quinta-feira, 31 de março de 2011

Toda revolução é uma revolução suis generis

Simon Sebag Montefiore

 
Uma revolução se assemelha à morte de uma estrela agonizante, uma brilhante explosão em cores que dá origem não a uma galáxia nova, mas a uma nebulosa, uma nuvem disforme de energia instável. E, embora cada revolta seja diferente, nesta era incerta de levantes árabes e de intervenções do Ocidente, enquanto os mísseis americanos caem sobre a Líbia, enquanto o presidente do Iêmen vacila à beira da catástrofe e as tropas sírias disparam em manifestantes, a história da revolução ainda pode apresentar algumas indicações sobre o futuro.

O sociólogo alemão Max Weber apontou três razões para os cidadãos obedecerem a seus governantes: prestígio histórico, carisma do governante ou ordem e justiça. A primeira razão é particularmente importante porque no mundo árabe até as repúblicas tendem a ser dinásticas. Antes de ser deposto, o egípcio Hosni Mubarak preparava seu herdeiro. Antes de falecer, em 2000, Hafez Assad, ditador sírio, entregou o poder ao filho Bashar. O coronel Muamar Kadafi governou por muito tempo por meio de capangas herdeiros, cada qual desempenhando uma função diferente: um era o executor totalitário; outro, o liberalizante pró-Ocidente. Cada um competindo pela sucessão. Do mesmo modo, Ali Abdullah Saleh, do Iêmen, é protegido por forças especiais comandadas por filhos e netos.

Entretanto, "a vida de uma dinastia corresponde ao arco da vida de um indivíduo", escreveu Ibn Khaldun, historiador islâmico do século 14. Todas essas "monarquias" árabes tiveram como base o prestígio de uma religião, de uma personalidade ou de um vínculo hereditário. "O prestígio, no entanto, acaba inevitavelmente degenerando", escreveu Khaldun. As revoluções são desencadeadas por acontecimentos dramáticos:uma eleição fraudada no Irã, em 2009, ou uma autoimolação na Tunísia. Mas são também reflexo de depressões econômicas persistentes, sem mencionar as crescentes esperanças e a tentação de uma comparação: a internet mostrou que a juventude árabe compara os direitos mínimos que lhe são concedidos com os de seus contemporâneos ocidentais.

A diferença de culturas entre os encarquilhados faraós e os jovens obcecados pelo Twitter agravou a crise, que ainda poderá marcar o fim do antigo paradigma do governante árabe, o xeque sábio e poderoso. Está em perigo o ditador que é regularmente ridicularizado pelo jovens por seus cabelos tingidos de preto, em estilo gótico, com as maçãs do rosto inchadas por cirurgias plásticas e cuja entourage inclui tantas enfermeiras quantos generais.

Esses ditadores estão tão esclerosados que só percebem que há uma revolução quando ela desaba sobre suas cabeças. Em 1848, o príncipe Klemens von Metternich, chanceler da Áustria, estava tão velho que, literalmente, não ouvia as multidões do lado de fora de seu palácio. Quando as revoltas atuais eclodiram, imagino que Kadafi ou que o rei Hamad al-Khalifa, do Bahrein, tiveram uma conversa mais ou menos nos seguintes termos: "O que está havendo? Uma revolta?", questionou o rei francês Luís XVI, em 1789. "Não, majestade", respondeu seu braço direito. o duque de La Rochefoucauld-Liancourt. "É uma revolução."

Revoluções sem líderes, sem organização, se caracterizam por um impulso magicamente espontâneo que é mais difícil de esmagar. Lenin acabara de concluir que nunca haveria uma revolução enquanto ele vivesse quando, em fevereiro de 1917, as multidões famintas de São Petersburgo derrubaram o czar Nicolau II. O revolucionários estavam no exterior, exilados e ameaçados pela polícia secreta infiltrada entre eles.

Desta vez, a espontaneidade sem liderança teve a ajuda do Facebook, o que certamente acelera a mobilização das multidões e a transmissão da cultura ocidental, seja dos solilóquios de Charlie Sheen ou das alegrias da democracia americana. As maravilhas da tecnologia, no entanto, são exageradas: em 1848, a revolução que mais se parece com a atual, os levantes foram da Sicília a Paris, Berlim, Viena e Budapeste em poucas semanas, sem telefones e muito menos Twitter, graças ao vigor do impulso e ao rígido isolamento de governantes repressivos.

Voz das ruas. Uma vez que as massas ocupam as ruas, a capacidade de esmagar as revoluções depende da vontade e da capacidade do governante de derramar sangue. Quanto mais moderados são os regimes - como o do xá do Irã, em 1979, ou o de Mubarak no Egito -, mais facilmente serão derrubados.

Quanto mais brutal é a polícia, como a de Líbia, Iêmen ou Síria, mais difícil será derrubar o governo. O Irã reprimiu brutalmente sua oposição. Para Teerã, é fundamental não ser aliado dos EUA e banir a mídia internacional, porque é muito mais fácil massacrar o povo do país sem o controle do Departamento de Estado ou da CNN.

"Começos muito auspiciosos muitas vezes terminam de maneira vergonhosa, lamentável", afirmou Edmund Burke, observador da Revolução Francesa. Basta ver a Revolução dos Cedros, do Líbano contra a Síria, que terminou com a instalação de um governo dominado pelo Hezbollah e apoiado por Damasco.

O primeiro sucesso da revolução cria uma vertigem exuberante de liberdade democrática, como vimos no Cairo e em Benghazi. Na Europa, em 1848, e na Rússia, em 1917, houve primaveras igualmente arrebatadoras. Muitas vezes, surgem líderes temporários - como Alexander Kerenski, o empertigado primeiro-ministro russo que permaneceu no poder antes de os bolcheviques assumirem -, mas toda a revolução tem suas figuras que dão cobertura aos homens fortes. O aiatolá Khomeini nomeou Mehdi Bazargan, um democrata, para o cargo de primeiro-ministro, mas ele renunciou após a crise dos reféns.

A festa não dura muito. A desordem, a incerteza e as divergências de uma revolução fazem com que os cidadãos anseiem por uma autoridade estável, ou então adotem o radicalismo. Evidentemente, os extremistas aplaudem a deterioração. Lenin, o lacônico decano da faculdade de ciência da revolução, a condensou tudo em um slogan: "Quanto pior, melhor." A essa altura, as soluções extremas se tornam mais aceitáveis. "Como fazer uma revolução sem pelotões de fuzilamento?", questionou Lenin.

Nesse estágio, a liderança torna-se vital. Lenin conduziu pessoalmente o golpe bolchevique, em outubro de 1917. Khomeini foi decisivo na criação de uma teocracia xiita no Irã, em 1979, assim como Nelson Mandela garantiu uma transição pacífica na África do Sul. No entanto, não existem líderes opositores facilmente identificáveis na Líbia, no Iêmen ou na Síria - um cruel aparato de segurança dizimou os candidatos.

Em 1848, a primavera dos povos não sobreviveu à intervenção externa. O czar Nicolau I esmagou as revoluções no Império Austríaco, o que lhe granjeou o apelido de "Gendarme da Europa". A intervenção saudita contra os rebeldes xiitas no Bahrein sugere que os sauditas são os gendarmes do Golfo. No Iêmen, o presidente Saleh também pediu ajuda aos sauditas, que ainda não veio. Evidentemente, na Líbia ocorreu o inverso. O Ocidente apoia os rebeldes contra o massacre de Kadafi. Cada caso é diferente, cada revolução é um evento local. O que quer que aconteça daqui para frente no mundo árabe, não será um retrocesso.

Depois dos levantes de 1848, a incerteza deu origem a estranhos híbridos políticos, modernos e autoritários: Luís Napoleão Bonaparte, posteriormente imperador da França, e, mais tarde, nos anos 1860, Otto von Bismarck, chanceler da Prússia.

No complexo Egito, o resultado das revoluções árabes, provavelmente, será um híbrido semelhante, uma nova democracia, com os militares em um papel peculiar, no estilo da tutela turca. Na Líbia, pode ser simplesmente um retorno à rivalidade tribal. Atacada por aviões britânicos e americanos, a Líbia talvez domine as manchetes, mas é a Síria que decidirá o destino dos três mais importantes - Egito, Arábia Saudita e Irã. Afinal, como dizia Metternich, "quando Paris espirra, a Europa está com gripe". A Síria é o antigo coração árabe. O levante sírio poderá encorajar uma nova revolução no Irã, que enfrenta o desafio de explorar as revoltas que solapam os aliados americanos na região sem sucumbir à própria agitação interna.

Na Síria, a mudança também pode libertar o Líbano do Hezbollah. A queda do rei do Bahrein pode contagiar a monarquia saudita, assim como a derrubada do rei egípcio Farouk, por Gamal Nasser, em 1952, foi o fim da monarquia iraquiana anos mais tarde. Nunca devemos esquecer de que, por mais liberais que sejam essas revoluções do Facebook, as rivalidades entre xiitas e sunitas são muito mais fortes do que o Twitter e a democracia.

O que virá depois? É muito cedo para dizer. Devemos lembrar que, embora os entusiastas citem as revoluções de 1989 como estímulo para as revoluções de hoje, até que ponto as revoltas na Europa Oriental foram bem-sucedidas? A democracia floresceu no leste europeu, assim como na Georgia e nos países do Báltico, mas a maioria das ex-repúblicas soviéticas são ditaduras. Nenhuma doutrina pode ou deve se encaixar nesse novo caleidoscópio, no universo multifacetado que é o Oriente Médio. Devemos nos convencer de que será um jogo demorado, o grande torneio do século 21.

Devemos proteger vidas inocentes sempre que pudermos, com um poderio aéreo limitado, mas sem soldados pisando no solo.

Devemos analisar quais são os países que nos importam em termos estratégicos e, depois que a festa do Facebook acabar, descobrir quem está realmente controlando os eventos nos lugares que são importantes para nós.

Os julgamentos mais perfeitos são de estadistas que sabiam tanto reprimir quanto fazer revoluções. "A Velha Europa está no começo do fim", disse Metternich ao se ver cercado de revoltas, "A Nova Europa, porém, sequer começou a existir. Entre fim e começo, haverá o caos." Como bem resumiu Lenin, a questão fundamental de toda revolução é sempre é quem controla quem.


* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 31/03/2011.
Originalmente publicado no New York Times. Tradução: Anna Capovilla

Valores e interesses

Demétrio Magnoli


O Brasil absteve-se de apoiar a intervenção ocidental na Líbia por temer uma "mudança de narrativa" da revolução árabe, explicou o ministro do Exterior, Antônio Patriota. Os bombardeios aéreos da coalizão começaram na undécima hora, quando as forças de Muamar Kadafi atingiam as entradas de Benghazi, cidade de 1 milhão de habitantes. Tudo indicava que sem a intervenção a capital rebelde seria palco de uma tragédia humana. Os espectros recentes do genocídio de Ruanda, em 1994, e do massacre de Srebrenica, na antiga Iugoslávia, em 1995, cometidos sob o olhar aterrorizado, mas passivo, da comunidade internacional, desestimularam o veto da Rússia e da China à intervenção. A confortável (devo dizer hipócrita?) abstenção brasileira não encontra justificativa legítima na preocupação de Patriota. Mas há, de fato, uma "mudança de narrativa" - e ela se iniciou antes da reunião decisiva do Conselho de Segurança da ONU.

Kadafi mudou a narrativa. Na Tunísia e no Egito, os levantes populares provocaram cisões no núcleo do poder. Os exércitos separaram-se dos ditadores e, então, os regimes caíram. A Líbia, porém, é um Estado singular, que combina estruturas de poder clânico com instituições típicas do totalitarismo socialista, como os comitês revolucionários. Seu exército regular passou para o lado dos insurgentes, mas o poder armado efetivo encontra-se nas brigadas especiais, fiéis ao tirano. A contraofensiva de Kadafi provou que a insurreição popular poderia ser esmagada em sangue. A mensagem chegou à Arábia Saudita, que aproveitou o precedente líbio para, desafiando a posição de Barack Obama, enviar suas tropas ao Bahrein. A Síria de Bashar Assad também entendeu a "mudança de narrativa" como uma licença para matar manifestantes em praça pública. O ciclo da revolução árabe não se encerrou, mas ingressou numa nova etapa, amarga e perigosa.

A metáfora do "Muro de Berlim árabe" evidencia o sentido democrático da revolução que varre a África do Norte e o Oriente Médio. Bem ao contrário do que, imunes aos fatos, asseguram os arautos do "choque de civilizações", as sociedades árabes erguem-se pela liberdade, não em nome da promessa salvacionista do fundamentalismo islâmico. Mas o paralelo tem limites, pois a topografia política do mundo árabe não se parece em nada com a do antigo bloco soviético na Europa Oriental. Os países satélites da URSS apresentavam notável uniformidade de sistema político e obedeciam a um único centro de poder externo. Os países árabes exibem uma diversidade de sistemas políticos, que se estendem desde Repúblicas pró-ocidentais baseadas nos exércitos (Egito, Tunísia, Iêmen) até monarquias sunitas conservadoras (Arábia Saudita, Bahrein), passando por Repúblicas autoritárias de partido único (Síria) e por um "Estado de massas" (Líbia). Não estamos na Europa de 1989: a revolução em curso divide-se em cascatas singulares, cujas configurações refletem as particularidades nacionais.

As diferenças não param aí. A União Europeia serviu como bacia de captação para as sociedades da Europa Oriental que emergiam das ditaduras totalitárias. O espectro do nacionalismo autoritário rondou os países do antigo bloco soviético, mas foi conjurado pelo magnetismo do bloco de democracias ocidentais. A revolução fragmentária no mundo árabe, ao contrário, não conta com nenhuma sinalização na estrada. As sociedades que hoje se libertam dos tiranos carecem de tradições democráticas ou experiências pluralistas. Nas margens dos levantes populares, espreitam as correntes fundamentalistas e, em certos casos, as organizações jihadistas. Os árabes não estão condenados à tirania, como assegura o mantra dos entusiastas da Doutrina Bush. Contudo também não iniciaram uma marcha triunfal em direção à liberdade.

O sentido da revolução árabe será profundamente influenciado pelos atos do Ocidente. A França não sustentou o ditador tunisiano Ben Ali, seu antigo cliente, e os EUA, depois de alguma hesitação, explodiram a ponte que os ligava ao egípcio Mubarak. A resolução da ONU sobre a Líbia representa mais que uma iniciativa humanitária providencial: o massacre dos insurgentes de Benghazi ofereceria uma inigualável narrativa de martírio ao radicalismo islâmico e ao terror jihadista. Entretanto, cada gesto ocidental deixa entrever um conflito dilacerante entre valores e interesses.

"Para todos aqueles que se perguntam se o farol dos EUA ainda brilha com a mesma intensidade, (...) nós provamos (...) que a verdadeira força de nossa nação não emana da capacidade de nossas armas ou do tamanho de nossa riqueza, mas do poder persistente de nossos ideais: democracia, liberdade, oportunidade e inflexível esperança." A passagem do discurso da vitória de Obama, em novembro de 2008, inscreve-se na tradição wilsoniana que busca estabelecer uma identidade entre os valores e os interesses americanos. A Realpolitik, contudo, subsiste no Bahrein, porta de entrada da revolução árabe no cenário estratégico do "golfo do petróleo", onde tropas sauditas se encarregam do trabalho sujo de repressão sob o silêncio cúmplice do Ocidente.

No Iraque, em 2003, George Bush revestiu no celofane da defesa da liberdade uma ocupação militar definida por sua peculiar interpretação dos interesses geopolíticos americanos. Na Líbia, Obama sacrifica o interesse concreto da cooperação com Kadafi na "guerra ao terror" no altar dos valores pregados pelo Ocidente. Há uma lógica estratégica na aposta de risco na revolução árabe. O fracasso da Doutrina Bush revelou que o fundamentalismo e o jihadismo prosperam na estufa opressiva das tiranias. Por isso, na Tunísia, no Egito e na Líbia, os EUA e seus aliados escolheram um lado. Mas a opção ousada terá de se estender além da Síria, até o Bahrein e a Arábia Saudita, sob pena de se esfarelar na incoerência.

* Publicado em O Estado de São Paulo, em 31/03/2011.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Heroísmo e resignação

Roberto Damatta


Alguns jornalistas observaram a calma, a tranquilidade e a "educação" do povo japonês diante da imensa tragédia que os atingiu. Quem fala dos outros fala principalmente de si mesmo. A Antropologia Cultural moderna, nascida da revolução industrial e do evolucionismo anglo-iluminista, situou o ponto mais alto de civilização na Inglaterra e na França, enquanto o termo "cultura" ficou reservado como para todos os costumes, mas principalmente para o que era percebido como exotismos, anomalias e paradoxos (circuncisão, canibalismo, transes, politeísmo, castas, etc...) localizados em outras terras.

Falando dos outros e classificando-os como "primitivos" e "selvagens", posto que não tinham escrita ou tecnologia sofisticada, esses antropólogos que, como os jornalistas modernos, falavam do "outro", dos "fatos" e das "ocorrências", não sabiam que assim fazendo revelavam mais de si do que dos povos que estudavam "cientifica e objetivamente". Não é, pois, por acidente que na escala evolutiva daquela época, escala que ia da "selvageria" à "civilização", terminava na grande epifania histórica constituída pela civilização do comércio, da indústria, da ciência, do progresso e, claro está, do nacionalismo e das grandes guerras que poriam fim a todas as guerras! Tal como as ideologias "científicas" e, por isso radicais, liquidariam todos as contradições sociais. No caso dos ingleses que eram liberais e capitalistas, falava-se de um progresso sem nenhuma ordem. Algo bem diferente da tradição sociológica francesa que, com Comte, acasalava os dois conceitos e criava sem querer um dos paradoxos brasileiro, pois quanto mais progresso menos ordem e vice-versa. Mas isso é uma outra crônica...

Voltando ao desastre japonês, saliento essas observações sobre o dado mais importante da tragédia - aquilo que a sustenta como tal ou a transforma em outra coisa. Refiro-me a como os japoneses a vivenciaram, como eles a interpretaram e deram conta dos fatos tremendos que atingiram a sua sociedade e o seu Estado nacional. A voz dos que lidaram com o desastre, inclusive a do imperador que lá é uma figura situada fora do mundo, bem como suas vítimas, não se centrou numa invocação de castigo como um modo de explicação do infortúnio. Mas exaltou a reconstrução, a honra, a resistência e a serenidade, tudo aquilo que está contido no conceito japonês de giri, conforme escreveu num livro mais do que clássico a antropóloga Ruth Benedict.

Isso é muito diferente do terremoto de 1755 de Lisboa, que foi visto pela sociedade ultracatólica de Portugal como um sinal da ira de Deus. Um aviso pela vida rica e festiva que nossos paisinhos levavam graças ao ouro e aos diamantes vindos das então "minas gerais". Tanta riqueza, que promoveu leis especiais regulando as roupas, já que não se sabia mais com certeza com quem se estava falando... A manifestação da natureza, a surpresa destrutiva do acidente natural foi interpretada como a voz de Deus e o pânico, bem como, uma enorme depressão e sentimento de culpa coletivo dominaram a sociedade no salve-se quem puder, que só voltou a ocorrer em 1808 na fuga da Corte para o Brasil, mas desta feita, diante do terremoto político e liberalizante de Napoleão.

Não há no Japão, como no Oriente como um todo, a figura de um Deus patriarcal que, num outro mundo e como um ditador ou rei, controle pessoalmente o bem-estar e o sofrimento dos seus filhos neste mundo. Mais ligados à natureza do que nós, ocidentais e brasileiros que a vemos como um inimigo perigoso e só agora começamos a modificar nossa visão que oscila entre a representação da natureza como beleza ou como obstáculo ao progresso, os japoneses assumem uma notável resignação diante da catástrofe. É como se eles soubessem que ali está o limite e, nele, o chamado princípio de realidade que, vindo de fora para dentro, dissolve fantasias, desmascara mentiras e mostra como o incerto é parte constitutiva do universo humano. Dimensão que se mostra nos elos e nas obrigações que temos uns para com os outros (e com nossos ambientes "naturais") e que se mostra nos sentimentos de vergonha, dívida, reciprocidade, dever e culpa.

Tais conceitos, a um só tempo intelectuais e emocionais, condicionam e, claro está, restringem o nosso individualismo de raiz. Observa-se bem como para os japoneses o problema não é só sobreviver, mas viver e enfrentar o real e o imprevisto com honra e dignidade.

Por isso, os administradores públicos japoneses, flagrados roubando o dinheiro do povo, suicidam-se numa tentativa desesperada de lavar a sua honra e desfazer suas malfadadas e vergonhosas vidas. No Brasil, tal costume causaria um tsunami nacional, pois o único político de nossa história a resgatar sua honra aviltada por meio de um suicídio altruístico foi Getúlio Vargas. E por isso eu, pessoal e humildemente, tenho por sua pessoa uma respeitosa e perene admiração. Vargas foi uma exceção: foi um Homem entre homens.

E o seu suicídio teve a força de um poderoso tremor que ainda sacode as placas tectônicas da vida política nacional que, inconscientemente até hoje, procuram refazer essa dádiva de honra lavada em sangue. Gesto que deixou de lado a imagem do mapa do Brasil como um presunto a ser canibalizado pelos pilantras de plantão, para transformá-lo num imenso e ferido coração. No Japão, vimos, não há saques, mas como compensação, há o suicídio altruísta. O ato extremo, revelador da consideração e da vergonha para com os outros. Aquilo que o grande Camus deixou passar nas suas reflexões, mas que o velho conservador Durkheim compreendeu com todas as letras.

* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 30/03/2011.

Os árabes serão livres

Roger Cohen


Três países do Oriente Médio chamaram atenção por sua estabilidade na tempestade. Eles são Turquia, Líbano e Israel. Uma combinação curiosa, pode-se dizer, mas eles têm em comum o fato de serem lugares onde pessoas votam.

Democracia é um negócio "tudo ou nada", complicado. É por isso que eu a adoro. Você não pode ser meio democrata, como não pode estar meio grávida.

Sim, os cidadãos vão às urnas na Turquia, Líbano e Israel e nenhum ditador obtém 99,3% dos votos. São terras de oportunidades onde muita gente está enriquecendo e onde as generalizações superficiais, embora muito populares, são equivocadas. A Turquia não se tornou islâmica, o Líbano não está nas mãos do Hezbollah e Israel ainda é uma sociedade aberta.

Os três países, naturalmente, também estão arruinados por causa de divisões e imperfeições. Mas a democracia tem dois méritos: ela não contorna as divisões e não aspira à perfeição.

Falando do Hezbollah, lembra-se de todo aquele alarme, há alguns meses, quando um empresário apoiado pelo grupo xiita, Najib Mikati, surgiu como primeiro-ministro? Depois disso, o Líbano apresentou uma resolução na ONU para ser criada uma zona de exclusão aérea na Líbia - um exemplo raro de sintonia entre os EUA e um governo apoiado pelo Hezbollah.

Converse com o Hezbollah e isso fica óbvio. Ele não é um monolito aterrorizador. Mikati vem lutando contra o toma lá dá cá da política libanesa. A vida segue livremente, o que há muito tempo tem atraído árabes frustrados e oprimidos a Beirute.

O Hezbollah é um partido com uma milícia. Esse é um grande problema. O partido ultraortodoxo de Israel, Shas, tem uma influência desproporcional em Israel por causa da política de coalizão. Esse é um problema. A Irmandade Muçulmana será fundamental num Egito livre porque está em posição de vantagem do ponto de vista organizacional. Esse pode ser um problema. O Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) da Turquia é uma máquina política brilhante e tende a ser inflexível demais. Esse é um problema, também.

São problemas de portes diferentes. Mas, enquanto eles se apresentarem dentro de sistemas abertos (ou se abrindo), são muito preferíveis ao conformismo covarde comum às sociedades aterrorizadas do hoje condenado Parque Jurássico árabe, onde déspotas fazem o que há de pior.

Acabou. Basta de sepulturas sem nome que evocam o terror, chega de Estados policiais do século 20 no século 21. Sim, tudo acabou para os ex-ditadores da Tunísia, Zine al-Abidine Ben Ali, e do Egito, Hosni Mubarak. E também para o líbio Muamar Kadafi.

Quanto tempo ainda será preciso para tudo se encerrar no caso de outros autocratas árabes - sejam os de países que levam o nome de "repúblicas" ou de "reinos" -, isso dependerá de quanto tempo eles ainda conseguirão ignorar as reivindicações de seus próprios cidadãos.

Veja, não é mais possível fazer algo no estilo Hama (massacre de dissidentes na Síria, em 1982). Não se pode criar atoleiros iraquianos. Talvez seja possível matar dezenas de pessoas, mas não dezenas de milhares. Esses déspotas confiam no seu terror sem limites. Ele deve ser tão absoluto quanto o seu desprezo pela lei.

Mas agora as pessoas sabem. Elas se comunicam por meio da repressão. São hábeis no Facebook. Os déspotas olham nos seus espelhos dourados e, para seu horror, no lugar de sua imagem está a de pessoas que não serão mais silenciadas. Eles se indagam se ainda podem confiar na sua miríade de agentes. São apanhados na sua própria rede. E se agitam. Foram longe demais para recuar, mas também não conseguem avançar.

Fim do medo. Bashar Assad, o acossado presidente sírio, quase disse alguma coisa no domingo, mas decidiu não falar. Ele é médico oftalmologista formado em Londres. Seria melhor deixar de pensar em Hama - onde seu pai assassinou pelo menos 10 mil pessoas - e começar a pensar em Hammersmith (subúrbio de Londres).

Um redemoinho de perguntas. Quem são os rebeldes líbios? Quem são as pessoas encolerizadas da cidade síria de Latakia? As transições árabes serão longas e acidentadas - como as que trouxeram um governo representativo para a América Latina e Europa Central e em amplas áreas da Ásia -, mas, agora que o medo foi superado, elas são irreversíveis.

As pessoas estão renascendo em todo o Oriente Médio. Estão descobrindo sua capacidade para mudar as coisas, o seu "basta!" interior. Foi assim que a primavera árabe começou em 17 de dezembro na pequena cidade de Sidi Bouzid, na Tunísia - com um "basta" à humilhação lançado por um vendedor ambulante de frutas. No meu fim está o meu começo.

Três meses depois, o gênio não apenas saiu da garrafa, mas a destroçou. No meu artigo anterior, falei que devemos ser implacáveis ou ficar de fora. Agora que o Ocidente entrou na luta, tem de ser implacável. Tem de armar os rebeldes que ressurgiram. Aniquilar Kadafi. Fazer tudo, exceto colocar tropas em campo.

Kadafi, como disse o presidente Barack Obama, "tem de partir". Só assim a Líbia poderá ser um país árabe imperfeito, mas aberto.


* Roger Cohen é colunista do New York Times
Tradução de Terezinha Martino
Publicado em "O Estado de S.Paulo", em 30/03/2011.

terça-feira, 29 de março de 2011

Não há democracia com burca

Luiza Nagib Eluf


Assistimos à derrubada da ditadura egípcia e aos movimentos revolucionários na Líbia, Iêmen, Bahrein e em outros países do Oriente, onde as populações clamam por democracia; o restante do mundo assiste ao desenrolar dos fatos formulando as mais variadas análises.

Deposto Hosni Mubarak, uma junta militar promete conduzir o Egito às eleições. As liberdades democráticas são a principal reivindicação do mundo árabe.

Antes de qualquer análise, porém, é preciso lembrar que estamos falando de uma região que concentra maioria esmagadora de seguidores do islamismo. Nesse contexto, é impossível prever qual a influência dos cânones religiosos na reestruturação que está por vir.

Embora muitos argumentem que alguns dos países em transformação têm tradição de Estado laico, como o Egito, as imagens internacionais evidenciam a forte presença religiosa entre os sublevados, fazendo crer que o potencial de crescimento da Irmandade Muçulmana não deve ser subestimado.

As maiores vítimas da repressão, as mulheres, gritam através da burca que lhes cobre o corpo, o rosto, a boca. Amordaçadas, apenas com os olhos descobertos, elas querem participar e tentam se fazer ouvir.

O que é uma mulher no islã? Sobre isso, os articulistas brasileiros pouco têm falado.

Alguns estudiosos do Oriente Médio, chamados a escrever para jornais ou para opinar na TV, simplesmente desconsideram o problema das mulheres. Não as enxergam. Falam em futuro promissor, em democracia, mas esquecem os direitos humanos que a antecedem.

Acharão normal que, passada a revolução e atingido o objetivo de derrubar ditadores, as mulheres voltem para casa e se recolham ao cárcere domiciliar? A condição de mais da metade da população não faz parte da história que certos intelectuais pretendem contar.

Nem se diga que as mulheres são felizes exercendo o papel que lhes foi reservado pelos conservadores, que elas não precisam de mais nada além de obedecer aos maridos e ter filhos, que usam o véu espontaneamente e que precisam dos homens para se sentir protegidas. Enfim, que tudo se justifica pela tradição cultural.

Não há dúvida de que essa argumentação obscurantista deve ser vigorosamente rejeitada, pois os direitos humanos são universais, não importando a região do mundo de que se trate. Definitivamente, mulheres não conseguem ser felizes na condição análoga à de escrava.

A mulher no islã não tem direitos sexuais. Muitas são submetidas à mutilação genital. Tampouco tem direitos patrimoniais, intelectuais ou mesmo de livre locomoção. Não podem dirigir veículo. Não podem mostrar os cabelos, não podem usar roupas que realcem as formas do corpo e são obrigadas a cobrir-se da cabeça aos pés para sair às ruas.

A revolução "democrática", seja no Egito, seja na Líbia ou em qualquer outro país majoritariamente islâmico, corre o risco de não contemplar a mulher, deixando de assegurar a igualdade de direitos. E não pode haver democracia com burca.
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LUIZA NAGIB ELUF é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania no governo FHC e subprefeita da Lapa na gestão Serra/Kassab. É autora de "A Paixão no Banco dos Réus" e de "Matar ou Morrer - O Caso Euclides da Cunha", entre outros.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 27/03/2011

Algo se move, mas o que é?

Clóvis Rossi

Lisa Anderson, presidente da Universidade Americana no Cairo, aponta, em texto para o Instituto Carnegie para a Paz Mundial, três características comuns às rebeliões que acontecem no mundo árabe: espontaneidade, uma juventude economicamente frustrada e uma gerontocracia no poder.<

As duas primeiras características estão também presentes em Portugal, no movimento autobatizado de "geração à rasca" (em apuros), o que parece indicar um ambiente de mal-estar mais disseminado.

"Geração à rasca" significa precisamente uma juventude economicamente frustrada. Conseguiu convocar, em movimento espontâneo, via Facebook e Twitter, cerca de 300 mil pessoas para uma manifestação no centro de Lisboa, faz duas semanas.

A agenda é semelhante à dos jovens árabes, com uma diferença -fundamental, de resto: não precisam pedir liberdade porque Portugal desfruta de toda a liberdade que a democracia é capaz de oferecer.

Que os jovens árabes se levantem contra a tirania é fácil de entender. Movimentos libertários, bem ou mal sucedidos, fazem parte da história. Que jovens portugueses também o façam, à margem dos canais tradicionais, é menos frequente e parece indicar algo mais profundo.

A espontaneidade desses movimentos mais a sua agenda central sugerem o entupimento dos canais tradicionais de mediação entre a sociedade e o Estado (partidos políticos, sindicatos e mesmo as ONGs, de surgimento mais recente).

Não é uma situação inédita. O movimento batizado de antiglobalização, relativamente antigo, já refletia a carência da política. A novidade agora é que também esse movimento está sendo marginalizado.

Oded Grajew, o idealizador do Fórum Social Mundial (FSM), uma espécie de coalizão das ONGs e movimentos sociais ditos antiglobalização, tem toda a razão em se queixar de que os jornalistas não damos a devida atenção ao FSM e seus desdobramentos.

Mas acho que se engana ao puxar para o guarda-chuva de sua criatura a origem das revoluções árabes. Vale idêntica observação para o caso de Portugal, de que Oded nem tratou no seu artigo de ontem para a Folha, certamente porque o noticiário a respeito foi zero no Brasil.

O FSM tem um viés anticapitalista. Os jovens rebeldes pedem sua parte no bolo capitalista. Grupos anarquistas aproveitam eventos antiglobalização para quebrar vidros dos McDonald's da vida. Os jovens árabes não queimaram uma só bandeira dos Estados Unidos, pela primeira vez na história de movimentos de massa na região.

O que há, nas ruas do Oriente Médio e de Lisboa, é uma massa ainda indecifrável.

Pelo menos em Portugal, "foi o grito de uma geração apolítica, que ignora os dirigentes do país, que pouco participa nas grandes pugnas eleitorais, que na maior parte dos casos nunca tinha postos os pés numa manifestação e que, em matéria de grandes ajuntamentos, frequenta quase exclusivamente os dos festivais de música de verão", escreve Nicolau Santos, diretor-adjunto do semanário "Expresso", melhor publicação portuguesa.

Posso estar completamente equivocado, mas tenho a sensação de que Nicolau está descrevendo uma fatia substancial da juventude não só de Portugal, mas de toda a Europa e do Oriente Médio e, por que não?, também do Brasil.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/03/2011.

terça-feira, 22 de março de 2011

Armas para o povo

Vladimir Safatle


Foi correta a decisão brasileira de se abster da votação que acabou por legalizar uma modalidade ainda indefinida de intervenção militar na Líbia. Não se trata do resultado de algum juízo de valor a respeito do regime de Gaddafi, mas de uma questão relativa à real eficácia da intervenção.

Primeiro, vale dizer que dificilmente encontraremos hoje um ditador tão patético quanto Gaddafi. O mesmo Gaddafi capaz de afirmar que os insurgentes eram jovens que haviam tomado "Nescafé com alucinógenos".

Aqueles que têm para com ele alguma complacência, normalmente em nome da luta anti-imperialista, dão prova de acreditarem no primarismo de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo.

Na verdade, Gaddafi é a figura mais bem-acabada de um imperador que deteria um poder soberano em situação de exceção e que se demonstrou capaz de pagar mercenários para esmagar manifestações de seu povo. Poderíamos até sugerir um slogan: Gaddafi, um imperador na luta contra o imperialismo.

Porém a proposta francesa de zona de exclusão aérea tem tudo para produzir consequências ruins. Não se trata do argumento da primazia da soberania nacional, embora seja verdade que a submissão da soberania nacional aos crimes contra os direitos humanos só valha, atualmente, para países escolhidos a dedo.

O primeiro problema com a proposta aprovada na ONU é permitir a Gaddafi remobilizar parte da população líbia em nome da luta contra "antigas potências coloniais".

Em uma região marcada por forte nacionalismo e desconfiança em relação às "boas ações" de países como França, Reino Unido e EUA, não é difícil imaginar que um argumento dessa natureza possa acirrar as divisões internas na Líbia. Segundo, ela perpetua a velha parcialidade que minou o discurso democrático do Ocidente no Oriente Médio.

Se o interesse é, realmente, uma intervenção humanitária em defesa dos manifestantes líbios, é difícil entender por que a proposta não valeria ainda para a defesa dos manifestantes do Bahrein, já que esses também são objetos da truculência de um monarca absoluto que tem, agora, apoio das tropas sauditas.

A única explicação plausível é o monarca do Bahrein ser um "ditador amigo". Já Gaddafi é louco demais para ser amigo de alguém.

Por fim, a proposta parece querer colonizar um movimento que, até agora, foi interno aos povos da região e que deu frutos a partir de suas próprias ações. Por isso, se os países ocidentais quisessem realmente auxiliar os rebeldes líbios, eles mandariam armas para a população civil, dando as condições para que a própria população civil lutasse contra as armas que países como a Itália venderam para Gaddafi há bem pouco tempo.


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 2032011.

Brasil x Brics

Marcelo Neri

Os países emergentes conquistam crescente atenção mundial, especialmente depois da recente "débâcle" dos países ricos.

Segundo o acrônimo Brics, criado por Jim O'Neill, da Goldman Sachs, Brasil, Rússia, Índia, China e agora a África do Sul seriam os principais tijolos edificadores da riqueza em 2030. Mais da metade dos pobres do mundo hoje está nesses países. Os Brics importam tanto na riqueza futura como na pobreza presente.

A ascensão dos Brics se reflete na escolha das sedes dos dois principais eventos esportivos do planeta no período 2008 a 2018: China (Olimpíada de 2008), África do Sul (Copa de 2010), Brasil (Copa de 2014 e Olimpíada de 2016) e Rússia (Copa de 2018).

Os Brics acabaram de virar um grupo oficial de países. As tradicionais uniões regionais tipo Mercosul acabam reunindo nações similares. Os Brics são mais interessantes pelas diferenças do que pelas semelhanças. Em particular, o Brasil tem descasado dos demais Brics em algumas dimensões. Senão, vejamos:

Crescimento - o começo das chamadas décadas perdidas de crescimento brasileiras a partir de 1980 quase coincide com o começo do milagre econômico chinês.

O Brasil tem crescido menos do que os demais Brics. China e Índia crescem mais que nós em todos os anos desde 1992.

Há que considerar que nos demais Brics, assim como na maioria dos países desenvolvidos, o principal medidor usado de progresso, o PIB, tem crescido mais que a renda de pesquisas domiciliares (as similares da Pnad brasileira).

Por exemplo, na China, o PIB cresce dois pontos percentuais por ano acima da renda dos domicílios chineses. O oposto acontece no Brasil. Desde 2003, a renda da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) tem crescido 1,8 ponto percentual por ano acima do PIB.

Ou seja, se trocarmos a taxa de crescimento do PIB pela da Pnad entre 2003 e 2010, a goleada aplicada pelos chineses cai de 10% x 4% para 8% x 6%.

Desigualdade - Partindo de níveis bem mais altos, a desigualdade cai aqui e aumenta nos demais Brics. Na Rússia pós-comunista, o índice de Gini, que varia de 0 a 1, tem alta recorde de 0,28 em 1992 para 0,44 em 2008. Já na África do Sul pós-apartheid, o Gini chega à incrível marca de 0,7.

Na década de 2000, as taxas de crescimento anual de renda domiciliar per capita dos 20% mais pobres e dos 20% mais ricos em cada um dos diferentes países foi: China (8,5% e 15,1%); Índia (1,0% e 2,8%); África do Sul (5,8% e 7,6%), enquanto no Brasil o bolo dos mais pobres cresce mais do que o dos mais ricos (6,3% e 1,7%).

Ou seja, o bolso dos brasileiros, em especial dos pobres brasileiros, cresce mais que o PIB. O oposto acontece nos demais Brics.

Felicidade - Segundo o Gallup World Poll, o grau de satisfação com a vida, a média do Brasil em 2009 era 7 numa escala de 0 a 10. Superamos os demais: África do Sul (5,2), Rússia (5,2), China (4,5) e Índia (4,5). Mais do que isso, o Brasil é o único dos Brics que melhora no ranking mundial de felicidade, saindo do 22º lugar em 2006 para 17º em 2009 entre 144 países.

No jogo do crescimento do PIB, acompanhado de perto pelos economistas, os Brics têm goleado os países desenvolvidos. Já o Brasil estaria numa espécie de zona de rebaixamento da primeira divisão dos emergentes.

Já na disputa do dia a dia que importa mais aos demais mortais, leia-se o trinômio dinheiro, desigualdade e felicidade, a comparação com os demais Brics nos é favorável.

Agora, no quesito mais fundamental de todos, aquele que determina a felicidade geral das nações no longo prazo, e depois dele, qual seja a comparação futebolística: esqueçam os Brics, mas não todos os chamados Piigs -Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha (Spain)-, que estão quebrados e sem banco de reservas, literalmente.

Os nossos hermanos espanhóis e argentinos que me perdoem, mas o verdadeiro G3 do futebol mundial com 12 das 20 Copas do Mundo disputadas são o que eu chamo aqui de "Bigs", Brasil, Itália e Alemanha (Germany), nessa ordem.

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MARCELO NERI, 47, é economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, na Fundação Getulio Vargas.
Internet: www.fgv.br/cps

Lei do mais forte no consumo

Maria Inês Dolci


Legislar para solucionar problemas, conflitos e fraudes é um hábito brasileiro. A velha piada traduz bem isso: um deputado, ao ouvir a argumentação de que determinada situação decorreria da lei da oferta e da procura, se propôs a revogá-la.

Toda lei em prol dos direitos dos cidadãos é positiva, mas, sem coordenação entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ela perde parte ou todo seu efeito.

Alguém, por exemplo, encontra facilmente remédios fracionados na farmácia mais próxima?

Se conseguir, parabéns, porque a maioria compra mais remédios do que necessita, pois não há como adquirir a quantidade exata prescrita pelo médico.

Dos medicamentos para as reclamações: a regulamentação dos Serviços de Atendimento ao Consumidor (SAC) completou dois anos.

Provocou grande expectativa, fez com que muitas empresas investissem para cumprir as novas regras, mas, até agora, nenhuma multa foi paga. Se as infrações não custam nada, os SACs continuam atendendo mal.

Nós sabemos, é claro, que parte dos juízes sempre fica do lado das grandes empresas em suas sentenças, transformando boas leis em boas intenções, daquelas que enchem o inferno e nossa paciência.

No caso da entrega de produtos em dia e período determinado, da lavra do governo do Estado de São Paulo, a obrigação gerou uma retaliação, pois as lojas passaram a cobrar taxas para cumprir o que determina a legislação.

Outra lei paulista, que permite cadastrar os números de telefones das pessoas que não queiram receber propostas de venda de produtos e serviços por telemarketing, é ignorada pelos fornecedores.

Assim como a troca de veículos automotivos com defeito, se não forem consertados em 30 dias. Para que essa determinação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) seja cumprida, o proprietário tem de mover ação judicial. Que, como já ressaltamos, não raro resulta em reafirmação da burla ao CDC.

Como ocorre com as inúmeras leis municipais para regular o tempo de espera em filas bancárias no Brasil. Os bancos às vezes são multados, já houve agências lacradas, mas os correntistas continuam mofando nas filas.

Tristes exemplos são os preços diferenciados para pagamento com cartão de crédito, dinheiro em espécie e cheques. Sob a alegação de altas taxas pagas às operadoras de cartões de crédito, as lojas cometem a infração legal sob o disfarce de desconto para quem não paga com cartão.

O pior é que esses artifícios contra o que foi votado, aprovado e sancionado, lamentavelmente, às vezes ocorrem com o beneplácito de quem deveria equilibrar o jogo entre consumidor e empresas, as agências reguladoras.

É dessa forma que a Anatel fecha os olhos à cobrança do ponto extra em TV por assinatura. Para enganar o consumidor, as empresas só tiveram que taxar manutenção do ponto extra, aluguel de decodificador etc.

Assim como os contratos abusivos na prestação de serviços de acesso à banda larga não mereceram, até agora, qualquer sanção da agência. As operadoras simplesmente não se comprometem a entregar a velocidade adquirida (e paga) pelo consumidor.

Foi assim, também, que a Aneel, que regula a energia elétrica, olhou para o lado enquanto os brasileiros pagavam a mais nas contas de luz. Quando isso foi descoberto e denunciado por esta Folha, responsáveis pela agência disseram que o ressarcimento do valor pago a mais, ou até a compensação em futuras contas, seria impossível.

Definitivamente, embora o CDC seja um raro avanço nas relações de consumo no Brasil, a lei do mais forte ainda pune milhões de brasileiros, diariamente, por omissão ou conivência das autoridades.

Cabe aos consumidores e às entidades públicas e privadas de defesa dos direitos dos cidadãos agir rapidamente, de preferência em conjunto, para mudar esse vergonhoso cenário.

Não foi e nunca será fácil, mas é o que nos resta, nessa luta da ostra contra os rochedos e o mar.
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MARIA INÊS DOLCI, 54, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores. Internet: mariainesdolci.folha.blog.uol.com.br

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 21/03/2011.

Ganhamos nota 10

Um americano de Houston, muito simpático e com extrema facilidade em falar português, estudou comigo na faculdade. Participamos de um mesmo grupo, em curso de ciência política, para apresentação de um seminário. O ano era 1995, salvo engano. Não me lembro exatamente do assunto do seminário, mas me recordo da empolgação do americano, que ficara incumbido de finalizar a apresentação. O gran finale, elaborado pelo próprio, seria um receituário de como o Brasil consolidaria sua incipiente democracia, elevando-a ao mais alto patamar. Tornar-se uma democracia como a (suspense!) democracia americana.

Lá pelas tantas, um outro colega do grupo se revoltou contra o que considerava arrogância ianque (não usou esses termos, mas tenho certeza que a expressão lhe veio à mente). Nada que abalasse a convicção e a disposição áulica do estudante texano em nos ensinar como ser democrata.

Claro que a democracia na América – para remeter à clássica obra de Tocqueville – é exemplar e paradigmática. Mas é interessante como muitos norte-americanos se veem como os promotores da democracia e da liberdade no mundo, como se, na sua ausência, o planeta todo estivesse condenado à tirania e à servidão. Estou certo que jamais passou pela cabeça do meu amigo de Houston que os EUA estiveram e continuam a estar ao lado de diversas ditaduras mundo afora, inclusive daquela ditadura militar que se impôs no Brasil entre 1964 e 85.

Sob o lema da democracia e da liberdade, Bush pai invadiu o Panamá para retirar do poder um incômodo presidente e Bush filho tomou o Iraque de Saddam com base no (sabidamente) falso argumento de existência de armas de destruição em massa. A propósito, o então presidente russo Vladimir Putin, instado pelo mesmo Bush filho a desenvolver a democracia na Rússia, respondeu, irônico: qual democracia, aquela que os EUA implantaram no Iraque?

Há dias, Obama, mantendo a tradição, exaltou o Brasil como um exemplo de democracia, um horizonte a ser seguido pelos países árabes, ora em revolta contra suas autocracias. Que bom! Nós, brasileiros, podemos nos sentir gratificados. Como o garotinho que recebeu nota 10 do professor.

Boquinha, eu quero uma pra viver

Na década de 1980, Cazuza cantava: “ideologia, eu quero uma pra viver”. Naquela época fazia sentido. A guerra fria agonizava, mas ainda estava lá. Com ela, as oposições entre capitalismo e socialismo, conservadorismo e progressismo, esquerda e direita. Sem clivagens, sem nuances, tudo bem maniqueísta, pão, pão, queijo, queijo.

Acabou-se a guerra fria, veio a redemocratização, a estabilidade econômica, o crescimento, a ascensão da classe C e do Brasil no mundo. Ao longo desse percurso, consolidou-se a tese de que a governabilidade e as reformas de Estado (leia-se: reformas constitucionais) impunham amplas coalizões eleitorais e de governo. E pau nas ideologias! A começar pela união improvável entre PSDB e PFL, que começou conjuntural e se tornou umbilical. Com o PT, vieram as alianças não menos improváveis, mas – assim o dizem – necessárias, com certa massa fisiológica que embute de tudo um pouco: do PC do B ao PP de Maluf, de Sarney e Collor a comunistas históricos. É claro que houve deserções ao longo da conformação de PSDB e PT como protagonistas do novo bipartidarismo. Também, pudera: o primeiro, social-democrata no nome, tornou-se liberal-conservador, enquanto o outro, socialista no papel, fez-se social-democrata na prática. De mais a mais, afora uma discussão ou outra sobre mais Estado aqui ou menos Estado acolá, quanto ao “resto”, estamos todos mais ou menos de acordo.

Mas a tal tese da coalizão ampla fez escola também nas “bases”, a tal massa fisiológica. Todos querem ser governo. Especialmente porque os governos estão em alta. E governo bem sucedido tende a fazer sucessor. Que o digam FHC com sua bandeira da estabilidade econômica e Lula com a do crescimento inclusivo.

Se Cazuza cantava a ideologia, hoje, quase todos os partidos tendem a cantar: “boquinha, eu quero uma pra viver”. O prefeito paulistano Gilberto Kassab acaba de fundar o PSD (ah, quem te viu, quem te vê, PSD!), que, talvez, será futuramente incorporado pelo PSB. Sim, como o ex-presidente da FIESP Paulo Skaf, Kassab também quer ser “socialista”. E se Erundina estiver incomodada (ah, o apego a essa bobagem do passado chamada ideologia), que se mude. Da mesma forma que Marina Silva, pedra no sapato de Jorge Luiz de França Penna, presidente do PV paulista, na sua tentativa de ser governo com Alckmin e, ao mesmo tempo, com Dilma. Eis o lema predominante: se há governo, estou dentro! Afinal, para que servem os partidos, senão para abocanhar um carguinho, uma verbinha?! Abaixo as ideologias! Abaixo a oposição!

Entretanto, talvez seja o momento dos chefes de executivo ponderarem: qual o custo de tão ampla coalizão? Até quando haverá boquinha para agradar tanta gente? E, principalmente: neste momento, as teses da governabilidade e das reformas ainda são válidas?

segunda-feira, 21 de março de 2011

Depois da hora certa

Janio de Freitas


A abstenção do Brasil na ONU, quando aprovadas a proibição de voos na Líbia e a possibilidade de intervenção no conflito entre rebeldes e Gaddafi, nasceu condenada a sofrer pesadas críticas, por muito tempo. Nela pode-se ver, porém, ainda que não fosse esse o seu propósito, a condenação dos métodos e concepções caducos e prepotentes das nações em geral. Inclusive do Brasil, como expõe, agora mesmo, a rebelião surgida entre os 20 mil operários concentrados na construção, em Rondônia, da hidrelétrica de Jirau.

As rebeliões em cidades árabes e na populosa obra de Jirau têm traços em comum. Os levantes que surgem do nada, imprevistos, e se agigantam em instantes, sempre têm motivos profundos. Não se confundem com agitações por contrariedades convivíveis ou momentâneas. A dimensão e a violência assumidas pela revolta dos operários de Jirau e pela dos árabes têm, com as respectivas proporções, semelhança de profundidade e de ímpetos que se sobrepõe à diferença relativa de objetivos. Mas as recepções aqui, aos dois casos, foram opostas.

Aceitou-se logo, a cada foco de rebelião eclodido no mundo árabe, tratar-se de rejeição à já insuportável opressão policialesca e arbitrária do poder. A explicação imediata dada pelos operários de Jirau -reagiam às violências e arbitrariedades do sistema "de segurança" na obra- mal foi reproduzida, quando o foi, nos meios de comunicação.

Tratava-se também de opressão e da reação de possuidores, mas não portadores, de direitos humanos e direitos de cidadania. O que lá nos inquieta e comove não nos toca se aqui.

Rebeldes árabes e Jirau identificam-se em um ponto crucial. A ONU tem o dever explícito de investigar e mediar confrontos, na comunidade humana e não só internacionais, que contrariem a sua tábua de princípios. De acordo com esse dever, cabia-lhe, no conflito líbio como em incontáveis outros, mandar de imediato uma comissão para investigar as motivações, as práticas e os objetivos opostos. E mediar a solução. Seriam a conduta civilizada, como a criação da ONU pretendeu ser, e a solução civilizada.

O Conselho de Segurança só discutiu, porém, desde o primeiro momento, diferentes ações militares: bloqueio naval, exclusão aérea, doação de armamentos aos rebeldes, bombardeio de instalações governistas, intervenção por terra. Aumentar o conflito, portanto. Criar mais uma guerra sem antes procurar o desenlace pacífico, ou perto disso.

Uma obra com 20 mil operários, por sua vez, está sujeita a muitos problemas nas relações de trabalho. Pela dimensão; pelas exigências desse gênero de trabalho, a que só se sujeitam os que têm disposição extraordinária de trabalhar; e pelos resquícios escravocratas e desumanos persistentes em vários gêneros de atividade, como setores da construção civil, ainda do cultivo da cana, mineração, e mais. São razões adicionais para que o Estado não se dispense do seu dever de fiscalização das condições de vida e trabalho nas grandes obras, tanto mais se obras públicas. A eclosão da revolta em Jirau atesta que a fiscalização, ou não houve, ou é suspeita.

Iniciada a reação dos operários, com incêndios e destruição de instalações, a pronta atitude de governo seria mandar a Rondônia uma comissão para investigar e mediar o conflito, com representantes dos ministérios da Justiça, do Trabalho, dos Direitos Humanos, da Saúde, dos Ministérios Públicos. As ideias voltaram-se, no entanto, para a direção de sempre: a polícia. Pior: a encargo do governo estadual. Dias depois, a Força Nacional. E só então uns quantos procuradores do Trabalho.

Em contraposição a Nicolas Sarkozy, presidente da França, e James Cameron, primeiro-ministro inglês, sedentos de ação bélica em meio a suas quedas de prestígio, a Alemanha foi enfática na justificativa de sua abstenção: "Não há informações seguras da Líbia e, portanto, não há plano seguro de ação, o que torna muito arriscada a intervenção como está proposta. Há o risco de levar a problemas maiores". Iraque, Afeganistão, Paquistão.

As mesmas considerações podem servir à abstenção do Brasil. Não para todos. Quando a atitude devida não é adotada em seu tempo, seja pelos motivos relativos à Líbia ou a Jirau, depois tudo é discutível. Sobretudo se não corresponde à atitude monocórdica -a força.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/03/2011.

A covarde omissão do Brasil

Clóvis Rossi


Foi covarde a atitude da diplomacia brasileira de abster-se na votação da zona de exclusão aérea na Líbia.

As explicações dadas depois pelo chanceler Antonio Patriota e por seu porta-voz, Tovar Nunes, tornaram ainda mais patética a covardia de não dizer nem sim nem não.

Comecemos com um pouco de história sobre a posição brasileira: assenta-se na tese de que a força não é o melhor instrumento nas relações internacionais.

Se fosse um debate acadêmico, eu aplaudiria de pé.

Mas, na vida real e na situação da Líbia neste momento, torna-se um argumento sem nexo.

O que está havendo na Líbia é o uso desmedido da força bruta por um tirano ensandecido que, de resto, a utiliza contra seu próprio povo faz 42 anos e que, em certa época, utilizou-a também contra terceiros (atentados contra um avião da PanAm sobre os céus da Escócia e contra uma discoteca de Berlim).

Qualquer pessoa dotada de um mínimo de senso comum saberia que um governante desse calibre só entende a linguagem da força.

No entanto, Patriota prefere fechar os olhos e os ouvidos e dizer que o Brasil não descarta "um esforço de diálogo com Gaddafi".

Além de completamente desconectada da realidade, a declaração é inconsistente com os votos do Brasil em sessões recentes de órgãos da ONU. Votou, no Conselho de Segurança, pela imposição de duras sanções ao governo líbio, descartando, portanto, "um esforço de diálogo". Votou também pela suspensão da Líbia do Conselho de Direitos Humanos da instituição, igualmente sem diálogo.

Tovar Nunes explicou que o Brasil "não tem interesse em ação militar que redunde numa contrarreação que piore a situação dos cidadãos".

Ah, meu caro Tovar, a contrarreação já ocorreu por meio da ofensiva que Gaddafi empreendeu contra os rebeldes, bombardeando cidades que eles ocupavam, blindando Trípoli contra manifestações pacíficas (o que viola as liberdades públicas que o Brasil diz defender) e ameaçando uma caçada aos rebeldes casa a casa.

Fica ainda mais patética a posição brasileira diante do efeito prático imediato da decisão do Conselho de Segurança: o tirano anunciou um cessar-fogo. Não se pode confiar em ditadores, é verdade, mas fica a sensação de que o diálogo que o Brasil tanto diz defender só se tornou potencialmente viável a partir da ameaça de uso da força, a única linguagem que tiranos entendem.

Há ainda na abstenção brasileira um desmentido às reiteradas afirmações da presidente Dilma Rousseff de que os direitos humanos estariam no centro de sua agenda de governo. Ao contrário de intervenções militares anteriores (Iraque, Afeganistão, por exemplo), destinadas a caçar o tirano local de turno, a ação do Conselho de Segurança agora visa precisamente a preservar o mais básico direito humano, que é o direito à vida.

Não obstante, o Brasil de Dilma Rousseff omitiu-se covarde e vergonhosamente.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 19/03/2011.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Divergência de interesses impede nova legislação

Cláudio Gonçalves Couto


Há quatro anos, Lúcio Rennó, cientista político da Universidade de Brasília, publicou um artigo com o sugestivo título de "Reforma política: consensos necessários e improváveis".

Rennó apontava o paradoxo de que a identificação de problemas de governabilidade num sistema político levava à demanda por sua reforma, mas esses mesmos problemas obstaculizavam qualquer tentativa de levar reformas adiante.

Paradoxos similares explicam o porquê de tão frequente e intensamente clamar-se por uma reforma política no Brasil, sem que ela efetivamente saia -ou, ao menos, seja percebida.

A razão do clamor é a insatisfação com o funcionamento das instituições políticas de representação e governo.

Contudo, muitos clamam pela reforma política sem sequer saber o que ela significa ao certo e sem identificar com clareza as causas primeiras da operação insatisfatória do sistema.

É uma situação parecida com a de uma refeição em que todos sabem que a comida está ruim, mas não concordam sobre as razões disso e, portanto, sobre a solução que se poderá encontrar: uns acham que é o excesso de sal e outros, que é a falta; uns dizem que é o tempero, outros, que é a consistência, a temperatura etc. Seu único acordo é que o manjar se tornou intragável.

Em tal situação, mesmo os insatisfeitos temem que a tentativa de consertar o problema acabe por agravá-lo.

Nessa hora, preferem permanecer onde estão -sobretudo se ocupam o dúplice papel de elites que alcançam o poder com as regras vigentes e são as únicas capazes de modificá-las.

Mas não se trata apenas de um problema cognitivo, de desacordos sobre o diagnóstico e a prescrição. Há divergência de interesses, pois os grupos políticos são afetados desigualmente por diferentes reformas: cláusulas de barreira prejudicam partidos pequenos; lista fechada favorece partidos coesos e de forte identidade; "distritão" favorece os candidatos muito endinheirados etc. Como, então, criar consenso?

O que não se tem notado, todavia, é que muitas reformas ocorreram no Brasil nos últimos 20 e poucos anos, pontual e cumulativamente.

Avançaram mais as que tiveram apoio do Executivo, ator político unitário e poderoso (reeleição), e as criadas por meio da judicialização, quando os tribunais inovaram ou agiram de forma voluntarista (verticalização das coligações), ou atenderam a demandas da opinião pública desprezadas pelos políticos (fidelidade partidária).

Também prosperaram iniciativas oriundas da sociedade civil organizada e apoiadas pela mídia (legislação que pune compra de votos, Lei da Ficha Limpa e fim do pagamento por convocação extraordinária do Congresso).

Propostas do Legislativo atinentes ao sistema eleitoral prosperam menos por amplo desacordo, mas há mudanças importantes visíveis em outros campos.

Eleição em dois turnos, mandato presidencial de quatro anos, fim da contagem dos votos brancos como válidos nas eleições proporcionais, prazo mínimo de um ano antes da eleição para a filiação de candidatos e regulamentação das medidas provisórias. Não é pouco.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (EAESP-FGV).
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/03/2011.

A má aula da London School of Economics


Elio Gaspari


Qual a diferença entre a Maison Dior e a London School of Economics? Uma delas mostrou que é rápida e séria. Ambas são casas de grife. Uma ensina os povos a se vestir. A outra ensina as nações a gerir suas economias. Depois da Segunda Guerra, Dior mandou as mulheres vestirem saias longas, rodadas, e assim elas fizeram, da duquesa de Windsor a Evita Perón.

Com 16 prêmios Nobel no currículo, a London School of Economics era a casa de Friedrich Hayek quando ele escreveu "O Caminho da Servidão" ensinando que o planejamento central da economia levava os países à ditadura e à ruína. Infelizmente, não o ouviram logo. Passaram pela LSE John Kennedy, José Guilherme Merquior e o atual presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos. FHC ganhou um título de doutor honoris causa e Mick Jagger, matriculado, caiu fora.

Nas últimas semanas, tanto a Maison Dior como a LSE foram confrontadas com maus passos. O estilista John Galliano (uma espécie de Tiririca da alta-costura), deu-se a comentários antissemitas e, em duas semanas, foi suspenso e posto na rua. Já a LSE teve que explicar por que deu um titulo de doutorado a Saif al Islam, o filho querido de Muammar Gaddafi, e levou dois anos para comprovar que ele praticara pelo menos 17 plágios.

Em 2009, depois de ter diplomado o moço, a LSE aceitou uma promessa de US$ 2,45 milhões feita por Gaddafi e Saif deu à escola mais US$ 488 mil. Se isso fosse pouco, o professor David Held, orientador do herdeiro, fez uma viagem à Líbia às custas de um programa do papai.

O diretor da LSE, Sir Howard Davies, amealhou US$ 50 mil assessorando o fundo soberano líbio. Levou o capilé em 2007, mas se esqueceu de contar. Na sexta-feira, apanhado, pediu demissão, dizendo que "foi um erro". Erro nada, foi cobiça colonial.

A LSE anunciou que devolveria o dinheiro líbio. Demitir gente como a Maison Dior fez com Galliano, nem pensar. Investigar os critérios que a escola usa para receber doações, muito menos. Fez-se tudo à moda dos clubes. Gaddafi sempre foi Gaddafi, a LSE é que não era exatamente o que se pensava.

Quando a poeira da Líbia assentar, talvez se comece a discutir as relações incestuosas entre universidades, centros de pesquisa e órgão de imprensa com ditadores. Príncipes sauditas espargem dinheiro em instituições americanas como se fossem tâmaras.

O Cazaquistão abarrota publicações respeitáveis com parolagens autocongratulatórias que elas classificam como "informes especiais". Isso para não se falar nos seminários de fancaria frequentemente montados nas capitais do circuito Elizabeth Arden. Se cada seminário desses anunciar quanto custa cada sábio-palestrante, lances como o da LSE dificilmente se repetirão.

A sabedoria convencional ensina que na Jordânia e na Síria funcionam governos policiais e corruptos. Está entendido que o rei Abdula 2º e o presidente Assad são ditadores, mas suas mulheres parecem Cinderelas de um novo tempo. A rainha Rania é ambientalista e tuiteira, com MBA pela Universidade Americana do Cairo, passagens pelo Citibank e pela Apple. É amiga de Nicole Kidman e da infalível Naomi Campbell. Festejou seus 40 anos com 600 convidados globais. Eles brindaram no deserto, pisando em areias umedecidas por jorros de pipas d'água.

Na Síria reina Asma, mulher do presidente Assad. Estudou no King's College de Londres e passou pelo fundo de derivativos do Deutsche Bank e pelo JP Morgan.

Ela se dedica a amparar o desenvolvimento rural. É o rosto cosmopolita do governo. Seu marido tem outros interesses: com tecnologia pirata paquistanesa e assistência da Coreia do Norte, montava um reator nuclear que produziria plutônio, e, com ele, umas bombinhas. Em setembro de 2007, a aviação israelense detonou-o.

Os ditadores de todo o mundo sabem que universidades ilustres e empresários endinheirados gostam de polir celebridades. O filho de Gaddafi só se tornou um quindim azedo para a London School of Economics porque ela aceitou seu dinheiro na época errada. Seus doutores precisam de uma consultoria da Maison Dior.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/03/2011.

terça-feira, 1 de março de 2011

Palpite infeliz

Abram Szajman


O presidente francês Nicolas Sarkozy enfrentou greves e protestos maciços contra sua reforma da Previdência. No plano externo, amarga derrotas, tais como a revolta popular que balançou a ditadura na Tunísia, apoiada pela França durante décadas.

Fatores de impopularidade que o levaram a produzir esta pérola em discurso sobre as metas do G20: "Nós queremos regulação dos mercados financeiros primários de commodities", disse, acrescentando que "se não fizermos nada, corremos o risco de revoltas por alimentos nos países mais pobres e de um efeito desfavorável sobre o crescimento econômico global".

A tentativa de se valer da presidência rotativa do G20, que a França detém em 2011, para criar fatos políticos que possibilitem manter a perspectiva de se reeleger no ano que vem levou Sarkozy a essa esdrúxula e perigosa ideia, que pode desviar o foco do grupo das 20 maiores economias do planeta, atualmente focado em criar mecanismos destinados a conter ou mitigar efeitos da guerra cambial.

Dirigida apenas ao G8, a proposta já teria o sabor de saudosismo colonialista, já que as potências centrais recorreram no passado a não poucas guerras e golpes de Estado para manter o controle das matérias primas em seus domínios ou áreas de influência.

Mas, no âmbito do G20, em que figuram e protagonizam países com imensos recursos naturais, como o Brasil, a iniciativa soa como provocação, que pede resposta à altura.

A primeira reação veio do diretor-geral da FAO (braço das Nações Unidas para agricultura e alimentação), Jacques Diouf, para quem "os preços mais altos e voláteis continuarão nos próximos anos se deixarmos de combater as causas estruturais dos desequilíbrios no sistema agrícola internacional".

Ele adverte que subsídios e tarifas sobre produtos agrícolas distorcem o equilíbrio entre oferta e procura nesse mercado, colocando o dedo na ferida: tem moral para falar de crise alimentar o país da União Europeia que mais subvenciona seus agricultores?

Durante séculos, os países periféricos foram constrangidos pelo liberalismo econômico, a se concentrar na exploração restrita de suas "vantagens comparativas", ficando à mercê de processo desigual de trocas que lhes exigia cada vez mais produtos primários para adquirir manufaturas que não produziam.

Agora, quando o crescimento da população mundial e da classe média nos países emergentes inverte a equação em benefício dos produtores de commodities, surge um esperto sugerindo melar o jogo de mercado, de modo a preservar os privilégios de um punhado de nações que até aqui se beneficiaram da exclusão da maioria em relação aos frutos do desenvolvimento.

Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil diversificou a produção agrícola, desenvolvendo a mais competitiva e tecnologicamente capacitada agricultura tropical do planeta, capaz de abastecer o mercado interno e exportar não só alimentos mas também energia renovável obtida a partir do etanol da cana-de-açúcar.

Não pode, assim, admitir uma manobra canhestra que afetaria também nossas commodities minerais e o petróleo do pré-sal.

O que o mundo precisa para exorcizar uma futura escassez de alimentos é a prevenção das catástrofes climáticas, acentuadas pelo aquecimento global, e o apoio em assistência técnica, crédito e seguro rural aos produtores dos países mais pobres. Parafraseando Noel Rosa, só há uma resposta justa para o absurdo proposto: "Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz".

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ABRAM SZAJMAN é presidente da Fecomercio (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo) e dos conselhos regionais do Sesc (Serviço Social do Comércio) e do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial).
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/02/2011.