do Executivo. Ou seja, governabilidade por distribuição de cargos não seria apenas um eufemismo para compra de votos?
Um desses cargos sem concurso corresponde a um salário entre R$ 5.000 e R$ 15.000 por mês, digamos uma média de R$ 130 mil por ano. Os 20 mil cargos durante um mandato de quatro anos somam R$ 10 bilhões. Frente a tal valor, o total do mensalão é uma ninharia.
Ora, o professor José Serra estaria dizendo que dispunha dessa imensa quantia de dinheiro público para comprar governabilidade -ou seja, apoio em votações de interesse do governo. Será que isso é diferente, em sua essência, da compra de votos como interpretada pela STF no caso do assim chamado "mensalão"?
Uma outra forma generalizada de "compra de governabilidade" é através das chamadas emendas parlamentares. Consideremos para ilustração o seguinte exemplo: ainda no primeiro mandato de Fernando Henrique, foi formada uma comissão mista do Congresso para aprovar o contrato que suportaria a implantação do "Sivam" (Sistema de Vigilância da Amazônia).
Fui escalado para representar a oposição ao projeto. O contrato com o Eximbank que forneceria e forneceu os recursos atribuía ao Brasil apenas a responsabilidade das obras civis, conferindo às indústrias dos Estados Unidos e da Europa a confecção de todos os equipamentos, embora já existisse uma indústria nascente brasileira no setor.
A intenção de sonegação de transferência de tecnologia para o Brasil ficava óbvia em um artigo do contrato que dizia que se qualquer equipamento não pudesse ser produzido nos Estados Unidos, ele poderia ser encomendado em qualquer outro país, exceto o Brasil.
Essa obscenidade teria sido suficiente para que qualquer parlamentar com um mínimo de patriotismo, para não dizer dignidade, repudiasse a proposta americana.
Pois bem, o projeto foi aprovado sem objeções. Na semana seguinte, a Folha publicou a relação de emendas parlamentares liberadas imediatamente após a votação e os respectivos nomes dos congressistas que tinham votado favoravelmente.
O único critério para as ditas liberações foi, inquestionavelmente, o voto favorável, ou seja, votos foram comprados com dinheiro público.
Esses e outros múltiplos dispositivos, igualmente inquinados, são generalizadamente adotados igualmente por impolutos e ímpios políticos no Brasil. Apenas não são tão explícitos como aquele do dito mensalão, pois sabem manter as aparências. À mulher de César basta parecer honesta.
Que a simplista exposição aqui apresentada não seja entendida como escusa aos atos dos assim chamados mensaleiros, mas antes como alerta para a sociedade a respeito das múltiplas e corruptas formas, já banalizadas, de compra de voto que frequentam o Congresso.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 81, físico, é professor emérito da Unicamp, pesquisador emérito do CNPq e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha
Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/10/2012.

"Kit gay" será em 2012 o aborto de 2010

Vera Magalhães
 
O segundo turno da eleição em São Paulo vai reproduzir não apenas a polarização entre PSDB e PT, mas também um dos principais embates da campanha presidencial de 2010: a discussão, puxada por igrejas, de um assunto de cunho comportamental e religioso em plena disputa política.
O papel que teve o debate sobre aborto há dois anos será agora desempenhado pela discussão em torno do chamado "kit gay", material didático que foi encomendado pelo Ministério da Educação sob a gestão de Fernando Haddad com a justificativa de combate à homofobia nas escolas.
O kit foi atacado por várias denominações religiosas, que viram na iniciativa uma forma de incitar a homossexualidade entre crianças e adolescentes.
A polêmica que se seguiu à divulgação do projeto foi enorme e atingiu a bancada evangélica do Congresso, que ameaçou retaliar o governo em votações caso o material não fosse suspenso. Dilma Rousseff mandou suspender o lançamento, e Haddad nega a paternidade da proposta, mas o estrago foi feito.
Usado ainda com parcimônia no primeiro turno, em que o mensalão e a aliança com Paulo Maluf foram os maiores telhados de vidro de Haddad, o "kit gay" volta com força agora, já que uma das estratégias do PSDB será evitar que o petista se beneficie do voto evangélico -na primeira etapa foi depositado majoritariamente em Celso Russomanno.
O material já levou, por exemplo, igrejas evangélicas com peso, como a Assembleia de Deus, a apoiar José Serra. Também deve dificultar a adesão da Igreja Universal do Reino de Deus, braço religioso do PRB de Russomanno. O partido deve se limitar a um apoio protocolar, no campo apenas institucional.
Do lado tucano, os ataques de cunho religioso não deverão nunca ser enunciados por Serra, que em 2010 também evitou ser o responsável por vocalizar a ambiguidade de Dilma Rousseff quanto à descriminalização do aborto.
Serão as igrejas e os aliados do tucano que vão se incumbir de associar o petista ao kit encomendado pelo MEC.
A campanha petista já discute um antídoto para evitar que Haddad fique preso às cordas, na defensiva, respondendo ora sobre mensalão ora sobre "kit gay".
Questionado no debate da Folha/RedeTV! sobre o tema, Haddad mais uma vez procurou se desvincular do kit, mas não foi taxativo ao dizer que não adotará material semelhante na prefeitura, caso eleito. A defesa da diversidade sexual e o combate à intolerância são bandeiras históricas do PT, que têm na ex-prefeita Marta Suplicy uma referência.
Qualquer manifestação do candidato esbarraria nessa convicção petista e poderia afastar outra parcela do eleitorado do ex-ministro, formada por intelectuais e acadêmicos da esquerda.
Ainda assim, apoiadores de Haddad defendem que ele dê uma declaração definitiva e imediata sobre o assunto, dizendo que a prefeitura não levará a discussão anti-homofobia às escolas municipais.
Assim como em 2010, a pauta religiosa está de volta aos palanques.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 10/10/2012.

Os novos reféns

Vladimir Safatle
 
 
Os homossexuais tornaram-se os novos reféns da política brasileira. O nível canino de certos embates políticos fez com que setores do pensamento conservador procurassem se aproveitar de momentos eleitorais para impor sua pauta de debates e preconceitos.
Eleições deveriam ser ocasiões para todos aqueles que compreendem a igualdade como valor supremo da República, independentemente de sua filiação partidária, lutarem por uma pauta de modernização social que inclua casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, permissão de adoção de crianças e constituição de família, além da criminalização de toda prática de homofobia e do engajamento direto do Estado na conscientização de seus cidadãos. Parece, no entanto, que nunca nos livraremos de nossos arcaísmos.
Alguns acreditam que se trata de liberdade de expressão admitir que certos religiosos façam pregações caracterizando homossexuais como perversos, doentes e portadores de graves desvios morais. Seguindo tal raciocínio, seria também questão de liberdade de expressão permitir que se diga que negros são seres inferiores ou que judeus mentem em relação ao Holocausto.
Sabemos muito bem, contudo, que nada disso é manifestação da liberdade de expressão. Na verdade, tratam-se de enunciados criminosos por reiterar proposições sempre usadas para alimentar o preconceito e a violência contra grupos com profundo histórico de exclusão social.
Nunca a democracia significou que tudo possa ser dito. Toda democracia reconhece que há um conjunto de enunciados que devem ser tratados como crime por fazer circular preconceitos e exclusão travestidos de "mera opinião".
Não há, atualmente, nenhum estudo sério em psiquiatria ou em psicologia que coloque o homossexualismo enquanto tal, como forma de parafrenia (categoria clínica que substituiu as perversões).
Em nenhum manual de psiquiatria (DSM ou CID) o homossexualismo aparece como doença. Da mesma forma, não há estudo algum que mostre que famílias homoparentais tenham mais problemas estruturais do que famílias compostas por heterossexuais.
Nenhum filósofo teria, hoje, o disparate de afirmar que o modelo de orientação sexual homossexual é um problema de ordem moral, até porque a afirmação de múltiplas formas de orientação sexual (à parte os casos que envolvam não consentimento e relação com crianças) é passível de universalização sem contradição.
Impedir que os homossexuais tornem-se periodicamente reféns de embates políticos é uma pauta que transcende os diretamente concernidos por tais problemas. Ela toca todos os que lutam por um país profundamente igualitário e republicano.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 16/10/2012.

Bem x Mal

Barbara Gancia
 
Está tudo muito bom, está tudo muito bem. E o "New York Times", o "Financial Times" e o "Times" de Londres po­dem estar certos de que o julga­mento do mensalão representa um avanço brutal para a democracia tapuia, como bem notou o nosso monumental Clóvis Rossi em sua coluna de ontem, mas esta "bastian contraria" (a expressão é piemon­tesa) que vos fala veio posar na sua sopa para discordar.
É claro que quem tem culpa que pague o que deve. E eu também, co­mo todo o resto do Ocidente (excluindo talvez o Suriname, Cuba e a Cristina Kirchner -que deve sentir coisas por ele), não vou com os cornos do Zé Dirceu. O homem escondeu a pró­pria identidade da mulher, vive de amassos com os Castro, não é exatamente exemplo de democrata e blá-blá-blá-blá-blá.
Acontece que não consigo disso­ciar a imagem de Joaquim Barbosa de Torquemada e o julgamento do mensalão da Inquisição. Estamos assistindo a um massacre e há mui­to ainda a considerar.
Diziam que o julgamento seria parcial porque Lula havia escolhi­do os juízes. Não aconteceu. Aliás, essa desconfiança preconceituosa me faz lembrar o terceiro mandato de Lula, que não houve.
Enunciavam também que o men­salão ia dar a vitória a Russomanno em primeiro turno. Não aconteceu. Por sinal, a economia nem vai tão bem e Haddad lidera as pesquisas.
E Lula, ora, Lula foi o grande ven­cedor do primeiro turno (tadinha da Martoca) e vai levar São Paulo de enxurrada, né não? Fica claro tam­bém que a classe média alta que se diz informada, mas que raramente acaba obtendo colocação profissio­nal fora do âmbito familiar, quer ver o PT ser varrido do mapa. Essa é a turma que torce como nunca no Fla-Flu do julgamento do STF.
Nos últimos tempos, até a Dilma eles têm tratado com um desdém que antes não havia ali. Já para o zé povinho, tanto faz. Para a perifa, obviamente não só despida de pre­conceito contra o Lula como iden­tificada com ele até a alma e beneficiada pelas mudanças sociais, escândalo de compra de votos da reeleição, anões do Con­gresso, Sivam, Zé Dirceu, Collor... é tudo a mesma lasanha.
Eu até concordo que a gente quei­ra ver canalhas ricos o bastante pa­ra contratar advogados top na ca­deia. Mas, vem cá: o Genoino, gen­te? Todo mundo conhece o Genoi­no, sabe que ele não vive no luxo. E não merece o que está acontecen­do.
Nesta semana vi gente com san­gue nos olhos dizendo que queria vê-lo atrás das grades. Isso não po­de ser sede de justiça. É outra coisa. É preconceito puro. E olha que o Muro de Berlim já caiu há mais de 20 anos!
É uma deturpação das mais dano­sas ao país colocar na capa da maior revista semanal tapuia uma crian­ça negra e pobre que subiu na vida pelo próprio esforço como se ela fosse o novo Pelé.
É como se a classe dominante dissesse: "Os nossos pretos pobres são melhores do que os deles". Os negros pobres do Lula precisam do Bolsa Família e de cotas para chegar lá. Joaquim Barbosa (que, note, se declara eleitor do PT) venceu sozinho, não precisou de "política assistencialista", não é mesmo? Pessoal ainda não enten­deu que não é muleta, mas repara­ção por séculos de apartheid social.
Seria lição de democracia se do julgamento do STF constassem não só PT, mas PSDB, DEM etc. Julgar ignorando garantias, sem direito a recurso e partindo da cer­teza de que quanto menos provas, maior o poder do réu e, portanto, hipoteticamente, maior sua culpa, é inver­ter a lógica. Isso não pode ser coisa boa, viu, "Times" de Londres?
 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 12/10/2012.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Fabulações do mensalão

Hélio Schwartzman
 
Para os petistas, o julgamento do mensalão representa um golpe da direita contra uma administração popular que, pela primeira vez na história deste país, promoveu mudanças de verdade.
Para seus adversários, se há uma revolução em curso, ela virá com a condenação dos principais réus, que romperá o ciclo da impunidade de políticos e lançará o Brasil numa nova era de moralidade administrativa.
Ambas as versões, em especial a primeira, não passam de fabulações com fins políticos. Urdi-las faz parte do jogo democrático, que não bane a tentativa de influenciar magistrados e eleitores, mas reconhecer isso não implica que devamos acreditar nelas.
Se há algo notável e até certo ponto inesperado nessa história é que as instituições estão funcionando. A PF, subordinada a um ministro petista, investigou o caso, colheu provas e as levou ao Ministério Público. O procurador-geral, nomeado pelo próprio Lula, viu uma série de crimes e apresentou a denúncia. E o STF, de cujos 11 integrantes originais 8 chegaram ao cargo por indicação de presidentes petistas, vem, após análise individualizada de cada caso, condenando a maior parte dos acusados. Se, diante desse histórico, o PT ainda insiste na tese do golpe, em vez de acusar a direita, deveria procurar um sabotador em suas próprias fileiras.
Isso significa que o Brasil mudou, como quer o devaneio tucano? É claro que não. As instituições funcionaram aqui porque a situação era atípica, explosiva demais para ser ignorada. Só que boas instituições funcionam sempre, independentemente de quem sejam os envolvidos. E, nesse quesito, nossa Justiça é muito ruim, como o prova o caso do mensalão mineiro, cronologicamente anterior ao do PT, mas ainda não julgado.
Nesse contexto, os petistas poderiam queixar-se de estar pagando por ter agido como todos os outros. Pode ser, mas o mundo é muitas vezes cruel e, por definição, só podemos punir os que se deixam apanhar.
 
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 10/10/2012.

Processo do mensalão deve ser tomado como exemplo

Entrevista com Tarso Genro
 
 
O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, era ministro da Educação em 2005, quando o escândalo do mensalão estourou. Chamado pelo então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a presidência do PT para tentar tirar o partido da crise em que mergulhara depois que boa parte da sua cúpula foi pega usando recursos públicos para comprar apoio no Congresso.
Sete anos depois, Tarso vai mais uma vez na contramão da cúpula ao defender o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal como legítimo, em que todos tiveram direito de defesa, e aceitar que, "sem dúvida", estão sendo julgadas pessoas que cometeram ilegalidades.
O governador petista também acredita, ao contrário do ex-presidente Lula, que o julgamento teve influência, sim, nas eleições deste fim de semana, mesmo que o grau dessa influência possa variar.
* * *
O senhor foi chamado a assumir a presidência do PT quando estourou o escândalo do mensalão, com a obrigação de tentar reorganizar o partido. Sete anos depois, em meio a uma eleição municipal, como o senhor está vendo esse julgamento que chega agora a alguns dos nomes mais importantes do PT?
Essa questão do mensalão tem dois processos. Um é o judicial, que devemos tomar como um processo dentro do Estado de direito, democrático, cujo desenvolvimento e resultado têm que ser respeitados, sejam eles quais forem. Esse processo judicial foi feito dentro dos parâmetros completos da legalidade. Ninguém sofreu violência para depor, ninguém teve seu direito de defesa negado, nenhum juiz foi pressionado, seja pelo Estado, seja pela autoridade policial para tomar qualquer atitude. Então, este é um processo que deve ser tomado como um exemplo para o País. Em outras oportunidades isso não foi feito. O caso mais gritante é o processo sobre a compra de votos para reeleição de Fernando Henrique. O segundo aspecto é um processo paralelo de disputa política sobre os acontecimentos. E nesse sentido eu acho que há uma profunda desigualdade, que é o fato de 90% da grande mídia fechar uma posição favorável à condenação e fazer uma campanha sistemática de culpabilização de todos, sem qualquer tipo de reserva. Isso tem consequências políticas.
O senhor acredita na culpa das pessoas que estão sendo julgadas pelo Supremo?
Que tem pessoas que cometeram ilegalidades, não tenho nenhuma dúvida. Seria debochar da Justiça do País e do processo dos inquéritos policiais achar que todo mundo é inocente. O que eu critico é o fato que houve uma inculpação em grupo feita pela mídia, repercutindo inclusive na comunidade política como um todo. O meu partido é visto hoje, graças a essa campanha, como o partido do mensalão, e o PSDB não é visto como o partido que teria engendrado - e não estou dizendo que o fez - a compra de votos para reeleição do presidente Fernando Henrique.
Nessa reta final serão julgados José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares, que têm ou tiveram um peso grande no partido. O senhor acredita na culpa deles?
Acho que tem uma pessoa que assumiu responsabilidades, que se chama Delúbio Soares. O Delúbio assumiu responsabilidades e atribuiu isso à existência de um caixa 2. Quanto ao José Genoino e ao José Dirceu, eu desconheço as provas. Não estou dizendo que são culpados ou inocentes, apenas que desconheço as provas para caracterizar a responsabilidade material dos dois.
O senhor avalia que o mensalão teve peso nos resultados dessas eleições municipais?
Teve, em diferentes circunstâncias, em diferentes regiões. Quando a gente fala que teve efeito no processo eleitoral, não quer dizer que tenha o mesmo efeito em todo o território e mesmo que nesse território tenha efeito uniforme. O que ocorre é que, em determinadas circunstâncias, as bases eleitorais dos partidos são mais ou menos atingidas de acordo com a sensibilidades locais. Um exemplo bem claro: aqui em Canoas (zona metropolitana de Porto Alegre) essa questão não teve efeito nenhum. Foi usada e não teve efeito nenhum. Mas aqui, na classe média de Porto Alegre, eu diria que sim. É uma classe média liberal, democrática, não é de esquerda e nem tem simpatia preliminar pela esquerda. Então, setores da classe média decidiram votar em outros setores de esquerda e centro-esquerda que não o nosso, motivados possivelmente pela influência do mensalão.
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 09/10/2012.

País diferente

Benjamin Steinbruch
 
 
Era uma vez um país que, durante muitos e muitos anos, privilegiou os investimentos financeiros. Quem aplicava o dinheiro no mercado financeiro tinha ganhos bem superiores à taxa de inflação -ganhos reais, como dizem os economistas.
Nessas condições, pessoas físicas e jurídicas se acostumaram durante décadas com rendimentos financeiros que não exigiam nenhum esforço e não representavam praticamente nenhum risco. Os títulos do governo eram seguros e rendiam sempre bem mais do que a inflação. Frequentemente, proporcionavam retornos melhores do que o de operações industriais e comerciais.
Durante todo o tempo em que esse país foi seguidas vezes campeão (ou vice) mundial dos juros altos, havia explicações sempre prontas dos especialistas. O país seria diferente dos demais. Assim, para funcionar como indutor da queda da inflação, os juros teriam de ser exponencialmente maiores.
Os empresários diretamente ligados à produção foram, nesse tempo todo, críticos enfáticos dessa política de juros elevados. Até um empresário que ocupou a vice-presidência da República por oito anos, o saudoso José Alencar, destacou-se nessa crítica, mesmo tendo se chocado muitas vezes frontalmente com alas do governo na área da economia.
Num belo dia, porém, alguém acendeu uma luz e o discurso já cansativo e repetitivo dos empresários começou a ser melhor observado. A jabuticaba dos juros desse país diferente não poderia continuar para sempre. A taxa básica começou então a ser cortada pelas autoridades monetárias. Em pouco mais de um ano, a taxa foi reduzida de 12,5% ao ano para 7,5% ao ano. Deixou de ser a mais alta do mundo, mas continuou ainda distante das demais taxas internacionais, muitas delas próximas de zero.
Hoje, tudo indica que esse país está finalmente entrando na era dos juros civilizados. A batalha atual é para convencer o setor financeiro a reduzir a diferença entre as taxas que paga ao captar recursos e as que cobra ao emprestá-los, que os financistas chamam de spread. Ou seja, que os bancos passem a adotar juros civilizados também na oferta de crédito a pessoas físicas e jurídicas. Até a presidente da República se envolveu nessa cruzada, fazendo críticas diretas às taxas de juros dos cartões de crédito. O ministro da Fazenda chamou-as de "escorchantes".
A palavra parece apropriada. Sob crítica, as instituições financeiras começaram a baixar os juros dos cartões. Mas elas continuam ainda bastante elevadas, muitas em torno de 300% ao ano. Só para se ter uma ideia, entre os países vizinhos desse país diferente, a mais alta taxa é de 55% ao ano. Os países mais distantes, mais ricos, têm taxa anual equivalente à mensal desse país diferente.
Ainda há, portanto, muito a progredir nesse país em matéria de taxas de juros no crédito tanto a empresas quanto a pessoas físicas. Mas os observadores de tendências, do ramo das finanças ou leigos no assunto, já notam que a queda dos juros começa a levar pessoas físicas e jurídicas a investir seu dinheiro diretamente em atividades mais ligadas à produção.
Pessoas físicas já procuram fundos imobiliários e outros papéis ligados à construção. À medida que a situação global tenda a se estabilizar, também buscarão, certamente, ações de empresas que remunerem bem seus acionistas e mantenham boas práticas de gestão corporativa.
Além de reduzir juros, outras medidas vêm sendo tomadas pelo governo desse país diferente para diminuir custos de produção, como desoneração de folhas de pagamentos e cortes de impostos.
É uma tendência muito bem-vinda, porque ela vai estimular exatamente o que esse país mais precisa: investimentos de médio e de longo prazo. Aumentar o investimento é crucial para que o objetivo maior do crescimento da produção e do emprego seja ali cumprido, sem estimulo inflacionário.
Em breve, se a tendência continuar, chegará a hora da verdade para que esse país deixe de ser diferente. Nele, certamente continuará sendo possível "viver de renda", como diziam os antigos.
Mas a vida, nesses casos, será menos tranquila, porque os ganhos reais cairão, como em qualquer lugar do mundo. Quem quiser obter rendimentos mais elevados terá de arregaçar as mangas, investir em operações produtivas de longo prazo e correr mais riscos. Será um país igual aos outros. Ou, no mínimo, menos diferente.
 
BENJAMIN STEINBRUCH, 59, empresário, é diretor-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional, presidente do conselho de administração da empresa e primeiro vice-presidente da Fiesp.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/10/2012.

A irrelevância do bolivariano

Francisco Toro
 
Com Hugo Chávez, o ícone da esquerda da América Latina, mantido no cargo, a questão que prevalece há mais de dez anos sobre o rumo da região não é "à direita ou à esquerda", mas "que esquerda?"
Analistas estrangeiros com frequência interpretaram a tendência para a esquerda do continente latino-americano nos últimos 12 anos como um movimento de líderes numa marcha rigidamente ideológica. Mas dentro da região, as fraturas sempre foram claras.
Os regimes revolucionários radicais na Venezuela, Equador, Bolívia e Nicarágua uniram-se a Cuba, o avô da extrema esquerda, formando um bloco determinado a confrontar o mundo capitalista, mesmo que isso significasse um governo cada vez mais autoritário.
Um grupo mais moderado de líderes no Brasil, no Uruguai e na Guatemala ofereceu uma alternativa: reduzir a pobreza implementando importantes reformas sociais, mas sem dar as costas para as instituições democráticas ou os direitos da propriedade privada.
Como filho favorito de Fidel Castro, o venezuelano Hugo Chávez sempre foi o líder da ala radical. E o tamanho e o poder econômico do Brasil tornaram esse país o líder da ala reformista.
Aparentemente os dois campos se empenham para negar que há divisões. Houve manifestações de solidariedade e muitos acordos de integração regional. Por trás das portas fechadas, cada lado com frequência desdenha cruelmente o outro, com os partidários de Chávez encarando os brasileiros como apaziguadores pusilânimes da burguesia, ao passo que os brasileiros desprezam o radicalismo ultrapassado e a incompetência crônica de Chávez.
Há cerca de cinco ou seis anos, existia uma disputa ideológica real. Um presidente americano bastante impopular inclinado a aventuras militares ajudou Chávez a congregar o continente contra Washington. Um país após o outro aderiu ao eixo radical. Primeiro a Bolívia, depois a Nicarágua, Honduras e Equador se juntaram numa lista cada vez mais longa de radicais em 2005 e 2006.
Hoje a paisagem política se transformou quase que inteiramente. A vitória de Barack Obama em 2008 corroeu a capacidade desses radicais de reunir uma oposição ao imperialismo gringo. Inversamente, a alternativa ficou cada vez mais atraente.
O sucesso espetacular do Brasil e o seu programa para reduzir a pobreza no país falam por si. Com base em uma estabilidade macroeconômica e instituições democráticas estáveis, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que governou o país de 2003 a 2010, conduziu o período mais notável de mobilidade social que se tem memória na América Latina.
À medida que milhões de brasileiros ascenderam para a classe média, os excessos autocráticos de Chávez começaram a ser vistos como desnecessários e indesculpáveis para os venezuelanos. Lula e sua sucessora, Dilma Rousseff, mostraram que um país não necessita cercear os tribunais, realizar um expurgo no Exército e politizar o banco central para combater a pobreza. O Brasil prova isso silenciosamente todos os dias.
Não são apenas as instituições democráticas que sofreram com o radicalismo de Chávez, mas a economia também.
A tradicional dependência da Venezuela das exportações de petróleo aumentou, com 96% das suas receitas de exportação vindo do setor petrolífero, em comparação com os 67% antes de Chávez assumir o governo. As siderúrgicas nacionalizadas produzem uma fração do aço necessário, forçando o Estado a importar a diferença. E as concessionárias de energia elétrica, também nacionalizadas, deixam a maior parte do país no escuro diversas vezes por semana.
O contraste com a economia empresarial, de alta tecnologia e voltada para a exportação, do Brasil não poderia ser mais marcante.
Apesar do discurso de transformação radical do presidente venezuelano, as estatísticas sobre a mortalidade infantil e o analfabetismo entre os adultos no país não melhoraram mais rápido sob seu governo do que nas várias décadas antes de ele assumir o poder.
Com as instituições fiscalizadoras neutralizadas, o presidente hoje governa o país como um feudo pessoal: expropria empresas à sua vontade e resolve quem deve ser preso.
Os juízes que decidem contra os desejos do governo são comumente demitidos, um deles até foi preso. O socialismo estilo Chávez parece ser o pior dos mundos: mais autoritário e menos eficaz na redução da pobreza do que a alternativa brasileira.
E a região já observou o fato. O momento chave ocorreu em abril de 2011, quando Ollanta Humala venceu as eleições presidenciais no Peru.
Visto há muito tempo como o mais radical da nova safra de líderes latino-americanos, Humala venceu com base numa plataforma similar à de Chávez em 2006 e perdeu. No ano passado, ele percebeu a direção em que o vento estava soprando e se transformou num moderado no estilo brasileiro, venceu e governa - até agora com sucesso - nos moldes brasileiros.
Chávez enfrentou uma disputa acirrada pela reeleição contra Henrique Capriles Radonski, governador progressista de 40 anos que exalta o modelo brasileiro.
Embora o seu governo tenha feito o máximo para pintar uma caricatura de Capriles como um oligarca de direita ao estilo antigo, ele se insere no estilo de centro-esquerda brasileiro. Capriles se qualificou como um reformador ambicioso, mas pragmático e voltado para o social, disposto a pôr fim aos excessos autoritários da era Chávez.
O restante da América Latina já superou a batalha ideológica na qual a Venezuela continua atolada. De um modo geral, outras nações fizeram suas escolhas.
 
Publicado em O Estado de S.Paulo, em O Estado de S.Paulo, em 09/10/2012. Publicado originalmente no New York Times.
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
FRANCISCO TORO É JORNALISTA, CIENTISTA POLÍTICO E BLOGUEIRO