quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A devoção como política

Eugênio Bucci



O livro de memórias de Fernando Gabeira, Onde Está Tudo Aquilo Agora? - Minha Vida na Política (Companhia das Letras, 2012), narra os descaminhos da militância de esquerda como se relatasse os descompassos de uma seita primitiva. Em trechos espirituosos, ou mesmo espirituais, o autor aponta a associação fervorosa entre o engajamento na guerrilha e o fanatismo dos crentes. "Minha experiência tinha um ardor religioso", escreve ele sobre o período em que, jornalista bem empregado no Jornal do Brasil, resolveu mergulhar de cabeça na clandestinidade, com nome de guerra e documentação falsa, pouco tempo depois da decretação do AI-5. "O batismo com um novo nome era apenas o começo. Novos valores iriam compor meu universo, uma nova fraternidade se instalaria nas relações com os companheiros de luta e simpatizantes que se arriscavam para nos proteger." Nascia ali, para o narrador, uma comunidade de feitio religioso.

Gabeira, ex-guerrilheiro do MR-8 que tomou parte no sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, não hesita em apontar a devoção como ingrediente indispensável na têmpera dos que, como ele, queriam ser soldados do povo. Até nos aspectos mais prosaicos. Por exemplo: ele detestava acordar cedo, mas se resignou a esse dever revolucionário graças à consciência transcendente de que tinha a História em suas mãos. "Acreditar nas premissas da revolução, saber que estávamos construindo o futuro, que o socialismo compensaria a todos segundo seu trabalho, o comunismo a todos segundo suas necessidades - tudo isso ajudava a enfrentar a aspereza de saltar da cama. Tudo isso e um café amargo."

Na saborosa narrativa de Onde Está Tudo Aquilo Agora?, "acreditar nas premissas da revolução" equivale a crer em Deus, como se os neurônios ativados no cérebro do militante que acorda bem cedinho fossem os mesmos que se acendem na cabeça de um místico em oração. A chave para ingressar no combate armado seria (também) de fundo religioso, e não só racional ou "científica".

Ao contar da freira caridosa que cuidava dele num leito de hospital na Ilha das Cobras - em consequência de um tiro que levou nas costas quando foi preso -, o ex-preso político não perde o humor e tece um inspirado paralelo entre suas velhas convicções materialistas e a fé em geral. "Ela (a freira) era muito gentil, tratava-me como se eu fosse uma alma penada precisando de conforto. E tão generosa que não tive coragem de tocar no tópico 'crença religiosa': nada de discussão, defesa do materialismo." Em outra passagem, chama de "mitologia" a idolatria dos que tombaram em armas contra "o capitalismo, o imperialismo e outros ismos". Dessa "mitologia" ele retirava suas forças "para suportar a dor".

O olhar, mais do que crítico, ferino, com que Fernando Gabeira soube se afastar do fanatismo dos vigilantes da ortodoxia já fez escola. Sua tanga de crochê no célebre "Verão da Anistia" ganhou o status de marco simbólico na agenda da reconstrução da democracia brasileira (a tanga, aliás, é personagem de Onde Está Tudo Aquilo Agora?; Gabeira zomba do pessoal que achava que aquela indumentária sumária não era "coisa de homem"). Outro livro dele, O Que É Isso, Companheiro?, hoje clássico, não foi outra coisa senão um libelo contra a caretice ultraconservadora da militância - conservadora porque baseada em dogmas comportamentais. Só por essa lucidez, que o distingue e o dignifica, Fernando Gabeira merece ser lido uma vez mais.

Antes dele, é bem verdade, outros já haviam anotado - e muito bem - os mesmos traços irracionais e irracionalistas da militância daqueles tempos. Betinho foi um deles. Após abandonar o maoismo, ele acabou se tornando um símbolo suprapartidário de solidariedade e grandeza. Antes, porém, teve a coragem de elaborar uma crítica interna impiedosa. Em depoimento publicado no volume 1 de Memórias do Exílio, obra coletiva organizada por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos (publicado originalmente em Portugal, em 1976, e em 1978 no Brasil, pela Editora e Livraria Livramento Ltda.), Betinho denuncia a religiosidade das organizações comunistas: "Ao chegarmos a adotar o maoismo como religião em 1968-1969", diz ele, "tínhamos uma base para isso. Por que fomos nós e não os outros grupos? Nós saímos da Ação Católica e os outros, não. Depois de Cristo, deu-se o vazio, mas o maoismo chegou e o camarada Mao pegou de novo a bandeira".

Por essas e outras, ele conclui, taxativo: "A tendência geral da esquerda brasileira é religiosa. É equívoco pensar que a esquerda é antirreligiosa. A tendência geral da esquerda na América Latina é ser religiosa. Porque ela vem de um padrão dogmático".

Com todo o respeito a Betinho, talvez não se deva ir tão longe com essa generalização. É preciso admitir, nem que seja por uma cautela metodológica, a possível presença de alguns ateus autênticos dissolvidos nos tais "movimentos sociais organizados". Mas, a despeito de eventuais ateus ou agnósticos, a postura devocional parece dar a tônica nesses ambientes.

A histeria com que certos militantes se recusam a debater em público as mazelas dos partidos de esquerda chama a atenção - não por ser uma demonstração virtuosa de disciplina partidária, mas por ser um sintoma de silêncio obsequioso. Estamos falando, pois, de servidão, de adoração, de culto. Estamos falando de condutas reverenciais, não de atitudes de livres-pensadores.

Não estamos falando sequer de política, pois a política que se rende a tantos dogmas deixa de ser política para se converter em fundamentalismo. É aí que surgem esses fiéis ardorosos que acreditam piamente na infalibilidade dos caciques, mesmo quando os caciques carregam nos bolsos fatias do erário. Sobre tamanha devoção valeria pensar um pouco mais. E ler Gabeira.


* Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM.
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 24/01/2013.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Figuras

Roberto Damatta



Vivemos de figuras de todo tipo, como a de inocentes e de criminosos. De poetas e políticos - uns mentem falando a verdade; os outros são viciados em tratar da verdade mentindo.

A palavra "figura" agasalha muitos sentidos. O mapa do Brasil é uma figura na forma de presunto, como dizia Lima Barreto. Todo mundo sabe quem o come, mas "figura" que não sabe. Eis um outro sentido para essa imensa palavra: o fingir ou esquecer.

Todo ser imaginário é uma figura que é carta de baralho e configuração geométrica. A pirâmide serve como uma boa representação de um Brasil onde poucos governam ganhando muito e onde muitos são governados recebendo pouco.

"Figura" também significa aspecto, emblema, alegoria. Até anteontem, a figura de uma pessoa negra etiquetava um escravo; hoje, uma consciência maior da nossa alergia à igualdade faz o uniforme branco das babás virar um problema anunciado em pelo menos duas colunas importantes: a do Ancelmo Gois e a da Miriam Leitão.

E, no entanto, o branco é uma representação do limpo e do transparente. Símbolo da paz, não deixa de ser curioso como o branco se relaciona com os fantasmas envoltos em névoa. Esse nevoeiro de um Brasil escravocrata que escondemos, no qual o branco figurava como uma personificação da propriedade de pessoas.

Uniformizar, como disse Max Weber, faz parte do mundo moderno onde médicos, garçons, policiais, engenheiros, cientistas e operários estão uniformizados. A questão é o uso obrigatório e simbólico da roupa para distinguir as babás nesses clubes de elite. Ser de elite dispensa para cima; já o uso obrigatório do uniforme distingue para baixo. Uma presumida superioridade dada pela riqueza, pelo poder ou pela celebrização extingue a culpa, do mesmo modo que o emprego doméstico deve lembrar - pela roupa usada como cicatriz ou estigma - a origem escravocrata do serviço que promove a intimidade, mas (e aí está o ponto) não pode conduzir à igualdade. Ora, uma intimidade (o dar a mão) sem igualdade (o não tomar o braço) tem sido o princípio estruturante de toda a nossa vida social.

Uma das babás diz ao jornal (O Globo) que elas não têm nome. São "babás": o papel social de anjos da guarda dos filhinhos amados de suas bem-postas patroas promove o sumiço de suas cidadanias. Sempre foi assim. Façamos um teste - responda rápido: qual é o nome completo de sua empregada doméstica?

Entre a escravidão na casa e o pseudomoderno emprego doméstico quase não há hiato. A continuidade foi feita abafando a igualdade, mas mantendo a intimidade que humaniza a todos, não liquidando, porém, as subordinações. No fundo, os problemas não são somente das babás, mas das patroas receosas de serem confundidas com suas "criadas", na medida em esses serviços se profissionalizam e trazem à tona esses dilemas.

Há aqui um sintoma da silenciosa, mas permanente revolução igualitária que se realiza hoje no Brasil. Ela surge na indignação com administradores públicos corruptos e ineficientes; com o populismo calhorda que aristocratiza roubando, e é profundamente anti-igualitário porque deseja a exceção e o retorno do poder como instrumento de aristocratização; e passa por essas barbaridades de assassinar em lugares públicos como ruas e restaurantes porque o "outro" não sabe com quem está falando. Aí temos crimes cometidos em nome de uma desavença pessoal interpretada como falta de respeito, porque, se desconhecido não se comportar como um inferior, ele vira um inimigo.

Toda reação contra a regra da lei para todos revela esse nosso temor de uma impessoalidade que conduz ao igualitarismo contrário à boa e velha hierarquia que nos indicava com quem falávamos. É terrível ver sumir o mundo de exclusividades e testemunhar a raia miúda frequentando locais e usando roupas privativas dos grã-finos.

O surto de uniformizar para distinguir para baixo faz parte dessa reação à igualdade que chega para calibrar a liberdade excessiva dos que têm muito. Como distinguir para baixo se todo mundo está ficando muito parecido? Como saber com quem se está falando se não se sabe mais quem é a mãe ou a babá da criança?

Eu seria favorável ao uso compulsório do uniforme branco nos clubes se os bandidos também fossem obrigados a usar as máscaras típicas de suas figuras. Mas aí o (des)mascarar seria equivalente à revolução que tanto queremos e - eis a questão - não queremos. Senão, não seríamos campeões mundiais de empregadas domésticas.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 23/01/2013.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Proteção de toda a família humana

Ban Ki-Moon
 
Acabamos de comemorar os 64 anos de um documento que nasceu em dezembro de 1948 e mudou para sempre a visão de como tratamos os membros da família humana.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos provocou uma mudança fundamental no pensamento global, afirmando que todos os seres humanos, não alguns, não a maioria, mas todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
A luta para concretizar os ideais da declaração é o cerne da missão das Nações Unidas. A comunidade internacional tem construído um forte histórico de combate ao racismo, promoção da igualdade de gênero, proteção das crianças e quebra das barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência.
Enquanto alguns velhos preconceitos estão diminuindo, outros permanecem. Em todo o mundo, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) são agredidos, às vezes mortos. Mesmo crianças e adolescentes são insultados por seus pares, espancados e intimidados.
Pessoas LGBT sofrem no trabalho, em clínicas e hospitais e nas escolas --os mesmos lugares que deveriam protegê-los. Mais de 76 países continuam criminalizando a homossexualidade.
Muitas vezes já falei contra esta trágica e injusta discriminação, e os desenvolvimentos positivos dos últimos anos me encorajam a seguir lutando. Foram realizadas reformas em muitos países. Na ONU, tivemos inovações históricas.
Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos adotou a primeira resolução da ONU sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero, expressando "grave preocupação" com a violência e a discriminação contra as pessoas LGBT.
A Alta Comissária publicou o primeiro relatório da ONU sobre o problema e o Conselho discutiu os resultados em 2012 --a primeira vez que um organismo da ONU fez um debate formal sobre o assunto. Os ativistas ajudaram a abrir a porta. Não podemos deixar que se feche.
É um ultraje que tantos países continuem criminalizando as pessoas só por amar outro ser humano do mesmo sexo. Em alguns casos, novas leis discriminatórias estão sendo criadas. Em outros, essas leis foram herdadas das potências coloniais. Leis enraizadas em preconceitos do século 19 estão enchendo o século 21 de ódio.
Quando me encontro com líderes de todo o mundo, levanto a minha voz e peço igualdade para os membros LGBT de nossa família humana. Muitos líderes dizem que gostariam de poder fazer mais, mas apontam a opinião pública como uma barreira para o progresso. Eles também citam as crenças religiosas e os sentimentos culturais.
Respeito plenamente os direitos dos povos em acreditar nos ensinamentos religiosos que escolheram. Isso também é um direito humano. Mas não pode haver desculpa para violência ou discriminação, nunca.
Entendo que pode ser difícil se levantar contra a opinião pública. Mas só porque a maioria desaprova determinados indivíduos, não dá direito ao Estado de reter seus direitos básicos.
A democracia é mais do que a regra da maioria. Ela exige defesa das minorias vulneráveis diante de maiorias hostis. Os governos têm o dever de desafiar o preconceito, não ceder a ele.
Todos temos um papel a desempenhar. Desmond Tutu disse recentemente que a onda da mudança é feita de até um milhão de ondulações. Ao celebrarmos os direitos humanos, vamos mais uma vez lutar pela implementação da promessa da declaração: que eles sejam para todas as pessoas --como foi planejado.
BAN KI-MOON, 68, diplomata sul-coreano, é secretário-geral da ONU
Publicado na Folha de S.Paulo, em 04/01/2013.