quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Uma carta, talvez uma decisão

Roberto DaMatta



Recebi ontem uma carta assinada pelo meu amigo, o famoso embora aposentado brasilianista, Richard Moneygrand.

Diz a missiva:

Caro DaMatta,

Aproveito o julgamento do mensalão para manifestar o que penso como estudioso e apaixonado pelo Brasil. Sendo um marginal relativamente ao universo brasileiro, enxergo com mais clareza aquilo que vocês apenas veem. E ver, como dizia o nosso velho professor Talcott Parsons, é ter uma angulação especial.

Daqui do velho Norte, onde tudo se faz ao contrário - estou, imagine, com o meu ar-condicionado ligado ao máximo e não sei se o meu fundo de pensão (estourado na infame bolha financeira descontrolada por Bush e seus asseclas) vai segurar a conta - quero, data vênia, e com o devido respeito, dar minha pobre opinião.

Primeiro, uma consideração sobre a organização do vosso STF. Ele aposenta seus ministros após 70 anos, o que dissocia, de modo negativo, a pessoa do papel numa área onde isso não deveria ocorrer. Numa democracia igualitária cuja tendência é a anarquia organizada, como dizia Clifford Geertz, os juízes são como os antigos sacerdotes: o seu papel de julgadores do mundo não podem ser limitados pelo tempo. Eles têm de ser juízes para a vida e por toda a vida. O papel não pode ser esquecido e deve ser um fiel e simultaneamente uma faca permanente na cabeça de quem o indicou e do comité legislativo que aprovou o seu nome. A vitaliciedade tira do cargo essa bobagem brasileira de uma aposentadoria compulsória aos 70 anos o que, num mundo de idosos capazes faz com que o presidente pense muitas vezes antes de indicar um indivíduo para esse cargo. Aquilo que é vitalício e só pode ser abandonado pela renúncia simboliza justamente a carga do cargo. Tal dimensão - a vitaliciedade - é mais coercitiva do que a filiação a um partido ou a crença numa religião. É exatamente isso que, no caso americano, faz com que ser um membro da Suprema Corte seja algo tão sério ou sagrado, tal como ocorre com o papado ou a realeza.

Vejam como vocês são curiosos. No campo político, os personagens e partidos menos democráticos lutam e tudo fazem para obter a vitaliciedade no cargo - não é isso que está em jogo neste caso? Daí as vossas ditaduras. Mas quando essa vida com e para o cargo é positiva, vocês o limitam. O resultado são juízes cujas decisões podem ser parciais e um tribunal sempre desfalcado, a menos que vocês decidam nomear juvenis para um cargo tão pesado quanto uma vida.

Um outro ponto para o qual desejo chamar atenção, pedindo desculpas se promovo em você alguma antipatia porque, afinal de contas, eu não sou brasileiro e, para vocês, até bater em filho e mulher é coisa que ninguém deve meter a colher - ou seja, só cabe a família; é dizer que, aqui, os julgamentos e os processos criminais começam enormes e acabam pequenos. O que se deseja de um juiz não é uma aula de Direito, mas uma decisão clara, reta e curta. Culpado ou inocente. Se inocente, rua e vida. Se culpado, as penas da lei e cadeia.

Ora, o que vemos neste vosso julgamento é uma novela. Na minha fértil imaginação, desenvolvi uma teoria e passei a entender por que vocês não sabem fazer cinema ou o fazem tão mal ou tão raramente produzem um cinema de primeira qualidade. Desculpe meu intrusivo palpite, mas eu penso que uma justiça democrática é como um filme - depois de hora e meia, a narrativa invariavelmente termina. Mas a justiça nesse vosso país patrimonialista e democrático é como uma novela: o caso demora décadas para entrar em julgamento e, quando entra em cena, sofre um atraso de uma gestação para ser resolvido. Na vossa etiqueta jurídica que, como dizia meus mestres de Direito, reproduz as vossas retóricas sociais, é impossível não ter uma divisão do trabalho barroco com relatores e revisores e, assim com réplicas, tréplicas, e votos repetitivos, como se o mundo tivesse o mesmo tempo de um Fórum Romano da época do nobre imperador Augusto.

Finalmente, e como último ponto, quero dizer algo sobre a opinião pública, claramente desconsiderada como inoportuna por um dos vossos juízes supremos, o dr. Lewandowski. É óbvio que nada, a não ser a consciência e o saber, devem pautar os juízes. Mas ele não julga para marcianos ou para o paraíso. Ele julga para o mundo e, num universo democrático, a opinião pública representa o poder da totalidade. Uma espécie de termômetro de tudo o que passa pela sociedade. Embora essa opinião apareça na mídia, ela é isso mesmo: um meio complexo e difuso, sem dono e com todos os donos, pelo qual os limites e os abusos se exprimem. Como disse, ninguém, muito menos um juiz do Supremo deve ser pautado por ela, mas mesmo assim, ela vai segui-lo, pautá-lo e, se for o caso, dele cobrar o que ela achar que ele deve à sociedade. Caso o sistema tenha como algo democrático. O juiz deve ser soberano, mas a opinião pública também tem sua soberania porque, como ensina o Tocqueville que vocês não leram, numa democracia ela conta muito mais do que nas aristocracias porque ela existe antes da política e vai além dela. Nas democracias, mesmo os que não sabem se igualam aos que sabem; e, pela mesma ousadia, os não ricos se igualam aos ricos e é por causa disso que a igualdade aparece quando ela é desejada. Penso que esse é o caso do Brasil que vocês vivem neste momento.

Porque o que está em julgamento neste mensalão não é apenas um ponto de vista político no sentido trivial da palavra, mas o valor da crença da igualdade perante a lei. O que está em jogo é a questão de fazer política e de exercer o poder com responsabilidade e transparência. No fundo, disputa-se o resgate de fazer política partidária com dignidade.

Receba o meu abraço e boa sorte para o vosso Brasil,

Dick


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 29/08/2012.

É hora de pensar na oferta

Rolf Kuntz



Muito mais ambicioso no discurso do que na busca de resultados, o governo federal parece cada vez mais conformado com os números muito ruins do comércio exterior. Exportação é fonte de empregos e fator de segurança econômica e, além disso, seu efeito multiplicador sobre a renda pode ser muito importante. Os economistas do governo sabem disso, mas parecem dar pouca importância ao assunto, exceto quando rende mensagens otimistas. O recado festivo, agora, é sobre o ingresso de investimento direto em volume suficiente para cobrir o buraco nas contas externas. Esse buraco é por enquanto pouco maior que 2% do produto interno bruto (PIB), mas ninguém deve menosprezar seu potencial de crescimento, se o saldo da conta de mercadorias continuar encolhendo. Mas o superávit comercial, cerca de 35% menor que o do ano passado, é assunto secundário para formuladores da política econômica. Já foi um pouco mais importante, quando parecia mais fácil disfarçar a piora das contas externas, ressaltando alguns dados e deixando outros na sombra.

Na edição de abril do boletim Economia Brasileira em Perspectiva, o aumento do valor exportado foi o tema do primeiro gráfico apresentado na seção dedicada ao setor externo. A expansão das vendas foi vinculada à “continuada diversificação de mercados” e à elevação dos preços das commodities. Na edição de agosto, o título do gráfico narra outra história: as “exportações estabilizam (sic), dado o cenário mundial desfavorável”. A queda do saldo comercial de manufaturas é atribuída a fatores externos. Os exemplos citados são a redução da demanda internacional e a valorização da moeda brasileira. A explicação é chinfrim e a presidente Dilma Rousseff parece consciente disso. Durante muito tempo ela atribuiu os infortúnios comerciais do Brasil ao tsunami monetário causado pelos bancos centrais do mundo rico e à consequente depreciação do dólar. Mas o dólar valorizou-se, a balança comercial brasileira continuou em mau estado e ela resolveu mudar um pouco o repertório. Surpresa: a presidente parece haver notado problemas internos, como a deficiência de infraestrutura e o custo absurdamente alto da eletricidade.

Analistas um pouco mais atentos haviam percebido muito antes detalhes como esse: não há como competir quando a logística é tão ruim e a energia elétrica é tão cara. A lista das desvantagens é muito mais longa, mas, de toda forma, o anúncio de planos estruturais já é sinal de um avanço.

Mas o sinal é fraco e o avanço é, por enquanto, uma tímida promessa. A retórica do otimismo continua dominante no boletim de agosto, com 17 páginas dedicadas à expansão dos investimentos públicos e privados e ao plano de logística recém-lançado. Destaca-se o aumento do valor investido no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mas dois detalhes importantes são desprezados: a parcela correspondente a restos a pagar (76,8% até 31 de julho) e o peso dos financiamentos imobiliários (61,2% do valor das ações concluídas do PAC 2).

Apesar de agora reconhecer publicamente a importância das políticas de longo prazo, o governo continua recorrendo principalmente a ações de alcance limitado, como as medidas de estímulo ao consumo e a proteção comercial. Em julho, a arrecadação federal de impostos e contribuições foi 7,4% inferior, descontada a inflação, à de um ano antes. Foi a segunda queda consecutiva nesse tipo de comparação. O mau resultado foi atribuído basicamente à redução de lucro das empresas e às desonerações fiscais concedidas a algumas indústrias. Além disso, receitas extraordinárias em julho do ano passado elevaram a base de comparação. Os últimos resultados parecem finalmente indicar limites para a política de estímulos localizados, pelo menos se o governo mantiver as metas fiscais ainda em vigor. De toda forma, incentivos a setores selecionados podem produzir algum resultado a curto prazo, mas são insuficientes para aumentar o potencial de crescimento. Essa é a questão mais importante, quando se considera o desafio da expansão econômica nos próximos anos.

Em algum momento o governo terá de juntar os pedaços de informações e reconhecer a unidade do problema. Não há como cuidar separadamente das condições do crescimento econômico e dos fatores de competitividade internacional. Não se vai muito longe nas políticas de expansão da demanda interna sem cuidar do lado da oferta – e para isso é preciso pensar na produtividade geral da economia. A alternativa é recorrer ao aumento de importações e aceitar a deterioração do saldo comercial. Tem sido esse o caminho percorrido. Na experiência brasileira, o percurso terminou geralmente em desastre.



Publicado em O Estado de S.Paulo, em 29/08/2012.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Teatro político



 
 
João Felício Quirino
 
 
Diálogo 1: “Você acha que o Lula não sabia do mensalão?”. “O mensalão é uma farsa!”. “Fala sério, o Zé Dirceu ficava na sala ao lado!”. “Marcos Valério participou de reuniões na Casa Civil”. “Discutiam publicidade, contratos com o governo”. “Sarney, Renan, que laia!”. “Êpa, o Renan foi ministro da Justiça do FHC”. “E o negócio do filho do Lula, hein, como você explica?”. “Explicar o quê?”. “Lembra da Erenice, amiga da Dilma?”. “Traga-me as provas!”. “O Cachoeira que detonou esse negócio, filmou o cara dos Correios exigindo propina”. “Temos instituições, MP, STF e o escambau”. “Esse Lewandowsky e esse Tóffoli são uns vendidos”.
 
Diálogo 2: “Você acha que o FHC não sabia da compra de votos para a reeleição?”. “Nada foi provado, nada foi provado”. “Fala sério, você acredita mesmo que compraram só dois deputados?”. “Se é que compraram...”. “As privatizações, o Cacciola?”. “Repito, nada provado!”. “Claro, com essa mídia subserviente, com o Aristides Junqueira, o engavetador-geral da República, o que você queria?”. “O Cachoeira detonou o hipócrita do Demóstenes, o Perillo por tabela”. “Marcos Valério começou em Minas, com o Azeredo”. “Temos instituições, MP, STF e o escambau”. “Esse Gilmar Mendes e esse Barbosa são uns vendidos”.
 
Intimamente, o respeitável público acredita que tanto Lula como FHC sabiam dos “malfeitos” cometidos pelos respectivos aliados. Creem que mensalões e compras de votos, à direita e à esquerda, ocorreram de fato. Ainda assim, tenta-se-lhe convencer que o xis da questão é a ética, na verdade, um pretexto. Que papel!
 
Quem sabe, no próximo ato cairá a máscara?! Por que não se assume de uma vez que o problema não é ético, mas ideológico, programático? Que as falas não buscam a “depuração” das relações de poder, mas a escolha deste ou daquele modo de desenvolvimento, deste ou daquele modelo de país?
 
Por que os petistas não admitem que, sim, houve mensalão, mas preferimos um Estado que interfira mais no mercado, que promova políticas como o bolsa-família, as cotas, o Prouni? Por que não admitem que o discurso do monopólio da ética não faz mais sentido, em que pese o discurso do monopólio da corrupção não ser menos ridículo?
 
Por que não admitem os tucanos que preferem um modelo mais orientado ao mercado, ao estilo norte-americano, com o mínimo de participação estatal? Por que não admitem, ainda, que, assim como as políticas antiinflacionárias e o bolsa-família, o PT também copiou deles mensalão?
 
A política é um teatro, mas os atores não são somente “os caras de Brasília”. Nós, nos palcos da rua, do trabalho, da casa, do boteco, dos facebooks da vida, também fazemos nossa cena.
 
Atuemos, pois, como se a ética fosse nossa bandeira, quando, de fato, queremos que uns ou outros governem. Há quem espere a terceira via como quem espera Godot!
 
A todos, saudações: merda!

QUESTÃO: Mensalão, Lewandowsky e Joaquim Barbosa

Pombos e urubus
Marcelo Coelho

São repulsivas -não tenho outra palavra- algumas das reações que aparecem na internet contra o voto de Ricardo Lewandowski no julgamento do mensalão.
Absolvido João Paulo Cunha, os insultos começaram pelo Facebook. Circula, por exemplo, um quadro com o rosto de todos os ministros do STF. Abaixo da foto de Joaquim Barbosa, uma palavra escrita em verde: "patriota". Para Lewandowski, em vermelho, o estigma: "vendido".
Outra mensagem, tarjada de preto, traz a foto do ministro e um aviso: "Saiba de uma coisa -o povo brasileiro tem vergonha de você".
Escreve-se também que Lewandowski foi secretário de administrações petistas em São Bernardo do Campo. Logo, "levou a vida na boquinha". E que foi indicado juiz "pela aberração que é o quinto constitucional, uma vaga que não depende do concurso público". Trata-se do sistema que faz advogados e promotores ingressarem na magistratura, evitando que só juízes de carreira cheguem aos postos mais altos da hierarquia.
Todo ministro do Supremo chega lá por indicação presidencial, e Joaquim Barbosa foi tão indicado por Lula quanto Lewandowski.
Assim como não faz sentido dizer que o "patriota" Barbosa está a serviço da "direita golpista", é muito primitivo dizer que Lewandowski absolveu João Paulo por ter sido secretário de uma prefeitura petista em 1984. Informação, aliás, errada. Ele foi secretário de uma administração do PMDB em São Bernardo.
Duvido que a maioria dos indignados com o voto de Lewandowski tenha se dado ao trabalho de seguir a longa exposição que ele fez no tribunal. Outros ministros poderão contestá-la já na segunda-feira. Mas o nível de detalhamento e fatualidade da questão ultrapassa, certamente, a disposição dos que se indignam com preguiça.
Remeto ao outro voto de Lewandowski, o que condenou (repito, condenou) Henrique Pizzolato e Marcos Valério.
A um dado momento da exposição, tratava-se de saber se aqueles brindes promocionais, e mais particularmente as Agendas Pombo, davam a Marcos Valério o direito de reter para sua agência publicitária o desconto denominado bônus de volume.
Para Lewandowski, a irregularidade saltava aos olhos ("ictu oculi", disse ele). Marcos Valério incorreu em crime ao ficar com o dinheiro oferecido pelas Agendas Pombo. Bônus de volume só cabem às agências quando fazem anúncios em jornais ou emissoras de TV.
É possível que, nesse caso, Lewandowski tenha sido severo demais. As agendas Pombo são forma de propaganda, tanto quanto um anúncio no rádio.
Há quem diga, e não parece absurdo, que mesmo os planos de milhagem de uma companhia aérea são bônus de volume.
Você ganha milhas quanto mais viaja -mesmo que tenha sido seu empregador quem pagou a passagem. Ficou com as milhas para você? Considere-se corrupto também.
 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/08/2012.
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O crivo do contraditório
Melchiades Filho
 
 
As rusgas e desacordos entre relator e revisor não atrapalham nem comprometem o julgamento do mensalão. Pelo contrário. Tornam-no mais dinâmico e justo.
Joaquim Barbosa, o relator, tem sido duro com os réus. Sua decisão de fatiar o exame do caso facilita a compreensão do esquema criminoso. Quem jogava na confusão ficou desesperado; quem insistia na tecla de que o mensalão não passava de uma "farsa" foi exposto ao ridículo.
Em seu voto substantivo e substancioso, Barbosa não só corroborou as conclusões de uma CPI (presidida por um petista), da Polícia Federal e de dois procuradores-gerais da República. Foi além. Mostrou que existem provas, de sobra, do desvio de dinheiro público -seja para o enriquecimento ilícito de sanguessugas do Estado, seja para a compra de apoio político ao governo Lula.
Ricardo Lewandowski, o revisor, tem recebido críticas -não sem razão- por ignorar conclusões da PF e dar excessivo crédito aos testemunhos de correligionários dos réus. Mas suas divergências de encaminhamento têm sido ponderadas. É importante seu alerta para que ritos e direitos não sejam atropelados.
As patrulhas se atiçam. O revisor é acusado de operar para evitar ou atrasar as condenações; o relator, de tramar a entrega expressa de cabeças à opinião pública. Este, leviano; aquele, complacente. É do jogo.
O que interessa: Barbosa se contrapõe a quem aposta na impunidade, e Lewandowski, aos que anseiam pelo linchamento geral e irrestrito.
Ainda que pontuado por arroubos de vaidade, esse contraditório faz bem ao Judiciário. Indica que não há cartas marcadas no plenário do STF. Contribui para legitimar o julgamento e os vereditos que hoje devem começar a ser proferidos. Algo valioso num caso com tantas repercussões políticas e jurídicas.
Em tempo: Barbosa, a partir de novembro, e Lewandowski serão os próximos presidentes do STF.
 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 27/08/2012.
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Janio de Freitas
Culpados ou não

 
Dois erros comprometedores da acusação, cometidos e repetidos pelo procurador-geral Roberto Gurgel e pelo ministro-relator Joaquim Barbosa, no julgamento do mensalão, poderiam ser muito úteis aos ansiosos por condenações gerais, prontos a ver possíveis absolvições como tramoia.
A acusação indicou que a SMPB, agência publicitária de Marcos Valério, só realizou cerca de 1% do contrato de prestação de serviços com a Câmara dos Deputados, justificando os restantes 99%, para efeito de recebimento, com alegadas subcontratações de empresas.
A investigação que concluiu pela existência desse desvio criminoso foi da Polícia Federal, no seu inquérito sobre o mensalão. Iniciado o julgamento, várias vezes ouvimos e lemos sobre o desvio só possível com o conluio entre a agência e, na Câmara, interessados em retribuição por sua conivência.
O percentual impressionou muito. Mas o desvio não foi de 99%.
O ministro Ricardo Lewandowski, revisor da acusação feita pelo relator e, por tabela, da acusação apresentada pelo procurador-geral, deu-se ao trabalho de verificar os pagamentos feitos pela SMPB, para as tais subcontratações referidas pela acusação.
Concluiu que os pagamentos por serviços de terceiros, alegados pela agência, estavam bastante aquém do apresentado na acusação: cerca de 87% do contratado com a Câmara.
Como admitir que um inquérito policial apresente dado inverídico, embora de fácil precisão, com gravíssimo comprometimento das pessoas investigadas?
E como explicar que o Ministério Público, nas pessoas do procurador-geral e dos seus auxiliares, acuse e peça condenações sem antes submeter ao seu exame as afirmações policiais? E o que dizer da inclusão do dado inverídico, supõe-se que também por falta de exame, na acusação produzida pelo relator? Isso já no âmbito das atribuições do Supremo Tribunal Federal.
O erro de percentual está associado a outro, de gravidade maior. Assim como não houve os 99%, não houve a fraude descrita na acusação, ao que constatou o ministro revisor.
Os pagamentos às supostas empresas subcontratadas foi, de fato, pagamento de publicidade institucional da Câmara de Deputados nos principais meios de comunicação, com o registro dos respectivos valores. O percentual gasto foi adequado à média de 85% citada por publicitários ouvidos para o processo.
Faltasse a verificação feita pelo revisor Lewandowski, o dado falso induziria a condenações -se do deputado João Paulo Cunha, de Marcos Valério ou de quem quer que fosse já é outro assunto.
Importa é que, a ocorrer, seriam condenações injustas feitas pelo Supremo Tribunal Federal. Por desvio de veracidade.
Uma das principais qualidades da democracia é o julgamento que tanto pode absolver como condenar, segundo os fatos conhecidos e a razão. É o que o nosso pedaço de democracia deve exigir do julgamento do mensalão.
 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/08/2012.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Justiça e narrativas pós-modernas


Eliana Cardoso



No julgamento do mensalão, acusadores e defensores reconheceram os empréstimos bancários tomados pelo PT por intermediação de agência de publicidade e os repasses em espécie a petistas e associados. A acusação contou uma história bem articulada de desvio de dinheiro público, corrupção de parlamentares, fraude de contratos e compra de apoio parlamentar a um governo prejudicado pela falta de maioria no Congresso.

A defesa, fraca, disse que José Dirceu se desligara do PT e nada sabia. Mas quem se lembra da época do ocorrido também se lembra de José Dirceu como loquaz porta-bandeira das diretrizes do governo e dos interesses do PT. A defesa alegou ainda que José Genoino - um político que se gabara da capacidade do governo de formar uma base aliada mediante vantagens concedidas pelo Estado - não se envolvera em assuntos financeiros.

Onde está a evidência que poderia contrariar a tese da acusação? Em lugar nenhum. Os advogados abrigaram-se atrás de qualificativos e alegaram que o mensalão não passou de "ilusionismo jurídico" e "construção mental", seguindo a afirmação pós-moderna de que verdades e fatos não existem. Isso mesmo. O relativismo ensina que os fatos dependem de quem os interpreta: os homens atribuem à história bem contada - que seduz o ouvinte ou leitor com sua retórica de persuasão - a categoria de verdade. Troque o narrador e a verdade será outra.

Mas parece improvável que a defesa consiga convencer a opinião pública da procedência dessa tese relativista sobre a justiça, tese que encontra voz no livro de Janet Malcolm Anatomia de um Julgamento: Ifigênia em Forest Hills. A autora sugere que julgamentos não passam de competição entre duas narrativas rivais. A vitória não pertenceria aos fatos, mas à narrativa que soa mais convincente a nossos ouvidos viciados pelos romances do século 19.

Janet Malcolm conta a história da condenação de Mazoltuv Borukhova e Mikhail Mallayev pelo assassinato de Daniel Malakov. Um divórcio amargo condenara Daniel a visitas supervisionadas, porque sua mulher alegara abuso sexual da filha, Michelle. Quando Daniel recuperou a guarda da criança, foi assassinado, em plena luz do dia, por Mikhail a mando de Mazoltuv Borukhova.

O desejo de vingança formou a base da narrativa da promotoria. Michelle é a Ifigênia do título do livro de Malcolm. No mito grego, Agamenon, o pai, sacrifica Ifigênia, a filha, para que os deuses lhe concedam os ventos que levarão seus navios à guerra em Troia. Mais tarde, Clitemnestra, a mãe, se vinga apunhalando o marido.

Usando a etnia da acusada para fazer o retrato mítico da assassina vingativa, o promotor traçou o perfil de Borukhova, imigrante usbeque, judia da seita de Bukhara, como integrante de um grupo estranho. E se valeu da narração de testemunhas que descrevem os membros dessa seita como tribais, capazes de violência e até mesmo de assassinato. A imagem de Borukhova como o espírito de vingança materna serviu de cola para emendar pedaços de informações, como a gravação quase inaudível e mal traduzida de uma conversa entre os acusados, provas forenses que não cumpriram normas de pesquisa e um depósito de US$ 40 mil na conta bancária do assassino.

Relutante ou incapaz de aprender o valor do desempenho simpático, Borukhova errou tanto no figurino - saia comprida, paletó preto e, depois, branco - quanto na atitude. Em vez de encarar o júri, ela manteve a cabeça erguida e o olhar fixo no interrogador diante dela. Não seguindo o roteiro padrão, sua aparência inescrutável provocou ira e desconfiança.

Janet Malcolm não está interessada em condenar ou exonerar Borukhova. Sua briga é com as instituições e nossa capacidade de autoengano. Por isso coleciona fatos desconcertantes para argumentar que Borukhova não teve um julgamento justo. O sistema tê-la-ia condenado por causa de sua personalidade desagradável e estranha, capaz de causar reação alérgica na maioria das pessoas. O júri não teria avaliado corretamente a culpa da acusada, que tinha inimigos poderosos - como o guardião da lei que recomendou a transferência da custódia ao pai com base no seu desagrado pessoal de Borukhova e como o juiz, que apressava decisões para não atrasar as próprias férias.

O discurso de Janet Malcolm nada tem daquele que o juiz imparcial profere. Ela se arroga direitos de romancista. Coloca toda a ênfase na tendência humana de se deixar seduzir por narradores carismáticos. Expõe o nosso impulso de autoengano sempre que insistimos em representações coerentes, próprias das histórias sujeitas às convenções da ficção realista.

A tese de Malcolm, embora fascinante, não convence o leitor que reconhece o poder da narrativa, mas se sente capaz de separar a história persuasiva da desalinhavada, porém verdadeira. Da mesma forma que reconhece a diferença entre bons e maus advogados e acredita que a incompetência para levantar a evidência relevante se soma a narrativas fracas ou à venalidade dos juízes quando há condenação de inocentes ou exoneração de culpados.

Nos EUA, todos sabem que não são os piores criminosos que recebem a pena de morte, mas aqueles com os piores advogados. Estimam-se 100 mil inocentes entre os 2 milhões de norte-americanos encarcerados. Os culpados que andam soltos são ainda mais numerosos. O maior erro de um acusado é tentar economizar em honorários advocatícios.

Esse erro os réus no julgamento do mensalão não cometeram, pois pagaram fortunas a advogados famosos. Ainda assim parecem sujeitos à derrota. Os 11 ministros do STF decidirão. Eles interpretarão fatos e argumentos. Seus veredictos revelarão suas análises e muito mais. Pois, para ouvidos atentos, as falas dos juízes exibirão não apenas o que eles querem contar, mas também seus egos, vaidades e motivações.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 22/08/2012.

A solução, o nó e a crise

Priscila Cruz



Foram divulgados na semana passada os resultados de 2011 do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Trata-se de uma das referências mais importantes para o acompanhamento dos avanços e retrocessos da área no País, combinando resultados de desempenho com fluxo escolar. Ainda que não seja um indicador perfeito, a partir de seus dados é possível avaliar as consequências das políticas e agir para que se ponham em prática os aperfeiçoamentos e as correções necessários.

Como o índice é calculado a cada dois anos desde 2005, já temos uma boa série histórica, com informações para o quinto ano do ensino fundamental (avaliando, portanto, os anos iniciais dessa etapa), o nono ano dessa mesma fase de ensino (anos finais) e o terceiro ano do ensino médio (a última etapa da educação básica). Analisando essas etapas no período, temos, respectivamente, a solução, o nó invisível e a crise.

O Fundamental I (do primeiro ao quinto ano) tem apresentado resultados animadores, os quais apontam um acúmulo de experiências bem-sucedidas que indicam o contínuo avanço dessa etapa. Desde 2005 cresceu 0,4 ponto por edição, saindo de 3,8 para 5 em 2011.

Os Estados do Ceará e do Piauí merecem destaque, com os maiores aumentos, respectivamente, de 3,2 para 4,9 e de 2,8 para 4,4. E também Minas Gerais, por apresentar o maior resultado do País em 2011, com um Ideb de 5,9 - lembrando que a meta do Brasil é chegar a 6 em 2021. O que esses Estados têm em comum? Prioridade para a educação, persistência nas políticas que se mostraram bem-sucedidas, foco na alfabetização e pactuação entre Estado e municípios.

Começamos, porém, a perder o fôlego na etapa seguinte, o Fundamental II (do sexto ao novo ano), na qual está o nó invisível da educação básica. O avanço de 2005 para 2011 foi de uma média de 0,2 ponto por edição, saindo de 3,5 para 4,1.

Essa etapa tem seus problemas de identidade e muito menos atenção do que seus vizinhos mais ilustres. Ela não é nem preponderantemente estadual nem municipal: 56% pertencem às redes estaduais e 44%, às municipais; ou seja, está no meio do caminho na distribuição de responsabilidades entre os entes federados. Também é a mais ignorada pelas políticas públicas, pelo investimento social privado e nos debates da educação.

Os alunos não são mais crianças, mas também não são ainda os jovens do ensino médio. Se estiverem na idade certa, encontram-se no início da adolescência, entre 11 e 14 anos, passando por um período de muitas incertezas e inseguranças. Nessa fase eles têm muito mais professores do que na etapa anterior, em outro tipo de estrutura curricular, muito mais fragmentada. O resultado é menor aprendizagem e aumento da repetência e da evasão.

Como a educação é um processo cumulativo, as lacunas de aprendizagem e o fluxo escolar ruim vão-se intensificando ano a ano, caso não haja políticas em resposta. E é nesse contexto que uma parte dos alunos ingressa no ensino médio. Nessa etapa a evolução foi de apenas 0,1 ponto por edição, a menor de todas, saindo de 3,4 em 2005 para 3,7 em 2011. Mas com um agravante: das 27 unidades da Federação, três - Alagoas, Espírito Santo e Sergipe - tiveram resultados em 2011 piores que os apresentados seis anos antes, em 2005.

Analisando apenas os dados das redes estaduais, uma vez que são elas as responsáveis por 97% das matrículas na rede pública para essa etapa, temos desde o Estado do Amazonas, que avançou 1,2 ponto no período, até Alagoas, cujo Ideb da rede caiu, além de também ter o menor resultado entre todos os Estados. E, talvez não por acaso, é o Estado onde a rede particular mais cresceu entre os demais, 0,5 no período.

No ensino médio, aumentou a desigualdade entre os Estados. Em 2005 a diferença entre o maior e o menor resultado era de 1 ponto no Ideb e em 2011 foi para 1,5. É uma etapa claramente em crise.

Além das desigualdades entre os Estados, outro ponto preocupante, novamente mais ainda no médio, é a desigualdade entre as redes pública e particular. Em 2011, no Fundamental I a diferença entre elas foi de 1,8 ponto no Ideb; no Fundamental II, cresceu para 2,1; e, finalmente, no médio, foi para 2,3. Ou seja, ao longo da trajetória escolar, os alunos estão se distanciando cada vez mais, quando a equidade entre as redes é imprescindível para garantir oportunidades para todos.

E como sair desse círculo vicioso da última etapa de nossa educação básica? Muitos são os possíveis caminhos, mas algumas políticas são urgentes, como repensar a estrutura curricular, reduzir para quase zero a oferta de ensino médio noturno e resolver a escassez de professores, principalmente na área de exatas. Os Estados que mais avançaram também indicam caminhos, como o aumento de escolas em tempo integral, a definição clara e transparente da aprendizagem esperada para cada ano, avaliações realmente utilizadas na gestão da rede, das escolas e da sala de aula, reforço e recuperação dos alunos ao longo do ano, utilização relevante das tecnologias da informação e modernização dos processos de gestão.

Fica aqui um alerta para todos nós, da sociedade, para o Ministério da Educação, para as Secretarias de Educação dos Estados e para os deputados federais que compõem a Comissão Especial do Ensino Médio, que iniciou seus trabalhos este ano na Câmara. Não podemos ignorar os diagnósticos já amplamente conhecidos. Estes resultados, desde o ensino fundamental até o médio, apontam para movimentações importantes que têm ocorrido ou devem acorrer na educação básica.

Portanto, devemos aprender com os resultados do Ideb, buscando entender melhor o que as médias escondem ou nos trazem de aprendizagem para garantir a oferta de uma educação de qualidade para todos, em todo o Brasil.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 22/08/2012.

Uma crise fora do padrão

Rolf Kuntz



Há algo fora do padrão na economia brasileira, observam dois economistas do HSBC. É a erosão das contas externas, em tempo de baixo crescimento econômico. O superávit comercial ficou em US$ 12,1 bilhões até a terceira semana de agosto, resultado 34,3% menor que o de um ano antes, pelo critério das médias diárias. Historicamente, uma longa fase de crescimento fraco resultava em melhora do saldo comercial e do balanço de pagamentos. Desta vez, ocorre o oposto. As importações têm sido o lado mais dinâmico do comércio exterior brasileiro, desde a saída da crise, em 2010. A tendência foi mantida no ano passado, quando a economia de novo perdeu impulso e cresceu apenas 2,7%, e estendeu-se pela maior parte de 2012. Esse quadro aparentemente estranho tem sido pouco discutido pelos especialistas e isso valoriza o comentário dos economistas Constantin Jancsó e Marjorie Hernandez, divulgado esta semana pelo banco. Mas como explicar a aparente mudança de padrão? O mistério parece dissolver-se quando se olha um pouco além do cenário de curto prazo.

Os dois especialistas apontam vários fatores: redução de preços das commodities, menor demanda dos parceiros comerciais brasileiros e "até problemas de competitividade". Acentuam, no entanto, os dois primeiros, exemplificados pela menor cotação do minério de ferro e pela queda das vendas à Argentina. São, sem dúvida, explicações relevantes. Não há como desconhecer a estagnação no mundo rico, a desaceleração na China e o efeito conjunto do enfraquecimento econômico e do protecionismo, no caso argentino. A indústria do Brasil tem sido seriamente prejudicada pelas barreiras erguidas pelo maior parceiro no Mercosul. Mas por que não explorar mais amplamente o terceiro fator, os problemas de competitividade? Isso pode fazer muita diferença na discussão do quadro brasileiro.

Para começar, vale a pena chamar a atenção para um detalhe. O quadro de baixo crescimento, desta vez, difere daquele geralmente observado na experiência brasileira. Em outros tempos, o governo arrochava a economia interna, em episódios de grave desajuste, para cortar o excesso de demanda. Isso comprimia os salários, diminuía as importações, estimulava as exportações e reforçava as contas externas. A história incluía, normalmente, uma desvalorização cambial para realinhamento dos preços. Experiências desse tipo ocorreram muitas vezes, quando o Brasil era cliente assíduo do Fundo Monetário Internacional. É outro o quadro observado nos últimos anos.

As importações já cresciam mais velozmente que as exportações em 2008, antes do agravamento da crise externa. Fechado o ano, o valor exportado foi 23,2% superior ao de 2007. O importado foi 43,4% maior. A breve recessão freou temporariamente essa tendência, mas o descompasso logo reapareceu. Primeira diferença importante: ao contrário do observado em outras crises, o governo jamais recorreu, desde o terceiro trimestre de 2008, a um arrocho efetivo do consumo. Apesar dos juros altos, a demanda dos consumidores foi estimulada por incentivos fiscais e pela constante expansão da oferta de crédito. O gasto público expandiu-se continuamente, o endividamento das famílias aumentou e só em raros momentos, mesmo neste ano, o consumo privado fraquejou. Não houve, portanto, nenhuma política de aperto como ocorreu em outras crises.

Mas a produção da indústria fraquejou, apesar da boa demanda interna. A empresa brasileira perdeu mercado tanto no exterior quanto no País. A invasão do mercado nacional pelos concorrentes estrangeiros foi amplamente mostrada por estatísticas da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e da Confederação Nacional da Indústria.

Isso leva a uma segunda qualificação. A redução dos preços das commodities seria menos importante para o saldo comercial brasileiro se o País fosse menos dependente das exportações de produtos básicos e semielaborados. Da mesma forma, os problemas do comércio com a Argentina, embora relevantes, seriam mais suportáveis se a indústria brasileira ocupasse mais espaços em outros mercados. Essa questão é independente da crise global. Tem raízes na diplomacia comercial do governo petista e na ineficiência geral da economia brasileira, agravada ano após ano. Não é problema conjuntural.

A maior parte das políticas adotadas a partir de 2008 foi desenhada para questões de conjuntura. Agora, a presidente Dilma Rousseff parece haver admitido, afinal, a existência de problemas bem mais graves e complicados que os de curto prazo. O anunciado plano de transportes, com participação do setor privado, tem objetivos bem mais amplos. Falta o governo mostrar competência para administrá-lo.

 
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 22/08/2012.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

QUESTÃO: Assange x EUA




Direito de asilo

Hélio Schwartsman



Rafael Correa, o presidente do Equador, não é exatamente um campeão da liberdade de imprensa, ainda assim aplaudo sua decisão de conceder asilo político a Julian Assange, do WikiLeaks.

Assange se encontra refugiado na embaixada equatoriana em Londres. O Reino Unido já anunciou que pretende extraditá-lo para a Suécia, onde é procurado no âmbito de uma investigação por crimes sexuais. O receio, dizem as autoridades equatorianas, é que, uma vez em terras escandinavas, ele seja transferido para os EUA, onde responderia por delitos como espionagem e traição, ou seja, poderia passar o resto de seus dias na cadeia. Isso tudo seria uma retaliação ao fato de o WikiLeaks ter divulgado em 2010 milhares de documentos secretos bastante embaraçosos para os norte-americanos.

A dificuldade aqui é que, para dar razão às autoridades equatorianas, precisamos colocar em dúvida a independência do sistema judicial de três democracias sólidas. Não sou dado a acreditar em complôs e, se for para apostar, diria que a Suécia não extraditaria Assange. Mas não arriscaria mais do que uns trocados nisso. Ao menos os EUA já mostraram que não jogam pelas regras, quando deram um jeito de as principais operadoras de cartão de crédito boicotarem o WikiLeaks, mesmo sem uma ordem judicial contra a organização.

Pelo sim, pelo não, defendo a proteção dada a Assange. Os crimes de que ele poderia ser acusado na Suécia não são dos mais graves, dado que as supostas vítimas estão vivas e bem de saúde. Já a hipótese de ele ser condenado nos EUA, embora remota, configuraria um duro golpe contra a liberdade de imprensa.

É para situações como essa, em que há um choque entre princípios democráticos e questões legais levantadas por governos não necessariamente bem-intencionados, que existe o instituto do asilo político. Não há razão para utilizá-lo apenas contra ditaduras escancaradas.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 17/08/2012.

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O pavão Assange

Álvaro Pereira Júnior



Do jeito que ele gosta, Julian Assange ocupa o centro do noticiário mundial. Quando escrevo, o australiano ainda está na embaixada em Londres do Equador, país que lhe concedeu asilo. Mas o governo britânico não deixa que ele saia. Quer despachá-lo para a Suécia, onde Assange é réu em dois casos de abuso sexual.

Assange foi um dos fundadores, em 2006, do site WikiLeaks, especializado em receber e divulgar informações confidenciais. Da cientologia aos defensores do aquecimento global, passando por governos e corporações, muita gente apanhou com a divulgação de documentos secretos por essa tropa combativa. Assange montou um esquema de sonho para um ególatra: no WikiLeaks, todo mundo é anônimo, menos ele.

Os nomes dos informantes são segredos. Os principais colaboradores são conhecidos apenas pelas iniciais. Mas, ele, Assange, dá entrevistas, escreve artigos, assume com gosto o papel de messias da transparência total.

Transparência que ele próprio não pratica. O WikiLeaks funciona em meio a paranoia e segredos, à moda de uma seita. E Assange sempre escondeu sua história de vida. Só em 2010 o repórter Raffi Khatchadourian, da revista "New Yorker", descobriu algumas coisas: padrasto violento, mãe hippie contestadora e nômade (até os 14 anos de idade, Assange mudou 37 vezes de casa).

O WikiLeaks fez estragos importantes e merecidos desde o começo. Mas Assange só assumiu o papel de celebridade mundial em 2010, quando procurou revistas e jornais respeitados de EUA e Europa para investigar toneladas de documentos secretos da diplomacia americana.

Foi uma grande sacada. Trouxe o WikiLeaks, até então uma operação de "fringe", para o domínio da mídia respeitável. Usou a perícia de jornais como "Guardian" e "New York Times" de mergulhar em documentos, detectar o que tem interesse jornalístico e transformar isso em reportagens.

Mas, como disse Fernando Rodrigues na Folha de 15/8, também decretou o início do fim do Wikileaks: "Os meios de comunicação tradicionais aprenderam o caminho. Vários já usam sistemas on-line, recebem dados e preservam as fontes".

A organização se esgotou, mas Assange obteve a fama.

Em abril passado, participei de uma feira de televisão, em Cannes. O glamour e a visibilidade não se comparam, mas local e estrutura são os mesmos do famoso festival de cinema.

A fachada do Palais des Festivals estava coberta por um cartaz imenso, anunciando "The World Tomorrow", um "talk show" apresentado por Assange no Russia Today, RT, canal bancado pelo Kremlim para ser tipo uma Fox News "alternativa".

O programa ia ao ar do apartamento dele. Entrevistado do primeiro dia: Hassan Nasrallah, do grupo terrorista Hizbollah.

Seguiram-se outros do mesmo naipe, até chegar a vez de Rafael Correa, presidente do Equador, país que acabou lhe oferecendo asilo. O paladino da liberdade era acolhido por um perseguidor de jornalistas.

Inescapável, também, a ironia de o cofundador do WikiLeaks ganhar espaço no RT, sustentado por Vladimir Putin, de notório histórico de "transparência".

Mais irônico ainda que, justo na semana em que se decide o destino de Assange, o mesmo governo Putin que lhe dedica tantas mesuras tenha voltado forças contra três meninas do coletivo anarcopunk Pussy Riot.

Em fevereiro, as "punkettes" do Pussy Riot invadiram a catedral do Cristo Salvador, em Moscou. Dançando e pulando, cantaram um rock tosco exigindo a saída de Putin.

As três foram a julgamento, sob risco de cana brava por vandalismo. Escrevo antes do veredicto. E leio no site da "Economist" que, quarta passada, o trio teve direito a considerações finais. Foi um discurso histórico de Maria Alyokhina, Yekaterina Samutsevich e Nadezhda Tolokonnikova (esta última de uma beleza desconcertante, "riot girl" do Volga).

Assim descreveu a revista: "Elas falaram de arte, de liberdade, da busca por significados, tudo pontuado por referências aos Evangelhos, aos 'Ensaios' de Montaigne e à 'humildade ontológica'".

Nada disso faz parte da visão de Julian Assange.

Idi Amin acabou na Arábia Saudita, Anastasio Somoza se exilou no Paraguai, carrascos da Segunda Guerra vieram parar na Bolívia, na Argentina e no Brasil.

Se não for preso no caminho do aeroporto, Julian Assange, que parecia arauto de uma revolução jornalística, entra para o rol dos exilados em destinos exóticos. Uma espécie de pária, mas um pária famoso. Deve estar feliz.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/08/2012.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Desde a Colônia, magistratura do país é corporativista

Entrevista com Evaldo Cabral de Mello





Historiador define judiciário brasileiro como "caixa preta" e critica seus pares por falta de ambição e sujeição a modismos

Entrevista concedida a ELEONORA DE LUCENA

***

Interesses públicos e privados entrecruzados. Uso de cargos para obtenção de privilégios, ascensão social, enriquecimento. Perdas de fortunas, recuperação de desastres. Incêndios, lutas, endividamentos, calotes.

O enredo se passa no Nordeste brasileiro, entre o final do século 16 e o início do 17, na época da dominação holandesa, e é o cerne do recém-lançado "O Bagaço da Cana" (Companhia das Letras, 216 págs., R$ 23).

Especializado no tema, o historiador Evaldo Cabral de Mello foi até o "porão" dos canaviais. Fez um recenseamento das propriedades e de seus donos.

Como se fossem minirresumos de novelas, os relatos revelam a crueza dos dramas. Mesmo no auge do domínio estrangeiro, a produção canavieira chegou a apenas dois terços do que era antes da guerra.

Nesta entrevista, Mello, 76, fala do livro e constata que "o brasileiro tem uma visível incapacidade de conceber a esfera pública e, sobretudo, a objetividade da lei.".

Mello ainda ataca a magistratura: "É uma caixa preta".

Um dos maiores historiadores brasileiros, ele critica a produção de história no país. Para ele, os profissionais estão conformados, especializaram-se em demasia e seguem modas. "Não vejo ambição individual de escrever grandes livros", declara.


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Folha - Como foi a produção de "O Bagaço da Cana"?

Evaldo Cabral de Mello - Durante todos esses anos de atividade historiográfica, fui colecionando uma quantidade de informações sobre os engenhos no período holandês. Pode ser útil para pesquisadores futuros. Tratava-se apenas de eu me divertir um pouco nas horas em que não tinha o que fazer. Não foi um livro com nenhuma ambição maior. Fui ver do porão como era a atividade açucareira.

Na sua opinião, qual o principal destaque do livro?

A utilidade do livro está, sobretudo, na compilação de 162 engenhos. A documentação que usei é inexistente para qualquer outra época ou qualquer outro lugar da historia colonial. Não se poderia fazer com as fazendas de São Paulo do século 18 nem com os engenhos da Bahia do século 17. Porque a documentação holandesa era bem mais rica do que a portuguesa.

O livro mostra a ligação entre as esferas públicas e privadas, entre senhores de engenho e governantes. O sr. vê continuidade desse processo hoje?

Vê-se isso em todo o Brasil. A incapacidade de distinguir as coisas não é só da elite canavieira, é de todo o mundo.

Aliás, a elite canavieira hoje quase já não existe em Pernambuco, está toda em São Paulo. É uma deformação da nossa formação histórica. Não sei se isso jamais será resolvido satisfatoriamente.

O brasileiro tem uma visível incapacidade de conceber a esfera pública e, sobretudo, a objetividade da lei. Tem dificuldade de conceber a impessoalidade e a objetividade da regra jurídica. Para ele, a regra jurídica é um negócio que se deve aplicar aos outros. No caso dele, as regras jurídicas devem ser adaptadas às conveniências dele.

O sr. não vê melhoria?

Não. Até sobre alguns aspectos há uma certa piora. No sentido de que o país tornou-se muito mais rico. As oportunidades são bem maiores do que eram antigamente e por isso mesmo essas coisas ocorrem em maior volume.

Por exemplo?

A situação da magistratura. A magistratura brasileira é uma caixa preta, ninguém sabe o que se passa lá.

Na verdade ela é mais preservada do que o Executivo e o Legislativo, porque eles são mais transparentes, porosos.

A magistratura, não. Desde o período colonial teve um espírito de corpo, um corporativismo. Sabia se defender quando era ainda a magistratura da Coroa. Sabia se defender da sociedade civil e da própria Coroa, que ela supostamente deveria representar.

Tinha seus próprios objetivos corporativos, mesmo com o prejuízo dos interesses da Coroa. Essa incapacidade de distinguir uma coisa da outra se vê na magistratura, o que é surpreendente, porque ela, mais do que qualquer outro poder, deveria representar o espírito público da lei.

O sr. mostra também o uso de cargos públicos para enriquecimento privado. E hoje?

Aquilo era feito em escala modesta naquela época. Não se pode comparar com o que se dá hoje.

Como o sr. analisa a desnacionalização do setor canavieiro nos dias de hoje?

Não me interesso em fazer nenhuma ligação entre o que escrevo e a atualidade. Uma das vantagens da historia é não ensinar nada sobre a atualidade.

Eu me desligo da atualidade quando pesquiso. Atualidade não me interessa.

O sr. mostra uma realidade nada estática, mas tumultuada, com batalhas, incêndios, prejuízos nos engenhos. Que dados faltam dessa época?

A documentação não refere dois tipos de informação que seriam importantes: o plantel de escravos e a extensão das propriedades.

Porque os relatórios foram feitos em períodos de transição, logo depois do fim da primeira guerra. Muitos escravos haviam fugido ou tinham sido levados pelos senhores para a Bahia ou haviam sido recrutados pelos exércitos. Não havia informação fiel.

Qual o seu projeto hoje?

Estou aposentado definitivamente. Por que mais trabalho? Fazer pesquisa histórica no Brasil é chato por causa das bibliotecas, que são complicadas de consultar.

Como está a produção de história no Brasil?

O ensino de historia é mais profissional, tem mais qualidade, mas há especialização demais. Os professores, quando têm bolsas da Capes, são obrigados a apresentar anualmente um determinado número de folhas escritas. Isso pode comprometer a visão de conjunto do historiador.

O historiador tem que fazer uma pesquisa a longo prazo. Um livro de história normalmente, entre pesquisar e escrever, não leva menos do que quatro, cinco anos.

É por isso que a história brasileira dos últimos anos tornou-se mais profissional, mais competente, mas, em compensação, escreve sobre assuntos altamente especializados.

Por quê?

Porque os historiadores não têm tempo para digerir a documentação e formular de forma mais ambiciosa.

Não há mais aqueles livros ambiciosos como há 40, 50 anos. É tudo fechado nas universidades, com temas muito específicos.

Os historiadores brasileiros se conformam em escrever teses, fazendo livros de vários colaboradores.

Não vejo ambição individual de escrever grandes livros. Os historiadores se conformaram com tópicos. E sofrem de uma certa moda.

Moda? Como assim?

Até os anos 60, os historiadores tinham que ser marxistas. Depois se descobriu aqui a história da vida privada.

Para ver como os historiadores são, às vezes, tão despegados da história de sua própria atividade, basta dizer que a história da vida privada no Brasil começou com Alcântara Machado, em São Paulo, e com Gilberto Freyre [primo da mãe de Evaldo].

Os historiadores brasileiros nos anos 80 e 90 só foram descobrir a história da vida privada por meio dos franceses! Que estavam começando com a moda. Hoje a moda deles é história administrativa e das elites. Mas isso passa.

Daqui a pouco inventarão uma outra moda. Enquanto as pessoas ficam na moda, não se produz livros ambiciosos, de escopo ambicioso.

Qual seria um projeto ambicioso hoje?

Um assunto que é um buraco negro na história brasileira: a regência. Não há nada de qualidade sobre o conjunto do período regencial, de nove anos. Os historiadores se contentam com o que foi escrito 50, 70 anos atrás: que foi um período desastroso. Em vez de procurar o que havia de positivo no período regencial e nas rebeliões regionais que ocorreram.

Qual a sua visão sobre o governo Dilma?

O historiador não é mais bem informado do que qualquer outro cidadão a respeito da atualidade política. Há historiadores que procuraram notoriedade por meio desse tipo de interesse pela atualidade, mas não é o meu caso. Sobre atualidade eu não falo. Detesto polêmica.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/08/2012.

Questão: Ainda, o Mensalão

Segunda fase

Janio de Freitas



Tardou, mas o espetáculo do mensalão enfim abriu a semana com a promessa de justificar as atenções recebidas e, até então, pouco retribuídas.

Ainda sem considerar os demais fatos que logo agitariam o ambiente do julgamento, o ministro Marco Aurélio Mello deu a sua contribuição: é preciso rever o mecanismo adotado para o julgamento, sob pena de que uma situação caótica e longa resulte da soma de cansaço, votos complexos e extensos (dois se anunciam com mais de mil páginas) e a confusão das sentenças variadas.

Se houvesse alguma dúvida de que o sistema adotado não é sensato, para condená-lo bastaria atentar para as muitas fotos de magistrados sucumbindo às sonecas.

Também desse ponto de vista, à parte o discutível fundamento jurídico, a recusa ao desmembramento do processo levou a um acúmulo absurdo de documentos, manifestações orais de defesa, relatórios e revisões enormes, e uma grande balbúrdia indomável de fatos, ficções, deduções e contestações. Tudo em fartos plurais.

É muito duvidoso que os 11 ministros possam atravessar esse cipoal até chegar a sentenças seguras e sem ressalvas no seu sentido de justiça.

Mas o que corrigir e como fazê-lo, a esta altura, é um problema sem proposta de solução. Apesar das informações de que a inquietação alcança todos os ministros.

Contribuição inesperada para o novo clima, o delegado Luís Flávio Zampronha, responsável pelo inquérito do mensalão na Polícia Federal, atribui ao processo limitações que deixam práticas graves, e respectivos autores, fora do julgamento do Supremo Tribunal Federal ou em situação atenuada.

A Polícia Federal é dada, em particular nos períodos eleitorais, a procedimentos mal explicados. É mais um caso desses: por que só agora o delegado decide falar da exclusão de fatos gravíssimos?

Zampronha não ampara suas afirmações nem apenas em exemplos de uma ou outra prática apurada. Ainda assim, o que diz não poderia passar sem atenção imediata e efetiva do procurador-geral da República.

Até porque alguma comprovação do que Zampronha diz, sobre extorsão e venda de informações, pode produzir agravantes em muitos aspectos do processo em julgamento no STF.

Por sua vez, o brilhante ex-juiz e advogado Luiz Francisco Corrêa Barbosa, defensor de Roberto Jefferson, lançou teses em todas as direções, inclusive na que declara a invalidade do processo do mensalão.

Ao afirmar que Lula "ordenou" o sistema do mensalão, porém, sua eloquência fértil e firme faltou com alguma sustentação factual, indispensável em acusação de tamanha gravidade.

Mas a face jurídica de suas teses e a arte ao apresentá-las venceram o tédio dos ministros e dos espectadores lá e fora.

Por fim atentos, todos, para uma defesa que também atingiu o procurador-geral e acusador Roberto Gurgel. Neste caso, atingiu em cheio.

Mesmo que o restante da semana seja frustrante, o seu começo deixou marcas que não se apagarão no restante do julgamento. Nem depois, talvez.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 14/08/2012.

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A lei, para amigos e inimigos

Janaina Conceição Paschoal



Propaga-se a ideia de que os réus, no processo do mensalão, tiveram garantias desrespeitadas, foram cerceados em suas defesas, acusados por meio de denúncia inepta, não sendo raro ler que estão submetidos a um tribunal de exceção.

Independentemente de haver ou não prova suficiente para a condenação, alguns esclarecimentos precisam ser feitos.

A denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal é clara e responsável, na medida em que procura atribuir a cada um dos envolvidos a sua parcela de culpa, tomando o cuidado de estabelecer núcleos de atuação.

Tivesse o órgão acusador realmente adotado a teoria de que os líderes da organização criminosa respondem por todo e qualquer crime por tal organização praticado, certamente os principais réus, além de serem acusados por corrupção ativa, quadrilha e peculato, teriam sido denunciados por lavagem de dinheiro e evasão de divisas, pois, ao estruturar a organização, sabiam como o suposto esquema iria funcionar.

Igualmente parcimonioso foi o STF ao rejeitar algumas das imputações já no momento do recebimento da denúncia. Na maior parte dos processos criminais, o magistrado recebe a denúncia em sua íntegra para ao final dizer se absolve ou condena.

O fato de ter recusado parte das imputações no nascedouro da ação mostra que o STF não está julgando com ira, com gana de condenar ou de dar respostas à sociedade.

Também não procedem as ilações de que os réus estão tendo menos condições de defesa que outros acusados. É justamente o contrário.

A ação penal referente ao mensalão tramitou por um bom tempo, todos os requisitos previstos na lei e no regimento estão sendo observados. E aos acusados foram garantidos meios de defesa que a maior parte dos réus, no Brasil, não consegue.

Cito como exemplo o fato de terem obtido a expedição de carta rogatória para ouvir testemunhas de defesa no exterior. A lei assegura tal direito, mas dificilmente outros acusados conseguem ter deferido o mesmo meio de prova.

É insustentável a alusão de que o ministro relator, Joaquim Barbosa, estaria impedido de presidir a ação penal por ter conduzido o inquérito.

Procedesse esse argumento, todas as ações originárias estariam sob suspeita, e todos os casos em que houve quebra de sigilos se tornariam nulos, pois as decisões mais interventivas, durante qualquer investigação, são tomadas pelo juiz que normalmente preside a ação penal subsequente.

O foro privilegiado, como o próprio nome diz, a vida toda foi tido como uma benesse. Agora, estranhamente, passa a ser apresentado como sinônimo de tortura.

Se a ação referente ao mensalão for nula e se as cortes internacionais precisarem intervir em prol dos réus, todos os outros processos criminais em trâmite no país devem ser imediatamente encerrados.

Que a defesa precise usar algumas figuras de linguagem, ao apresentar suas teses, é compreensível. Difundir, entretanto, que a maior corte do país está procedendo a um julgamento de exceção constitui desrespeito com o STF e com o Brasil.


JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 38, advogada criminalista, é professora livre-docente de direito penal na USP

Publicado na Folha de S.Paulo, em 10/08/2012.

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Respeitável público

Antônio Carlos de Almeida Castro e Pedro Ivo Velloso Cordeiro



"As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais"
Fernando Pessoa


No premiado documentário "Arquitetura da Destruição", Peter Cohen defende que o nazismo só foi palatável para a população por ter sido apresentado como um projeto de embelezamento do mundo. Retratando Hitler como artista frustrado, Cohen argumenta que o intento destrutivo do nazismo se fundou em uma poderosa estética, impulsionada por uma eficiente propaganda.

Não se quer aqui taxar ninguém de nazista ou comparar alguém a Hitler. Busca-se mostrar, pelo exemplo extremo, o poder destrutivo da estética.

Ultimamente, tem se visto que algumas acusações, na boca de delatores ou formalizadas em denúncia, procuram sofisticar a sua narrativa e emprestar-lhe uma organização e beleza fora do comum. As acusações são recheadas de adjetivos. O fato tido como criminoso é guarnecido de uma série de estruturas, núcleos e funções, em um desenho perfeito.

Para esse acusador, o regozijo é maior quando não há provas, pois assim ele terá grande espaço para o seu design. Terá liberdade para conceber e desenhar o que considera a parte oculta do iceberg. Nessa parte oculta, dá vazão a todo o seu projeto de embelezamento ou frustração por não ser um artista de sucesso.

O "mensalão" é o maior exemplo dessa nova modalidade de design. A acusação não se limitou ao que há de efetivamente tangível no caso: operações financeiras entre partidos políticos e instituições financeiras. O toque estético foi dado por um pretenso delator, que, não por coincidência, é um cantor frustrado.

Do que havia de concreto, erigiu-se um enredo belo e palatável para o público, embora falso, criado: o pagamento sistemático, organizado e mensal para parlamentares. O melhor propagandista e marqueteiro não escolheria nome melhor e mais ao gosto da população: "mensalão".

Já do acusador público esperava-se sobriedade. Afinal, ele estava lidando com um fato envolto em uma disputa política, destinada a desmoralizar um partido, como reconheceu recentemente o próprio delator.

O que se viu foi justamente o contrário. O acusador público tomou gosto pela arte do escândalo e sofisticou a estética da acusação, qualificando-a como "sofisticada organização criminosa", "profissionalmente estruturada" em "núcleos". Expressões como "engrenagem criminosa", "organograma delituoso", "engenharia criminosa" conferiram ar monumental à acusação.

O "grand finale" veio com as alegações finais, um memorial e uma sustentação oral proferidas já por outro acusador público. O ponto em comum dessas manifestações foi o gosto pela adjetivação. O edifício artístico passou a ter uma pomposa qualificação: o "mais atrevido e escandaloso caso de corrupção do Brasil".

Poucos não reconheceriam que estética e marketing foram fundamentais para o sucesso do projeto político destrutivo do pretenso delator. O que poucos têm ressaltado é que também os acusadores públicos buscaram empregar uma bela arquitetura e um cativante enredo para o sucesso de público de sua tese.

O STF fará um julgamento técnico, não estético. Pensando no público, o acusador deve ter linguagem sóbria, clara, comedida e prosaica. Os fatos da vida merecem ser retratados com a mais sofisticada estética. Todavia, quando se pede a condenação de pessoas, não deve haver espaço para a estética, sob pena de se tornar o processo um jogo cruel.

Caro leitor, caso você se depare com uma acusação muito organizada, bela e sofisticada, suspeite! Você pode estar lidando com um artista frustrado ou um acusador arquitetando a destruição de alguém.


ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, 54, e PEDRO IVO VELLOSO CORDEIRO, 28, são advogados criminais e defendem Duda Mendonça e Zilmar Fernandes na ação penal 470

Publicado na Folha de S.Paulo, em 14/08/2012.