terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Teorias, fatos, indícios

Marcelo Coelho



Corre na internet, em especial nos meios favoráveis a José Dirceu, a tese de que ele foi condenado sem provas, com base unicamente na teoria do domínio do fato, desenvolvida pelo jurista alemão Claus Roxin.

Em entrevista à Folha, Roxin disse uma obviedade: a de que ninguém pode ser condenado sem provas. A frase, que terminou indo para o título da reportagem, não se referia, é claro, ao julgamento do mensalão -caso de que Roxin não tinha o menor conhecimento. Mas serviu para fortalecer a ideia de que o Supremo Tribunal Federal, aplicando erradamente a teoria, condenou José Dirceu com base em meras suposições.

Nenhuma teoria é capaz de condenar ninguém. Pelo menos desde que se abandonou a concepção medieval da "responsabilidade objetiva". A saber, a ideia de que alguém deva ser punido não pelo que fez, mas sim pelo que é. Nesse gênero de retaliação, qualquer judeu poderia pagar pelos supostos "crimes dos judeus", apenas pelo fato de ser judeu.

A teoria do domínio do fato não se confunde com a tese da responsabilidade objetiva: isso foi dito e repetido nas sessões de julgamento do mensalão.

Na névoa que se criou em torno do assunto, o fato de Claus Roxin ser alemão contribuiu até mesmo para que se jogassem suspeitas sobre a legitimidade de sua teoria.

No caso de José Dirceu, vale lembrar que as alegações finais do Ministério Público, pedindo sua condenação, nem sequer citaram a teoria do domínio do fato. Considerou-se haver provas suficientes de que era o mandante do esquema, nada mais do que isso.

O problema é que os ministros do Supremo gostam de embelezar seus votos com citações a doutrinas que, por vezes, apenas reiteram o senso comum.

Luiz Fux e Celso de Mello, nos seus votos sobre José Dirceu, estenderam-se bastante sobre o pensamento de Claus Roxin; Ricardo Lewandowski, inocentando o ex-chefe da Casa Civil, manifestou sobretudo sua preocupação de que a teoria do domínio do fato venha a ser aplicada indiscriminadamente, nas instâncias inferiores, a partir do prestígio que estava ganhando no STF.

Suponha-se, disse Lewandowski, que aconteça um vazamento de petróleo num terminal da Petrobras. O risco é que, com base na teoria do domínio do fato, terminem condenando o presidente da empresa por causa disso.

Não faz sentido, respondeu Luiz Fux. Seria preciso provar que o presidente desejou, ordenou, o tal vazamento; que tinha poder de interrompê-lo, mas não quis que isso acontecesse.

É o bom senso.

O maior problema teórico na condenação de José Dirceu, se é que podemos chamar de teórico, não está na questão do domínio do fato; a teoria nem precisaria ser invocada, ressaltou o ministro Ayres Britto, e sua condenação viria do mesmo jeito. Nem o STF inova, insistiu Celso de Mello, nesse ponto. A teoria vem sendo aplicada no Brasil há décadas, disse ele em seu voto.

O ponto polêmico, na verdade, recai sobre a qualidade das provas utilizadas para incriminar José Dirceu. Não houve nenhum e-mail, nenhuma transcrição de conversa telefônica, nenhuma filmagem, provando claramente que ele deu ordens a Delúbio Soares para corromper parlamentares.

Houve declarações de testemunhas, segundo as quais os envolvidos diretos no esquema sempre telefonavam a José Dirceu para "bater o martelo".

Houve a circunstância de que Marcos Valério se encontrou com Delúbio Soares, José Dirceu e o presidente de um banco português, na Casa Civil. O encontro seria para tratar de investimentos turísticos na Bahia, alegou-se. Investimentos turísticos? Com Marcos Valério e Delúbio? Difícil de acreditar.

Houve a circunstância de que a ex-mulher de José Dirceu obteve, por intermédio de Marcos Valério, facilidades na compra de seu apartamento. Isso coroou o conjunto probatório contra José Dirceu, disse Luiz Fux. Não teve maior importância, avaliou por outro lado a ministra Cármen Lúcia.

Cada ministro expôs suas convicções. Para a minoria, os fatos não comprovavam de forma indubitável a culpa de José Dirceu. Para a maioria, duvidoso seria achar que Delúbio Soares sozinho tivesse organizado tudo, que a negociação da emenda sobre a reforma da Previdência tivesse sido conduzida apenas pelo ministro específico da pasta, que José Dirceu teve encontros com a presidente do Banco Rural, Kátia Rabello (intermediados por Marcos Valério) e não conversou sobre empréstimos ao PT.

Quando alguns juristas reprovam a condenação por "sinais e presunções", disse a ministra Rosa Weber, há de se entender que devem ser descartados os "sinais e presunções" que deixam lugar à dúvida. Mas quando as circunstâncias estão intimamente ligadas com o crime, chegando a formar convencimentos, a ressalva não se coloca; os indícios, as inferências, têm a claridade da luz.

Não para todos, evidentemente.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/12/2012.

Questão: Universidade católica

Identidade e pluralismo: a missão da PUC-SP

Cardeal Dom Olilo Pedro Scherer


A Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) esteve em evidência na imprensa nos últimos dias, em função da recente nomeação da professora Anna Maria Marques Cintra como reitora da instituição. Quero, pois, esclarecer o papel e a preocupação da Igreja Católica, presente na gestão de uma universidade.

Antes, porém, reitero que a nomeação está de acordo com a norma da universidade. Escolhi a reitora entre os candidatos da lista tríplice organizada e encaminhada a mim pelo Conselho Superior da Universidade, como estabelece o estatuto da PUC-SP.

Há quem considere que a PUC-SP cumpriria melhor o seu papel sendo uma universidade laica, desvinculada da Igreja. Isso, porém, não seria coerente com a natureza de nossa universidade católica que, além de tudo, também é "pontifícia".

Não cabem equívocos, nesse sentido, e não dissimulo meu empenho para evidenciar e fortalecer na PUC-SP a sua identidade católica.

Assim fazendo, não busco simplesmente que ela esteja alinhada com os valores cristãos, mas que dê sua contribuição específica, como instituição católica, à sociedade paulista e brasileira.

Uma universidade católica não existe apenas para defender a Igreja. O seu fim primário é o serviço à verdade e ao bem do homem. E para nós, católicos, esse afã não coloca em risco a nossa fé: na visão cristã, é plenamente harmônica a relação entre fé e razão.

"Religião do logos, o cristianismo não relega a fé para o âmbito do irracional, mas atribui a origem e o sentido da realidade à única razão criadora", afirma Bento 16.

A unidade entre fé e razão é um elemento essencial do pensamento cristão, que não está fechado em si mesmo. A fé, ao contrário de ser limite, é luz, que amplia a visão e as perspectivas para uma análise serena e positiva dos acontecimentos sociais e para uma compreensão mais profunda do mundo e do fenômeno humano.

Para um pesquisador cristão, a coerência com a sua fé não o faz sobrepor ao seu trabalho critérios alheios à ciência; sua própria fé leva-o ao amor à verdade e ao respeito pela dignidade da pessoa humana.

Num contexto relativista, como o atual, uma universidade católica contribui para mostrar que há valores inegociáveis, como a busca da verdade, o valor da vida humana em todas as suas etapas e a dignidade da mulher.

A universidade católica, diz ainda o papa, está chamada "a não limitar a aprendizagem à funcionalidade de um êxito econômico, mas a ampliar a sua ação em vista de projetos em que o dom da inteligência investiga e desenvolve as dádivas do mundo criado, superando uma visão apenas produtivista e utilitarista da existência".

Essa especial missão não a faz ser superior às outras universidades, mas deve levá-la a uma atitude de serviço, de diálogo e de abertura às outras instituições educativas, num autêntico espírito universitário.

Reconheço que, no meio acadêmico contemporâneo, a maneira cristã de ver o mundo e o ser humano não é compartilhada por todos. No entanto, isso não desqualifica a sua contribuição para a pluralidade da cultura; antes, explicita ainda mais a sua relevância para a construção de uma sociedade aberta, na qual possa haver um confronto entre dados de fato e valores.

Karl Popper observa que uma sociedade aberta necessita de valores, que ela própria não está em condições de produzir para si mas, muitas vezes, vai buscar no cristianismo.

Por isso, mesmo, num mundo que parece esquecer-se de Deus, uma universidade católica tem uma importante função social, também como contribuição para o pluralismo e a liberdade de pensamento. E isso não parece irrelevante para o convívio democrático!

CARDEAL DOM ODILO PEDRO SCHERER, 63, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é arcebispo de São Paulo.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 07/12/2012.

 
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Universidade católica?

Vladimir Safatle



A crise na PUC-SP devido à nomeação da terceira colocada em uma lista tríplice evidenciou uma questão mais grave, que não diz respeito apenas ao mecanismo viciado de escolha de reitor. Artigo publicado na Folha por dom Odilo Pedro Scherer demonstra profunda distorção no sentido do que é uma universidade.

Uma universidade não é apenas um espaço de formação profissional e de qualificação técnica. Desde o seu início, ela foi uma ideia vinculada à constituição de um espaço crítico de livre pensar. Ela era a expressão social do desejo de que o conhecimento se desenvolvesse em um ambiente livre de dogmas, sem a tutela de autoridades externas, sejam elas vindas do Estado, da igreja ou do mercado. A universidade dialoga com essas três autoridades, mas não se submete a nenhuma delas, mesmo quando é dirigida pelo poder público, por grupos confessionais ou empresários.

Por isso, há de se falar com clareza: no interior da República, não há espaço para universidades católicas, protestantes, judaicas ou islâmicas, mas universidades dirigidas por católicos, dirigidas por protestantes etc., o que é algo totalmente diferente.

Uma universidade não existe para divulgar, de maneira exclusiva, valores de qualquer religião que seja. Ela admite que tais valores estejam presentes em seu espaço, mas admite também que nesse mesmo espaço encontremos outros valores, pois só esse livre pensar é formador do conhecimento.

Se certos setores da igreja não querem isso, principalmente depois do realinhamento conservador de Bento 16, então é melhor que eles se dediquem à gestão de seminários.

A universidade, mesmo particular, é uma autorização do poder público que exige, para tanto, a garantia de que valores fundamentais para a formação livre serão respeitados.

Se a igreja percebe a PUC como um instrumento de defesa de seus valores, então não há razão alguma para ela fazer isso com dinheiro do Estado, já que seus cursos de pós-graduação recebem dinheiro público via agências de fomento.

Ao que parece, alguns acreditam que, em uma universidade dirigida por católicos, professores não devem se manifestar publicamente a favor do aborto e do casamento homossexual. E o que fará tal universidade com professoras que abortam e professores que se declaram abertamente homossexuais? Serão convidados a se retirar?

E o professor que ensina Nietzsche e a "morte de Deus", Voltaire e seu pensamento anticlerical? Terão o mesmo destino do professor de história que pesquisou as barbáries da Inquisição ou das relações entre o Vaticano e o fascismo ou da professora de psicologia que defende teorias "queers", já acusadas pelo papa de minar os valores da família cristã?



Publicado na Folha de S.Paulo, em 11/12/2012.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A guerra de Cristina e a verdade

Clóvis Rossi




Como em toda guerra, a verdade está sendo a primeira e maior vítima do insano combate entre a presidente Cristina Kirchner e o grupo Clarín. Primeira verdade abatida no combate: a Lei de Mídia, regulamentação do audiovisual aprovada pelo Congresso, é antidemocrática e visa a impor uma ditadura na mídia.

Falso. A lei é bastante ponderada e, acima de tudo, necessária. Busca evitar a concentração de propriedade dos meios de comunicação, o que é altamente saudável.

Basta pensar no Brasil e nos danos que provocou na Bahia e no Maranhão, por exemplo, a hegemonia midiática das famílias Antônio Carlos Magalhães e José Sarney.

O problema com a lei não é ela em si, mas o fato de que está sendo usada para destilar ódio contra o grupo Clarín. E, aqui, entra-se em terreno movediço porque não está clara a razão real do ódio.

Afinal, todas as pessoas razoavelmente informadas na Argentina sabem que, nos tempos de Néstor Kirchner, marido de Cristina e presidente entre 2003 e 2007, havia frequentes reuniões na quinta presidencial de Olivos entre o casal Kirchner e Héctor Magnetto, diretor-executivo do Clarín, nas quais se gabavam de ser o trio mais poderoso do país.

Néstor, aliás, autorizou na véspera de deixar o cargo a fusão de duas operadoras de TV a cabo, com o que o grupo Clarín ficou com a posição dominante que, agora, a lei pretende recortar.

A explicação sempre usada para a ruptura é a de que o jornal pôs-se ao lado dos ruralistas no confronto com Cristina, em 2008.

Não parece motivo tão forte para instalar em Cristina tamanho ódio. Minha sensação -e admito que toda sensação pode ser enganadora- é a de que a presidente está apenas deixando aflorar a clássica tendência peronista de radicalizar amizades e inimizades até o limite da eliminação física, às vezes dentro do próprio peronismo, como aconteceu reiteradamente nos anos 60/70.

Uma segunda vítima dessa guerra é a ideia de que, se for quebrado o que governo chama de "monopólio" do Clarín (que não existe), vozes "progressistas" preencherão o espaço.

Quem avançará é o grupo Uno, de José Luis Manzano, assim descrito por Mario Antonio Santucho, simpatizante da lei e de Cristina, em texto para "Carta Maior", sítio amplamente kirchnerista: "É um ex-funcionário menemista, neoliberal e corrupto de primeira hora". Além disso, "seus empreendimentos comunicacionais são conhecidos pelos maus-tratos e pela exploração aplicados aos jornalistas e técnicos, assim como pelo escasso interesse social de sua programação".

Não dá para esquecer que a etiqueta peronista que Cristina usa carimbou desde os fascistas da Aliança Anticomunista Argentina até os revolucionários Montoneros, capazes de condenar à morte um dos seus, o poeta Juan Gelman, só por ter tido, em certo momento durante a ditadura, a coragem de reconhecer o óbvio: a luta armada fora derrotada e era preciso encontrar outro caminho.

Voltar, agora, a um maniqueísmo parecido é o pior que pode ocorrer à Argentina.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/12/2012.

Percepção e realidade

José Roberto de Toledo



2014 chegou antes de 2013. Desde a semana passada, a sucessão de Dilma Rousseff (PT) virou prato principal e é improvável que o cardápio mude pelos próximos dois anos. O molho varia do explícito (o lançamento do presidenciável Aécio Neves pelo PSDB) ao subentendido (a polêmica do pibinho), passando pelo trágico (ascensão e queda do baixo clero da corrupção petista) e o cômico (revista inglesa pedindo cabeça de ministro no Brasil).

A economia - que elegeu FHC, Lula e Dilma - é o ingrediente principal do debate, novamente. A pegadinha é que o gosto popular está cada vez mais distante do palato dos críticos. As diferenças de percepção são tão distintas quanto seus instrumentos de medida. A confiança do consumidor dá picos enquanto as aferições do PIB afundam. Investimentos param ao mesmo tempo que o crédito dispara.

Para cada indicador negativo há um positivo e vice-versa. Depende do gosto do freguês. A produção de automóveis caiu pela primeira vez desde 2002? Mas a taxa nacional de desemprego é a mais baixa desde muito antes disso. Os salários brasileiros crescem duas vezes mais do que a média mundial? Mas o capital estrangeiro foge do Brasil para Índia, China ou aonde seja.

Economistas dizem que os indicadores positivos refletem o passado e os negativos, o futuro. Eles devem ter razão, como tiveram ao prever 10 das últimas 3 recessões.

A piada é gasta porque não há outro ramo de atividade no qual projetar impunemente dê tanto prestígio e dinheiro quanto a economia. Entre 2000 e 2010, as previsões de crescimento do PIB feitas pelo mercado (e publicadas pelo boletim Focus do Banco Central) tiveram um erro médio de mais de 50%. Nove em 10 erraram. Guido Mantega está em linha com seus pares.

Probabilisticamente, se Dilma atendesse a The Economist e decapitasse o ministro da Fazenda, a presidente teria 90% de chance de trocar seis por meia dúzia.

O que tanto mudou desde 2010, quando a revista inglesa enfiou um foguete sob o Cristo Redentor, até a publicação do obituário do PIB brasileiro na semana passada? Foi o PIB ou seu parâmetro de comparação? A bipolaridade eufórico-depressiva parece estar tanto nos olhos de quem vê quanto no objeto da observação.

Aos redatores ingleses resta citar a tirada célebre: "Quando os fatos mudam, eu mudo minha cabeça, o senhor não?" A frase é ora atribuída a John Maynard Keynes, ora a John Kenneth Galbraith. Importa menos o nome do que o fato de que o autor é economista.


Economia eleitoral

Nada se correlaciona mais à popularidade presidencial do que a confiança do consumidor. Ambas estão ascendentes, apesar do pibinho. Como pode ser? Porque o consumidor avalia que sua situação financeira está melhor do que há seis meses, e acha que vai melhorar ainda mais no futuro próximo - puxada por emprego e salários em alta. É portanto um jogo de percepção e expectativa.

O PIB vai seguir a confiança do consumidor, como quer o governo, ou o consumidor vai acabar se convencendo de que o melhor já passou e trocar de canoa, como sonha a oposição? As expectativas são, em boa parte, autorrealizáveis. Portanto, vencer a batalha de versões sobre a economia é começar bem a guerra sucessória.

Chefe do PSB, Eduardo Campos se antecipou dizendo a empresários descontentes com a economia que falta rumo estratégico ao país - implícita é sua oferta por nova bússola. Campos morde e assopra. Pode ser o "tertius" que forçaria um segundo turno em 2014, ou o aliado que facilitaria a eventual reeleição de Dilma. Tudo depende das circunstâncias, ou seja, da economia.

O lançamento de Aécio foi quase um empurrão. Fernando Henrique Cardoso jogou o senador mineiro na arena. Aécio gaguejou, mas não tem opção. Se não mostrar gana para ser candidato agora, quando o PSDB não tem alternativas, vai perder o trem da história. Não assumiu o discurso, mas já age como candidato.

A redução das tarifas de energia elétrica é um ato de campanha de Dilma pela reeleição. Ao gorarem o plano presidencial, as concessionárias geridas por governadores tucanos defenderam o interesse de seus donos mas alimentaram o discurso petista de que o PSDB é demofóbico quando se trata de economia popular. 2014 já começou, mas passa pela economia de 2013.



Publicado em O Estado de S.Paulo, em 10/12/2012.

Let's move on

Fernando Rodrigues





Essa foi a expressão em inglês usada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, ao falar do mensalão. "A nação não aguenta mais este julgamento. Está na hora de acabar, está na hora. Como diriam os ingleses, let's move on".

Em português, "vamos em frente". É uma boa proposta. O STF poderia aplicá-la a outros casos aguardando julgamento. Esses processos, como diria Joaquim Barbosa, foram todos "bypassados" pelo mensalão.

Depois de amanhã, os ministros definirão se os deputados condenados por causa do mensalão devem perder o mandato sem uma votação no plenário da Câmara. Como em toda discussão jurídica, há argumentos sólidos a favor e contra.

Mas não há sob o sol um único argumento aceitável para o STF estar enrolando há dois anos o caso do deputado Natan Donadon (PMDB-RO), condenado a 13 anos, 4 meses e 10 dias de prisão pelos crimes de formação de quadrilha e peculato.

Donadon é do baixo clero. Seu nome raramente aparece no noticiário. O Supremo o condenou em outubro de 2010, mas o político continua livre, leve e solto. Exerce de maneira plena o seu mandato de deputado. Ajuda a aprovar leis, mesmo sendo considerado um quadrilheiro.

Falta o STF julgar recursos ajuizados pela defesa de Donadon e também dizer se esse político deve perder o mandato já. Por que não o fez ainda, ninguém sabe. Faltaria espaço para listar na edição inteira da Folha todos os processos que caminham a passos de tartaruga no Supremo.

É ótima, portanto, a exaltação de Joaquim Barbosa. "Let's move on". Acelerar o ritmo de andamento dos processos, inclusive o julgamento do caso do mensalão do PSDB, nascido em Minas Gerais --e relatado há vários anos pelo próprio Barbosa.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 08/12/2012.

O que surpreende é a omissão do poder público sobre o tema

Cláudia Collucci



Há algo de muito errado em um país quando mais da metade dos alunos que estão concluindo o curso de medicina, no Estado mais rico e populoso da nação, não tem domínio de áreas básicas para exercer a profissão.

Não que os resultados divulgados ontem pelo Cremesp sejam surpreendentes. Desde que a prova foi criada, há sete anos, os índices de reprovação estiveram entre 32% (2005) e 61% (2008).

Agora, porém, o impacto é maior porque todos os formandos foram avaliados.

Ainda que se pesem as críticas em relação à metodologia do exame, intriga o fato de não haver nenhuma mobilização dos ministérios da Saúde e da Educação para melhorar esse cenário.

Aferir a competência técnica dos futuros médicos antes de soltá-los no mercado deveria ser uma questão de Estado, de interesse público.

Isso se torna evidente quando os resultados do "provão" revelam que as áreas de maior reprovação são as de saúde mental (41% de acertos) e pública (46%).

Em um país em que 90% da população é usuária de alguma forma do SUS, o Estado deveria tomar para si a responsabilidade de um modelo de avaliação que conferisse a qualificação ao médico antes que ele chegasse ao mercado, a exemplo do que fazem os EUA e o Canadá.

A Inglaterra deu um passo além. Neste mês, o governo britânico instituiu um sistema que obrigará todos os médicos já formados a passarem por avaliações periódicas.

Os testes serão feitos por entidades médicas, mas tudo supervisionado pelo Ministério da Saúde britânico.

Os médicos terão de comprovar (por meio de cursos, por exemplo) que estão aptos para continuar na profissão. A palavra do paciente também contará pontos.

Levando em conta que o SUS foi inspirado no modelo britânico, é uma boa hora para o governo brasileiro aprender algumas lições de como oferecer uma saúde de melhor qualidade à população.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 07/12/2012.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A boquinha dos conselhos

Elio Gaspari


Pela boa norma da administração, todas as empresas estatais são fiscalizadas por conselhos. Em tese, eles orientam a gestão e decidem questões estratégicas. Na prática, quase sempre são uma boquinha, suplemento financeiro. Há algo como 348 cargos nesses conselhos em 93 estatais, custando pelo menos R$ 15 milhões anuais.

Uma espiada nas conexões da companheira Rose Noronha mostra a extensão dos mimos. Seu ex-marido foi nomeado conselheiro da Brasilprev, do Banco do Brasil. (Como suplente, embolsava R$ 3.330 mensais.) O doutor conseguiu a prebenda amparado num diploma falso de "baixaréu" (na expressão de Rose) em administração de empresas, emitido pelo Centro de Ensino Superior de Dracena, no interior de São Paulo. Nele lecionava Paulo Vieira, diretor da Agência Nacional de Águas, ex-conselheiro da Nossa Caixa e titular do conselho fiscal da Codesp, do porto de Santos. O doutor José Weber, braço direito do advogado-geral da União, com quem Vieira tratava dos interesses do ex-senador Gilberto Miranda, ganhou um lugar no conselho deliberativo do Funpresp, o fundo de aposentadoria complementar dos servidores. Antes, estivera no conselho da falecida Empresa Brasileira do Legado Esportivo. Não se conhecem os salários dos doutores, mas nunca valem menos de R$ 2.000 e chegam a render R$ 15 mil mensais por um reunião de duas horas.

Trata-se de uma velha gambiarra. Não foi inventada pelo PT e é praticada por governantes de todos os partidos. Os marqueses do tucanato paulista estão aí para provar isso. Os conselheiros da rede de Rose estão no andar de baixo da hierarquia do comissariado. O exemplo lhes vem do andar de cima.

A lei diz que os servidores públicos não podem receber mais de R$ 26.723,13. Esse é o salário da doutora Dilma. Ela perdeu dinheiro indo para o Alvorada, pois até março de 2010 acumulou a chefia da Casa Civil com a posição de conselheira da Petrobras. Hoje, 13 de seus ministros estão aninhados em conselhos. Como eles são 24, o teto é uma fantasia. Os comissários Miriam Belchior e Guido Mantega recebem mensalmente R$ 43.202,58, pois somam aos vencimentos de ministros do Planejamento e da Fazenda os jetons de conselheiros da Petrobras (R$ 8.323) e de sua distribuidora (R$ 8.246). Tereza Campello, ministra do Desenvolvimento Social, é conselheira da Petrobras Biocombustível. O doutor Wagner Bittencourt, da Aviação Civil, tem cadeira na Eletrobrás (R$ 4.145). Ganha uma viagem de ida a Damasco quem souber o que aviação tem a ver com energia elétrica e qual a relação entre a pasta do Planejamento e a distribuição de gasolina.

Em outubro passado a Justiça Federal do Rio Grande do Sul determinou a suspensão desses pagamentos, mas a AGU prometeu recorrer. Corda em casa de enforcado. Em janeiro, o advogado-geral Luís Inácio Adams fechava suas contas com um embolso de R$ 38,7 mil graças às suas cadeiras na Brasilcap e na Brasilprev (R$ 6.600), onde tinha o doutor Noronha como suplente. Se precisasse de ajuda tinha ao seu lado o conselheiro Weber, da Funpresp.

Se o salário de um ministro tem teto e ele recebe mais do que se pensa, Paulo Vieira e o ex-marido de Rose habilitaram-se e conseguiram suas Bolsas Conselho.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 05/12/2012.

A lei vs. a "vontade" de Israel

Clóvis Rossi



Foi inútil, como se poderia antecipar, a pressão de um punhado de países europeus para que Israel abandone o projeto de construir mais 3.000 residências para colonos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, territórios que pertencem aos palestinos, de acordo com a legislação internacional.

Na semana passada, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu já havia dado uma solene bofetada na legalidade internacional, com a sua frase sobre a decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas de conceder à Palestina o status de Estado observador.

Disse Netanyhau: "Não há decisão da ONU que possa romper 4.000 anos de vínculos entre o povo de Israel e a terra de Israel".

Dane-se a legalidade internacional. O que vale é exclusivamente a vontade "do povo de Israel".

Uma frase com esse desprezo pela única legalidade global disponível (as decisões da ONU), se pronunciada por um líder muçulmano, mais ainda se fosse iraniano, provocaria uma tempestade de condenações no Ocidente (e em Israel).

E seria justo porque, se se desrespeita o que decide a organização internacional mais legítima de que o planeta dispõe, resta apenas a lei do mais forte -e os judeus já experimentaram em carne própria o que significa a lei do mais forte.

Pena que Israel se dedique nos últimos muitos anos a adotar o seu próprio arbítrio. Não cumpre resoluções da ONU desde 1967, pelo menos, quando a organização internacional determinou que deveria devolver os territórios ocupados na guerra daquele ano.

Despreza também uma das convenções de Genebra, que veda a implantação de populações em territórios conquistados.

O número de colonos que Israel foi implantando em território palestino beira os 350 mil, sem contar os 200 mil instalados na parte oriental de Jerusalém, legalmente árabe.

Pior ainda: boa parte desses colonos dedica-se ao exercício de hostilizar os palestinos, conforme recente relatório do Comitê de Política e de Segurança da União Europeia. "Os ataques são cada vez mais severos e, em algumas áreas, mais coordenados", diz o texto, além de mais frequentes (aumentaram 32% em 2011 sobre 2010).

As hostilidades afetam homens, mulheres, crianças, campos agrícolas (10 mil árvores já foram arrancadas) e lugares de culto (só este ano, dez mesquitas foram destruídas). Não cabe aqui o argumento israelense de que, como Israel é atacada por foguetes lançados de Gaza, não pode ficar de braços cruzados. Ao contrário de Gaza, na Cisjordânia ocupada, os palestinos não disparam foguetes contra judeus.

A frase de Netanyahu torna inútil qualquer peroração legalista ou moralista a respeito da ocupação.

O que conta, na prática, é apenas o seguinte: a violação da legalidade internacional funciona para Israel?

Por enquanto, está funcionando. Mas o crescente isolamento internacional do país e o crescente alcance dos foguetes do Hamas/Jihad Islâmica sugerem que a "terra de Israel" não pode indefinidamente impor sua vontade imperial.


crossi@uol.com.br

Publicado na Folha de S.Paulo, em 04/12/2012.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Uma proposta

Adib D. Jatene



A discussão sobre a falta de médicos para atuar na periferia das grandes cidades ou em municípios remotos, ambos carentes desses profissionais, vem mobilizando todos os administradores públicos, especialmente os prefeitos, que não conseguem contratá-los para o Programa Saúde da Família (PSF), mesmo oferecendo remuneração igual ou superior a R$ 10 mil mensais. A proposta de algumas importantes figuras da administração é ampliar a oferta de vagas pela abertura de novos cursos e, simultaneamente, importar médicos formados no exterior.

Mas nenhuma dessas propostas seria capaz de corrigir a demanda atual.

Novos cursos só vão formar médicos após seis anos. Formar novos médicos no sistema atual significa considerar a residência médica indispensável. Porém o número de vagas para residência, apesar das 1.260 criadas recentemente pelo Ministério da Saúde, é ainda inferior ao número de graduandos. Também a residência médica existe apenas em grandes hospitais, que utilizam toda a moderna tecnologia. Desse modo, a residência médica forma especialistas e subespecialistas que não vão trabalhar com a população carente, mas agravar as distorções, indo atuar em áreas mais ricas e centrais das cidades.

Por outro lado, importar médicos envolve grande risco, desde que essa importação não seja feita de países onde o ensino médico prime pela qualidade.

Existe contingente significativo de alunos brasileiros buscando sua graduação em países onde há facilidade de ingresso e cujos cursos não formam o profissional com a qualidade mínima exigida. Uma vez formados, querem exercer a atividade no Brasil. A tentativa de acordos bilaterais reconhecendo automaticamente os diplomas tornou-se inviável, levando os Ministérios da Educação (MEC) e da Saúde a elaborar o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeiras (Revalida), para uniformizar os critérios nas universidades federais encarregadas dessa revalidação. Uma proposta ouvida no MEC é de que tais profissionais poderiam trabalhar por dois anos, sob supervisão de tutores, e só depois prestar o exame para revalidação. Propõem até reduzir as exigências do Revalida para facilitar a aprovação, o que nos parece inadmissível.

Nenhuma dessas duas propostas, portanto, resolveria o nosso problema.

Entendo que é o momento de propor um pré-requisito para a residência médica: cumprir dois anos no Programa Saúde da Família, supervisionado pela sua escola. Isso traria impacto de três ordens: fornecer o profissional para locais pouco atrativos, envolver a escola na assistência e reformar o ensino médico.

Diante da gravidade da situação em que nos encontramos, é ingênuo pensar que mantendo a situação atual se consiga corrigir as desigualdades. São necessárias medidas que podem ser consideradas radicais para mudar. Vivemos um tempo de mudança e o ensino médico deve mudar pensando na população desassistida, cuja condição precisa ser recuperada.

Parto do pressuposto de que nenhum país do mundo, mesmo gastando mais de US$ 7 mil per capita por ano, consegue oferecer a moderna tecnologia a todos indistintamente (assinale-se que gastamos menos de US$ 900 per capita). Mesmo porque 80% dos casos, que procuram o médico, podem ser tratados sem esses recursos, que, entretanto, devem ser postos à disposição de quem deles precisa.

Assim, o curso médico deve formar um profissional capaz de atender um paciente em situação de emergência e em situação eletiva, basicamente fazendo diagnóstico e orientando a terapêutica com base em história clínica detalhada e nos sinais obtidos pelo exame físico. Essa característica da Semiologia se está perdendo, já que é mais fácil lançar mão de exames de imagem.

Mas para o curso formar um profissional é preciso que se garanta um exercício da atividade onde, com esses pressupostos, ele poderia atuar. É necessário expor o recém-formado a atuar junto à população, supervisionado pela sua escola, antes de induzi-lo a escolher uma área de especialidade, o que, ao fim, é o que faz a residência médica.

De pouco adianta preparar esse médico se o enviarmos diretamente para a residência, que só existe em hospitais que detêm toda a tecnologia e onde se internam os 20% que necessitam dela. Antes de o curso preparar especialistas precoces, deve fazê-los atuar como médicos capazes de atender a população, sem usar a moderna tecnologia.

Além da supervisão pela sua escola, esses médicos devem contar com especialistas na área em que atuam e com possibilidade de leitos para eventuais internações, constituindo uma rede de serviços assistenciais. Para que a proposta se torne eficaz é ainda necessário corrigir a desigualdade na oferta de vagas.

Enquanto no Tocantins existe uma vaga para cada 4.068 habitantes e em Minas Gerais, uma para 6.665, em São Paulo há uma vaga para 13.193 e no Pará, uma para 19.456. Nas regionais de São Paulo a mesma desigualdade se verifica. Enquanto a regional de São José do Rio Preto tem uma vaga para 3.391 habitantes, a de Ribeirão Preto dispõe de uma para 4.712, a regional da Grande São Paulo conta com uma para 20.700 e a regional de São José dos Campos, uma para 28.957.

O médico recém-formado deve estar pronto, ao sair da escola, para trabalhar junto à população no PSF, por dois anos, como pré-requisito para buscar a residência médica. Assinale-se que quando eu cursei a Faculdade de Medicina, de 1948 a 1953, o curso era de seis anos. Hoje continua de seis anos, mas assistimos a uma avassaladora acumulação de conhecimento e tecnologia.

E o modelo deve abranger todos os recém-formados. Dessa forma, se tomarmos como parâmetro o último ano, em que mais de 13 mil médicos foram formados em dois anos, cobriríamos toda a demanda para uma área que não é atrativa, mas precisa ser atendida.


* CARDIOLOGISTA, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, DIRETOR-GERAL DO HOSPITAL DO CORAÇÃO, FOI MINISTRO DA SAÚDE

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 03/12/2012.

O Capital do PT

José Roberto de Toledo



Em 2012, o PT tornou-se o maior partido do Brasil em votos recebidos, eleitorado a governar e dinheiro arrecadado. O partido completa 10 anos de governo federal - o maior tempo contínuo de um mesmo grupo político no poder em períodos de democracia plena. Conquistou a maior cidade do país. A presidente está no auge da popularidade e tem quase 80% de apoio no Congresso, em média. Os dois favoritos para 2014 são do PT.

Reserva moral do PSDB - nas palavras de José Serra -, Fernando Henrique Cardoso descreve sua melancolia com a política partidária e defende a necessidade de "bradar e mostrar indignação e revolta, ainda que pouco se consiga de prático". Quando a oposição está melancólica, a situação deveria estar exultante. Só que não.

O PT não sai das manchetes, mas por causa do outro lado da força. Condenada pelos ministros que pôs no Supremo Tribunal Federal, a cúpula que levou o partido ao sucesso vê-se na incômoda perspectiva de exercer o poder desde a cadeia. É um preço caro a pagar.

Provavelmente caro demais.

As contradições entre o primeiro e o terceiro parágrafos alimentam a especulação: estará o PT no cume à beira do precipício? Ou desfruta a segurança de um espaçoso planalto?

No que depender das previsões das consultorias econômicas e dos "pundits" brasilienses, a derrocada é logo ali na frente. O problema é que se tem mais chance de êxito apostando num cara ou coroa do que acreditando nas projeções de especialistas. Melhor olhar para trás e tentar entender como chegamos aqui.

A estabilização econômica propiciou a emergência de um mercado interno grande e ativo. Aumentos reais do salário mínimo diminuíram a desigualdade de renda e deram lastro para a popularização do crédito. A redução das taxas de juros rompeu o dique financeiro e deixou o dinheiro irrigar a economia. Nada disso é monopólio petista, mas foi o PT que, por oportunidade ou competência, melhor faturou eleitoralmente o processo.

Partidarizar ideias que são patrimônio nacional as enfraquece. Mercado de consumo de massa, menos desequilíbrio entre capital e trabalho, e diminuição da desigualdade de renda são conceitos sempre vulneráveis à reação de quem só se beneficia do mercado de luxo exclusivista, do "rentismo" e do "apartheid" social.

Há cada vez mais desinibidas declarações de que o aumento do salário mínimo é o problema e não a solução, de que há crédito demais para os pobres, de que bom mesmo era quando se podia ir a Paris ou Nova York sem correr o risco de ouvir português na rua.

É coincidência que essa desinibição suceda as condenações pelo STF dos malfeitos petistas? Ou que esteja entremeada a notícias de Pajeros, propinas e patifarias de parasitas do poder que tiveram sua janela de oportunidade durante o mandato do PT?

O risco embutido nos desmandos é que após a condenação das pessoas venha a condenação das ideias que mantiveram seus correligionários no poder. Mesmo que essas ideias não lhes pertençam, nem que elas, por si, tenham qualquer coisa a ver com a corrupção de quem as defendeu eleitoralmente.

Para o grosso da população, mais importante do que quem comanda do barco é que o caminho percorrido desde 1994 não seja interrompido ou, pior, feito em marcha à ré.

Dinheiro e poder. O PT lucrou com o poder. O partido movimentou R$ 1 bilhão na campanha de 2012. Foi a legenda que mais cresceu em arrecadação desde 2008: R$ 362 milhões a mais. Sua fatia cresceu no bolo financeiro dos partidos e a isso corresponderam mais prefeituras e vereadores. PSDB e PMDB arrecadaram proporcionalmente menos e viram sua influência municipal murchar. Dinheiro é voto.

Nem tanto ao precipício, nem tanto ao planalto. O PT tornou-se o maior partido em votos e eleitorado a governar, mas eles são apenas 20% do Brasil. Sua arrecadação é recorde, mas não passou de 17% do total. A presidente tem 80% de apoio no Congresso, mas perde votações com frequência, porque sua base parlamentar é movediça e infiel. Não há poder absoluto nem eterno.

Popularidade e favoritismo a dois anos da eleição valem tanto quanto ser o campeão do primeiro turno em campeonato por pontos corridos: nada - o Atlético Mineiro que o diga.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 03/12/2012.

As mães do crack

Dráuzio Varella



Difícil avistar um grupo de usuários de crack em que não haja uma menina grávida. Desviamos o olhar para não correr o risco de encontrar o delas, embaçado pela escravidão da dependência.

As razões que as levam a conceber um filho na miséria em que se encontram são óbvias: crack é droga psicoativa de uso compulsivo que destrói o caráter e subjuga o arbítrio. É um experimento macabro da natureza que reduz seres humanos à situação de animais de laboratório, condicionados a buscar a qualquer preço a recompensa que a cocaína lhes traz.

Quando o adolescente rouba a aliança de casamento da mãe viúva que pega três conduções para chegar ao trabalho, não é por falta de amor, mas pela necessidade. É a premência incoercível para sentir o baque da cocaína no cérebro, prazer intenso e fugaz como o orgasmo, que o leva a arruinar o futuro pessoal e a infernizar a vida dos familiares.

Como bem caracterizou um usuário: - Doutor, pense no desespero de correr para o banheiro no pior desarranjo intestinal. A compulsão do crack é cem vezes pior.

No caso das meninas dependentes, contingente que aumenta de forma assustadora, as consequências são mais trágicas. Muitas vezes iniciadas antes de chegar à adolescência, são elas as principais vítimas da crueldade das ruas para as quais foram arrastadas.

Às desprovidas de talento e coragem para furtar, assaltar ou pedir esmola, sobra o recurso derradeiro: vender o corpo. A preço vil, porque transitam num ambiente social formado por uma legião de desvalidos que perambula pelas cracolândias sem destino nem banho, para quem sexo não é prazer que chegue aos pés do crack.

No meio desse refugo social, quando conseguem 20 reais por um programa é motivo de festa; caso contrário, aceitam dez, o bastante para uma pedra. Em dias de menos sorte cobram cinco por uma sessão de sexo oral, provação especialmente dolorosa quando os lábios estão queimados pelo cachimbo incandescente. Esse é o cenário de horror em que engravidam.

Sem que tenham consciência de seu estado, as primeiras semanas do desenvolvimento embrionário acontecem sob o impacto da cocaína. Quando descobrem a gravidez, a realidade dificilmente se altera.

Na penitenciária feminina, atendi uma moça, que aos 13 anos deu à luz numa calçada da rua Dino Bueno, anestesiada pela droga, sem entender que aquelas cólicas eram dores de parto.

Em São Paulo, a maioria das parturientes do crack são encaminhadas para o Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, na zona leste, que procurou se adaptar para atender esse contingente que cresce a cada ano. Dez anos atrás, havia um ou dois partos de usuárias por ano, agora há pelo menos um por semana.

Como tratar dos bebês quando entram em crise de abstinência? Que destino dar a eles quando a mãe mora numa cracolândia?

Por lei, a maternidade é obrigada a entrar em contato com o Conselho Tutelar, que pode retirar o poder familiar da mãe, caso a considere incapaz de cuidar do filho. O recém-nascido vai para uma creche, enquanto a Justiça procura localizar alguém da família que se interesse em recebê-lo. Quando a tentativa falha, a criança é enviada para adoção.

Separar a mãe do filho é experiência traumática que costuma devolvê-la mais depressa para as ruas. Até a gravidez seguinte, durante a qual continuará a usar a droga. Elas assim o fazem não porque sejam mães desnaturadas, mas porque o crack é mais poderoso do que todas as vontades, mais forte até do que o instinto materno.

Exigir que sob o domínio do crack lhes sobre discernimento para a disciplina dos métodos contraceptivos, é arrogância dos ignorantes que desconhecem a ação farmacológica da cocaína; é tripudiar sobre a desgraça alheia.

Existem anticoncepcionais injetáveis administrados a cada três meses, ideais para esse tipo de situação. Como é insensato esperar que a usuária procure os serviços de saúde, não seria muito mais lógico levá-los até ela?

Antes que os defensores de ideologias medievais rotulem como eugênica essa solução, vamos deixar claro que não haveria necessidade de qualquer constrangimento, as dependentes aceitariam de bom grado a oferta do anticoncepcional.

Elas não concebem filhos com o intuito de viver os mistérios da maternidade.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 01/12/2012.

A estratégia social

André Singer



Entre a lei dos royalties e a MP das elétricas, o mandato de Dilma Rousseff vai chegando ao meio sem produzir novo marco na redução da desigualdade. O governo deveria aproveitar a janela não eleitoral que se abrirá no primeiro semestre de 2013 e enviar ao Congresso a Consolidação das Leis Sociais (CLS), que ficou na gaveta de Lula, deixando, assim, um legado definitivo.

A ampliação dos atendidos pelo Brasil Carinhoso, anunciada anteontem no Planalto, é, sem dúvida, positiva. Na prática, a presidente vem subindo o valor do Bolsa Família (BF). Pode parecer pouco para quem transita nas faixas A e B (a grande maioria dos leitores deste jornal), contudo, para os sete milhões de brasileiros que passarão a receber a partir de dezembro acréscimo mensal de R$ 15,60, constitui adição significativa.

Representará, por exemplo, aumento de 45% na transferência para um grupo familiar constituído por pai, mãe e três filhos. No caso, os R$ 78 suplementares permitirão, sobretudo onde o custo de vida é menor, como no interior do Norte e do Nordeste, incrementar o consumo de proteínas indispensáveis ao desenvolvimento das crianças. Em maio passado, outros nove milhões de beneficiários já haviam sido contemplados pela melhoria.

Daí a pensar que a mera elevação do BF possa "erradicar a pobreza absoluta", compromisso assumido na campanha de 2010, vai distância considerável.

Para diminuir a diferença entre uma coisa e outra, o Executivo rebaixou as metas, o que produz efeito estatístico enganoso. Em maio de 2011, adotou o objetivo de combater a "pobreza extrema", que se define por ingresso monetário cujo teto é a metade daquele posto pela "pobreza absoluta". Diminuiu-se, portanto, de maneira expressiva o número de indivíduos abrangidos pela categoria.

Mas não foi só. Equiparou-se a "pobreza extrema" à renda familiar per capita de até R$ 70, o que corresponde, hoje, a aproximadamente um oitavo de salário mínimo quando, usualmente, o critério adotado é de um quarto de salário mínimo, ou seja, o dobro. Em consequência, com o aporte de alguns reais ao mês, pode-se dizer que o indivíduo saltou de condição, o que é falso.

Dilma não conseguirá "erradicar a pobreza", mas tem chance de transformar em direito o progresso gradual alcançado. A aprovação da CLS pelo Legislativo, imaginada como maneira de converter em política de Estado não só a BF como a valorização do salário mínimo, o acesso ao ensino superior e outros programas desenhados pelo modelo incremental do lulismo, representaria enorme ganho de cidadania. Ainda há tempo para realizá-lo.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 01/12/2012.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Muita terra para pouco fazendeiro

Márcio Santilli e Raul do Valle



Ganhou espaço nesta Folha a divulgação de pesquisa encomendada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) com a pretensão de traçar um perfil da população indígena do país.

Uma de suas conclusões deixa clara a tese que pretende comprovar: "A situação territorial também causa preocupação, mas não é o maior problema, como afirmado por ONGs, movimentos sociais e certas áreas de governo".

A pesquisa foi feita entre junho e julho, mas só foi divulgada agora, quando voltam à mídia os conflitos territoriais entre fazendeiros e índios guarani-caiová (MS) e xavante (MT). Os bens de consumo usados pelos índios caracterizariam "urbanização". A enquete aponta que a principal preocupação dos índios seria seu precário atendimento de saúde.

Sempre houve interesse dos índios por bens de consumo que não produzem, desde ferramentas, alimentos, remédios até televisão e celular, o que não implica serem eles menos índios ou necessitarem de menos terra. Os demais brasileiros, a começar pelos patrocinadores da pesquisa, têm interesse por bens importados e nem por isso deixam de ser brasileiros.

A própria enquete mostra que 94% dos indígenas entrevistados praticam agricultura, 85% caçam e 86% pescam frequentemente, atividades que dependem de áreas extensas e preservadas. Mostra ainda que 68% dos índios da região Sul, que têm apenas 0,18% das terras demarcadas, recebem cestas básicas, apesar de a maioria (52%) ter trabalho remunerado. No Norte, que abriga 81% das terras, só 7% dos índios depende de cestas básicas, embora poucos tenham emprego.

A tese de que a terra não é importante para os índios não é confirmada pela própria pesquisa, mas a CNA pretende deformar seus resultados para defender a aprovação de projetos no Congresso que buscam alterar a Constituição para inviabilizar a demarcação de novas terras, sobretudo quando ocupadas por grandes produtores.

A estratégia de propagar teses infundadas para justificar uma posição política já foi usada pela CNA para fragilizar o Código Florestal. Agora, pretende-se induzir a ideia de que os próprios índios não querem mais terra, embora 57% dos entrevistados na enquete tenham respondido que seus territórios são menores do que o necessário (o número chega a 92% no Sul).

A CNA sugere que "há muita terra para pouco índio", já que 520 mil indígenas aldeados vivem em 113 milhões de hectares de terras indígenas. Ocorre que 98,5% dessa área está na Amazônia, onde vivem 60% dos indígenas do país. Os outros 40% dispõem de apenas 1,5% de todas as terras, em geral em áreas exíguas. O Mato Grosso do Sul é um caso emblemático.

Muita terra têm os grandes produtores rurais, representados pela CNA. Segundo o IBGE, os 67 mil maiores proprietários possuem 195 milhões de hectares, 72% a mais que os índios. Além disso, as terras indígenas preservam 98% da sua vegetação nativa e prestam serviços ambientais a toda sociedade.

Quem mais precisa de terra são os 45 mil guarani-caiová, alvo principal da CNA, confinados em 95 mil hectares oficialmente reconhecidos, mas ainda ocupados em grande medida por fazendeiros. Eles dispõem de área muito menor que os 700 mil hectares destinados a 28 mil famílias assentadas da reforma agrária no Estado.

Melhor faria a CNA se, em vez de insistir em impedir a demarcação de terras, trabalhasse para que os governos estaduais que, no passado, emitiram títulos de propriedade inválidos, porque incidentes sobre área indígena, sejam agora responsabilizados a indenizar aqueles que, de boa fé, hoje os detêm.


MÁRCIO SANTILLI, 57, é coordenador de política e direito socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA). Foi deputado federal e presidente da Funai

RAUL DO VALLE, 35, advogado e coordenador-adjunto de Política e Direito Socioambiental do ISA

Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/11/2012.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Os dois Barbosas

Marcelo Coelho





Ainda prossegue o julgamento do mensalão, e há muitos ajustes de penas, revisões, recursos e intercorrências institucionais pela frente.

De todo modo, um clima de trabalho encerrado, coincidindo talvez com as festas de fim de ano, tomou conta do STF na última semana.

O espírito comemorativo pairou sobre a despedida do presidente Ayres Britto; alargou-se, em dia de casa cheia, com a posse de Joaquim Barbosa no cargo; irradiou-se, finalmente, numa explosão estroboscópica, com as cenas do ministro Luiz Fux tocando guitarra elétrica na festa em homenagem ao colega.

Tenho comentado bastante o julgamento do mensalão no caderno “Poder”, de modo que não entro aqui no conteúdo das decisões do tribunal. Mas o STF também é cultura, e há algo a dizer, sem dúvida, sobre algumas imagens que vão ficando do julgamento em curso.

Numa foto que faz sucesso, Joaquim Barbosa aparece de costas, com a capa drapejante, no estilo homem-morcego. É a figura do vingador, um tanto curvado e cabisbaixo pelo peso da própria obstinação, mas ao mesmo tempo rápido e decidido no passo. As dobras da capa sinalizam velocidade, altitude, independência e solidão.

O reverso da medalha são as máscaras que se fabricam para o Carnaval. Onde tínhamos a toga de Barbosa, temos agora o rosto de Joaquim. As rugas na testa e a expressão severa não tiram, claro, o sentido debochado da ideia, ou melhor, a falta de qualquer sentido na ideia.

Em outros anos, apareceram máscaras de Saddam Hussein, de Obama, de Lula e de Bin Laden. Tanto faz o personagem; o que importa é deslocá-lo do contexto, sublinhando que o Carnaval pode engolir tudo na mesma falta de lógica.

Seja como for, o Joaquim Barbosa trágico, espécie de Batman perseguido, convive com o Joaquim Barbosa cômico, camarada, ao alcance de todos. Não há maior sinal dessa ambiguidade do que o modo com que várias pessoas se referem a ele.

Imagino que não revelo segredo nenhum ao publicar isto: chamam Joaquim Barbosa de “Juiz Negão”.

O curioso é que a denominação, de óbvio histórico racista, vem em contexto positivo. Do gênero: “Tomara que o Negão ponha todo mundo na cadeia mesmo”. Ou: “Se fosse por mim, dava plenos poderes para o Juiz Negão resolver logo essa parada”. Numa sociedade como a nossa, o racismo por vezes está onde menos aparece, e vice-versa.

Os que chamam Barbosa de “Negão” parecem inconscientemente atribuir-lhe uma força vingadora e revolucionária, que admiram, mas da qual também gostariam de se afastar.

É o simétrico, digamos assim, da frase “vocês são brancos, que se entendam”. Algo que sempre pareceu aplicar-se, por sinal, ao mundo altamente codificado e técnico de uma corte superior de Justiça.

Nesse aspecto, os dois Barbosas se combinam. O Barbosa vingador, sozinho num mundo de “brancos”, se identifica com o Barbosa carnavalesco, da máscara que está “na boca do povo”. O branco de classe média, com raiva de Lula e José Dirceu, torna-se “negro” como Barbosa em sua luta contra “os poderosos” que fazem e desfazem em Brasília.

O termo “Negão”, certamente “incorreto”, torna-se estranhamente “correto” nesse contexto. E o contrário acontece com alguns termos “politicamente corretos”.

Foi o caso do discurso feito pelo presidente da OAB, Ophir Cavalcante, homenageando Barbosa na semana passada.

A situação, naturalmente, sugeria celebrar o fato de pela primeira vez se ter um negro na presidência do tribunal.

Ao mesmo tempo, como fez o próprio Barbosa, cabia passar por cima desse fato: ver os méritos da pessoa, não a cor de sua pele.

Cavalcante saiu-se com uma referência ao “multiculturalismo da brava gente brasileira”, que “se faz presente com o ministro Joaquim Barbosa”.

Como assim, “multiculturalismo”? Tendo estudado em Paris e dado aulas nos Estados Unidos, por que seria Barbosa mais “multicultural”, ou menos, do que Gilmar Mendes ou Celso de Mello?

De modo parecido, a severidade de Barbosa é frequentemente relacionada a alguma dose de revolta ou rancor que traga do próprio passado. Talvez; mas por que não culpar a sua dor nas costas, por exemplo, pelo mau humor que o acompanha?

Num país em que se esconde o racismo, o racismo surge mesmo onde ele não está. O fato é que ninguém fecha os olhos para o fato de ele ser negro; e fingir que se ignora o fato tende a ser muito revelador também.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 28/11/2012.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O papel dos empresários no desenvolvimento

Eliana Cardoso


Quando Augusto e Haroldo de Campos publicaram o Panaroma do Finnegans Wake (isso mesmo, Pan-aroma: um panorama dos aromas da obra quase impenetrável de James Joyce), fizeram-no antes mesmo que Ulisses (livro menos cabeludo e mais conhecido do mesmo ficcionista) tivesse encontrado um tradutor no Brasil. Por aqui somos craques: começamos pelo mais difícil.

No Panaroma encontra-se a tradução de um trecho da leitura de Finnegans Wake feita por Joseph Campbell. Campbell compara a divisão do livro de Joyce em quatro partes com a separação da história universal em quatro fases (segundo Giambattista Vico): a teocrática, a aristocrática, a democrática e a caótica.

No caso do Brasil - comento, durante um almoço com colegas da FGV -, pulamos da fase teocrática para a caótica, o que explica tantas falhas no entendimento do nosso desenvolvimento. E, é claro, a conversa logo se desvia para a formação econômica do País.

O professor André Portela de Souza me garante que não sobra um único especialista em história econômica que ainda acredite no caso brasileiro do velho modelo do latifúndio escravagista, fundado unicamente na exportação de bens primários. O professor Leonardo Weller ri, pois, ensinando história econômica, pode lamentar que os textos usados nas universidades ainda se articulem ao redor dos equívocos de Caio Prado Jr. e sua Formação do Brasil Contemporâneo, onde se lê: "Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamantes; depois, algodão e em seguida café, para o mercado europeu. Nada mais que isso".

Entretanto, a tese de Caio Prado e Gilberto Freyre encontra-se desmentida pela evidência acumulada desde 1980 em pesquisas acadêmicas. Dizem Francisco Vidal Luna e Herbert Klein (Economia e sociedade escravista, no livro Escravismo em São Paulo e Minas Gerais): "Nos últimos trinta anos, emergiu no Brasil uma nova compreensão da sociedade escravista organizada nos períodos colonial e imperial, especialmente no aspecto do modo como a mão de obra cativa foi usada. Esses novos estudos sobre a posse e o trabalho escravo questionaram a visão tradicional da escravidão brasileira exposta por Gilberto Freyre, que em sua obra sobre os engenhos do Nordeste propôs o modelo da grande lavoura escravista. Essa visão dominante começou a ser contestada na década de 1980 com estudos mostrando que os pequenos proprietários de escravos predominaram na economia extrativa de Minas Gerais nos períodos colonial e imperial".

Pouco a pouco, tornou-se injustificável a hipótese da predominância do modelo da grande lavoura. A maioria dos proprietários de escravos em Minas Gerais possuía menos de cinco cativos e a base da economia estava na roça de subsistência ou na propriedade de criação pecuária. Amílcar Martins Filho e Roberto Martins (Slavery in a Non-Export Economy, na Hispanic American Historical Review, 1983) explicam a imposição do uso da mão de obra escrava pela imensidão da fronteira agrícola. Não havia suprimento voluntário de trabalho assalariado, porque era sempre possível encontrar terra para sobreviver como produtor independente.

Na mineração de ouro de aluvião em Minas Gerais no século 18, pequenos proprietários prevaleceram. Estudos sobre a agricultura em várias regiões do País também mostraram a predominância de pequenos proprietários de cativos ao mesmo tempo que os grandes proprietários de terras exploravam parcelas reduzidas de seus domínios, por causa do número relativamente pequeno de escravos que possuíam e da disponibilidade limitada de tecnologia.

Francisco Vidal Luna e Herbert Klein também questionam a tese de uma dicotomia entre, de um lado, uma minoria de senhores de engenhos (exportadores e donos de escravos) e, de outro, a maioria dos brancos, pardos e negros livres que não possuíam escravos. Pelo contrário, a mão de obra escrava esteve presente em todas as áreas da economia, quer orientada para o mercado interno, quer para a exportação.

Também desacreditada fica a hipótese de que uma produção para a exportação e outra para o mercado interno se desenvolveram sem elos entre si. Escreve Iraci Del Nero Costa em Arraia miúda - um estudo sobre os não proprietários de escravos no Brasil: "O crescimento econômico, mesmo quando orientado pela expansão do comércio exterior, vinha acompanhado de oportunidades das quais usufruíam também os não proprietários, de sorte que os mesmo não eram excluídos de áreas economicamente dinâmicas, nem perdiam sua posição numericamente dominante".

Os produtores independentes ocupavam o espaço colonial, ao contrário da afirmação de Caio Prado Jr. de que a população livre da economia colonial era formada por "desclassificados, indivíduos de ocupação incerta ou aleatória". Em 1819, deixando de lado as estimativas do número de índios livres, a população brasileira - de 3,59 milhões de pessoas - dividia-se entre 70% de pessoas livres e 30% de escravos. Os brancos (menos da metade da população livre), pardos e negros emancipados eram na sua maioria produtores independentes.

História do Brasil com Empreendedores, de Jorge Caldeira, conta detalhes da economia colonial e suas instituições. Um bom livro, se você ignorar o vocabulário recheado de expressões como "acumulação primitiva" e "trabalho morto". E, como o título do livro indica, o desenvolvimento econômico do Brasil colonial e imperial se deu graças aos numerosos empreendedores independentes.

Hoje não é diferente. O desenvolvimento da economia depende dos empresários inovadores, pois são eles que farejam as oportunidades de lucro e guiam o investimento para as atividades em que inovações e práticas gerenciais avançadas produzem progresso econômico.


* PH.D. PELO MIT, É PROFESSORA TITULAR DA FGV-SÃO PAULO
SITE: WWW.ELIANACARDOSO.COM

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 28/11/2012.

Muita terra, pouco índio

Marcelo Leite



Os 20 mil ianomâmis do Brasil vivem numa terra indígena com 96.650 km², área maior que a de Portugal.

Na reserva indígena Dourados (MS), cerca de 12 mil guaranis (caiovás e nhandevas) dispõem de 35 km². São mais que 340 pessoas por km².

Quem acha que os índios do Brasil têm terra demais deveria ser confrontado com dois pedidos: defina "índios" e defina "terra demais".

De aicanãs a zuruahãs, há 238 etnias no diretório "Povos Indígenas do Brasil", do Instituto Socioambiental (ISA). Vivem em 680 terras indígenas e falam 180 línguas.

Fazendeiros --em especial pecuaristas, vanguarda do atraso no campo-- gostam de citar que as terras indígenas ocupam 13,3% do território brasileiro, 1.128.702 km² de 8.514.877 km². Poucos sabem, porém, que 98,5% dessas áreas ficam na longínqua e pouco valorizada Amazônia.

Todas as outras terras indígenas do país abarcam 1,5% do território nacional. Aí se incluem as minúsculas "reservas" sul-mato-grossenses (era esse o nome na década de 1910, quando o Serviço de Proteção ao Índio, precursor da Funai, passou a instituí-las para confinar "bugres", um termo eivado de racismo e ainda utilizado na região).

Sem as reservas, não haveria hoje fazendas em Mato Grosso do Sul. Com elas, são os cerca de 50 mil guaranis brasileiros que se acabam. Alcoolismo, suicídios e violência completam a obra iniciada pela escravização nas mãos de portugueses e espanhóis. Quatro séculos atrás.

Isso quer dizer que o Estado todo deve ser devolvido aos guaranis? Nunca vai acontecer. Não dá para rebobinar a história. Os proprietários que possuem títulos fundiários de boa-fé podem e devem ser indenizados, não só pelas benfeitorias, mas pela "terra nua".

Para isso foi criado, neste ano, o Fundo Estadual de Terras Indígenas. Os fazendeiros mais estouvados preferem aferrar-se a intermináveis recursos judiciais, quando não ao emprego de violência.

Os guaranis têm do seu lado a Constituição, que reconhece os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam (mas nunca se cumpriu o prazo de cinco anos --vencido há 19-- para a União concluir a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil).

O barulho em torno do despejo dos 170 guaranis confinados em um hectare (0,01 km²) da fazenda Cambará, em Iguatemi (MS), decorre de o Estado brasileiro enfim ter começado a se mexer na região em litígio. Um acordo firmado em 2007 entre Ministério Público Federal e Funai determina que se faça a demarcação de 30 territórios tradicionais, emperrada pelas ações na Justiça.

As áreas já demarcadas somam 1.240 km², segundo o ISA. Menos de 0,4% do Estado de Mato Grosso do Sul.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 03/11/2012.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Um futuro para o PSDB?

José Augusto Guilhon Albuquerque e Elizabeth Balbachevsky



Na noite das eleições municipais, a mensagem de uma jovem universitária chegou com lágrimas na voz: "A oposição vendeu São Paulo para o governo". Tão desafiadora que merece uma resposta igualmente franca.

A derrota do PSDB na cidade onde nasceu, e no Estado que domina há 20 anos, se deve exclusivamente ao próprio partido. Não pode ser atribuída a intuições geniais do adversário, pois o candidato tucano - um dos mais expressivos nomes do partido - obteve menos de 30% do eleitorado contra um mar de 33% de votos não válidos.

É triste admitir, mas José Serra não precisou de adversários para ser derrotado.

O PSDB foi vítima de seu próprio sucesso. Nascido como uma federação de dissidências regionais do PMDB e do antigo PFL, logrou conquistar o eleitorado de centro graças ao gênio político de Franco Montoro, que lhe deu voz e horizonte político, reunindo um leque admirável de lideranças regionais com experiência e capacidade governativa.

Com a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1994 e, sobretudo, com sua reeleição, em 1998, o PSDB cresceu demais e desordenadamente, mas não o bastante para garantir uma maioria governativa. As vacas gordas transmitiram doenças crônicas: o esgarçamento das bandeiras, o caciquismo e uma crise de identidade que o impede de entender o seu próprio eleitorado e definir rumos coerentes.

Fernando Henrique, o líder de maior sucesso eleitoral e político na história tucana, jamais foi unanimidade no próprio partido. Seções inteiras do PSDB repudiaram o Plano Real, que não teria passado sem o apoio do PFL. Seções inteiras apoiaram Lula nas eleições de 1994. Em 1998, além de Lula, também apoiaram outro candidato. Lideranças expressivas renegam até hoje a maior fonte da popularidade e da base eleitoral do partido - o reconhecimento da estabilidade econômica e da robustez financeira conquistadas sob sua liderança. Alinhando-se à visão míope do PT, as candidaturas tucanas à Presidência no pós-FHC esmeraram-se em tratar seu legado como a vergonha da família - abertura da economia, privatizações, responsabilidade fiscal, reforma bancária, moeda forte -, permitindo que Lula e o PT fossem os únicos beneficiários do sucesso dessas políticas.

A perda da identidade abre as portas para o caciquismo: setores inteiros do PSDB preferem perder para o adversário a ter de dividir a vitória com o rival no próprio partido. Os caciques regionais bloqueiam a ascensão de futuros rivais nas capitais, tática que explica como lideranças fortes em 30 anos de domínio político - se contarmos desde Mário Covas como prefeito de São Paulo - só conseguiram emplacar um candidato em condições realmente competitivas em 2004, com Serra.

Sua quintessência é a coalizão de vetos, em vigor desde a sucessão de FHC em 2002. Diferentes lideranças, por diferentes razões, embora minoritárias, reúnem recursos de resistência suficientes para frustrar a eleição do eventualmente consagrado pela maioria do partido.

Foi assim em 2002 com Serra, que chegou a ser derrotado em Estados onde a coalizão tucana obteve vitória incontestável. Foi assim em 2006 com Geraldo Alckmin, que chegou ao segundo turno para ser hostilizado publicamente por seu próprio partido. Foi assim em 2010 com Serra, que, em que pesem seus erros de percurso, foi indiscutivelmente hostilizado por seus próprios pares antes, durante e depois da campanha.

O esgarçamento das bandeiras resulta diretamente da extensão das coalizões tucanas, para além do útil e do desejável. Para dar conta desse esgarçamento basta deixar uma pergunta no ar: quem sabe quais as posições da oposição tucana sobre a matriz energética brasileira desde o ministério Dilma Rousseff; sobre o atual modelo de crescimento; sobre a missão do Banco Central, sua tolerância com a inflação e o gasto público; sobre o desmantelamento da Petrobrás e a paralisia da política de exploração do pré-sal; sobre a política federal para enfrentar as mudanças climáticas; sobre o nacionalismo comercial e cambial; sobre o "controle social" da liberdade de imprensa?

Vivemos uma década de despolitização graças à capacidade do ex-presidente Lula para manipular corações e mentes. Os partidos, as ideias, os anseios de parte significativa do eleitorado foram ofuscados pelo culto à personalidade e pelo maniqueísmo do "nós contra eles".

Em artigo publicado em Opinião Pública (vol. 13, n.º 2, 2007), Elizabeth Balbachevsky e Denilde Holzhacker mostraram que o eleitor de Lula em 2006 diferiu significativamente do seu eleitor em 2002. Naquela eleição o voto em Lula não foi determinado, como nas eleições anteriores, pela identidade do eleitor com o PT nem por sua inclinação ideológica. Variáveis demográficas, como o nível de renda e de escolaridade, foram mais importantes na propensão para votar em Lula. Uma controvérsia foi criada sobre a emergência de uma nova realidade social e política, o "lulismo", capaz de alterar definitivamente a matriz do sistema partidário nacional.

As últimas eleições municipais, entretanto, evidenciam a perda de fôlego do personalismo. Lula considerou questão de honra bater seus adversários em dúzia e meia de cidades. Venceu em pouco mais de meia dúzia. É visível, ademais, um realinhamento do voto nacional, com as administrações municipais concentradas novamente em três grandes partidos, um ao centro (PSDB), outro à direita (PMDB) e outro à esquerda (PT). Com isso os tucanos precisam tomar algum rumo, pois há dois partidos emergentes prontos para ocupar o seu lugar ao centro (PSB) e à direita (PSD).


* PROFESSOR TITULAR DA USP, É PESQUISADOR SÊNIOR DO CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA UNICAMP; PROFESSORA ASSOCIADA DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP, É VICE-COORDENADORA DO NUPPS/USP E MEMBRO DO CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS DA UNICAMP

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 26/11/2012.