quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Histórias do consumo

Maria Inês Dolci

José ficou feliz com a promoção de um site de compras coletivas: passagem aérea pela metade do preço. Não recebeu o bilhete aéreo nem o dinheiro de volta. Não viajou.
Maria teve de pagar, na conta de seu telefone celular, serviço que não contratou. Tenta obter o dinheiro de volta, mas mal consegue falar com um atendente e a ligação é interrompida ou transferida para outra pessoa. Uma canseira daquelas!
Seu João tem 80 anos, é aposentado e recebeu ligação de um correspondente bancário que lhe oferecia um empréstimo consignado. Contratou o crédito e ainda não viu a cor do dinheiro, embora as parcelas sejam descontadas de sua aposentadoria.
Dona Joana, 75 anos, não tem plano de saúde. Sai de casa muito cedo e pega três conduções rumo a um hospital conveniado com o SUS (Sistema Único de Saúde). As filas são imensas e ela fica assustada, porque não há datas próximas para fazer os exames de que necessita. A doença tem pressa, mas o serviço de saúde é tão lento!
Carlinha, 15 anos, é inteligente e gosta de participar das redes sociais. Onde mora não há serviço eficiente de acesso à internet. Ela conta os dias para que o Plano Nacional de Banda Larga chegue a sua cidade. Lamenta o atraso do programa.
Seu tio, Joaquim, não entendeu até hoje por que, apesar das interrupções frequentes de energia elétrica, as concessionárias reajustam a conta sem dificuldades. Ele também aguarda, até hoje, por pura teimosia, que lhe devolvam o valor pago a mais, anos a fio, nas tarifas de energia.
Paulo é um jovem executivo. Poupou muito e comprou um carro zero. O automóvel tem defeito de fabricação. Já esteve duas vezes na oficina, mas não houve uma solução para o problema. Ele sabia que teria direito a um carro zero. Na loja em que comprou o carro, disseram que não. Paulo está certo, mas terá de recorrer à Justiça para assegurar seus direitos.
Laura abasteceu seu automóvel em um posto de combustíveis e percebeu que havia algo errado. O motor começou a pifar, até parar de vez. Resultado: pagou caro pelo reparo na oficina, porque colocaram combustível adulterado no tanque do seu veículo.
Pedro lamentou ter comprado um presente de Natal para sua mãe, que mora em outra cidade, em loja virtual. A TV só foi entregue semanas depois da data prevista, após muita reclamação, em horas de ligações telefônicas.
Lídia levou um susto quando foi renovar o contrato da escola da filha. A mensalidade subiu 14%, mais do que o dobro da inflação do período. Nem comparou com seu salário, sem reajuste há alguns anos, para não ficar mais irritada ainda.
Ana não acreditou que caíra no golpe da bolsa de estudos de um curso de informática. Animou-se com a isenção da matrícula e o desconto de 50% nas mensalidades. Não teve nenhuma aula, perdeu o dinheiro e o pessoal da escola fajuta desapareceu sem deixar vestígios.
Marcos discutiu com os vendedores quando tentou financiar uma geladeira. No anúncio, diziam que o juro era zero. Por sorte, exigiu o CET (Custo Efetivo Total). Descobriu que não havia juros, mas que taxas disso e daquilo encareceriam as parcelas, disfarçadamente.
Sérgio e Patrícia se casaram e tiverem de se hospedar na casa dos pais dele depois da lua de mel. Os móveis que compraram com tanta dificuldade continuam empilhados na garagem e os presentes permanecem dentro das caixas. Eles adquiriram um apartamento na planta, mas a construtora não entregou as moradias.
Todos esses perfis de consumidores existem, não necessariamente com esses nomes. E essas histórias se repetem no Brasil, ano após ano.
Com o Código de Defesa do Consumidor, as instituições que protegem seus direitos e as ouvidorias, os brasileiros ao menos podem reclamar e lutar pelo cumprimento da lei.
Mais consciência dos empresários, mais mobilização dos cidadãos, outra visão dos juízes e dos dirigentes das agências reguladoras poderiam mudar esse quadro. Mãos à obra, então, em 2012!
MARIA INÊS DOLCI, 57, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias, nesta coluna.
mariainesdolci.folha.blog.uol.com.br
Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/12/2011.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O inimigo da moral

Vladimir Safatle

O primeiro atributo dos julgamentos morais é a universalidade. Pois espera-se de tais julgamentos que sejam simétricos, que tratem casos semelhantes de forma equivalente. Quando tal simetria se quebra, então os gritos moralizadores começam a soar como astúcia estratégica submetida à lógica do "para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei".

Devemos ter isso em mente quando a questão é pensar as relações entre moral e política no Brasil. Muitas vezes, a imprensa desempenhou um papel importante na revelação de práticas de corrupção arraigadas em vários estratos dos governos. No entanto houve momentos em que seu silêncio foi inaceitável.
Por exemplo, no auge do dito caso do mensalão, descobriu-se que o esquema de corrupção que gerou o escândalo fora montado pelo presidente do maior partido de oposição. Esquema criado não só para financiar sua campanha como senador mas (como o próprio afirmou em entrevista à Folha) também para arrecadar fundos para a campanha presidencial de seu candidato.

Em qualquer lugar do mundo, uma informação dessa natureza seria uma notícia espetacular. No Brasil, alguns importantes veículos da imprensa simplesmente omitiram essa informação a seus leitores durante meses.

Outro exemplo ilustrativo acontece com o metrô de São Paulo. Não bastasse ser uma obra construída a passos inacreditavelmente lentos, marcada por adiamentos reiterados, com direito a acidentes mortais resultantes de parcerias público-privadas lesivas aos interesses públicos, temos um histórico de denúncias de corrupção (caso Alstom), licitações forjadas e afastamento de seu presidente pela Justiça, que justificariam que nossos melhores jornalistas investigativos se voltassem ao subsolo de São Paulo.
Agora volta a discussão sobre o processo de privatização do governo FHC. Na época, as denúncias de malversações se avolumaram, algumas apresentadas por esta Folha. Mas vimos um festival de "engavetamento" de pedidos de investigação pela Procuradoria-Geral da União, assim como CPIs abortadas por manobras regimentais ou sufocadas em seu nascedouro. Ou seja, nada foi, de fato, investigado.

O povo brasileiro tem o direito de saber o que realmente aconteceu na venda de algumas de suas empresas mais importantes. Não é mais possível vermos essa situação na qual uma exigência de investigação concreta de corrupção é imediatamente vista por alguns como expressão de interesses partidários. O Brasil será melhor quando o ímpeto investigativo atingir a todos de maneira simétrica.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/12/2011.

Pergunta: É bom o desempenho da presidente Dilma no primeiro ano de seu mandato?



Cláudio Gonçalves Couto
SIM
Olhando além da vontade política

Ao avaliar-se o primeiro ano de uma Presidência, duas dimensões podem ser consideradas: o desempenho do governo (obra coletiva) ou o do chefe de governo (obra individual, sobretudo).
Digo "sobretudo" porque o desempenho pessoal de um presidente sujeita-se à atuação de consultores de imagem, assessores próximos, conselheiros íntimos etc. Pesquisa CNI-Ibope divulgada ontem evidencia que a população faz a distinção: enquanto 56% aprovam o governo, 72% aprovam a presidenta -superando os antecessores em igual período, desde FHC.
Só analisarei a atuação da presidenta, considerando três aspectos: (1) o perfil da liderança, (2) o contexto institucional e (3) o contexto econômico. Tornou-se lugar-comum comparar o recato de Dilma à exuberância de Lula. Se o recato fosse a contraparte da falta de carisma, seria uma desvantagem.
Todavia, Dilma aproveitou-se da característica, aparentando maior austeridade e severidade no trato da coisa pública, algo útil no enfrentamento da série de crises envolvendo ministros, abatidos um a um. Obteve ganhos de reputação (sobretudo entre os setores de altas renda e escolaridade, cansados do espalhafato lulista), acumulando fôlego político para restringir práticas predatórias de aliados e correligionários.
Como o presidencialismo de coalizão impõe custos e riscos, não era operação simples. Ao contrário do que preconiza certo moralismo voluntarista e ingênuo (se não dissimulado), é impossível governar o Brasil sem o apoio estável de 46% do Congresso, composto pelo conjunto dos partidos de adesão -que tem no PMDB a expressão mais significativa, mas compõe-se também de PR, PP e congêneres.
Também não seria possível renunciar à sustentação de "parceiros ideológicos" do partido da presidenta, como PDT e PC do B, que, não obstante a maior afinidade programática, incorreram nas mesmas práticas predatórias dos fisiológicos de direita.
É cinismo sugerir ao governante que busque se entender com a oposição para fazer avançar sua agenda. Fosse possível, não apenas Dilma e Lula teriam se entendido com PSDB e DEM, mas o governo FHC, liderado por esses partidos, teria abdicado de sua aliança com o PMDB de Sarney e com o PTB de Roberto Jefferson -o que não fez.
Diante das restrições, Dilma saiu-se bem: iniciou um processo de redução do espaço para a predação partidária do Estado, sem comprar todas as brigas de uma vez, o que inviabilizaria politicamente o governo. A rede de combate à corrupção tem se aprimorado no Brasil: no Executivo, com o reforço institucional da Polícia Federal e da Controladoria-Geral da União; no sistema de Justiça, com a consolidação de um Ministério Público independente e ativo; na sociedade, com uma imprensa plural e diligente.
Em tal cenário, o melhor que faz um presidente hábil é -sem assumir a quixotesca condição de algoz- deixar que as instituições de controle produzam seus efeitos para, na sequência, restringir o campo de atuação dos corruptos no governo. Ao que se nota, é isso o que Dilma tem feito.
Por fim, houve o agravamento da crise econômica internacional; a "marolinha" de Lula foi se tornando um tsunami. Tal situação restringe o espaço de manobra política, pois exige medidas fiscais duras, que reduzem os recursos orçamentários disponíveis para a transação política com os congressistas.
A presidenta não só logrou impor limites satisfatórios à liberação de verbas como deu condições ao Banco Central para iniciar uma quebra de paradigmas na gestão da política monetária -algo que sofreu muitas críticas dos acólitos "do mercado" de início, mas que se mostra cada vez mais uma decisão acertada.


CLÁUDIO GONÇALVES COUTO, cientista político, é professor do curso de administração pública da FGV-SP e pesquisador do CNPq.
***

Marco Antonio Villa
NÃO

Um país à deriva

Na centenária história da República não houve, no primeiro ano, uma administração com tantas acusações de corrupção que levaram a demissões de ministros, como a da presidente Dilma Rousseff.
Excetuando-se o primeiro trimestre, de lá para cá a rotina foi a gerência de crises e mais crises. Nenhuma delas por questão programática ou ideológica. Não. Todas devido às gravíssimas acusações de mau uso dos recursos públicos e de favorecimentos dos parceiros da base governamental.
Neste ano ficou provado, mais uma vez, que o presidencialismo de transação é um fracasso. A partilha irresponsável da máquina pública paralisou o governo.
A incapacidade de gestão -já tão presente no final da Presidência de Lula- se aprofundou. A piora do quadro internacional não trouxe qualquer tipo de preocupação para o conjunto do governo.
Algumas medidas adotadas ficaram restritas ao Ministério da Fazenda. Como se a grave crise internacional fosse simplesmente uma mera turbulência, e não o prenúncio de longo período de estagnação, especialmente da Europa, e com repercussões ainda difíceis de quantificar na economia Ásia-Pacífico.
O governo brasileiro mantém-se como um observador passivo, e demonstrando até certo prazer mórbido com os problemas europeus e com a dificuldade da recuperação dos Estados Unidos. Como se não pudesse ser atingido gravemente pelos efeitos de uma crise no centro do sistema capitalista.
Se é correto afirmar que o mundo está iniciando um processo de inversão das antigas relações econômicas centro-periferia, isso não significa que o Brasil possa suportar um lustro sem que ocorra uma reativação das economias americana e europeia.
A crise de 2008 -e a estagnação de 2009, com crescimento negativo de 0,3%- não foi suficiente para que o governo tomasse um rumo correto. Foi guiado exclusivamente pelo viés eleitoral de curto (2010) e médio prazos (2014). A inexistência de um projeto para o país é cada dia mais evidente. Nem simples promessas eleitorais foram cumpridas.
Nenhuma delas. Serviram utilitariamente para dar algum tipo de verniz programático a uma aliança com objetivos continuístas. Foram selecionadas algumas propostas, mas sem qualquer possibilidade de viabilização. Basta citar, entre tantos exemplos, o programa (fracassado) Minha Casa, Minha Vida.
O país está à deriva. Navega por inércia. A queda da projeção da taxa de crescimento é simplesmente uma mostra da incompetência. Mas o pior está por vir.
Não foi desenvolvido nenhum plano para enfrentar com êxito a nova situação internacional. Tempo não faltou. Assim como sinais preocupantes no conjunto da economia e nas contas públicas.
A bazófia e o discurso vazio não são a melhor forma de enfrentar as dificuldades. É fundamental ter iniciativa, originalidade, propostas exequíveis e quadros técnicos com capacidade administrativa, mas o essencial é mudar a lógica perversa deste arranjo de governo.
Dizendo o óbvio -que na nossa política nem sempre é evidente-, o objetivo do governo não é saciar a base de sustentação política com o saque do erário, como vem ocorrendo até hoje. Deve ter um mínimo de responsabilidade republicana, pensar no país, e não somente no projeto continuísta.
Contudo, tendo como pano de fundo o primeiro ano de governo, a perspectiva é de imobilismo. Algumas mudanças nos ministérios devem ocorrer, pois o desgaste é inevitável. Nada indica, porém, uma alteração de rumo ou uma melhora na qualidade de gestão. A irresponsabilidade vai se manter. E caminhamos para um 2012 cinzento.

MARCO ANTONIO VILLA é historiador e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 17/12/2011.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Quanto mais, menos

Luiz Roberto Liza Curi

A expansão do ensino superior no Brasil saltou de 1,945 milhão de matrículas em 1998 para 6.379.299 em 2010. Desse volume de matrículas, 4.736.001, perto de 75%, pertencem às instituições privadas.
A pós-graduação cresceu mais de 150% em menos de dez anos. São 173 mil matrículas, sendo 144.911 (95%) em instituições públicas. Titula 50 mil mestres e doutores por ano, com um padrão de qualidade internacional.

Mas se o aumento dos pesquisadores no Brasil é comemorado como um bem nacional, o do número de graduados nem tanto. Essa expansão, sancionada por um complexo e consistente sistema de avaliação, é um significante com diversos significados.

De um lado, é apontada com certa desconfiança por parcelas da opinião pública. Algumas organizações profissionais associam explicitamente a expansão do ensino superior com a má formação. De outro lado, ela é vista como um termômetro de mobilização de investimentos financeiros pelas chamadas redes de instituições.

De nenhum lado, no entanto, a expansão, especialmente do setor privado, foi vista ou analisada como fator essencial ao desenvolvimento e à sustentação da nação. Será justo admitir que essa expansão seja um problema capaz de gerar uma lacuna no país?

No Brasil, a universalidade do acesso ao ensino superior é, de fato, um problema. Temos menos de 16% da população de 18 a 24 anos matriculada em cursos superiores. Perdemos do Paraguai (18%) e da Argentina (48%), passamos longe de Portugal (50%) e não conseguimos divisar a Coreia (78%).
Configura-se, assim, uma situação aparentemente injusta. Um índice de cobertura da população tão baixo em um setor tão criticado pelo ritmo de sua expansão!

Devemos esperar uma qualidade cada vez mais suspeita na medida em que as matriculas crescem?
É preciso reconhecer que não. É louvável o acesso dos cidadãos de baixa renda e a ampla inclusão da chamada nova classe média ao ensino superior. O problema da entrada vai se resolvendo. Falta, ainda, resolver o da saída.

O êxito de universidades, centros universitários e faculdades deve, principalmente, ser expressão da qualidade de seus concluintes, e não do número de ingressantes.

O excelente trabalho que o Ministério da Educação desenvolve na avaliação do ensino superior, que por si faz muito pelo país, deve incentivar a transformação de currículos e conteúdos na direção dos desafios sociais e tecnológicos contemporâneos.

Seria bem-vinda uma ampla interação entre a avaliação e outras políticas públicas que estimulassem as instituições de ensino superior a formar profissionais em áreas estratégicas e prioritárias ao desenvolvimento do país. Sem essa articulação a avaliação vai se transformando num instrumento do Estado destinado a proteger a sociedade de uma expansão tida como suspeita.

A dimensão do sistema de ensino superior brasileiro não pode, na direção e na velocidade econômica que o país necessita, representar, apenas, milhões de matriculas.

LUIZ ROBERTO LIZA CURI, sociólogo, é diretor nacional de educação superior e pesquisa do SEB SA. Foi diretor de políticas de educação superior do Ministério da Educação.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/12/2011.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O desafio solar

Alfredo Sirkis


Em menos de dois anos a China tornou-se líder no mercado de energia solar. Em 2010, passou a dominar 50% dele, e estima-se que até o final deste ano possa chegar a 65%.

As consequências dessa investida foram particularmente sentidas nos EUA, com a falência de fabricantes de painéis solares, como a Solyndra, da Califórnia, que recebera subsídios do governo federal muito criticados pelos republicanos que defendem interesses de empresas de petróleo e térmicas à carvão.

A queda média nos preço de painéis solares foi de 42% desde 2010. Na China, o quilowatt solar ainda custa o dobro, mas as curvas estão convergindo rapidamente na medida em que o preço do solar cai e o carvão -que a China já começa a importar- sobe de preço.

Visitei duas fábricas solares chinesas. A Shanghai Solar e a Yngli, perto de Pequim. A primeira pertence à empresa aeroespacial chinesa, e seu forte é pesquisa e inovação. Produz modelos diferentes de fotovoltaicas poli e monocristalinas.

Já a Yngli, a segunda maior da China, controla praticamente todo o ciclo fotovoltaico: das pedras de silício recém-mineradas aos blocos compactos que refina, purifica e retalha para células. Logo, com seus robôs, a uma velocidade alucinante, monta-as em painéis. A Yngli é totalmente privada e comandada "manu miliatri" por Miao Lian Sheng, peculiar capitão de indústria, amigo do presidente Hu Jintao.

Em 2008, a empresa produzia menos de 20 megawatts/hora em painéis; sua produção está programada para chegar a 1,7 gigawatts/hora, neste ano, e a 2,7, em 2012.

Vem investindo em maior rendimento e vida útil das fotovoltaicas, bem como no armazenamento de energia solar. Apostam no "Flyweel", um cilindro com dispositivo de rotação em altíssima velocidade que substitui as baterias, ponto vulnerável das instalações solares atuais.

O Brasil tem uma insolação privilegiada e abundante disponibilidade de silício de boa qualidade, mas ficou deitado em berço esplêndido enquanto Alemanha, Espanha, EUA e China investiam e competiam. Ficamos vergonhosamente para trás. Não há mais tempo para reinventar a pólvora e nos tornarmos competitivos em painéis. Precisamos encontrar outros nichos.

Também não cabe adotarmos as tarifas "feed-in", que remuneram o solar até quatro vezes mais que o preço da energia convencional. Temos tarifas elétricas muito caras, mas também recursos de pesquisa e desenvolvimento nas concessionárias que podem subsidiar o solar numa primeira fase.

Precisamos dispor de redes "inteligentes", capazes de receber a produção solar de telhados e fachadas, medi-la e abatê-la da conta de luz do consumidor. As concessionárias deverão ter que comprar pelo mesmo preço que lhe vendem.

Precisamos estimular o solar em prédios públicos, equipamentos e edificações de apoio à Copa do Mundo, aos Jogos Olímpicos e, combinado com o aquecimento solar da água, em programas de habitação.
O solar brilha à nossa porta. Vamos deixar que entre?


Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 15/12/2011.

Mobilidade versus carrocentrismo

Ricardo Abramovay


Automóveis individuais e combustíveis fósseis são as marcas mais emblemáticas da cultura, da sociedade e da economia do século XX.

A conquista da mobilidade é um ganho extraordinário, e sua influência exprime-se no próprio desenho das cidades. Entre 1950 e 1960, nada menos que 20 milhões de pessoas passaram a viver nos subúrbios norte-americanos, movendo-se diariamente para o trabalho em carros particulares. Há hoje mais de 1 bilhão de veículos motorizados. Seiscentos milhões são automóveis.

A produção global é de 70 milhões de unidades anuais e tende a crescer. Uma grande empresa petrolífera afirma em suas peças publicitárias: precisamos nos preparar, em 2020, para um mundo com mais de 2 bilhões de veículos.

O realismo dessa previsão não a faz menos sinistra. O automóvel particular, ícone da mobilidade durante dois terços do século XX, tornou-se hoje o seu avesso.

O desenvolvimento sustentável exige uma ação firme para evitar o horizonte sombrio do trânsito paralisado por três razões básicas.

Em primeiro lugar, o automóvel individual com base no motor a combustão interna é de uma ineficiência impressionante. Ele pesa 20 vezes a carga que transporta, ocupa um espaço imenso e seu motor desperdiça entre 65% e 80% da energia que consome.

É a unidade entre duas eras em extinção: a do petróleo e a do ferro. Pior: a inovação que domina o setor até hoje consiste muito mais em aumentar a potência, a velocidade e o peso dos carros do que em reduzir seu consumo de combustíveis.

Em 1990, um automóvel fazia de zero a cem quilômetros em 14,5 segundos, em média. Hoje, leva nove segundos; em alguns casos, quatro.

O consumo só diminuiu ali onde os governos impuseram metas nesta direção: na Europa e no Japão.

Foi preciso esperar a crise de 2008 para que essas metas, pela primeira vez, chegassem aos EUA. Deborah Gordon e Daniel Sperling, em "Two Billion Cars" (Oxford University Press), mostram que se trata de um dos menos inovadores segmentos da indústria contemporânea: inova no que não interessa (velocidade, potência e peso) e resiste ao que é necessário (economia de combustíveis e de materiais).

Em segundo lugar, o planejamento urbano acaba sendo norteado pela monocultura carrocentrista. Ampliar os espaços de circulação dos automóveis individuais é enxugar gelo, como já perceberam os responsáveis pelas mais dinâmicas cidades contemporâneas.

A consequência é que qualquer estratégia de crescimento econômico apoiada na instalação de mais e mais fábricas de automóveis e na expectativa de que se abram avenidas tentando dar-lhes fluidez é incompatível com cidades humanizadas e com uma economia sustentável. É acelerar em direção ao uso privado do espaço público, rumo certo, talvez, para o crescimento, mas não para o bem-estar.

Não se trata -terceiro ponto- de suprimir o automóvel individual, e sim de estimular a massificação de seu uso partilhado. Oferecer de maneira ágil e barata carros para quem não quer ter carro já é um negócio próspero em diversos países desenvolvidos, e os meios da economia da informação em rede permitem que este seja um caminho para dissociar a mobilidade da propriedade de um veículo individual.

Eficiência no uso de materiais e de energia, oferta real de alternativas de locomoção e estímulo ao uso partilhado do que até aqui foi estritamente individual são os caminhos para sustentabilidade nos transportes. A distância com relação às prioridades dos setores público e privado no Brasil não poderia ser maior.

 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 14/12/2011.