quarta-feira, 30 de maio de 2012

Lula, Gilmar Mendes e as versões

Duas análises, em linhas diferentes, sobre as versões de Lula e Gilmar Mendes acerca de reunião ocorrida em maio.

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Janio de Freitas

Além das versões


Será sempre por mera preferência pessoal, ainda que de fundo político, a escolha que se faça entre as versões conflitantes de Gilmar Mendes e de Nelson Jobim para a conversa de Lula com o ministro do Supremo Tribunal Federal, que o acusa de tentar pressioná-lo para não apoiar o julgamento do mensalão antes das eleições. O que Jobim, única testemunha do encontro, nega.

Versão contra versão, de duas pessoas com o mesmo grau de confiabilidade. Mas o impasse não evita uma outra questão importante em vários sentidos.

O encontro, no escritório de Nelson Jobim, foi em 26 de abril. Por que só passado um mês Gilmar Mendes quis dar à "Veja" sua versão do que Lula lhe teria dito?

A hipótese plausível é a de lançar a granada o mais próximo possível das eleições, mas não tanto que tornasse óbvia a intenção.

Pode haver outras hipóteses, não formuláveis, porém, porque só poderiam decorrer de motivos (ainda) misteriosos.

Também não há hipótese plausível para o encontro com Gilmar Mendes, pedido por Lula a Nelson Jobim, senão o de obter a simpatia do ministro do STF para o julgamento mais tarde, contra as fortes pressões para apressá-lo.

Neste caso, a ideia do encontro seria uma falha desastrosa da sensibilidade de Lula.

Vêm lá da relação com Collor e seu governo, até como seu defensor na sessão do Senado para o impeachment, as evidências do convívio áspero de Gilmar Mendes com a existência do PT. E, na origem dessa posição ou por extensão dela, com Lula.

Foram inúmeras as manifestações de Gilmar Mendes hostis ao governo Lula. Por mais de uma vez, chegou a dizer, no seu estilo exaltado, que vivíamos então em "um Estado policial".

Se não no trato jurídico, nas atitudes pessoais Gilmar Mendes deu todas as indicações de que seria a última pessoa a quem Lula poderia levar uma proposta de índole política. E de conveniência sua e do PT nas eleições. Em São Paulo, sobretudo.

Lula foi movido por propósitos políticos, portanto, na versão divulgada por seu interlocutor. E Gilmar Mendes, que propósitos o moveram, se não foram políticos, para lançar sua granada 30 dias depois de a ter recebido, segundo sua versão? E quando o assunto da antecipação do julgamento já estava bastante esvaziado.

Tanto por Lula não haver procurado outros ministros do STF, como alguns disseram, quanto pelo avanço, dentro e fora do Supremo, da disposição de apressar a entrada do mensalão na pauta do tribunal.

Na versão de Gilmar Mendes, Lula teria "insinuado" uma espécie de troca: o apoio ao julgamento pós-eleições e, da sua parte, a proteção na CPI do Cachoeira contra o assunto de uma estada do ministro do Supremo com Demóstenes Torres na Alemanha.

Aí já seria outro capítulo.

Para a CPI declarada sujeita a manipulação, para Lula pela imoralidade da troca proposta, e para Gilmar Mendes posto sob suspeições. Tudo, porém, se perde no impasse da versões conflitantes e inconfirmáveis, ambas.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/05/2012.


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Eliane Cantanhêde

"STF não é sindicato"


Nem Lula, nem Nelson Jobim, nem Gilmar Mendes desmentem que houve um encontro entre eles, no dia citado pela "Veja" e no escritório de Jobim. Esses são os fatos, o resto são versões e especulações. A elas.

Jobim foi ministro de Lula e é (pelo menos era até sexta-feira passada) amigo pessoal de Gilmar. Logo, um mediador perfeito para uma conversa espinhosa entre os dois, dessas que jamais podem sair na imprensa, mas vivem saindo. Seria muita cara de pau dizer que o encontro foi mera coincidência.

Gilmar vive às turras com o PT de Lula, e Lula não gosta de ninguém que não o endeuse. Gilmar e Lula não marcariam de se encontrar no escritório de Jobim só para bater um papo, tomar uma cerveja e comer amendoim. Nem para falar de flores.

Já que tratamos aqui de especulações, vamos pensar: falaram, então, do clima seco de Brasília? Da Rio+20? Do Corinthians na Libertadores? Do sucesso de Dilma? Ou, ao contrário, do novo "pibinho" de menos de 3% que se anuncia para 2012?

Afora o Corinthians, não consta que Lula esteja dando muita bola para nenhuma dessas coisas. Dizem -não os adversários, mas os fiéis seguidores- que ele só age pensando naquilo: eleição de São Paulo, CPI do Cachoeira e... mensalão. Questões, aliás, bastante intrincadas entre elas.

Logo, "se non é vero, é bene trovato" que Lula ande à cata de ministros do Supremo para adiar o julgamento do mensalão em ano eleitoral e tente usar a CPI como moeda de troca. Como também soa quase natural, até pela personalidade, Gilmar botar a boca no trombone.

Tudo faz tanto sentido que os demais ministros compraram rapidamente a história e reagiram com firmeza. O decano Celso de Mello acusa ingerência entre Poderes e Marco Aurélio Mello dá um basta: "O Supremo não é sindicato!".

Pode não ser, mas há quem trate o país como um grande sindicato.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/05/2012.

Em defesa do direito de defesa

Márcio Thomaz Bastos



Em 1956, solicitador acadêmico -o equivalente de então de estagiário-, comecei a advogar.

Exerci a atividade ininterruptamente, de forma intensa, conquanto modesta, até 2002. Parei em 2002 e assumi, extremamente honrado, o Ministério da Justiça, no governo Lula, onde fiquei por 50 meses.

Fiz uma quarentena, que não me era obrigatória, até final de 2007, quando voltei a me dedicar ao meu verdadeiro ofício, a prática legal. Ou seja, para terminar esta exposição cheia de datas, de 1956 a 2012 (56 anos) fui ministro por quatro anos. Os outros 52, devotei-os à advocacia.

Também servi à profissão como dirigente da OAB-SP e da OAB nacional. Na vida profissional, alguns momentos me orgulharam muito: as Diretas Já, a Constituinte, o julgamento dos assassinos de Chico Mendes, a fundação do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e muitas centenas de defesas que assumi, tanto no júri como no juiz singular.

No Ministério da Justiça, a reestruturação da Polícia Federal, a construção do Sistema Penitenciário Federal, a reforma do Judiciário, a campanha do desarmamento, a reformulação da Secretaria de Direito Econômico, a implantação do Sistema Único de Segurança Pública, o pioneiro Programa de Transparência, a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol e a fundação da Força Nacional de Segurança Pública.

Foram duas fases bem distintas e demarcadas. Numa, o serviço público, trabalho balizado sob o signo de duas lealdades que nunca colidiram: às instituições e à Presidência.

Noutra (advocacia e OAB), primeiro a luta pelo estabelecimento de um Estado de Direito; depois, a prática profissional, que procurei marcar pelo respeito à ética, ao estatuto da OAB, às leis e, principalmente, à Constituição brasileira, entre cujos dogmas fundamentais estão assegurados o direito de ampla defesa, o devido processo legal, o contraditório, a licitude das provas, a presunção de inocência e, de forma geral, a proibição dos abusos.

Durante essa longa trajetória de advogado que vota no PT -não de petista que advoga-, tive muitas oportunidades de representar clientes vistos como inimigos figadais do partido. (Não cito nomes, para preservá-los.) Nenhum foi recusado por isso.

Desse modo, salvei minha independência como defensor, nunca a alienando a quem quer que fosse. A liberdade do advogado é condição necessária da defesa da liberdade.

Assim como representei centenas de clientes dos quais nunca recebi honorários, trabalhei para muitos que puderam pagar, alguns ricos, entre pessoas físicas e empresas.

Agora que aceitei representar, no campo criminal, o senhor Carlos Augusto Ramos, apelidado de Cachoeira, surgem comentários sobre a minha atuação, estritamente técnica.

Fora os costumeiros canibais da honra alheia -aos quais não dou atenção nem resposta-, pessoas que parecem bem-intencionadas questionam se eu poderia (ou deveria) ter me incumbido dessa defesa, ou porque fui Ministro da Justiça, ou então porque sou ligado ao PT e ao ex-presidente Lula, ou, ainda, "porque não tenho necessidade de fazer isso".

A todas essas dúvidas, a resposta é negativa. Nada me proíbe, nesta altura da vida -como nunca antes, à exceção do tempo do serviço público- de assumir a defesa de alguém com quem não me sinto impedido, legal, moral ou psicologicamente, cobrando ou não honorários.

Entre tantos casos importantes em que venho trabalhando, dois chamaram muito a atenção pública: esse e o das cotas na UnB. No primeiro, estou recebendo honorários; no segundo, trabalhei "pro honorem", ou seja, sem nenhuma remuneração.

Em matéria criminal, aumenta a responsabilidade do advogado, nos termos do nosso código de ética: "É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar a sua própria opinião sobre a culpa do acusado". Porque, como diz Rui Barbosa, indo nas raízes da questão:

"Quando quer e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se manifesta necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a segunda, por mais execrando que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira. A defesa não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais."

O fascinante da profissão é o seu desafio. Enfrentar o Estado -tão provido de armas, meios e modos de atingir o acusado- e ser, ao lado deste, a voz de seus direitos legais.

Há 12 anos, escrevi neste mesmo espaço um texto com o mesmo título: "Em defesa do direito de defesa". Não esperava ser convidado a escrever outro, sobre o mesmo tema, depois de tantos avanços institucionais que o Brasil viveu de lá pra cá.

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MÁRCIO THOMAZ BASTOS, 76, é advogado criminalista. Foi ministro da Justiça (de 2003 a 2007, governo Lula)

Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/05/2012.

A conta dos mortos

Vladimir Safatle



No último domingo, esta Folha publicou reportagem a respeito do número de mortos resultantes de ações da luta armada contra a ditadura militar ("Para militares, Estado combatia o terrorismo", "Poder", 27/5).

A reportagem em questão tem sua importância por trazer mais informações que permitem aos leitores tirar suas conclusões a respeito daquele momento sombrio da história brasileira. No entanto ela peca por aquilo que não diz.

Baseando-se nos números de um site de militares defensores da ditadura, o texto lembra como membros da luta armada mataram, além de militares, "bancários, motoristas de táxis, donas de casa e empresários". Não é difícil perceber o esforço do jornalista em induzir a indignação a respeito de tais ações contra "vítimas particularmente vulneráveis", como sentinelas "parados à frente dos quartéis".

Em uma reportagem como essa, seria importante lembrar que os membros da luta armada que se envolveram em tais mortes foram julgados, condenados e punidos. Eles nunca foram objeto de anistia.

A Lei da Anistia não cobria tais crimes. Por isso eles ficaram na cadeia depois de 1979, sendo posteriormente agraciados com redução de pena. Sem essa informação, dá-se a impressão de que o destino desses indivíduos foi o mesmo do dos torturadores.

Segundo, seria bom lembrar que "terrorismo" significa "atos indiscriminados de violência contra populações civis". Nesse sentido, as ações descritas da luta armada não podem ser compreendidas como "terrorismo", já que a própria reportagem reconhece que as vítimas civis não eram os alvos.

Mesmo a ação no aeroporto de Guararapes não era terrorismo, mas um "tiranicídio", que, infelizmente, errou de alvo. Vale aqui lembrar que, no interior da tradição liberal (sim, da tradição liberal), um "tiranicídio" é algo completamente legítimo, a não ser que queimemos o "Segundo Tratado sobre o Governo", do "terrorista" John Locke.

Quando a Comissão da Verdade foi instalada, era de esperar lermos reportagens sobre as empresas que financiaram aparatos de tortura e crimes contra a humanidade, os centros de assassinatos ligados às Forças Armadas, entrevistas com os jovens que organizam atualmente atos de repúdio contra torturadores, crianças que foram sequestradas de pais guerrilheiros assassinados.

No entanto há uma certa propensão para darmos voz a torturadores que se autovangloriam como "defensores da pátria contra a ameaça comunista" e "fatos" que comprovam a teoria dos dois demônios, onde os crimes da ditadura se anulam quando comparados aos crimes da luta armada.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/05/2012.

terça-feira, 29 de maio de 2012

A Procuradoria-Geral tarda, e tarda

Elio Gaspari


Em outubro de 2010 o estudante Marco Paulo dos Santos, um negro evangélico de 24 anos, era estagiário no Superior Tribunal de Justiça, foi à agência do Banco do Brasil que funciona no prédio e esperava sua vez para usar um terminal. Pela sua narrativa, havia um senhor operando a máquina e ele aguardava sua vez atrás da linha demarcatória. A certa altura, o cidadão voltou-se, dizendo: "Quer sair daqui?" Marco explicou-lhe que estava no lugar adequado, mas não convenceu: "Como eu não saí, ele se apresentou: 'Sou Ari Pargendler, presidente do STJ, e você está demitido. Isso aqui para você acabou". Pargendler teria puxado o crachá do rapaz para ver seu nome. Uma hora depois, Marco recebeu uma carta de demissão por ter cometido "falta gravíssima de respeito".

Marco Paulo deu queixa na 5ª Delegacia da Polícia Civil, e uma testemunha corroborou sua versão. Pargendler, presidente do "Tribunal da Cidadania", não se pronunciou. O processo contra o doutor por agressão moral foi remetido ao Supremo Tribunal Federal, sob sigilo. Felizmente, o ministro Celso de Mello tirou-o do segredo e remeteu os autos à Procuradoria-Geral da República, para que verificasse "a exata adequação típica dos fatos narrados neste procedimento penal". No dia 17 de dezembro de 2010 o processo foi para as mãos da subprocuradora-geral Cláudia Sampaio Marques. Cadê?

Quando completou-se um ano de espera, Marco Paulo disse ao repórter Frederico Vasconcelos que "entregou o caso nas mãos de Deus". Fez muito bem, porque, em condições normais, a Procuradoria teria cumprido sua tarefa em dois meses.

No dia 7 de março a doutora Sampaio Marques devolveu o processo e, a dia 14 de abril, ele foi redistribuído para o procurador-geral Roberto Gurgel, seu marido. Explicação? Nem pensar.

Eremildo é um idiota e, ao lembrar que a Operação Vegas ficou para com o doutor Gurgel durante quase três anos, convenceu-se de que não se deve falar do caso de Marco Paulo, pois isso é coisa de "pessoas que estão morrendo de medo do julgamento do mensalão".

 Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/05/2012.

As declarações de Xuxa



Três artigos sobre a declarações de Xuxa ao Fantástico a respeito de abusos sofridos na infância.

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Eliane Cantanhêde

A ferida


O depoimento de Xuxa ao "Fantástico" é uma das peças mais contundentes da TV brasileira, porque ela é quem é e cutucou profundas feridas para tratar de um problema gravíssimo e bem mais comum do que se pensa: o abuso sexual de crianças e adolescentes. E onde deveriam estar mais protegidas: em casa e na escola.

"Eu tinha vergonha, me calava, me sentia mal, me sentia suja, me sentia errada", disse Xuxa, ao relatar que sofreu abusos do melhor amigo do pai, do homem que casaria com a sua avó e de um professor. Eles tinham a aura da autoridade, o acesso à casa e a confiança da família. Aproveitaram-se disso e da vulnerabilidade da menina Xuxa. Como enfrentá-los? Como desmascará-los?

Quem conviveu com pessoas que passaram por isso, em menor ou maior grau, sabe a explosão emocional que significa expor para uma irmã, uma amiga, uma psicóloga -imagine para milhões de pessoas- uma ferida que jamais cicatriza. E que, curiosa e invariavelmente, vem acompanhada desse sentimento desolador: o de culpa. Por que eu? Por que deixei? Por que não contei?

Porque era uma criança e, ainda por cima linda, à mercê de adultos aparentemente respeitáveis (um professor?!). E foi punida múltiplas vezes por esse "erro": pela violência, pelo pânico, pela vergonha, pela culpa e pelas consequências vida afora.

Xuxa talvez tenha aberto o coração em público para elaborar a própria dor e tentar entender, como disse, por que jamais teve um relacionamento estável e não conseguiu, ou não quis, se casar.

Mas talvez tenha feito também para que milhares, sabe-se lá se milhões, de meninas e meninos, de mulheres e homens, possam se livrar de um confuso sentimento de culpa embolado com a dolorosa sensação de solidão, de abandono.

Toda minha solidariedade, Xuxa, e meu respeito pelo seu ato de profunda coragem. O Brasil agradece.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 22/05/2012.


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Na violência sexual, silêncio é a atitude mais comum

Rosely Sayão


Quando o assunto é bullying, fazemos o maior barulho. Reportagens, colunas, palestras, orientações, conselhos, livros e mais livros.

Acreditamos que, adquirindo muita informação a esse respeito, nossos filhos ficarão mais seguros. Já quando o assunto é violência sexual contra crianças e adolescentes... silêncio é o que fazemos.

O constrangimento que sentimos em relação a essa situação é tamanho que preferimos ignorar o assunto ou, pelo menos, encontrar boas justificativas para isso.

Acreditar, por exemplo, que esse é um fato que não atinge famílias como a que pertencemos costuma ser uma delas.

Acontece. Em todo tipo de família, de todas as classes sociais, com crianças de todas as idades. E mais: em geral, são pessoas próximas, bem próximas à família que praticam tais atos.

Tios, avós, amigos íntimos da família, padrastos, vizinhos que partilham da intimidade da casa etc. São esses, entre outros, os personagens principais, segundo os estudos apontam, dos abusos sexuais contra os mais novos.

É um caso bem sério esse, principalmente quando nos lembramos de duas características de nosso mundo.

A primeira: os mais novos estão eroticamente hiperestimulados. Acham "normal" as cenas a que assistem nos canais de TV, as fotos que veem nas revistas e nos sites. Podem achar "normal" viver uma experiência desse tipo, portanto.

A segunda: nos tempos atuais, crianças e jovens não sabem mais que têm direito à intimidade. Aliás, eles nem sabem o que é isso.

Nos canais abertos, em horários que as crianças estão expostas à TV, há uma explosão de "reality shows". Eles não sabem, portanto, o que é intimidade.

Temos muitos motivos para não permanecer em silêncio quanto a assunto tão importante. Nossa questão é saber tratar do tema com a delicadeza que ele exige.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 22/05/2012.

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Claudia Antunes

Xuxa e Mano Brown


A entrevista de Xuxa que levantou a audiência do "Fantástico" ainda causa controvérsia. As reações variam entre os extremos de exaltação da coragem da apresentadora e de desprezo por um suposto golpe de marketing.

Xuxa pareceu sincera, mas foi pouco explícita sobre os abusos que sofreu. Além de mostrar a persistência de um personagem público infantilizado, essa lacuna pode comprometer o efeito de incentivar famílias e crianças a ficarem atentas e denunciarem violações do mesmo tipo.

Ela foi estuprada, foi apalpada? Os agressores demonstraram prazer, ameaçaram-na, disseram que estavam brincando? Onde as agressões ocorreram?

É possível que tal detalhamento fosse considerado impróprio ao horário nobre da TV. Mas pode ser mais difícil do que parece detectar e prevenir as várias formas de abuso sexual na infância. Todo contato físico entre pais e filhos, tios e sobrinhos, deve ser considerado suspeito?

O depoimento de Xuxa contrasta com o tom assertivo da entrevista de Mano Brown que a "TV Folha" exibiu também no domingo. Como sujeito ativo e não vítima, o líder do Racionais defendeu os 1.300 sem-teto que ocupam há cinco anos um edifício no centro paulistano.

Falou da mentalidade reacionária que, por exemplo, leva o Judiciário a uma interpretação estrita (e até anticonstitucional) do direito de propriedade. Nem juízes nem autoridades sentem-se compelidos a uma solução que mantenha as famílias "perto do hospital, do metrô, a cinco minutos do trabalho".

Que toda a sociedade não se dê conta de que ganharia com isso tanto quanto os sem-teto é prova de que, apesar do boom de consumo e de emprego, ainda estamos em transição, disse Brown. "O Brasil não sabe se é um país moderno ou se ainda está em 1964."


Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/05/2012.

A estadista em construção

Luiz Carlos Bresser-Pereira




Muitos serão os desafios que Dilma enfrentará; não sabemos quanta fortuna terá, mas que terá 'virtù'

Primeiro, foi a demissão de ministros comprometidos com a corrupção; depois, a firmeza que vem mostrando em baixar os juros, enfrentando para isso muitos interesses, inclusive os dos seus eleitores, pequenos poupadores; há alguns dias, foi o discurso na instalação da Comissão da Verdade em que fez uma bela defesa dos direitos humanos e do seu caráter suprapartidário; agora, é sua decisão histórica de, aplicando a Lei de Acesso à Informação, publicar os salários dos servidores do Executivo.

Todos atos que mostram coragem e firmeza, sugerindo que a presidente brasileira é uma estadista em construção.

Sua decisão que me levou a esta conclusão foi a da última semana -a de tornar pública a remuneração dos servidores públicos. Saber quanto recebem os servidores públicos eleitos e não eleitos é um direito inconteste dos cidadãos. Mas é um direito que sempre foi negado aos brasileiros.

Quando fui ministro da Administração Federal, decidi publicar os vencimentos dos servidores públicos no "Diário Oficial". Caiu uma tempestade sobre mim. Servidores indignados vieram me falar sobre seu "direito à privacidade".

Nas democracias, em relação ao dinheiro público, não há direito à privacidade; não há o "direito" de receber valores absurdos que nada têm a ver com o nível de seu cargo.

Alguns poderão dizer que meu entusiasmo em relação à presidente é apressado. De fato, é cedo para dizermos que Dilma Rousseff preenche as condições muito raras que definem um estadista. Mas estou dizendo que ela está "se construindo" como estadista. Ela está demonstrando a firmeza e a coragem que são necessárias.

Mas não basta isso. Conforme disse classicamente Maquiavel, além da "virtù", o príncipe necessita da fortuna. "Virtù" não significa apenas virtude, e sim competência para governar, discernimento ao tomar decisões, capacidade de fazer compromissos e, finalmente, bom êxito em seu governo. O que depende também da sorte -da fortuna.

Estadista é o governante que tem a visão do todo, olha para o futuro e tem a coragem de buscá-lo, confrontando os interesses de muitos, inclusive dos seus seguidores. É quem conhece seu país, sabe quais são seus grandes problemas e contribui para resolvê-los.

Os estadistas são geralmente identificados nas guerras em defesa de seu país, mas podem sê-lo em momentos decisivos de seu desenvolvimento econômico e social.

O estadista brasileiro do século 20 foi Getúlio Vargas, porque comandou a revolução nacional e industrial brasileira. A presidente Dilma poderá ser uma nova estadista, agora em um contexto democrático, se lograr vencer os dois grandes males brasileiros: a corrupção de suas elites e a armadilha da alta taxa de juros e do câmbio sobrevalorizado.

Em seu discurso na instalação da Comissão da Verdade, a presidente declarou: "A verdade é algo tão surpreendentemente forte que não abriga nem o ressentimento, nem o ódio, nem tampouco o perdão... é, sobretudo, o contrário do esquecimento". Deixo essa bela frase como fecho desta coluna. Muitos serão ainda os desafios que Dilma terá que enfrentar; não sabemos quanta fortuna terá, mas já sabemos que terá "virtù".


Publicado na Folha de S.Paulo, em 21/05/2012.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Dois personagens à procura de uma história

Filha de guerrilheiros quer resgatar memória dos pais


Pedagoga vivia em Cuba e era apenas um bebê quando eles foram mortos
Ela chegou ao Brasil com documento falso e só começou a usar o nome verdadeiro com 26 anos de idade
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A CAMPINAS (SP)



Ñasaindy Barrett de Araújo, 44, sabe bem a diferença entre memória e lembrança. "Lembranças são as imagens do que vivi. Memória é o que aprendo do passado."

Sem lembranças de seus próprios pais, ela espera que a Comissão da Verdade a ajude a reconstruir ao menos a memória de quem eles foram.

Os pais de Ñasaindy (o nome quer dizer 'Claridade do Luar', em guarani), militantes de esquerda, apaixonaram-se em Cuba, então a meca da revolução mundial, e ela nasceu.

A menina era um bebê de poucos meses quando o pai e logo depois a mãe voltaram ao Brasil para fazer a revolução. E deixaram-na na ilha.

O pai, José Maria Ferreira de Araújo, era um jovem que havia participado do levante dos marinheiros e fuzileiros navais, em 1964, ainda antes do golpe militar. Expulso da Marinha, Araújo viajou a Cuba para aprender técnicas de guerrilha.

O regresso ao Brasil em junho de 1970 era para aplicar os ensinamentos. Não durou.

Embora seu corpo nunca tenha sido encontrado, camaradas dizem que, preso e torturado, ele morreu em setembro do mesmo ano.

A mãe de Ñasaindy, Soledad Barrett Viedma, foi personagem marcante na história da luta contra o regime dos generais. Herdeira de uma família de militantes comunistas, estudou marxismo na Universidade Patrice Lumumba, de Moscou.

Culta, linda, poliglota, poeta e grande entendedora de explosivos, teve destino trágico. Apaixonou-se por José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, um revolucionário como ela. Ao ser preso e torturado, ele bandeou-se para a repressão.

Delatada pelo namorado ao maior caçador de comunistas da época, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops de São Paulo, Soledad foi morta numa emboscada em Pernambuco em 1973.

Com ela morreram outros cinco militantes da Vanguarda Popular Revolucionária, a organização de esquerda que ela integrava.

Ñasaindy foi criada por uma exilada brasileira em Cuba, Damaris de Oliveira Lucena, que a adotou. Mas o clima da época não favorecia as lembranças.

Ai de quem fosse pego levando cartas de militantes procurados. A menina teve de se contentar em ver imagens da mãe e do pai apenas em fragmentos.

"Eu não tenho fotos onde apareçam os rostos deles [dos pais]. Todas as fotos eram tiradas apenas com os braços. Ou cortavam-se as que eventualmente tivessem rosto."

Percebeu que a mãe e o pai estavam mortos quando, enfim, penduraram um quadro com as fotos dos dois na casa em que vivia. Eles já não corriam riscos.

"Soledad era uma pessoa que eu tinha de amar porque era minha mãe. Por ela ser essa grande mulher que todos diziam que ela era. Mas ela não representava nada para mim, que nem a conheci".

Com 11 anos, depois de promulgada a Lei da Anistia, em 1979, Ñasaindy chegou ao Brasil. Como documento, apenas uma certidão de nascimento falsa, em que figurava o nome Ñasaindy Sosa del Sol. Ela também usava o nome da família adotiva: Oliveira Lucena.

Foi só em 1996, com 26 anos, que recebeu documentos com seu nome verdadeiro. Até aí ela se recusou a ter documentos sem os sobrenomes de seus pais.

A jovem conta que procurou insistentemente os familiares para formar uma imagem da mãe. "Fiz muitas perguntas. Primeiro, só pensava: puxa, por que ela me abandonou? Precisei entender a Soledad para perdoá-la e dizer: Eu entendo você. Entendo que o mal que você me fez era pelo bem da humanidade, do Brasil, sei lá".

Hoje, Ñasaindy é pedagoga e mãe de quatro filhos. Define-se como "de esquerda", mas não se diz socialista. Sobre o delator da mãe, o cabo Anselmo, afirma que nunca conseguiu odiá-lo. "Procurei muito esse sentimento em mim, mas não consegui."

Ñasaindy tem poucas esperanças de que Anselmo conte o que sabe.

"Como ela não desconfiou que ele era o traidor? Será que se ela tivesse agido mais com a razão, teria conseguido salvar os outros?" A expectativa é que essas respostas venham na história que a Comissão da Verdade levantará.

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Vítima de bomba também espera receber reparação


Corretor teve a perna amputada em atentado contra consulado americano
Sonho de trabalhar como piloto de aviões teve que ser abortado; ele já ganha R$ 700 por mês como indenização
LAURA CAPRIGLIONE
DA ENVIADA A SANTOS



Em 19 de março de 1968, a ALN (Ação Libertadora Nacional), dissidência armada do Partido Comunista Brasileiro, que lutava contra o regime militar, colocou uma bomba na entrada do estacionamento do Conjunto Nacional, em plena avenida Paulista (centro de São Paulo).

Orlando Lovecchio Filho, então com 22 anos, que não era nem americano, nem um gorila da repressão, mas um cara "apolítico, que curtia iê-iê-iê, carros e aviões", como se define, perdeu parte da perna esquerda.

"Meu consolo foi pensar no Roberto Carlos", ele revela.

Criado em Santos, Lovecchio tinha acabado de aterrissar em São Paulo. O pai o mandara para a capital a fim de cuidar dos negócios da família, que lidava com navegação marítima.

Ele arrumou um apartamento perto da Paulista. Como o prédio não tinha estacionamento para o possante automóvel DKW -"todo preparado no departamento de competição da fábrica"-, Lovecchio alugou uma vaga no Conjunto Nacional, então endereço do Consulado Americano em São Paulo.

Era 1h30 do dia 19, avenida vazia, lojas fechadas, consulado idem, quando o DKW desceu a rampa do estacionamento. Lovecchio estava com um primo e um amigo de Santos, que o visitavam.

Um cano tampado com papel kraft. Saída do prédio. Fumacinha. Acabam aí as lembranças. Lovecchio não ouviu nada, não viu clarão.

Quando acordou, estava deitado no chão, cercado por pessoas perguntando-lhe isso e aquilo. Achou estranho que a sola do sapato estivesse "olhando" para ele.

Os jovens foram os primeiros suspeitos do atentado. Nos jornais dos dias seguintes, a polícia avisava: a explosão podia ser um"acidente de trabalho". Os três do DKW entraram na mira da Polícia do Exército e do Dops.

Internado no Hospital das Clínicas, Lovecchio lutou para controlar a infecção na perna dilacerada. Os pais dele recusavam-se a aceitar a hipótese de amputação. "Mas já estava gangrenando."

Lovecchio lembra-se: "Eu frequentava quase todo domingo o programa da Jovem Guarda. E o cara mais importante da Jovem Guarda, o Roberto Carlos, era amputado. Ele era uma pessoa querida, amada mesmo. E sofreu o mesmo tipo de amputação que eu teria de fazer."

Segundo Lovecchio, foi dele a autorização: "Amputa essa perna e acabou."

Lovecchio tinha brevê para pilotar pequenos aviões, mas estudava para comandar aeronaves maiores.

"Quando eu perdi a perna, perdi o sonho junto. Porque a pilotagem de um avião de grande porte exige movimentos das pernas e dos pés. Na ponta dos pés, controla-se o leme. Nos calcanhares, controlam-se os freios", diz.

Foi só em 1992 que, enfim, Lovecchio descobriu quem tinha colocado a bomba que roubou sua perna. Em uma entrevista à Folha, o artista plástico, arquiteto e professor de história da arte Sergio Ferro admitiu ter sido um dos três autores do atentado ao consulado. "A bomba era contra o horror no Vietnã", disse na época o artista.

Lovecchio jura que não tem ódio dos que colocaram a bomba no Consulado. Na hipótese de se encontrar com Ferro, abordaria o artista da seguinte forma: "Oi, Sergio, tudo bem? Você se lembra do que você me fez? Eu continuo aqui, correndo atrás."

O corretor casou-se, teve um filho, separou-se e hoje vive com a mãe em um confortável apartamento defronte ao mar, em Santos. Namora uma executiva.

Considera-se exceção entre as vítimas conhecidas do período. "Sou o único que foi atingido sem ter nada a ver com aquela guerra." Ele exige reparação pelo que passou. Atualmente, Lovecchio recebe cerca de R$ 700 por mês, a título de indenização. Mas quer ser reparado pela carreira que perdeu (a de piloto). "Como já acontece com os anistiados", lembra.

Sobre o fato de o Brasil ter hoje uma presidente como Dilma Rousseff, que integrou organizações de esquerda armada, diz que "esta é a prova de que no Brasil hoje em dia todo mundo pode alcançar o poder sem violência."

Da Comissão da Verdade, espera que ajude a contar também a história das pessoas comuns como ele, que foram atingidas pela violência.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/05/2012.

O direito dos ofendidos

Jairo Marques


As frases feitas do momento, seja no papo furado no cafezinho da firma, seja na feijoada com os amigos, têm sido: "Ai como o mundo está ficando chato"; "Ah, mas agora qualquer piada é motivo de questionamento"; "Puxa, mas a gente não pode nem mais brincar com nada, que já falam que é crime".

Parece, exageradamente, que um monte de tolos recalcados saiu de suas tumbas para perturbar a turma dos "legalzudos", dos "mordernetes", dos descolados com reclamações sobre piadas, sobre botar limites no humor.

Pouco leio ou escuto sobre a voz dos ofendidos, mas o grito pela tal "liberdade de expressão" de poder agredir os outros escuto sem parar.

Não quero marcar terreno como o chato de galochas, o defensor dos "politicamente corretos", dos almofadinhas, porque de correto não tenho nem o pé, mais torto do que árvore velha depois de ventania.

Também não componho com grupos orquestrados que enchem o saco por qualquer movimento que seja contrário a seus interesses.

Porém acho que é preciso dar às pessoas o básico direito de se ofenderem, de não gostarem, de não tolerarem ou de não curtirem no Facebook certas manifestações, certas graças que considerem sem graça, agressivamente sem graça.

Até concordo que tem havido exagero em algumas reclamações. Por exemplo, quando o chiste vem dos iguais. Se um rapaz negro não está nem aí em se vestir de gorila, é bem esquisito que outros da mesma cor se sintam prejudicados pela ação.

Como diria minha tia Filinha, "pé de galinha não mata pinto". Na turma das pessoas com deficiência, usamos cada termo para nos autointitularmos que quem ouve de relance pode achar que é caso de internação. São os mal-acabados, os chumbados -devido a pinos e hastes de metal que muitos guardam dentro de si após cirurgias reparadoras-, os estropiados, os "matrixianos" -pertencentes a um mundo paralelo, à Matrix, em alusão ao filme, os prejudicados das vistas, os puxadores de cachorro -cegos que usam cão-guia.

Logo que comecei a trabalhar na Folha, trombei em um corredor com o escritor e ídolo Marcelo Rubens Paiva, que à época quebrava pedra por aqui também. No que ele me viu, disparou com sorriso entre o sarcástico e o camarada: "Ah, que demais! Mais um aleijado na Redação".

Fiquei bege, afinal "aleijado" era de que os moleques me chamavam quando queriam me deixar mais bravo do que cachorro de japonês. Por alguns segundos, até pensei em chamá-lo "bobo", porém ali não morava agressão, era puro gracejo de "iguais cadeirantes".

Quando é mesmo uma sapatada na cara do orgulho, uma agulhada no brio, um ataque ao íntimo, um rastilho fértil para o bullying de um filho, por que raios "é proibido" devolver a baforada com reclamação, com apelos e, em casos cabíveis, com a busca por reparação judicial?

Defender a liberdade de expressão está entre os preceitos que jurei ao assumir minha profissão, o jornalismo, e não me pairam dúvidas de seu valor intocável, universal e atual. Mas me incomoda a formação de um paredão visando impedir que ocorra revés àquilo que causou dano emocional ou de qualquer ordem a alguém.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 22/05/2012.

Toda violação será castigada

Vladimir Safatle



"Toda violação dos direitos humanos será investigada." Com essa frase, Gilson Dipp, um dos integrantes da Comissão da Verdade, procurou constranger setores da esquerda que procuram levar a cabo as exigências de punição aos crimes da ditadura militar.

Trata-se de pressupor que tanto o aparato estatal da ditadura militar quanto os membros da luta armada foram responsáveis por violações dos direitos humanos. É como se a verdadeira função da Comissão da Verdade fosse referendar a versão oficial de que todos os lados cometeram excessos equivalentes, por isso o melhor é não punir nada.

No entanto o pressuposto de Dipp é da mais crassa má-fé. Na verdade, com essa frase, ele se torna, ao contrário, responsável por uma das piores violações dos direitos humanos.

Sua afirmação induz à criminalização do direito de resistência, este que -desde a Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão- é, ao lado dos direitos à propriedade, à segurança e à liberdade, um dos quatro direitos humanos fundamentais.

Digamos de maneira clara: simplesmente não houve violação dos direitos humanos por parte da luta armada contra a ditadura. Pois ações violentas contra membros do aparato repressivo de um Estado ditatorial e ilegal não são violações dos direitos humanos. São expressões do direito inalienável de resistência.

Os resistentes franceses também fizeram atos violentos contra colaboradores do Exército alemão durante a Segunda Guerra, e nem por isso alguém teve a ideia estúpida de criminalizar suas ações.

Àqueles que se levantam para afirmar que "a guerrilha matou tal soldado, tal financiador da Operação Bandeirantes", devemos dizer:

"Tais ações não podem ser julgadas como crimes, pois elas eram ações de resistência contra um Estado criminoso e ditatorial".

O argumento de que tais grupos de luta armada queriam implementar regimes comunistas no país não muda em nada o fato de que toda ação contra um Estado ilegal é uma ação legal. O que está em questão não é o que tais grupos queriam, mas se um Estado ilegal pode criminalizar ações contra sua existência impetrada por setores da população.

Como se não bastasse, integrantes da Comissão da Verdade que dizem querer investigar ações dos grupos de resistência "esquecem" que os membros da luta armada julgados por crimes de sangue não foram anistiados. Eles apenas receberam uma diminuição das penas.

Ou seja, os únicos anistiados foram os militares, graças a uma lei que eles mesmos fizeram, sem negociação alguma com a sociedade civil.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 22/05/2012.

Os dois lados da Comissão da Verdade

Frei Betto


A Comissão da Verdade, nomeada pela presidente Dilma, corre o risco de se transformar em Comissão da Vaidade, caso seus integrantes façam dela alavanca de vaidades pessoais.

No dia seguinte às nomeações, ainda antes da posse, opiniões díspares dos membros da comissão quanto a seu objetivo precípuo surgiram na mídia.

O ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, se enquadra nos critérios definidos pela lei que criou a comissão?

Nos termos de seu artigo 2º, §1, inciso II, "Não poderão participar da Comissão Nacional da Verdade aqueles que (...) não tenham condições de atuar com imparcialidade no exercício das competências da Comissão".

Ao atuar como perito do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, Dipp se posicionou contra familiares dos guerrilheiros do Araguaia, cujos corpos encontram-se desaparecidos. Agirá agora com imparcialidade?

O papel dos sete nomeados é investigar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. O foco principal é, em nome do Estado, abraçarem a postura épica e ética de Antígona e dar sepultura digna aos mortos e desaparecidos sob a ditadura militar (1964-1985).

A comissão atuará sob a obscura luz da injusta Lei da Anistia, promulgada em 1979 e referendada pelo STF em 2010. Essa lei nivela torturadores e torturados, assassinos e assassinados. Ora, como anistiar quem jamais sofreu julgamento, sentença e punição?

Não houve "dois lados". Houve o golpe de Estado perpetrado por militares e a derrubada de um governo constitucional e democraticamente eleito.

A ditadura implantada cassou e caçou partidos e políticos, e criou um aparelho repressivo ("o monstro", segundo o general Golbery) que instalou centros de torturas mantido com recursos públicos e privados.

O aparelho repressivo, em nome da "segurança nacional", prendeu, seviciou, assassinou, exilou, baniu e fez desaparecer os que ousaram combater a ditadura e também inúmeras pessoas que jamais se envolveram com a resistência organizada, como o ex-deputado Rubens Paiva, o jornalista Vladimir Herzog e o padre Antônio Henrique Pereira Neto.

Cabe à comissão elucidar a morte das vítimas da ditadura, o que ocorreu aos desaparecidos e quem são os responsáveis por tais atrocidades. Militares cumprem ordens superiores. É preciso apurar quem determinou a prática de torturas, a eliminação sumária de militantes políticos e o ocultamento de seus corpos.

A comissão deverá, enfim, abrir os arquivos das Forças Armadas, ouvir algozes e seus superiores hierárquicos, ouvir vítimas e parentes dos desaparecidos e esclarecer episódios emblemáticos jamais devidamente investigados, como o atentado ao Riocentro, em 1981, preparado para ceifar a vida de milhares de pessoas.

Defender o conceito acaciano de "crimes conexos" e convocar como suspeitos aqueles a quem o Brasil deve, hoje, o resgate da democracia e do Estado de Direito, equivaleria a imputar à Resistência Francesa crimes contra a ocupação nazista de Paris ou convocar os judeus como réus no Tribunal de Nuremberg.

Os integrantes da Comissão da Verdade sabem muito bem que legalidade e justiça não são sinônimos. E tenham presente a afirmação de Cervantes: "A verdade alivia mais do que machuca. E estará sempre acima de qualquer falsidade, como o óleo sobre a água".


CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, 67, o Frei Betto, frade dominicano, é escritor, assessor de movimentos sociais e autor de "Diário de Fernando: Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira" (Rocco)

Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/05/2012.

A Europa com democracia e mercado

Lourdes Sola



As convulsões que afetam a zona do euro geram um consenso surpreendente entre analistas de orientações diversas: o problema e as soluções estão na esfera da política. A ser verdade, trata-se de uma verdade estéril, a menos que se especifique: onde a política, no caso da Europa?

Em situação de crise, o papel e o escopo da política dependem muito do diagnóstico que se faça sobre as questões econômicas envolvidas. Depende do que está em jogo também no plano econômico. É aí que se evidencia o ideário do analista, econômico ou político. Com base nisso, explico por que descarto alguns diagnósticos e explicito o argumento central desse artigo. Que é o seguinte: a questão política consiste em reequilibrar o que chamo de Europa do AAA - triplo A, que é nota máxima para os analistas de mercado - e a Europa do DDD, da depressão, da deflação e, possivelmente, do desespero. Reequilibrar não nos termos da velha ideia (conservadora) entre poderes dominantes e seus respectivos satélites, mas nos termos de Martin Wolf (Valor, 3/5) - subjacente à sua sóbria análise econômica está uma questão politicamente crucial: até que ponto a Europa hoje constitui uma União?

Se a questão central fosse apenas a de complementar a unidade monetária com uma união fiscal disciplinadora, a questão política teria sido encaminhada desde janeiro, quando o pacto fiscal coordenado por Merkel e Sarkozy foi endossado por toda a União Europeia, com exceção do Reino Unido. Da perspectiva dos países signatários, representou, sim, uma delegação de autonomia e de autoridade políticas - agora na esfera fiscal - e um aprofundamento do processo iniciado em Maastricht. Tampouco faltou "liderança política". Afinal, prevaleceu a agenda dos seus artífices com as regras comuns de disciplina fiscal esperada pelos mercados.

Os fatos, porém, são subversivos e eu estendo essa afirmação de Garton Ash às ideias econômicas. Vários deles atestam o simplismo da perspectiva descrita acima. As convulsões sucederam-se, a trégua dos mercados revelou-se temporária e, nesse quadro de incerteza, sobraram apenas uma certeza e uma revisão das ideias econômicas dominantes nos mercados. A certeza é que o ciclo eleitoral nos países envolvidos - democracias estabelecidas que são - culmina com a derrota dos mandatários e/ou das coalizões dominantes. Com boa dose de ironia, a Europa do AAA não escapa a essa lógica. As duas derrotas eleitorais de Merkel no coração da Alemanha industrializada, por forças de centro-esquerda, foram precedidas pela queda de um governo de centro na Holanda, imposta pelo líder de extrema direita. Quanto à revisão das ideias econômicas, é pautada pela lógica racional dos próprios mercados. Estão sendo confrontados com um outro fato subversivo, com o qual nós, os latino-americanos, estamos familiarizados: em economias enfraquecidas, austeridade sem crescimento redunda em depressão, deflação - e incapacidade de honrar as dívidas. Nesse quadro, a questão passa a ser como compatibilizar os dois objetivos, ou seja, a reestruturação das economias deficitárias com a recriação de um horizonte de crescimento. A construção desse trade-off é questão política, mas depende de um diagnóstico econômico crível.

É ingênuo pensar que os mercados se limitem aos critérios de credibilidade econômica, ou seja, às condições de solvência de um país. A credibilidade política entra em seus radares graças a analistas políticos contratados e aos formadores de opinião. Os julgamentos de mercado incorporam, sim, os julgamentos do eleitorado e a capacidade das elites governamentais de convertê-los numa agenda econômica acordada e plausível. É o que a experiência extrema da Grécia está a dizer.

O diagnóstico de Martin Wolf aponta para a solução econômica e sociopolítica menos onerosa para o conjunto de países envolvidos. Parte de dois argumentos. O primeiro é a urgência das reformas estruturais nos países deficitários e a constatação de que políticas de crescimento tardam a produzir efeitos positivos. O segundo é uma crítica ao diagnóstico econômico das lideranças alemãs para explicar sua condição de país superavitário. Atribuem-na às reformas disciplinadoras dos anos 1990 implantadas pelo social-democrata Gerhard Schroeder - e buscam estender esse modelo aos países altamente deficitários. Para Wolf, isso é nonsense. É a condição de grande exportador que explica a de país superavitário, o que, por sua vez, depende da interação (simbiótica) com seus compradores, os mercados dos países deficitários. Graças, em suma, a uma base industrial excepcional e à incontinência dos setores privado e público dos países gastadores da região, financiados por crédito hiperabundante. Pois até o crash a inflação foi maior na eurozona como um todo do que na Alemanha, por causa das taxas mais elevadas na Espanha e na Itália. O ajustamento em curso é equivocado, por assimétrico, aprofundando os desequilíbrios: os países em dificuldades veem-se obrigados a deflacionar, sem que os superavitários concordem em fazer seus ajustamentos. O reequilíbrio depende também da revisão das políticas públicas na Alemanha: a adoção de políticas moderadamente expansionistas - de crédito e salarial - voltadas para a expansão de seu mercado interno. E maior tolerância para com uma módica, controlável, inflação.

A frase "isto não é uma união monetária, mas um império" só não choca mais porque há dois outros fatos mais alarmantes, por subversivos: os níveis de desemprego entre os jovens europeus e o sentimento antigermânico que grassa na Europa.

Os pronunciamentos do eleitorado alemão nas últimas eleições regionais acenam com um corretivo.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 19/05/2012.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

As terras indígenas não são de ninguém?

Washington Novaes




Às vésperas da conferência Rio+20, o Brasil continua a dar sinais contraditórios quanto à sua disposição de pôr em prática princípios como o da economia verde e o da governança sustentável. Ao mesmo tempo, por exemplo, em que o governo federal manifesta seu empenho em valorar recursos naturais, conservar a biodiversidade (da qual temos pelo menos 15% do total mundial), despreza relatórios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, do Banco Mundial e outros, segundo os quais a preservação de áreas indígenas se tem mostrado o caminho mais eficaz para a manutenção desses recursos naturais - mais eficiente até que áreas governamentais de preservação permanente, parques, etc.

Um dos exemplos desse descaso está em medida, assinada pela presidente da República, que veio exigir consulta ao Ministério de Minas e Energia (MME) antes de qualquer decisão da Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre demarcação de áreas indígenas - não é difícil adivinhar o que dirá o MME sobre a possível existência de jazidas minerais nesses territórios e a inconveniência de fechar as áreas. E o Executivo ainda é reforçado pelo Congresso Nacional, que está votando a Proposta de Emenda Constitucional n.º 215, que também exige a aprovação do próprio Legislativo federal para a demarcação de áreas.

Ao mesmo tempo, é apresentada como um avanço, um benefício importante para comunidades indígenas, a decisão do Ministério da Saúde de lançar um cartão de identificação que "facilitará o acesso e o atendimento médico-hospitalar", uma espécie de "SUS Indígena" - como se não fosse exatamente o contato com a cultura branca que leva para essas comunidades doenças que nelas não existiam antes e às quais são vulneráveis, exatamente pela falta de defesas imunológicas, dado o seu isolamento.

O autor destas linhas pôde comprovar esse fato há mais de 30 anos, em 1979, quando testemunhou, no Parque Indígena do Xingu, o trabalho de uma equipe da então Escola Paulista de Medicina - hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) -, liderada pelo professor Roberto Baruzzi, que ali vinha acompanhando e registrando a cada visita, em fichas individuais, a situação de saúde de cada índio das etnias do Alto Xingu. E a comprovação era impressionante: não havia, no Alto Xingu, um só caso de pessoa portadora de doenças cardiovasculares - exatamente porque não estavam ali presentes os fatores de risco nessa área, adquiridos na relação com brancos: alimentação inadequada, uso de sal com base em cloreto de sódio, presença de gorduras, obesidade, fumo, álcool, sedentarismo, etc. Em seguida foi documentada para o programa Globo Repórter, para compará-la com a do Xingu, a situação dos índios caingangues, no interior de São Paulo, já aculturados e trabalhando como boias-frias (ou mendigos, alcoólatras): cerca de 80% deles já tinham em algum grau doenças cardiovasculares.

Cinco anos mais tarde, quando preparava a série de TV Xingu - A Terra Mágica, um testemunho ainda mais contundente: havia sido transferida para o Parque do Xingu toda a aldeia de índios então chamados de kreen-akarore (ou índios gigantes) que habitavam a região do Rio Peixoto de Azevedo e de lá eram removidos para abrir caminho à rodovia Cuiabá-Santarém. Desconhecedores das doenças de brancos e para elas sem defesas, os crenacarores foram dizimados na transferência: morreram todos os velhos, muitos adultos e crianças e ainda os pajés (estes só podiam cuidar de "doença de índio", "de espírito", não de branco). Lá estavam eles, em 1984, numa triste aldeia à beira do Médio Xingu, em situação lamentável, assoberbados por doenças, crianças cegas, etc. (hoje, os panarás, como são chamados, vivem numa reserva no Pará, que ganharam na Justiça; e se recuperam).

Nada disso é visto e considerado na visão dominante que se tem, no Brasil, de índios. E que, como dizia o antropólogo Pierre Clastres, só vê o índio pelo que ele não tem - não usa roupa, não dirige automóvel, não dispõe de outras tecnologias da nossa cultura -, e não pelo que tem de admirável enquanto vive na força de sua cultura: não delega poder a ninguém (chefe não dá ordem); cada indivíduo é autossuficiente, não depende de ninguém; e a informação é aberta, ninguém dela se apropria para transformá-la em poder político ou econômico.

Hoje estão todos às voltas com esbulhos ou ameaças. Como os pataxós hã-hã-hães, que acabam de recuperar no Supremo Tribunal Federal 54 mil hectares de suas terras demarcadas invadidas - e ainda ouvindo que são "vagabundos". Ou sendo assassinados, como 250 guaranis-caiovás (Mato Grosso do Sul) e mais 300 habitantes do Vale do Jamari, no Amazonas (O Globo, 6/4), a ponto de o Conselho Indigenista Missionário denunciar à ONU - e o bispo Erwin Klauter dizer (Estado, 20/4) que "Lula e Dilma destruíram a Amazônia e seu povo". Porque, a seu ver, "existe no Brasil uma cultura anti-indígena".

"As terras indígenas são tratadas como terras de ninguém, primeira opção para mineração, hidrelétricas, reforma agrária e projetos de desenvolvimento em geral", escreveu já em 1987 a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha no livro Os Direitos do Índio - Ensaios e Documentos, lembrando que "está na hora de se abandonar o jargão anacrônico que fala na 'incorporação dos silvícolas', para substituí-lo pela 'defesa das sociedades indígenas e dos índios'". E que "hoje, no direito internacional, não se pretende mais a 'assimilação' dos aborígines, e sim o respeito à diversidade cultural e aos direitos à terra das populações indígenas".

Não bastasse, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar há poucos anos o direito do povo ianomâmi a suas terras, acolheu o brilhante parecer do jurista José Afonso da Silva, que mostrou a acolhida a esse direito consagrada desde as Ordenações Manuelinas até os dias de hoje, passando por várias constituições. Não é o caso, agora, de revogá-las por medidas presidenciais ou tentativas questionáveis no Legislativo.


* JORNALISTA E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 18/05/2012.

Contra o Estado-anunciante

Eugênio Bucci



No México, os meios de comunicação estão se vendendo - e se rendendo - à força do governo. O diagnóstico é de Rubén Aguilar, professor e jornalista mexicano que foi porta-voz da Presidência da República de seu país entre 2002 e 2006 (governo Vicente Fox). "Tudo está à venda", disse ele durante sua palestra no seminário Meios de Comunicação e Democracia na América Latina, realizado no Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, no final da tarde de terça-feira. E arrematou: "Só o que se discute é o preço".

No México descrito por Aguilar, a tensão entre a imprensa e o poder, que é natural e desejável nos regimes democráticos, tende a desaparecer para dar lugar a uma relação de troca negocial, um toma lá, dá cá em que os governantes ganham poder (com o apoio dos veículos jornalísticos) e os empresários do setor ganham dinheiro (tendo no Estado um anunciante camarada). Assim, enquanto uns faturam votos e outros faturam lucros, a sociedade perde: a fiscalização do poder some de cena e a imprensa se converte em mercadoria política.

Diante desse cenário, o ex-porta-voz foi coerente e se declarou contrário ao uso de verbas públicas no mercado publicitário. O Estado, quando se converte em anunciante, passa a constranger, seduzir, cercear ou mesmo chantagear órgãos de imprensa, não necessariamente nessa ordem. O jornalismo investigativo perde fôlego - e a democracia, também.

Na abertura do mesmo seminário, Bernardo Sorj, diretor do Centro Edelstein de Pesquisa Social, professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador do livro Meios de Comunicação e Democracia: Além do Estado e do Mercado (publicado no ano passado pelo Centro Edelstein), tocou no mesmo ponto. Para ele, devemos considerar a necessidade de impor limites ao crescente investimento de dinheiro público em propaganda de governo. Aos que defendem a publicidade governamental com o tortuoso sofisma de que ela jogaria recursos em pequenos jornais e emissoras, contribuindo assim para a "diversidade" no debate público, Bernardo Sorj argumenta, corretamente, que, se for esse o objetivo, o Estado deveria abrir linhas de financiamento público, a partir de critérios democráticos, impessoais e transparentes. Essa seria a política adequada para apoiar veículos menores e fortalecer a pluralidade e a concorrência saudável.

Aos poucos, ainda que tardiamente, vai nascendo entre nós a percepção de que a publicidade governamental distorce, deforma e degrada o debate público. Ela, que sempre foi uma unanimidade entre os agentes políticos - basta ver que, no Brasil e em todos os países da América Latina, os governos anunciam cada vez mais, qualquer que seja o partido do mandatário -, começa finalmente a ser descrita como problema para os observadores mais críticos.

Já era tempo. Aqui mesmo, neste mesmo espaço, esse problema já foi denunciado mais de uma vez: o que existe hoje nas nossas democracias ainda precárias é uma simbiose promíscua entre Estado e meios de comunicação privados, gerando um ecossistema com o qual é muito difícil romper.

No Brasil, a prática avança numa progressão de enrubescer o erário. Na primeira década do século 21 será difícil encontrar, na administração pública brasileira, uma rubrica orçamentária que tenha crescido mais.

Comecemos pela Prefeitura de São Paulo: num intervalo de seis anos, o montante jogado em publicidade oficial praticamente decuplicou, saltando de R$ 12 milhões em 2005 para R$ 108 milhões em 2010. Na cidade do Rio de Janeiro, a evolução foi ainda mais estonteante: em 2009, ao menos de acordo com os dados oficiais, a soma aplicada em publicidade da prefeitura ficou na casa de R$ 0,47 milhão e, em 2011, o total alcançou a cifra de R$ 74 milhões. O governo estadual do Rio de Janeiro passou de R$ 70 milhões em 2005 para R$ 172,5 milhões em 2011. No governo federal, conforme cifras divulgadas no site da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, a Secom, os gastos da administração direta e indireta (contando, portanto, com as empresas estatais) vêm oscilando em torno da marca do bilhão de reais. No ano de 2009 houve um pico: R$ 1,7 bilhão. Também em 2009, o governo paulista alcançou um ápice de R$ 314,6 milhões, ante apenas R$ 33 milhões em 2003.

A que se destinam tantas fortunas? Elas não geram ambulatórios, não criam vagas nas escolas públicas, não abrem um só quilômetro de metrô, não aumentam o efetivo policial, não melhoram as estradas, nada disso. Nem sequer informação elas oferecem à sociedade. Só o que essa dinheirama produz é fetiche: uma boa imagem - imagem mercadológica - para aqueles que governam. É bom observar, a propósito, que a linguagem, a estética e a forma narrativa da propaganda oficial são idênticas - são as mesmas - às adotadas pelos filmetes partidários exibidos no horário eleitoral. A propaganda governamental é o prolongamento escancarado da propaganda eleitoral - e vice-versa. Ao contrário do que dizem os governantes, não sem cinismo, essas peças de comunicação não informam coisa alguma - apenas contam lorotas publicitárias.

O pior, o mais grave de tudo, é que elas esvaziam a independência dos órgãos jornalísticos de pequeno e de médio porte. Dizem as autoridades da comunicação oficial que, distribuindo seus milhões para os pequenos, os governos fortalecem os jornais locais ou "alternativos". É mentira. A verba pública transformada em verba anunciante nos jornais e nas emissoras locais produz neles uma dependência mortal. O dinheiro público entra pela porta e a independência crítica é expulsa pela janela. Também por isso, a figura novíssima e abrutalhada do Estado-anunciante só enfraquece a democracia.

Têm razão Rubén Aguilar e Bernardo Sorj. Mas que político terá coragem de romper com o ecossistema?


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 17/05/2012.

Fernando Henrique diplomata

Matias Spektor



Dez anos depois do fim do governo de Fernando Henrique, a abertura dos arquivos oficiais no país e no exterior permite avaliar sua performance como diplomata. Ele chegou ao poder com um projeto internacional explícito: proteger o Real, reposicionando o Brasil diante do fenômeno da globalização.

O presidente usou seu primeiro mandato para normalizar as relações do Brasil com o mundo, revertendo um enorme déficit de credibilidade. O país herdara uma inflação anual de mais de 1.000%, posição compartilhada apenas por Rússia, Ucrânia e Zaire.

Para o FMI, tratava-se de um caloteiro. Para as grandes ONGs internacionais, um violador dos direitos humanos e uma ameaça ao ambiente. O país, que já tivera um programa sigiloso de enriquecimento de urânio, ainda se recusava a assinar o Tratado de Não Proliferação, ficando na companhia de Índia, Israel e Paquistão.

Fernando Henrique também redefiniu o espaço regional. Substituiu o conceito de América Latina pelo de América do Sul e lançou grandes obras de integração física.

Empurrou com a barriga as propostas americanas para a criação de uma área de livre-comércio nas Américas. Impôs uma cláusula democrática ao Paraguai e procurou reduzir danos junto a uma Venezuela cada vez mais forte e a uma Argentina cada vez mais fraca.

O ambiente externo durante aqueles oito anos foi péssimo. Fernando Henrique chegou ao Planalto com uma crise financeira internacional e deixou o palácio com outra. No processo, viu sua enorme popularidade ser dilapidada. O resultado disso foi uma posição presidencial crescentemente crítica em relação à globalização.

O segundo mandato, iniciado em 1999, coincidiu com o recrudescimento mais amplo da ordem internacional. As fricções entre as grandes potências aumentaram.

Empossado em 2001, George W. Bush afastou os Estados Unidos de instituições multilaterais e regras comuns nas áreas de ambiente, direitos humanos e proliferação nuclear. O 11 de Setembro e as guerras no Iraque e Afeganistão acirraram a situação.

Sem dúvida alguma, a política externa brasileira no período teve uma dose de erros e fracassos que, agora, os historiadores podem analisar em detalhe. De todos os problemas recorrentes, o mais sério talvez diz respeito às leituras do governo sobre o equilíbrio de poder.

Ele acreditava que o Brasil, enfraquecido e periférico, devia se adaptar ou pagar os custos do isolamento. Arrumar a casa era prioridade.

Entretanto, as transformações profundas que ele mesmo identificava no sistema internacional certamente abriam espaço para uma diplomacia dedicada a explorar alternativas.

Lendo os documentos, fica a sensação de oportunidades perdidas. Por que, por exemplo, o Brasil manteve silêncio quando os EUA convidaram o país a participar de um G7 expandido?

Nada disso deve ofuscar o fato indiscutível: o Real foi preservado, e o Brasil se transformou em um dos principais beneficiados da globalização. Em condições muito precárias, Fernando Henrique usou a política externa com êxito para mudar as relações internacionais do país para melhor.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 16/05/2012.