quinta-feira, 28 de junho de 2012

Vale-tudo, moralidade e filosofia

Eliana Cardoso


A foto de Lula apertando a mão de Paulo Maluf fez a delícia da oposição e provocou desgosto no PT. Os comentaristas reconheceram a inconveniência da imagem do homem visto até então como infalível em suas decisões políticas, porque sabiam que o eleitor a veria como uma agressão à ética. Luís Veríssimo batizou o ato de realpolitikagem. E o repúdio àquelas mãos dadas, tendo sido compartilhado mesmo por quem não se interessa por política, sugere a existência de valores morais comuns à maioria das pessoas.

Algumas crenças nos parecem verdadeiras, não importa o contexto cultural em que vivemos. Acredita-se no dever de cuidar dos filhos, honrar promessas e não matar, mesmo que o assassinato nos traga lucro. Embora alguns analistas vejam nessas decisões apenas o fruto da emoção, ou das convenções sociais e ilusões ideológicas, como queria Karl Marx, elas são tão comuns que parecem confirmar a objetividade da intuição moral.

Situações mais complicadas testam essa objetividade. Como você responderia à seguinte questão? Você acionaria um interruptor, redirecionando um trem desgovernado, para salvar cinco pessoas numa pista, embora soubesse que, na outra pista, uma pessoa morreria em consequência da sua decisão? Um grande número de pessoas responde sim a essa pergunta. Mas o que você diria se a escolha fosse empurrar para a morte um homem da plataforma da estação, de forma a acionar o freio automático do trem, para salvar outras cinco pessoas? A maioria das pessoas acha que isso seria errado. Qual a diferença entre os dois atos?

Os partidários do ponto de vista consequencialista - que derivam regras morais dos efeitos de nossos atos - não veem diferença entre as duas situações. Os resultados são os mesmos e o que importaria seria salvar o maior número de vidas possível. Mas, se isso fosse verdade, suponha que um médico mate um único paciente para usar seus órgãos em transplantes que salvariam cinco vidas. Mesmo um consequencialista convicto recusaria sua aprovação a esse cirurgião e acharia repugnante a sociedade na qual os médicos podem matar um paciente para salvar outros.

No dia a dia nos viramos à custa de nossas intuições morais, cujas regras a filosofia tenta sistematizar. Ela nos oferece as três posições éticas importantes no mundo moderno: o consequencialismo, o kantismo e o contratualismo.

Entre as posições consequencialistas modernas, o utilitarismo se destaca como a mais proeminente. Henry Sidgwick, um filósofo britânico, sustenta que ações e leis são corretas na medida em que maximizem o bem-estar comum. Dominando o pensamento filosófico anglo-americano durante séculos, o utilitarismo permanece influente. A teoria econômica da "escolha racional" - que guia a política econômica e, de fato, deveria se chamar "teoria da escolha consistente e autointeressada" - tem os dois pés bem fincados na filosofia utilitarista. Alguns consequencialistas mais cuidadosos argumentam que a distribuição da felicidade também é importante, incluem a criatividade e a apreciação estética na soma de bens dos quais resulta a felicidade social e lembram que a liberdade deve impor limites à maximização do bem-estar.

O kantismo e o contratualismo rejeitam o consequencialismo como critério para a ética. Immanuel Kant proclamou como dever incondicional a obediência à moralidade, quaisquer que sejam nossos desejos e interesses. Seu "imperativo categórico" estabelece nunca tratar o outro apenas como meio, mas sempre como fim em si mesmo. Isso só seria possível se nos perguntássemos antes de cada decisão o que ocorreria se o mundo inteiro agisse da mesma forma que escolhemos agir.

Em Uma Teoria da Justiça (1971), John Rawls estabelece os princípios do contratualismo moderno. Por meio de um experimento mental, ele deriva as regras justas para a sociedade. Elas resultam do acordo unânime entre pessoas livres, sob um "véu de ignorância", que não lhes permite conhecer os fatos de seu nascimento, porque eles poderiam influenciar a posição do indivíduo na sociedade e, portanto, suas decisões. T. M. Scanlon, filósofo de Harvard, modifica o contrato social de Rawls e o aplica aos direitos individuais. O contratualismo de Scanlon diz que devemos honrar as nossas promessas e agir para não prejudicar os outros. Ele se aproxima de Kant: o certo e o errado resultam do reconhecimento do estatuto de igualdade entre as pessoas.

Ao pensar a ética como fundamentada nas relações entre pessoas e como o conjunto de direitos que devemos uns aos outros - e não como relações de pessoas com um conjunto de coisas desejáveis -, o kantismo e o contratualismo se unem em oposição ao consequencialismo.

O economista tenta fugir das críticas ao utilitarismo, argumentando que sua tarefa é explicar e não justificar comportamentos. Diz que tenta entender as razões que movem as pessoas e evitar conotações morais. Mas a verdade é que, todos os dias, conscientemente ou não, faz a transição de análises causais para o uso normativo da teoria, ao ditar regras para a política econômica. Quantas vezes os políticos justificam uma lei com o argumento de que melhora o bem-estar da sociedade?

Já nos acostumamos a andar de braços dados com o utilitarismo, do qual seria difícil escapar, pois parece humano colocar as consequências de nossos atos na balança, mesmo quando pesamos o que é eticamente correto e tentamos seguir a regra de Kant. Mas não acredito que tenha sido o cálculo utilitarista que motivou a indignação de Luiza Erundina ao ver Lula e Maluf de mãos dadas. Ao rejeitar o cinismo desavergonhado de muitos políticos, agiu como a maioria da população, cuja intuição moral combina de forma nem sempre consciente as teorias de Kant e do contratualismo.


* PH.D. PELO MIT, É PROFESSORA TITULAR DA FGV-SÃO PAULO SITE: WWW.ELIANACARDOSO.COM

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 27/06/2012.

A ascensão do popularismo virtual e a falta de líderes reais

Thomas Friedman


Viajando pela Europa na semana passada, parecia que quase toda conversa terminava com alguma modalidade desta pergunta: por que existe a sensação de que poucos são os líderes capazes de inspirar as pessoas a fazer frente aos desafios na nossa era? Existem diversas explicações para esse déficit de liderança global, mas eu vou me concentrar em dois: uma é de natureza geracional e a outra de natureza tecnológica.

Comecemos pela explicação de natureza tecnológica. Em 1965, Gordon Moore, cofundador da Intel, propôs a chamada Lei de Moore, segundo a qual o poder de processamento capaz de ser inserido em um único microchip dobraria a cada período de 18 a 24 meses. Isso tem de fato ocorrido sistematicamente desde àquela época. Ao ver as lideranças europeias, árabes e norte-americanas às voltas com as suas respectivas crises, eu me pergunto se não existiria um corolário político da Lei de Moore: a qualidade da liderança política diminuiria com o surgimento de cada conjunto de 100 milhões de novos usuários do Facebook e do Twitter.

A conexão mundial por meio da mídia social e de telefones celulares dotados de recursos para navegação pela web está modificando a natureza da conversa entre líderes e liderados em todas as regiões. Nós estamos passando de uma estrutura baseada fundamentalmente em conversas unilaterais – de cima para baixo – para discussões que ocorrem preponderantemente nos dois sentidos – de cima para baixo e de baixo para cima. Isso tem várias consequências: mais participação, inovação e transparência. Mas seria possível que houvesse algo como um excesso de participação? Ou seja, que os líderes passassem a escutar uma quantidade de vozes tão grande e a acompanhar um número tão excessivo de tendências que eles acabassem vendo-se prisioneiros dessas vozes e tendências?

Esta sentença estava na edição da última quarta-feira do jornal "The Politico": "As campanhas de Obama e de Romney passam o dia inteiro atacando-se mutuamente no Twitter, e ao mesmo criticam a falta de ideias sérias para uma época séria. Mas na maioria das vezes em que tiveram a oportunidade de pensar grande, elas preferiram pensar e agir com pequenez".

De fato, eu escutei uma nova palavra em Londres na semana passada: “Popularismo”. Essa é a ideologia predominante da nossa época. Ler as pesquisas, acompanhar os blogues, contar as mensagens no Twitter e no Facebook e ir precisamente para onde as pessoas se encontram, e não para onde elas precisariam ir. Se todo mundo está “seguindo”, quem está liderando?

E há também o fator exposição. Atualmente todo indivíduo que tem um telefone celular é um paparazzi; todos os que possuem uma conta no Twitter são repórteres; e todos os que dispõem de acesso ao YouTube são cineastas. Mas quando qualquer um é um paparazzi, repórter e cineasta, todos os demais são figuras públicas.

E, se o indivíduo é de fato uma figura pública – um político – o escrutínio poder tornar-se tão desagradável que a vida pública passa a ser algo a ser evitado a todo custo.

Alexander Downer, ex-ministro das Relações Exteriores da Austrália, me disse recentemente: “Vários líderes estão agora, mais do que nunca, sendo alvo de um escrutínio maciço. Isso não desencoraja os melhores deles, mas o ridículo e a interação constante por parte do público estão fazendo com que seja cada vez mais difícil para eles tomar decisões sensíveis e corajosas”.

Quanto à mudança geracional, nós passamos de uma Grande Geração que acreditava na poupança e no investimento no futuro para uma geração Baby Boomer que acreditava em contrair dívidas e gastar diariamente. Basta comparar George W. Bush com o pai dele, George H.W. Bush. O pai apresentou-se como voluntário para lutar na Segunda Guerra Mundial imediatamente após o ataque a Pearl Harbor, desenvolveu a sua liderança durante a Guerra Fria – uma época séria, na qual os políticos não podiam simplesmente seguir as pesquisas – e, como presidente, elevou impostos quando a prudência fiscal recomendava esta medida. Já o seu filho da geração Baby Boomer evitou o serviço militar e tornou-se o primeiro presidente da história dos Estados Unidos a reduzir impostos em meio a não apenas uma, mas a duas guerras.

Praticamente todos os líderes atuais têm que pedir aos seus povos que façam sacrifícios, em vez de apenas oferecer-lhes benefícios, e que estudem mais e trabalhem com mais inteligência apenas para não sofrerem uma redução do padrão de vida. Isso exige uma liderança extraordinária que tem que começar pelo hábito de se falar ao povo a verdade.

Dov Seidman, autor do livro “How”, e cuja companhia, a LRN, presta assessoria sobre liderança a diretores executivos de empresas, há muito chama atenção para o fato de que “nada inspira mais as pessoas do que a verdade”. A maioria dos líderes acha que dizer a verdade ao povo os torna vulneráveis – tanto ao povo quanto aos seus oponentes. Mas eles estão equivocados.

“O mais importante em relação a dizer a verdade é que isto de fato gera vínculos positivos com o povo”, explica Seidman. “Isso porque, quando você demonstra confiança nas pessoas, dizendo a elas a verdade, elas passam a demonstrar uma confiança recíproca”. A falta de transparência por parte dos líderes faz apenas com que os cidadãos tenham um outro problema – mais opacidade – a atrapalhá-los.

“Demonstrar confiança nos outros dizendo-lhes a verdade é algo como proporcionar a eles um piso firme”, acrescenta Seidman. “Isso estimula a ação. Quem está ancorado em uma verdade compartilhada começa a resolver problemas de forma conjunta. E isso é o início do processo para que se possa encontrar uma solução melhor”.

Mas não é isso o que nós estamos vendo atualmente por parte dos líderes dos Estados Unidos, do mundo árabe ou da Europa. Se ao menos um deles, apenas um, aproveitasse a oportunidade para dizer ao verdade ao seu povo: em que patamar se encontra, do que é capaz, de que plano ele necessita para atingir os objetivos e que contribuição ele precisa dar para encontrar uma rota melhor. O líder que fizer isso contará com “seguidores” e “amigos” reais – ao contrário do que acontece no mundo virtual da Internet.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 27/06/2012.

A Petrobrás sem Lula

Rolf Kuntz


O toque de realismo, a melhor parte do novo plano de negócios da Petrobrás, pode ter mais que um significado econômico. Se for levado a sério pelo próprio governo, mostrará o caminho para uma gestão mais séria, mais comprometida com o longo prazo e menos propensa ao ilusionismo e à mistificação da Era Lula. Soou como promessa de novos tempos a insistência do diretor financeiro, Almir Barbassa, em relação à paridade dos preços internos com os internacionais. A presidente da estatal, Graça Foster, reforçou essa mensagem. A revisão dos cronogramas e metas, o reconhecimento dos problemas de produção e a avaliação crítica do projeto da Refinaria Abreu e Lima serão mais um marco importante na história da empresa, se os próximos passos forem compatíveis com esse discurso. A presidente Graça Foster ainda manifestou a esperança de ver realizada a associação com a PDVSA naquela refinaria, mas essa ressalva pode ter sido apenas diplomática. O custo do projeto foi revisto de US$ 13,4 bilhões para US$ 17 bilhões. Sua primeira unidade só deverá entrar em operação em 2014, com um ano de atraso em relação à última previsão. A participação venezuelana, até agora, foi nula.

O caso da Abreu e Lima é um claro exemplo de como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva misturou objetivos ideológicos, partidários, pessoais e econômicos em seus oito anos de exercício direto do poder. O adjetivo “direto” é justificável. Lula deixou o Palácio do Planalto, mas impôs vários ministros a sua sucessora e nunca renunciou de fato à interferência na administração federal. A maior parte daqueles ministros caiu de podre, no meio de escândalos indisfarçáveis, mas nem isso eliminou a influência do ex-presidente. Apesar disso, a presidente Dilma Rousseff demonstra, talvez contra a própria inclinação, crescente dificuldade para realizar sua tarefa sem abandonar a incômoda herança deixada por seu antecessor e mentor.

Parte desse legado é a aliança com o presidente Hugo Chávez para a construção de uma refinaria em Pernambuco. Esse compromisso resultou daquela mistura de objetivos. A associação deveria servir às ambições – jamais concretizadas – de influência regional do presidente brasileiro. Em pouco tempo ficou evidente o risco de só a Petrobrás custear o projeto, porque nem o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) aceitou as garantias oferecidas pela PDVSA. Mas Brasília insistiu na aventura.

A mudança no plano de negócios da Petrobrás e os comentários da presidente Graça Foster evidenciam um limite: tornou-se impossível insistir, sem graves consequências, num estilo de gestão irrealista, moldado segundo as concepções e ambições do presidente Lula. A crítica, no entanto, só avançou até certo ponto. A presidente Graça Foster ainda se arriscou na defesa da política de conteúdo nacional mínimo.

Essa política, no entanto, é apenas uma das manifestações de um padrão desastroso de governo. Pesquisar, extrair, refinar petróleo e distribuir derivados já são tarefas imensamente complexas. Essas tarefas se tornam ainda mais difíceis quando se inclui na agenda a exploração de reservas profundas como as do pré-sal. Apesar disso, o presidente Lula decidiu converter a Petrobrás em instrumento de política industrial, impondo mais um peso à sua administração e mais custos aos projetos desenvolvidos pelo grupo – além, é claro, de continuar subordinando a gestão dos preços de combustíveis à política de controle da inflação. Ninguém deve surpreender-se quando a multiplicação de funções e de alvos prejudica o negócio central de uma empresa.

Ao impor seus objetivos à Petrobrás, o presidente Lula combinou sua vocação autoritária (revelada também nas tentativas de comandar a Vale e a Embraer) com a tendência à busca dos caminhos mais fáceis. É muito mais simples criar reservas de mercado, índices mínimos de nacionalização e barreiras comerciais do que imaginar e executar uma política de produtividade e competitividade. Além disso, uma política sadia é incompatível com uma administração aparelhada, com o desperdício de recursos públicos e com a irracionalidade tributária.

A presidente Dilma Rousseff continua fiel à maior parte dessa herança, como comprovam sua política protecionista e sua insistência em maquiar com o financiamento habitacional os balanços do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Mas a revisão da estratégia da Petrobrás pode ser um início de mudança. Há poucos dias, a presidente previu uma visita do Inexorável da Silveira à zona do euro e a consequente adoção de políticas mais eficientes de ajuste e de crescimento. Talvez o sr. Silveira tenha dado uma rápida passada por Brasília

 
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 27/06/2012.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

A solidão que derrubou Lugo

Clóvis Rossi


Enquanto via, pela CNN em espanhol, a deposição do presidente paraguaio Fernando Lugo, não conseguia evitar que a memória viajasse 38 anos ao passado, para a queda de Isabelita Perón, na Argentina, em 1976.

Eu estava, na madrugada do golpe, na histórica Plaza de Mayo e não conseguia entender como a então chefe do movimento de massas mais forte da história latino-americana, o peronismo, era apeada na mais completa solidão.

Contei os militantes peronistas que davam vivas a Isabelita. Eram 24. Nenhum mais.

Claro que há insalváveis distâncias entre a Plaza de Mayo de 1976 e a Plaza de Armas de Assunção em 2012. Eram bem mais de 24 os militantes pró-Lugo ali reunidos. Mas a solidão política era parecida e foi ela, bem feitas as contas, a responsável pela queda de Lugo.

Uma segunda diferença é ainda mais relevante: na Argentina, foram os tanques que depuseram a presidente. No Paraguai, foi o Congresso, seguindo regras constitucionais, respeitadas na forma, mas não no espírito, posto que o direito de defesa foi violentado.

Nem se espera, agora, que o novo governo inicie um genocídio, ao contrário do que ocorreu na Argentina. A América Latina evoluiu, pois.

Falta, no entanto, evoluir na institucionalização de sua política, para não depender de homens supostamente providenciais.

Não que Lugo fosse um líder com a aura que, por exemplo, Luiz Inácio Lula da Silva e Hugo Chávez construíram, com diferentes métodos. Sua vitória foi um triunfo isolado, não de um movimento (como, por exemplo, o PT).

Teve que recorrer a um partido tradicional, o Liberal Radical Autêntico, para poder governar. Quando o PLRA o abandonou, caiu sem pena nem glória.

"Quando não se tem uma força política com certa raiz no país, é muito difícil governar", constata Eduardo Gamarra, boliviano que leciona na Universidade Internacional da Flórida.

Segundo problema que a América Latina não consegue resolver: a obscena distribuição da renda. No caso do Paraguai, dá-se que 1% dos proprietários rurais detêm 77% das terras, ficando apenas 1% para os 40% de camponeses donos de menos de cinco hectares.

Enquanto 350 mil famílias sem terra se tornaram "carperas" (vivem em "carpas", barracas de lona em espanhol), 351 proprietários são donos de 9,7 milhões de hectares.

Alguma surpresa que haja conflitos pela terra, um deles exatamente o que acabou sendo o pretexto para a deposição de Lugo, com a morte de 17 pessoas, policiais e sem-terra, na semana passada?

Se Lugo alguma culpa tem nessa história, não é a de ter ordenado ou provocado o incidente, mas o de não ter conseguido fazer a reforma agrária que prometeu ao assumir em 2008. Pretendia retomar para o Estado um total de 8 milhões de hectares, para depois dividi-los entre as famílias (300 mil então) que pediam a democratização do acesso à terra.

Se a tivesse executado, talvez caísse até antes, que os "terratenientes" são impiedosos, mas talvez não estivesse tão solitário.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/06/2012.

"Realpolitik"


Marta Suplicy


O modelo "realpolitik" se esgotou e parece que nem todos estão percebendo. Não dá mais para viver essa praga que se entranhou no sistema político brasileiro. Erva daninha que corrói valores, exclui a participação, nega a democracia, desestimula o mérito e ignora a ética.

Nascida na Alemanha, a expressão "realpolitik", segundo Luis Fernando Verissimo, é um termo invocado quando um acordo ou arranjo político agride o bom-senso ou a moral.

Os cidadãos eleitores, que ainda se dão ao trabalho de acompanhar a política, não suportam mais essa prática. Podem até entender a necessidade das composições, alianças e acordos que se tornaram imprescindíveis no Brasil muito em função do nosso sistema eleitoral, do número de partidos e do quanto tornou-se precioso o tempo de TV.

Os que criticam essa modalidade e as formas de fazer política, vistas como "normais" há décadas, têm hoje consciência de que elas são um terrível mal que compromete a ação de governar. Mas quando, pela sua simbologia, ferem os limites do bom-senso e têm a marca do estapafúrdio, tornam-se incompreensíveis para a população e são por ela rechaçadas. Encontram-se além dos limites da própria "realpolitik".

Os sentimentos de indignação, insatisfação e, por fim, impotência estão fazendo com que uma parcela grande das pessoas se desinteresse pela política. A maioria dos jovens quer distância. E o povo, mais escolado, começa a achar "tudo igual", o que acaba provocando o mesmo desinteresse.

A luta pela democracia no Brasil conseguiu eletrizar forças e corações que não suportavam viver num país sob ditadura. Cada um reagiu à sua maneira. Mas muitos morreram e sofreram pela liberdade. Esse resgate da democracia é tão importante que não poderia ter sido contaminado por práticas seculares que nos acorrentam à uma malfadada forma de fazer política. Esta mesma que aliena o povo que se vê --e se sente-- excluído e desrespeitado.

Mas nem tudo está perdido. Tem gente formulando, e outros remoendo, novas práticas e métodos, buscando diferentes formas e canais de interação social e política. Um novo modelo que contemple e dialogue com os vários segmentos e forças heterogêneas da sociedade. Uma construção distante dos métodos agonizantes e ultrapassados que ainda hoje vigoram. Uma transição necessária, e imprescindível, que já passou da hora de acontecer.

Não está claro como, e em quanto tempo, se dará o nosso processo de libertação da chamada "realpolitik". Mas, que esse sistema político e eleitoral que vivemos chegou à exaustão, tenho clareza."

Publicado na Folha de S.Paulo, em 23/06/2012.

As aparições do "Inexorável da Silva"

Elio Gaspari


Atribuem ao filósofo húngaro Giorgy Lukacs a seguinte afirmação: "O erro de Stálin não foi ter assinado um acordo com Hitler, foi ter acreditado nele". Em 1939, Stálin aliou-se ao Reich e comeu um pedaço da Polônia. Dois anos depois, Hitler invadiu a Rússia, e o Guia Genial dos Povos, incrédulo, entrou em estado de catatonia.

Pensando bem, Stálin não acreditou no pacto (tanto que acelerou a produção de armas), acreditou em si. Desprezou pelo menos 80 avisos de que Hitler atacaria, inclusive dois deles com a data.

Lula cavalga uma desastrosa autoconfiança. Longe dos mecanismos do poder, com os movimentos e a oratória limitados, investiu-se de um desembaraço autocrático que, em seis meses, produziu três desastres:
1) Sem discutir os prós e contras da ideia, participou de uma cenografia para abrilhantar a adesão de Paulo Maluf à candidatura de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo. Humilhou Luiza Erundina e detonou a chapa petista, levando os companheiros a catar vice até no falecido movimento "Cansei", teoricamente destinado a combater a corrupção. (A ex-prefeita aceitava o apoio de Maluf, desde que não houvesse espetáculos como o do jardim do palacete da rua Costa Rica. O mesmo se pode dizer do tucanato, que buscava intermediações para negociar com Maluf.)
2) Sem ouvir os interessados, meteu-se num périplo, catituando junto a ministros do Supremo a postergação do julgamento do mensalão. Foi detonado pela exposição da manobra.
3) Impôs ao PT uma aliança com o prefeito Gilberto Kassab, atropelando a senadora Marta Suplicy, que não queria "acordar de mãos dadas" com seu adversário. Dias depois, Lula acordou sozinho e viu Kassab abraçado ao PSDB.

Deixando-se de lado o conteúdo das decisões (o que não é pouca coisa), cometeu três erros. Chutou três vezes e três vezes marcou contra o próprio gol.

A doutora Dilma acha que a crise financeira mundial é influenciada pelo fator "Inexorável da Silveira". Seu governo terá que lidar com outro fator, o do "Inexorável da Silva". Por enquanto, ele restringiu-se à casa de louças petista, mas o perigo é que vá além, encrencando o governo.

Os "inexoráveis" acham que podem tudo.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/06/2012.

O arrastão é só um dos problemas

Oded Grajew



Os sucessivos arrastões em prédios, bares e restaurantes em São Paulo revelam o dramático quadro da violência na cidade.

Na recente pesquisa que a Rede Nossa São Paulo realizou com o Ibope, 89% da população declarou se sentir pouco ou nada segura na cidade. Os dados são preocupantes: em 2011, foram 150.197 roubos e 1.981 mortes decorrentes de crimes.

É importante nos debruçarmos sobre as razões da criminalidade para que medidas concretas sejam tomadas, atacando o problema nas suas raízes. A cidade é dividida em 96 distritos. Cada distrito tem em média mais de 110 mil habitantes, maior que 95% das cidades brasileiras. Mas em 20 deles não há um distrito policial.

É preciso combater a corrupção, remunerar dignamente e treinar adequadamente os policiais para que ganhem a confiança da população. Também é determinante agilizar os processos de investigação e punição aos criminosos. Menos de 5% dos delitos terminam em condenação e efetiva punição dos infratores.

Mas ao lado dessas mais do que conhecidas providências, outra e preocupante realidade se revela ao olharmos atentamente para os indicadores sociais e econômicos de São Paulo, a mais rica cidade do país. Uma realidade da qual talvez a maioria das vítimas dos arrastões não tenha consciência.

Dos 96 distritos da cidade, 45 não têm nenhuma biblioteca municipal (aliás, a maioria das bibliotecas municipais fecha aos sábados à tarde e domingos!), 59 não têm nenhum centro cultural, 59 não têm nenhum cinema, 71 não têm nenhum museu, 52 não têm nenhuma sala de show e concerto e 54 não têm nenhum teatro.

Em Bogotá, um caso exemplar de redução da violência, a implementação de uma grande rede de bibliotecas e de centros culturais, oferecendo atividades educacionais e culturais especialmente para jovens de baixa renda, foi fundamental para baixar a criminalidade.

Ainda em São Paulo, 56 distritos não têm uma unidade com equipamentos públicos de esporte. As pessoas são obrigadas a percorrer enormes distâncias para satisfazer suas necessidades: em 38 distritos, não é possível encontrar um parque.

No que diz respeito ao mercado de trabalho, os dez melhores distritos concentram 37,05% dos empregos, enquanto os dez mais pobres oferecem apenas 1,12% das vagas. Não é por acaso que a mobilidade na cidade é catastrófica.

A população que utiliza os serviços públicos de saúde espera, em média, 52 dias pela consulta, 65 dias para realização de exames e 146 dias para intervenções mais complexas como internações ou cirurgias. Em 26 distritos, não há nem sequer um leito hospitalar!

A diferença entre os indicadores dos distritos mais ricos e os mais pobres (que são a maioria) varia de dezenas a milhares de vezes, como pode ser constatado no mapa da desigualdade da cidade de São Paulo em www.nossasaopaulo.org.br.

Todas as cidades que baixaram os índices da violência e melhoraram a qualidade de vida implementaram ações para diminuir a desigualdade e ocupar todo o território com equipamentos e serviços públicos de qualidade. Essa deveria ser a maior prioridade da sociedade, dos candidatos e dos futuros gestores de São Paulo.

ODED GRAJEW, 68, empresário, é coordenador da secretaria executiva da Rede Nossa São Paulo e presidente emérito do Instituto Ethos. Integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social

Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/06/2012.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Pressão para prender ativista ameaça a crença na democracia americana

Joaquim Falcão



O criador do WikiLeaks, Julian Assange, pediu asilo político na Embaixada do Equador no Reino Unido. Estaria sofrendo perseguição política por parte dos governos britânico, sueco e americano.
O dissidente chinês Chen Guangcheng recentemente pediu asilo político na Embaixada dos EUA na China. Sofria perseguição política.
Ambos com direitos humanos atacados. Um, por publicar na internet documentos secretos do Departamento de Estado. Outro, por protestar como advogado contra abusos das autoridades chinesas.
É um mundo impensável. China e EUA sendo mundialmente violadores do Estado de Direito? É assim mesmo? Será o exercício do poder igual em qualquer lugar?
Os EUA prenderam um soldado que teria passado documentos ilegalmente a Assange. Está há mais de dois anos em cela. Sem julgamento definitivo. O Estado de Direito recusa prisões sem acusações formais definidas. É tortura.
Os EUA pressionam desde cartões de crédito a estancar doações ao WikiLeaks até os governos de Reino Unido e Suécia para prender Assange por crime sexual. Se conseguirem, acreditar que nos EUA a liberdade de imprensa é absoluta será difícil.
Sem essa crença, a democracia americana se aproximaria do absolutismo chinês.
Esse é o nó górdio: o uso patológico do direito --os suecos condenarem Assange na Suécia por crime de sexo sem consentimento, em lugar de os EUA o condenarem em Washington por uso excessivo da liberdade de informar.
Muitos esperam que o Equador consiga um acordo. O Reino Unido extradita Assange para a Suécia. Mas a Suécia não o extradita aos EUA. Todos ficam contentes.
Do contrário, se Quito conceder asilo, Assange fica na Embaixada do Equador. Incômodo vizinho da rainha, com uma romaria depositando flores nas calçadas e lembrando a necessidade de plena liberdade de expressão.

JOAQUIM FALCÃO é professor de direito constitucional da FGV Direito-Rio
Publicado na Folha de S.Paulo, em 21/06/2012.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

"Por amor a São Paulo"

Eliane Cantanhêde




Acabo de voltar de uma semana a Curaçao e leio, ouço, vejo as fotos de Maluf e Lula, com Fernando Haddad no meio, e me sinto como o personagem Sebá, o último exilado político, que ouvia pelo telefone as piores notícias sobre o Brasil e tascava para a mulher: "Tu não queres que eu volte!".

O petista Haddad abraçado ao PSB, que, de socialista, cada dia tem menos, e, do outro lado, ao PP de Maluf, que foi o inimigo nº 1 da sociedade e tem uma folha corrida internacional. O tucano José Serra de braços dados com o PV, de discurso bonito e de prática nem tanto, e, do outro lado, com o PR de Alfredo Nascimento, que saiu escorraçado dos Transportes na tal "faxina ética".

Onde o PSDB e o PT foram parar? Será que 1min35 a mais na TV e no rádio justifica que se engalfinhem por Maluf? Será que vale um cargo federal seja lá em que ministério for? Será que vale as décadas de lutas dos petistas e a história da cúpula tucana?

Lula passou por cima de Marta Suplicy e do PT para impor Haddad, tentou a jogada com Gilberto Kassab e levou uma rasteira fenomenal, entregou a cabeça de petistas pelo Brasil afora para atrair o PSB e, agora, vende a alma ao diabo por Maluf.

Bem, depois de anistiar Fernando Collor e convencer os antigos caras-pintadas de que as rixas eram só oportunismo político, Lula usa seu peso, sua história, seu carisma e o seu partido para reduzir tudo o que Maluf representa a algo banal, sem importância. O importante, ensina Lula do alto de seus 80% de popularidade, é vencer.

Coitado de Haddad, o novo que já entra velho. Sorte de Marta, que escapou dessa. E juízo de Erundina, para quem, segundo a "Veja", "não é preciso ser vice para fazer política".

Mas a melhor frase é a do próprio Maluf, que exigiu que Lula e Haddad fossem à casa dele e disse que selava a aliança "por amor a São Paulo". O único ganhador de toda essa história é ele. Quem ri por último ri melhor.


elianec@uol.com.br
Publicado na Folha de S.Paulo, em 19.06.2012.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Limite moral do mercado

Lúcia Magalhães

O mercado é amoral, dirá o leitor, já se opondo ao título da coluna. Concordo e explico: trata-se do subtítulo do novo livro de Michael Sandel, o professor de filosofia de Harvard, responsável pela série Justiça, que se tornou um dos cursos mais frequentados da história da Universidade.

What Money Can't Buy: The Moral Limits of Markets (O Que o Dinheiro não Pode Comprar: Os Limites Morais dos Mercados) se tornou o mais popular entre uma safra de livros inspirados pelo crash de 2008 e a contração da economia mundial. O choque da farra financeira e suas consequências provocaram o que um comentarista comparou à traição no casamento. O colapso do comunismo havia selado uma era de celebração da sabedoria ilimitada do mercado que, por sua vez, passou a bloquear qualquer julgamento moral sobre a "securitização" de tudo. Sandel está longe de ser um esquerdista ou um crítico do capitalismo.

Ele alerta que não foi uma explosão assintomática de ambição a responsável pela crise financeira. A mudança começou há 30 anos com o triunfalismo do mercado. Nós partimos de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado. A economia de mercado é uma ferramenta de produtividade. A sociedade de mercado é um mundo onde tudo está à venda.

O livro começa, não com a defesa do argumento do autor, mas com uma lista às vezes obscena do que o dinheiro pode, de fato, comprar. Alguns exemplos:

Um detento pode comprar, por US$ 82, um upgrade para uma cela com mordomias na prisão de Santa Ana, na Califórnia. A moda começa a se espalhar por outras cidades.

Alugue uma parte do seu corpo para publicidade. A companhia aérea Air New Zealand contratou 30 pessoas para rapar a cabeça e aplicar uma tatuagem temporária com publicidade. Mas Kari Smith, mãe solteira do Estado de Utah, estava tão desesperada para pagar a educação do filho que leiloou online uma tatuagem permanente por US$ 10 mil. Um cassino gostou da oferta e a testa da mulher exibe o endereço do website do cassino.

Compre com desconto a apólice de seguro de vida de um idoso e recolha o pagamento após a morte. A indústria que aposta na vida de estranhos prosperou no começo da epidemia da aids, quando doentes terminais não conseguiam pagar o custo astronômico do tratamento médico. Hoje, os chamados "Bônus da Morte" movimentam anualmente mais de US$ 30 bilhões nos Estados Unidos.

Por US$ 15 a hora, uma empresa contrata homeless para fazer fila no Capitólio. Eles cedem lugar aos lobistas que querem lotar os assentos das audiências legislativas.

O negócio de furar fila é cada vez mais lucrativo. Nesta segunda-feira, a Delacorte Theater, aquela arena ao ar livre do Central Park, construída para a série Shakespeare in the Park, faz 50 anos. O criador visionário da série, Joseph Papp, morreu em 1991 sem assistir à violação do princípio que o fez enfrentar poderosos caciques políticos de Nova York na década de 60: Shakespeare no Parque seria sempre grátis.
Oficialmente continua a ser - 70% dos ingressos são grátis, 30% vão para os convidados de patrocinadores corporativos. Mas, quando Al Pacino viveu o Shylock do Mercador de Veneza, em 2010, havia gente pagando até US$ 200 para alguém passar a noite na fila. É ilegal? Não. Se você entra no website do festival, antes de descobrir o horário das produções, vai ser convidado a se tornar um membro pagante do Public Theater e a lista de benefícios começa com: "Fure a fila, encomende os ingressos antes de eles serem oferecidos ao público".

Sandel lembra que mais empregados de empresas privadas participaram das ocupações do Iraque e do Afeganistão do que soldados americanos. O debate sobre a terceirização da guerra não existiu. A inércia transfere para o mercado as decisões. E como o mercado não faz julgamento ético, a decisão é amoral.
Essa forma de "precificação" de todas as áreas da nossa vida tem consequências graves, escreve Michael Sandel. Ele deixa claro: não acredita que a democracia exige a igualdade perfeita. Mas a democracia exige que esbarremos uns nos outros. A sociedade de mercado segregou os americanos a tal ponto que eles vivem vidas paralelas, nunca se encontram. Quanto mais o dinheiro invade áreas como saúde, educação e política, maior é a segregação. A extinção progressiva da experiência comum, diz o autor, é o perigo para a democracia.

E ele conclui com a pergunta: Nós queremos viver com bens cívicos independentes do mercado? Se a resposta é "sim", então, precisamos decidir o que o dinheiro não pode comprar.

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 18.06.2012.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A comissária se esqueceu do passado

Elio Gaspari


A comissária Miriam Belchior, ministra do Planejamento, conseguiu uma proeza. Veterana militante do PT, provocou uma greve de professores das universidades federais que durou um mês e poderá terminar com atendimento da principal e justa reivindicação dos servidores.
Desde agosto do ano passado, o Planejamento sabia que os professores reivindicavam um plano de carreira semelhante ao que existe no Ministério da Ciência e Tecnologia. Estava aceso o sinal do risco de greve.
O assunto vinha sendo negociado por Duvanier Paiva Ferreira, secretário de Recursos Humanos da doutora Belchior. Em janeiro, Duvanier foi acometido por três desgraças: teve um infarto, tinha o plano de saúde dos servidores federais e era negro. Foi a duas casas de saúde, daquelas que têm nomes de santas (Lúcia e Luzia) e não foi atendido. Morreu.
A prudência recomendava que a negociação fosse imediatamente retomada, mas empacou.
A ideia da greve avançou e ela estourou no dia 17 de maio. Pararam 14 universidades.
Neste momento, a comissária Miriam adotou o "modelo Scania" de negociação. O governo só conversaria com o retorno ao trabalho.
Foi reforçada por çábios da Advocacia-Geral da União que defendiam a decretação da ilegalidade do movimento. Novamente o "modelo Scania", mas felizmente a proposta foi rebarbada. A greve expandiu-se para 49 instituições, parando 55 mil professores.
Depois de um mês, com um prejuízo de R$ 1 bilhão para a Viúva, a perda de aulas para cerca de 600 mil estudantes, o governo se reuniu com os grevistas. Na melhor técnica da marquetagem, a comissária Belchior e o ministro Aloizio Mercadante (tão frequente nas cenas de comitivas presidenciais) não apareceram na fotografia.
O governo apresentou a promessa de um plano de carreira semelhante ao do Ministério da Ciência e Tecnologia e informou que oficializará a proposta nesta terça-feira.
A ministra é futricada na Esplanada dos Ministérios por colegas que se queixam dela por não devolver telefonemas no mesmo dia e por marcar reuniões com 15 dias de espera. Até aí, pode ser a maledicência de Brasília.
A poderosa comissária tinha 20 anos em 1978, quando os barões da indústria automobilística e a diretoria da fábrica de caminhões Scania souberam que 3.000 operários haviam entrado em greve. O patronato disse que só conversaria quando a patuleia voltasse ao trabalho.
Buscaram com sucesso a decretação da ilegalidade da paralisação. Quebraram a cara. A greve alastrou-se pelo ABC, parando 100 mil operários em 55 empresas. Ao final, cederam e assim nasceu um novo personagem na política brasileira: Lula.
Dois anos depois, Miriam e seu namorado, Celso Daniel, ajudaram a fundar o Partido dos Trabalhadores.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 17/06/2012.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Direito penal politicamente correto

Janaina Conceição Paschoal


Penalistas sempre denunciaram o fato de o legislador criar crimes para atender o clamor público. Mas várias das propostas para um novo Código Penal vêm para atender aos reclamos da intelectualidade.

Por um lado, a comissão diminui a pena daquele que realiza um aborto na gestante e alarga consideravelmente as hipóteses em que se torna lícita tal prática. Por outro, a mesma comissão propõe pena de um a quatro anos para quem abandona um cachorro na rua.

Isso sendo que, atualmente, o abandono de incapaz está sujeito a uma pena de seis meses a três anos.

Não é raro, no ambiente acadêmico, encontrar pessoas que defendem o aborto como política de saúde pública e, ao mesmo tempo, entendem ser crime grave usar ratos como cobaias de laboratório. É uma inversão de valores intrigante.

A questão da discriminação é outro exemplo. Alarga-se significativamente a incidência do direito penal nessa seara, quando, com todo o respeito, ações afirmativas seriam muito mais eficazes.

Nesse sentido, cumpre destacar que já não há qualquer proporcionalidade no fato de o racismo ser imprescritível enquanto o homicídio prescreve. E todos aceitam tal situação como normal...

Foi aplaudida também a proposta de criminalização do bullying e do tal stalking (perseguição obsessiva), pois é inadmissível alguém ser humilhado.

Os juristas se esquecem de que um pouco de agressividade faz parte do processo de amadurecimento -e que ensinar a criança e o adolescente a respeitarem o outro é papel da família e dos professores, não da justiça penal.

Ademais, os atos de violência que resultam em morte ou lesão grave já são crimes onde quer que ocorram, inclusive na escola.

Criminalizar o bullying retirará dos pais e dos professores a sua responsabilidade. Para que dialogar? Por que tentar integrar? Basta chamar a polícia.

A esse respeito, é curioso constatar que o mesmo grupo que defende que as drogas são uma questão de saúde traz propostas que implicam dizer que falta de educação é um problema policial.

Paulatinamente, abrimos mão de nossos poderes e deveres em prol de um Estado interventor, que nos dita como ser, pensar e falar. É o império da padronização.

Também é surpreendente a notícia de que a comissão preverá o acordo como solução célere do processo, principalmente pelo fato de, ao ser anunciada a medida, ter sido comemorado o rompimento com o devido processo legal, uma das maiores conquistas democráticas.

Quem conhece a realidade forense sabe que não existe qualquer paridade entre as partes. Como na transação penal, os acordos serão impostos -com a conivência de muitos defensores.

Mesmo que decidamos adotar o instituto da barganha -que, aliás, tem natureza também processual- é necessário, primeiro, um maior amadurecimento.

Por mais que a legislação atual seja falha, não pode ser reformulada a toque de caixa. São Tomás de Aquino já ensinava que só é justificável mudar a lei quando os bônus são maiores que os ônus.

Não é o que se anuncia. Não podemos transformar a lei penal, braço mais forte do Estado, em uma sucessão de bandeiras do politicamente correto. Há medidas menos invasivas e mais efetivas para a concretização de uma sociedade mais solidária.
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JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 37, doutora em direito penal pela USP, é advogada e professora livre-docente da Faculdade de Direito da USP

Publicado na Folha de S.Paulo, em 10/06/2012.

Os heróis também erram

Raphael Neves


Na discussão sobre a Comissão da Verdade, frequentemente alguém invoca o precedente do Tribunal de Nuremberg, que condenou os nazistas após a Segunda Guerra.

Nuremberg foi um avanço em termos de justiça de transição quando comparado a tudo o que se tinha feito até então. Mas não se pode esquecer que ele foi uma espécie de "Justiça dos vencedores". Não apurou os crimes cometidos pelos aliados, como os milhões de estupros das tropas soviéticas na Alemanha ou os milhares de civis mortos pelas duas bombas atômicas no Japão.

Em "Duas Mulheres", filme de Vittorio de Sica de 1960, a personagem de Sophia Loren, após ser violentada juntamente com a filha por um grupo de goumiers (resistentes franceses do Marrocos), pergunta aos soldados americanos: "Vocês sabem o que seus heróis fizeram?"

É exatamente essa a pergunta que ficou sem resposta em Nuremberg.

Quais as implicações quando a análise passa para o plano da apuração das responsabilidades individuais? Ao emitir seu juízo sobre as ações individuais, a Comissão da Verdade terá de inevitavelmente lidar com os limites aos quais qualquer ação, mesmo de resistência legítima, está sujeita.

O caso mais notório em que isso ocorreu é o da África do Sul. Antes mesmo da criação de uma comissão da verdade de âmbito nacional, o Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Nelson Mandela, havia criado, em duas ocasiões, comissões para investigar os abusos cometidos por seus próprios militantes nas ações de resistência ao apartheid.

E mesmo na Comissão de Verdade e Reconciliação vários casos envolvendo o Umkhonto we Sizwe, braço armado do CNA, foram apurados.

Um deles, o de Robert McBride, autor de um atentado a bomba em Durban que matou e feriu civis inocentes, voltou a ser destaque recentemente, quando a corte constitucional daquele país declarou que as matérias de um jornal que o chamavam de criminoso não podiam ser consideradas difamatórias, ainda que ele tenha sido anistiado.

A responsabilidade da própria mulher de Mandela na época, Winnie, em relação a mortes e torturas também foi apurada pela comissão. Outro fato notório é o de que o presidente da Comissão, arcebispo Desmond Tutu, ameaçou renunciar em protesto pelas declarações de líderes do CNA afirmando que os atentados e mortes provocadas pela luta contra o apartheid faziam parte de uma "guerra justa" -e que, portanto, não deviam ser analisados pela Comissão da Verdade.

A legitimidade de uma comissão da verdade reside em sua capacidade de emitir juízos imparciais. E isso não é diferente na comissão brasileira, como prevê a lei que a criou.

Ao se debruçar sobre as "graves violações de direitos humanos", a comissão terá também de especificar o que ela julga ser "grave". Um parâmetro possível é considerar grave violação aquilo que é crime no direito internacional.

Nesse caso, os crimes do Estado, tais como torturas, execuções, desaparecimentos e detenções, devem certamente ser apurados. Ainda segundo o direito internacional, ações que decorrem de agentes não estatais só podem ser consideradas "graves violações" se sistemáticas.

É um juízo que a comissão terá de fazer, não ignorando que algumas violações da luta armada podem não ter sido totalmente elucidadas.

Por exemplo: Orlando Lovecchio Filho só teve parcialmente esclarecido o atentado a bomba que o fez perder uma perna porque um dos autores assumiu à Folha, em maio de 1992, a responsabilidade.

Caso os autores de tais violações já tenham sido responsabilizados e punidos, cabe à comissão justificar sua recusa em analisar esses fatos, sempre caso a caso. Assim, a legitimidade do processo estará assegurada -e não restarão dúvidas sobre os limites que os direitos humanos impõem às ações, do Estado e dos cidadãos em geral.


RAPHAEL NEVES, 32, mestre em ciência política pela USP, é professor assistente da mesma universidade. É doutorando na New School for Social Research de Nova York

Publicado na Folha de S.Paulo, em 08/06/2012.

Drogas: qual a alternativa?

Ferreira Gullar


Volto a um assunto que tenho abordado aqui e o faço porque considero necessário discuti-lo sempre que possível e com total isenção: o problema da liberação das drogas. Agora mesmo, uma comissão de juristas submeterá ao Congresso um anteprojeto propondo descriminalizar o porte e o plantio de maconha.

Admito que, por alguma razão, pessoas de tanta responsabilidade entendam que a descriminalização é uma medida positiva.

Ainda assim, duvido da conveniência de uma tal medida, uma vez que, no meu modo de ver, o fator principal que sustenta o tráfico de drogas é o consumidor.

Volto ao argumento óbvio, conforme o qual não há mercado para mercadoria que não se consome. Logo, se o tráfico ganhou a dimensão que tem hoje, foi porque, a cada dia, um número maior de pessoas consome drogas. Um dos argumentos usados pelos defensores da liberação das drogas é o de que a repressão não deu os resultados esperados, uma vez que o tráfico, em lugar de diminuir, aumentou.

Já discuti esse argumento, que me parece descabido. Basta raciocinar: desde que a humanidade existe, combate-se a criminalidade e, não obstante, ela não acabou. Pelo contrário, aumentou. Devemos concluir, então, que a Justiça fracassou e que, por isso, o certo é acabar com ela? Claro que não. Se se praticasse semelhante insensatez, simplesmente poríamos fim à sociedade humana. O certo é entender que determinados problemas não têm solução definitiva, mas nem por isso devemos nos render a eles, sob pena de se tornar inviável o convívio humano.

A droga é um desses problemas. Exterminá-la definitivamente parece-nos impossível mas, por outro lado, aceitá-la é abrir mão de importantes valores que o homem conquistou ao longo de sua história. A droga é uma herança de tempos remotos, quando estava associada a uma concepção ingênua e mágica da existência.

A ciência demonstrou que os efeitos que ela provoca são resultados dos elementos alucinógenos que fazem parte de sua composição química. Ela se alimenta daquilo que, no ser humano, resiste à compreensão objetiva e racional da existência. Como talvez o ser humano jamais alcance um estado permanente de lucidez em face do mistério da vida, a droga continuará a ser necessária a uma parte da sociedade, que nela encontra compensação para suas ansiedades. Disso se valem e se valerão os produtores e vendedores de drogas.

As últimas apreensões de drogas ocorridas no Brasil indicam o crescente poderio econômico e técnico dos traficantes. São toneladas de maconha, cocaína e crack, o que pressupõe o crescimento progressivo de consumidores.

Acreditar que a legalização das drogas fará com que essas organizações clandestinas se tornem, de repente, empresas legais é excesso de boa-fé. E o que fazer com as drogas sintéticas que, por se multiplicarem rapidamente, gozam de legalidade, já que os órgãos de repressão sequer as conhecem? A legalização das drogas transformaria o Brasil num centro internacional de consumo, como é hoje a Holanda.

Outro ponto que os defensores da legalização parecem ignorar é o fato de que os consumidores de drogas -em sua maioria jovens- nem sempre dispõem de dinheiro para comprá-las e isso os leva a praticar roubos e assaltos.

Hoje, a maioria dos crimes está ligada, de uma maneira ou de outra, ao tráfico e ao consumo de drogas. Na verdade, o viciado é um aliado do traficante -já que têm interesses comuns- e o ajuda a burlar a repressão.

Amparado na lei, o viciado em drogas vai se sentir mais à vontade para consegui-la a qualquer preço, sem que a família tenha autoridade para impedi-lo, já que estará agindo dentro da legalidade.

A alternativa seria o Ministério da Saúde -que não consegue manter em funcionamento satisfatório os hospitais, por falta de verbas- passar a subvencionar o vício dos drogados?

Creio que tudo conduz à conclusão de que o caminho certo é batalhar para reduzir o número de consumidores de drogas, e isso só será possível se as autoridades, em nível nacional e internacional, se dispuserem a promover um trabalho sistemático de esclarecimento e educação dos jovens para mostrar-lhes que as drogas só os levarão à autodestruição.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 10/06/2012.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O Brasil devia gastar mais com saúde?

André Médici



A regulamentação da Emenda Constitucional 29, em dezembro de 2011, deveria representar o fim de um ciclo de debates e acordos para prover os recursos necessários ao financiamento público da saúde no Brasil, mas muitos argumentam que o resultado não alcançou esse propósito. Em livro recém-publicado (Do Global ao Local: Os Desafios da Saúde no Limiar do Século XXI, Editora Coopmed, Belo Horizonte, 2011) procurei demonstrar ser impossível saber quanto um país deve gastar com saúde, a menos que sejam respondidas algumas perguntas: quais as necessidades de saúde da população? Poderiam elas ser financiadas com os recursos financeiros públicos e/ou privados disponíveis? Os recursos existentes são alocados de forma eficiente e equitativa? A população realmente quer gastar esses recursos com saúde ou tem outras preferências?

As necessidades da saúde da população brasileira, segundo a Constituição de 1988, devem ser cobertas integralmente. Mas como se define cobertura integral? A sociedade, incluindo o Ministério da Saúde, vem discutindo há tempos o conceito de integralidade sem chegar a uma conclusão. Atualmente o rol de procedimentos financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é maior do que a lista da saúde suplementar, mas inferior ao que consta na tabela da Associação Médica Brasileira.

A garantia constitucional da integralidade faz com que a população bem informada e com capacidade de pagar a advogados possa reivindicar os procedimentos, exames, tratamentos ou terapias que o setor público ou os planos de saúde não incluem em suas listas. No entanto, quanto mais entramos no rol dos procedimentos de alta tecnologia e das inovações medicamentosas não cobertas por essas listas, maiores serão os custos para atender a todos. E se o cobertor do financiamento é curto, acabamos deixando de fora os que estão em baixo para cobrir os que estão em cima na pirâmide social.

Os países desenvolvidos procuram usar prioridades em saúde como forma de limitar os gastos, dado que os recursos são escassos. Mas a Constituição brasileira de 1988 não fala em prioridades, e sim em cobertura integral e igualitária. E até conseguirmos sair desse imbróglio o tempo passa, o gasto com saúde aumenta e os mais pobres ficam com uma cobertura menor e de pior qualidade.

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde para 2008, o Brasil era o quarto país com maior participação do gasto em saúde no produto interno bruto (PIB) na América Latina e no Caribe (8,4%), superado por Cuba, Nicarágua e Costa Rica. Mas em termos absolutos a realidade é um pouco diferente. Com US$ 875 anuais per capita, nosso país era o 10.º no ranking do gasto em saúde da região. Países com renda per capita maior, como Argentina, Chile, Uruguai, Costa Rica, Barbados, Bahamas e Trinidad e Tobago, tinham mais para gastar nessa área. No entanto, gastávamos mais que México, Colômbia e Venezuela.

Entre os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), somos o país com maiores gastos em saúde como porcentagem do PIB. Mas no que se refere ao gasto per capita, ocupava a terceira posição. Nosso gasto nesse item em 2008 equivalia a 48% do da África do Sul e 89% do da Rússia, mas a renda per capita desses dois países era pelo menos o dobro da brasileira. Uma comparação entre 193 países mostra que, dado o seu nível de renda, o Brasil tem um gasto em saúde por habitante acima da média mundial. Portanto, se o financiamento da saúde fosse organizado sob princípios de gestão eficiente e equidade, não estaríamos mal na foto.

Mas quando se analisa o gasto público nessa área, a situação é diferente. Países de renda média alta (grupo em que o Brasil se insere) gastavam 57% dos seus recursos em saúde no setor público em 2008. O Brasil, só 44%, ficando entre a média dos países de renda baixa e de renda média baixa. No contexto latino-americano, nosso país é um dos que têm a menor participação do gasto público em saúde, sendo equivalente ao do Chile e ficando somente à frente de Peru, Equador, El Salvador, Guiana e Honduras. Mas considerando o gasto público per capita no setor, o Brasil, com US$ 386 anuais, encontrava-se numa posição intermediária, estando abaixo de Argentina, Cuba, Uruguai, Chile, Costa Rica, Colômbia e México.

Gastar mais em saúde ou decidir sobre sua distribuição entre os setores público e privado é uma opção da sociedade. O Brasil gasta acima da média dos países da América Latina e do Caribe, mas a participação do gasto público sobre o gasto total está abaixo da verificada nesse mesmo conjunto de países. O País tem alta participação do gasto direto das famílias no total do gasto em saúde (cerca de 28% em 2009). Aumentar o gasto público em saúde, de forma eficiente e equitativa, poderia levar à redução do gasto direto das famílias na mesma rubrica, o que é positivo para aliviar a pobreza e melhorar a equidade.

Atualmente existe uma progressiva convergência quanto à necessidade de aumentar o gasto público em saúde no Brasil. Mas isso envolve dois desafios. Primeiro, usar de forma mais eficiente e equitativa os recursos públicos a ela destinados para melhorar a cobertura e a qualidade do acesso, beneficiando os mais pobres e excluídos. Segundo, aumentar tais gastos públicos sem que se demandem mais recursos, financiados por novos impostos ou endividamento do governo. É necessário definir prioridades no uso do orçamento público. Para tal o Executivo e o Legislativo deveriam abandonar suas agendas pessoais ou corporativas e se associar ao compromisso republicano pelo debate de ideias, interesses e prioridades para melhorar a saúde da população brasileira. Estaríamos maduros, como nação, para enfrentar esses dois desafios?


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 06/06/2012.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A imbecilidade constitucional dos EUA

Sanford Levinson



Criada 225 anos atrás, a Carta dificulta emendas e, segundo seus críticos, tornou o sistema político americano disfuncional e até mesmo patológico

Na defesa da adoção da nova Constituição rascunhada na Filadélfia, os autores de The Federalist Papers zombaram da "imbecilidade" do governo central fraco criado pelos Artigos de Confederação.

Quase 225 anos depois, críticos de todo o espectro consideram o sistema político americano de disfuncional e até patológico. Mas o que eles não mencionam é o papel da própria Constituição para causar a patologia.

Ignorem, para o bem da discussão, as cláusulas que ajudaram a impingir a escravidão até ela ser extinta por uma brutal guerra civil. Comecem com o Senado e sua atribuição de poderes votantes iguais para Califórnia e Wyoming; Vermont e Texas; Nova York e Dakota do Norte.

Considerem que, apesar de uma maioria de americanos ter manifestado, desde a 2.ª Guerra, sua oposição ao colégio eleitoral, participaremos neste ano de mais uma eleição dominada pelos Estados indefinidos entre democratas e republicanos enquanto os três maiores Estados serão, em grande parte, ignorados.

Nosso alardeado sistema de "separação de poderes" e "equilíbrio entre poderes" - um legado da desconfiança das facções pelos fundadores - significa que é raro termos algo que realmente pode ser descrito como um "governo". Exceto por aqueles raros exemplos em que um partido tinha o controle folgado de quatro instituições do poder - a Câmara de Representantes, o Senado, a Casa Branca e a Suprema Corte - paira uma ameaça de impasse.

As eleições têm cada vez menos significado, ao menos em termos de produzir resultados condizentes com os desafios que se colocam para os EUA.

Mas se for preciso escolher a pior parte isolada da Constituição esta é com certeza o Artigo 5.º, que tornou nossa Constituição uma das mais difíceis de emendar do mundo. A última modificação constitucional significativa foi a 22.ª Emenda, acrescentada em 1951, para limitar os presidentes a dois mandatos. A quase impossibilidade de emendar a Constituição nacional não só impede reformas necessárias; também faz a discussão parecer fútil e causa uma recusa complacente de que haja alguma coisa com que se preocupar.

Nem sempre foi assim. Na eleição de 1912, dois presidentes - passado e futuro - questionaram seriamente a adequação da Constituição. Theodore Roosevelt teria permitido que o Congresso derrubasse decisões da Suprema Corte invalidando leis federais, enquanto Woodrow Wilson basicamente apoiava um sistema parlamentarista e, como presidente, tentou agir mais como primeiro-ministro do que como agente do Congresso. Os anos seguintes viram a promulgação de emendas estabelecendo a legitimidade do imposto de renda federal, a eleição direta de senadores, a Proibição (lei seca) e o direito de voto para as mulheres.

Veneração. Um debate como esse provavelmente não ocorrerá entre Barack Obama e Mitt Romney. Eles aparentemente perderam, como a maioria dos americanos contemporâneos, sua capacidade de pensar com seriedade em até que ponto a Constituição nos serve bem. Em vez disso, a Constituição está envolta numa veneração quase religiosa (a teologia mórmon a trata, aliás, como dádiva divina).

O que poderia ser uma reforma radical? Poderíamos avaliar as Constituições dos 50 Estados, consideravelmente mais fáceis de emendar. Houve mais de 230 convenções constitucionais estaduais; cada Estado teve uma média de quase três Constituições (Nova York, por exemplo, está na sua quinta Constituição, adotada em 1938).

Este ano, os habitantes de Ohio votarão sobre a convocação ou não de uma nova convenção constitucional; sua Constituição, como outras 13, entre as quais a de Nova York, confere aos eleitores a opção de fazê-lo em intervalos regulares, tipicamente a cada 20 anos.

Outra reforma buscaria resolver o impasse do Congresso. Poderíamos permitir que cada presidente recém-eleito nomeasse 50 membros da Câmara e 10 membros do Senado, todos para servir mandatos de 4 anos, até a próxima eleição presidencial. Os presidentes seriam julgados por programas reais e não por retórica vazia.

Se aumentar os poderes presidenciais parecer assustador demais, a solução poderia repousar, então, na redução, se não na eliminação, do poder do presidente de vetar legislação e voltar ao verdadeiro bicameralismo, em vez do tricameralismo sob o qual realmente os EUA operam. Poderíamos permitir que os impasses entre as duas Casas do Congresso sejam rompidos por uma supermaioria da Câmara ou o Congresso votando como um todo, por exemplo.

Também poderíamos nos inspirar nos Estados que admitem ao menos alguns aspectos da democracia direta.

A Califórnia - o único Estado com uma Constituição mais disfuncional do que a dos Estados Unidos - permite emendas constitucionais pelas urnas. O Maine, mais sensatamente, permite que seus cidadãos derrubem leis que considerem objetáveis. Não estaríamos muito melhor com um referendo nacional sobre o "Obamacare" (a reforma do sistema de saúde) em vez de deixar nove juízes politicamente não responsabilizáveis decidirem? Mesmo se quisermos preservar a revisão judicial da legislação nacional, uma coisa que o juiz Oliver Wendell Holmes Jr. acreditava que poderíamos dispensar, talvez devêssemos imitar Dakota do Norte ou Nebraska, que exigem supermaiorias de seu tribunal para invalidar leis estaduais. Por que não deveriam ser precisos os votos de, por exemplo, sete dos nove juízes da Suprema Corte para derrubar legislações nacionais? Ou considere-se o fato de que quase todos os Estados rejeitaram o modelo de juízes nomeados pelo presidente e depois confirmados pelo Senado. A maioria dos juízes estaduais é eleitoralmente responsabilizável, de certa maneira, e quase todos devem se aposentar em uma determinada idade. Muitos Estados adotaram comissões para limitar a politização do processo de nomeação.

O que foi realmente admirável nos primeiros constituintes foi sua disposição de comentar, na verdade, eliminar, os Artigos de Confederação. Não é preciso acreditar que a Constituição de 1787 deve ser eliminada da mesma maneira para aceitar que já faz tempo que estamos devendo uma discussão séria sobre seu papel na produção do estado deprimente (e depressivo) da política americana.


Tradução de Celso Paciornik

Publicado da Folha de S.Paulo, em 01/06/2012.

Chocante é o que foi falado em público

Eugênio Bucci


Comecemos por uma recapitulação factual básica (há tanto barulho em torno do assunto que, por vezes, retomar o óbvio se faz necessário). A imprensa brasileira anda obcecada com o teor de uma conversa privada, que ocorreu em Brasília há mais de mês. Em 26 de abril, no escritório de Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu-se com o ministro do Supremo Gilmar Mendes. A notícia desse encontro, porém, só circulou agora, no fim de semana, numa reportagem de Otavio Cabral e Rodrigo Rangel na revista Veja. Desde então o tema não sai do noticiário - e a tensão cresce.

Mendes afirma que Lula o teria pressionado pelo adiamento do julgamento do mensalão no STF. De seu lado, o ex-presidente da República apenas soltou uma nota pública na qual ele se declara "indignado" com o relato de Mendes, que ele, Lula, qualifica de "inverídico". Quanto a Jobim, primeiro deu a entender que não foi bem isso, depois tentou o "deixa disso" e finalmente se refugiou no protocolar "nada a declarar".

Óbvio: os jornalistas têm razões para estarem obcecados pela reunião. Em primeiro lugar, porque ela pode ter encerrado uma insinuação que seja, mas uma insinuação indevida, de um ex-presidente da República para constranger um magistrado da Corte Suprema, o que, se confirmado, seria um escândalo. Em segundo lugar, porque um dos dois está torcendo a verdade e, se esse alguém for Gilmar Mendes, o escândalo talvez seja pior. O ministro do Supremo seria o vetor de uma acusação falsa contra um ex-presidente da República, o que tornaria moralmente insustentável a sua permanência no tribunal e comprometeria a confiabilidade de decisões anteriores do STF.

Não por acaso, além dos repórteres, dos deputados, dos senadores, dos ministros e dos cidadãos, a própria presidente Dilma Rousseff se preocupa, e bastante, conforme este jornal noticiou ontem, com os efeitos retardados da conversa que teve lugar no escritório de Jobim em Brasília, em 26 de abril. Não é para menos: ela precisa desvincular seu governo de toda essa confusão. O quanto antes. O quadro é urgente e dramático.

E até aqui falamos apenas do óbvio, do básico.

Acontece que há outra face desse mesmo problema. Não é bem uma face oculta: ela é ofuscante, tem uma claridade solar. Deveria ser mais óbvia ainda, mas, talvez por ser tão chocante, tão difícil de assimilar, nós olhamos para ela como se fosse transparente, invisível, inexistente. Essa outra face é a face pública que cerca, feito uma moldura entalhada em fatos indisfarçáveis, a conversa misteriosa entre Lula e Gilmar Mendes. O que os dois estão falando em público é muito mais perturbador do que poderiam ter falado ali, a portas fechadas, longe dos holofotes.

Vamos, então, às falas.

O ex-presidente vem repetindo a todas as plateias que o mensalão foi uma grandessíssima "farsa", articulada num conluio entre setores da imprensa e da oposição, com o objetivo de arrancá-lo do poder, em 2005, por meio de um "golpe" sem armas. Com isso - deveria ser óbvio, mas parece que não é - Lula está acusando reiteradamente o STF de ter dado acolhida formal a um processo fajuto, baseado em fatos que nunca ocorreram, um processo que seria o prolongamento maldito da "farsa". Atenção: ele não ataca apenas o Ministério Público e a Polícia Federal, ataca também e principalmente o Poder Judiciário em sua mais alta Corte, que seria cúmplice de uma tentativa de golpe de Estado. Em vez de pedir um julgamento justo e desapaixonado - a exemplo do que têm feito os próprios acusados -, o que seria legítimo e adequado, Lula fustiga: esse processo não passa de uma falsificação de fato e de direito. Com isso desqualifica a Justiça.

Essa postura vem de tempos. Mais abertamente, vem pelo menos desde 2010. Numa entrevista a blogueiros, ainda instalado no Planalto, Lula caracterizou o mensalão como uma "tentativa de golpe". E prometeu: "Depois que eu deixar a Presidência, vou querer me inteirar um pouco mais disso, mas, como presidente, não posso ficar futucando". Em outro evento, como este jornal noticiou em 20 de novembro de 2010, o então presidente anunciou que a partir de janeiro de 2011 iria empenhar-se em "desmontar a farsa do mensalão". E assim tem sido. Agora, em 21 de maio, ao ser homenageado na Câmara Municipal de São Paulo, ele voltou a falar do caso como um movimento golpista: "Na verdade, era um momento em que tentaram dar um golpe neste país".

As palavras de Lula encerram o significado de Lula. Ele representa, hoje, a ponta de lança de um discurso corrosivo que acusa o STF de ter recebido como processo jurídico normal uma repugnante tentativa de golpe de Estado.

Por isso Gilmar Mendes cometeu um erro ao ter dito sim ao convite para se reunir reservadamente com Lula, justamente aquele que enuncia publicamente uma acusação peremptória contra o STF. Agora, nesta semana, Mendes incidiu num segundo erro, que é pior. Falou várias vezes a repórteres sobre seu diálogo com Lula e a cada nova manifestação vem subindo o tom, numa escalada que amedronta. Chegou a dizer que Lula está ligado a "moleques", "bandidos" e "gângsteres", que se teriam associado numa operação para desmoralizá-lo.

Aí, complica. O ministro tem o direito - e talvez o dever - de dizer o que ouviu de Lula numa reunião particular. Só não deveria partir para o desaforo. Quando um magistrado da Corte Suprema bate boca, o Estado de Direito bate os dentes.

Naquele dia 26 de abril, num escritório brasiliense, pode ter havido uma conversa grave, mas o cenário que a envolve, e que é público, é mais grave ainda. Tão grave e tão claro que nos cega e nos deixa paralisados.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 31/05/2012.