quinta-feira, 8 de março de 2012

Brasil-Irã

Mark Weisbrot


Na semana passada, o ministro brasileiro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, fez uma declaração corajosa e muito importante sobre a ameaça crescente de um ataque militar ao Irã. Ele pediu ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, que desse seu parecer sobre a legalidade de um ataque contra o Irã, como vem sendo ameaçado.

"Às vezes ouvimos a expressão 'todas as opções estão sobre a mesa'", disse. "Mas algumas são contrárias às leis internacionais."

As pessoas que continuam a afirmar que "todas as opções estão sobre a mesa", aludindo ao Irã, incluem várias autoridades dos EUA e de Israel e, o que é mais importante, o próprio presidente Obama.

E todo mundo sabe o que querem dizer quando afirmam que "todas as opções estão sobre a mesa": eles se reservam o "direito" de bombardear o Irã se não conseguirem o que querem por meios não militares, incluindo sanções econômicas.

Mas tal ação seria de fato "contrária à lei", como Patriota sugeriu. Na realidade, é um crime muito grave segundo as leis internacionais e representa uma violação clara da Carta das Nações Unidas (artigo 2).

A simples ameaça de recorrer à força militar contra outro Estado-membro da ONU -o que Obama e o governo israelense já fizeram- já é uma violação da Carta da ONU.

Aqui nos EUA, a mídia -especialmente as maiores emissoras de TV e rádio- vem produzindo propaganda de guerra sobre a "ameaça" vinda do Irã, em um replay virtual do que antecedeu a invasão do Iraque em 2003.

O Congresso, liderado pelo lobby neoconservador e pelo Aipac (lobby pró-Israel), vem fazendo pressão para cortar as soluções diplomáticas.

Uma resolução submetida ao Senado americano no momento incentivaria uma ação militar contra o Irã por simplesmente possuir a "capacidade" de produzir uma arma nuclear -algo que o Brasil, a Argentina, o Japão e outros países com programas pacíficos já possuem.

E tudo isso a despeito do fato de o Irã atender às demandas do Tratado de Não Proliferação Nuclear, incluindo as inspeções exigidas, e de não ter demonstrado nenhuma intenção de violar o tratado.

A visão consensual das 16 agências de inteligência dos EUA, segundo o "New York Times", é que "não há prova concreta de que o Irã decidiu construir arma nuclear".

É vital que os países que estão interessados em manter a paz e um mundo regido por tratados e diplomacia internacionais, em vez da força, se manifestem, como o Brasil fez, antes de uma guerra começar.

A declaração de Patriota é muito importante. Há muito mais que pode ser feito. O Brasil poderia trabalhar com os Brics e com a Unasul para conseguir mais declarações e compromissos. Esses grupos, ou seus países-membros, poderiam anunciar como reagiriam a um país que lançasse um ataque militar não provocado contra o Irã.

Por exemplo, poderiam comprometer-se a retirar seus embaixadores desse país, a romper relações diplomáticas e a rever suas relações comerciais, com a possibilidade de sanções econômicas seletivas.

Para prevenir outra guerra desnecessária e suas atrocidades inevitáveis, o esforço vale a pena.


Tradução de CLARA ALLAIN
Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/02/2012.

sexta-feira, 2 de março de 2012

A nova influência do Brasil

David Rothkopf


Enquanto os Estados Unidos avançam de maneira hesitante para aceitar a nova realidade multipolar do mundo, dando um passo atrás para cada passo à frente, fazendo uma violação de soberania excepcional para cada esforço de colaboração em lugares como a Líbia, outros países estão trabalhando ativamente para estabelecer novas regras para todas as nações seguirem na nova era.

Entre os que estão na linha de frente desse esforço, contam-se a presidente brasileira, Dilma Rousseff, e seu respeitadíssimo chanceler, Antonio Patriota.

O desafio que Dilma e Patriota enfrentam como servidores públicos é assustador. Cada um deles segue as pegadas de um formidável antecessor.

O desafio de Dilma é, admitidamente, muito maior e, de fato, para muitos, parece quase insuperável. Ela sucede a dois presidentes que foram, provavelmente, os mais importantes da história moderna de seu país, Fernando Henrique Cardoso, a quem é creditada a estabilização da economia brasileira após anos de volatilidade, e o antecessor imediato dela, Luiz Inácio Lula da Silva, não somente seu mentor, mas um integrante do pequeno punhado dos líderes mundiais mais importantes da última década.

Já o antecessor de Patriota, Celso Amorim, foi também formidável, extremamente influente, e uma presença constante no cenário brasileiro e internacional. O desafios eram grandes para todo o governo de Dilma.

No entanto, após um ano no cargo, e apesar de enfrentar grandes desafios domésticos e internacionais, a presidente já alcançou um índice de popularidade superior ao de Lula num ponto equiparável de seu mandato.

E Patriota está dando continuidade com calma, e aos olhos de observadores próximos, com grande habilidade, ao trabalho desbravador de Amorim para estabelecer o Brasil como um líder entre as grandes potencias mundiais.

"Temos uma grande vantagem", observa Patriota. "Não temos inimigos reais, nem lutas em nossas fronteiras, nem grandes rivais históricos ou contemporâneos entre as fileiras das potências mais importantes... e temos laços duradouros com muitas nações desenvolvidas e emergentes do mundo." Essa é uma condição que não é desfrutada por nenhum dos outros Bric - China, Índia e Rússia - nem, aliás, por alguma grande potência tradicional do mundo. Essa posição incomum é fortalecida ainda mais pelo fato de o Brasil não estar investindo tão pesadamente quanto as outras potências ascendentes em capacidade militar. Aliás, como observou Tom Shannon, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, o país é um dos poucos a efetivamente apostar seu futuro na aplicação sábia do chamado "poder brando" - diplomacia, alavancagem econômica, interesses comuns.

Não é por coincidência, aliás, que, em áreas que vão das mudanças climáticas ao comércio, da não proliferação nuclear ao desenvolvimento, o Brasil, sob o comando de Lula e Amorim e de Dilma e Patriota, vem ganhando força ao traduzir o crescimento consistente em casa e a diplomacia ativa no exterior em redes internacionais efetivas.

Mas o governo de Dilma também está rompendo com o passado. Enquanto Cardoso e Lula alcançaram a grandeza enfrentando e resolvendo alguns dos problemas mais ruinosos do passado brasileiro, da estabilização da economia ao enfrentamento da desigualdade social, Dilma, sem deixar de reconhecer o trabalho que resta a ser feito, concentrou sua atenção também na criação de oportunidades e num claro caminho para o futuro do Brasil. De seu foco em educação a seu compromisso com ciência e tecnologia passando por programas inovadores como "Ciência Sem Fronteiras", ela está fazendo algo que nenhum líder latino-americano fez anteriormente, mas que se mostrou uma fórmula aprovada na Ásia.

Está comprometida em transformar o Brasil de economia com base em recursos naturais e, portanto, dependente (o que significa dizer, vulnerável) em uma que conta mais para o crescimento futuro com as indústrias de valor agregado, a pesquisa e desenvolvimento, e a formação de mais cientistas e engenheiros.

Com base nisso, Patriota também está olhando para frente. Ele está indo além da era da política externa brasileira em que era inovador fazer o país olhar para fora de sua região e jogar um papel ativo nos assuntos globais, para um período, num futuro não muito distante, em que o Brasil, na condição de país com uma das cinco maiores economias e populações do mundo, de líder mundial em agronegócios e energia, assumirá sem hesitação que merece seu lugar à mesa.

Patriota esteve em Nova York por achar que um dos primeiros experimentos dessa era, a intervenção na Líbia sancionada pela ONU, saiu dos trilhos quando a missão autorizada pelas Nações Unidas de proteger o povo líbio foi deixada de lado pelas forças internacionais que intervieram tornando-se antes uma missão de mudança de regime. Ele não era nenhum admirador de Muamar Kadafi, que fique claro. Mas tem o sentimento inabalável de que, para a comunidade internacional operar de fato unida, ela precisa fazê-lo sob regras não só coletivamente estabelecidas, mas também coletivamente honradas.

Essa atitude provoca irritações, com certeza, em especial em países como os Estados Unidos, que estão acostumados a operar segundo suas próprias regras. Essa é uma razão por que a iniciativa turco-brasileira de 2010 para costurar um acordo para desarmar a crise nuclear iraniana foi tão irritante para Washington. A medida, por mais ingênua que tenha parecido para alguns, antecipou o início de uma era em que potências regionais e emergentes, como Turquia com Síria ou China com Irã, são fundamentais para se alcançar os objetivos da comunidade internacional.

Patriota reconhece que os Estados Unidos, sob o comando de Barack Obama, e outras potências estabelecidas avançaram bastante para se adaptar a essa nova realidade. Dito isso, ele gostaria de ver Obama avançar mais. Por exemplo, os brasileiros estão entre as potências emergentes que pressionam por reformas reais na maneira como as instituições internacionais são conduzidas. Eles acham que a ordem pós-2.ª Guerra refletida na estrutura de poder do Conselho de Segurança da ONU e na concessão automática da liderança do Banco Mundial a um americano está obsoleta e que já é hora de alguma coisa que reflita as realidades do século 21 e seja mais consistente com os princípios democráticos sobre os quais essas instituições foram estabelecidas.

É difícil discordar dos brasileiros ou de outros sobre esses pontos. E a inconsistência mostrada pelo governo Obama nessa frente - oferecendo apoio a uma participação permanente indiana, mas não brasileira, no Conselho de Segurança, em certo momento parecendo simpático a uma abertura do principal cargo no Banco Mundial a um não americano, mais recentemente parecendo recuar dessa ideia - tem sido irritante e, eu diria, irrefletida.

O que Dilma e Patriota estão tentando fazer na frente internacional é, de fato, tão revolucionário quanto o que seus antecessores fizeram.

Eles compreendem que um multilateralismo bem-sucedido agora requer não só maior número de países, mas abertura a uma multidão de ideias.

Durante a Guerra Fria, o debate era binário: soviéticos ou americanos.

Em sua esteira houve a breve ilusão de que havíamos entrado num momento de fim da História em que uma filosofia de mercados e democracia liderada pelo Consenso de Washington adquiria uma espécie de status de monopólio no mercado das ideias. Mas depois vieram as tragédias gêmeas, frutos da arrogância, do Iraque e da crise financeira de 2008, a simultânea ascensão de novas potências como Brasil, China, Índia e outros - e entramos em uma nova era. Em meu livro, Power, Inc., me refiro ao lado econômico dessa era como um período de capitalismos concorrentes. Mas ele é também um período de filosofias políticas concorrentes sobre o papel, tanto do Estado, como das instituições internacionais. Nesse mundo, não só os Estados Unidos são apenas uma voz, mas são também uma voz enfraquecida que em cada evento será ouvida como a mera visão de menos de 5% da população do planeta. Ao mesmo tempo, outros terão de preencher o vazio criado pelo redimensionamento da influência americana. O Brasil está tentando fazê-lo e, é preciso notar, de uma maneira consideravelmente mais construtiva que a evidenciada por China e Rússia em seu desempenho pusilânime com respeito à Síria no Conselho de Segurança. Dito isso, as potências emergentes, o Brasil entre elas, precisam reconhecer que, neste novo mundo, se pretendem jogar papéis maiores, elas também terão de fazer escolhas duras e não simplesmente desconsiderar as questões complexas como problemas alheios ou fora do alcance do sistema internacional em evolução. Elas vão ter de aceitar cada vez mais que se as injustiças não forem contidas, os custos resultantes serão largados em suas portas.

TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
DAVID ROTHKOPF É ANALISTA DO CARNEGIE ENDOWMENT FOR INTERNATIONAL PEACE
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 02/03/2012.

Responsabilização

Luis Fernando Veríssimo


O Cristopher Hitchens disse certa fez que se fizera uma promessa: não leria mais nada escrito pelo Henry Kissinger até que fossem publicadas suas cartas da prisão. O Hitchens já morreu, o Kissinger continua escrevendo (seu último livro é sobre a China) e são poucas as probabilidades de que venha a ser julgado, o que dirá preso, pelo que aprontou – no Chile e no Vietnã, por exemplo.

Sua posteridade como estrategista geopolítico e conselheiro de presidentes está assegurada, ele morrerá sem ser responsabilizado por nada e não serão seus inimigos que escreverão seu epitáfio.

O juiz espanhol Garzón, aquele que mandou prender o Pinochet, estava mexendo com o passado franquista da Espanha, também atrás de responsabilização, e bateu de frente com a reação. Recorreram a um tecnicismo de legalidade duvidosa para barrá-lo. Lá também se invoca uma Lei da Anistia para impedir uma investigação dos crimes da ditadura. Anistia não anula responsabilização. A partir do tribunal de Nuremberg que julgou a cúpula nazista no fim da Segunda Guerra Mundial, passando pelos julgamentos de tiranos em cortes internacionais desde então, o objetivo buscado é a responsabilização, que não tem nada a ver com retribuição, vingança ou mesmo justiça. Até hoje discute-se a legalidade formal, de um ponto de vista estritamente jurídico, dos processos em Nuremberg, mas era impensável, diante da enormidade do que tinha acontecido, e sob o impacto das primeiras imagens dos corpos empilhados nos campos de concentração nazistas recém-liberados, que eles não se realizassem. Alguma forma de responsabilização era uma necessidade histórica. Com alguma grandiloquência se poderia dizer que a consciência humana a exigia.

A tal Comissão da Verdade que se pretende no Brasil responderia à mesma exigência histórica, além da necessidade de completar a história individual de tantos cujo destino ainda é desconhecido.

A julgar pela rapidez com que, aos primeiros protestos de evangélicos e bispos católicos, o Gilberto Carvalho correu para lhes dizer que a posição do governo em relação ao aborto continuaria retrograda como a deles, pode-se duvidar da disposição do governo para enfrentar a reação que virá, como na Espanha do Garzón, ao exame do nosso passado e à responsabilização dos seus desmandos. Vamos torcer para que, neste caso, a espinha do governo seja mais firme.

Pois sem responsabilização as histórias ficam sem fim, soltas no espaço como fiapos elétricos, e o passado nunca vai embora.


Publicado no jornal O Globo e em O Estado de São Paulo, em 01/03/2012.