quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Exageros demais

Luis Fernando Verissimo


Gosto muito da frase do Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, quando lhe contaram que andavam dizendo que ele era homossexual:

– O pessoal exagera um pouco...

O “pessoal” – aí entendido como não apenas os contemporâneos e conterrâneos do grande Stanislaw como a humanidade em geral – tem mesmo uma tendência a exagerar. O exagero simplifica e aguça, tem mais graça, chama mais atenção – enfim, é compreensível. E deve ser tratado com a mesma tolerância com que o Stanislaw tratou os boatos do “pessoal” a respeito da sua sexualidade.

Tomemos como exemplos os exageros que dominam este fim de campanha, todos sobre o papel da imprensa nas eleições. De um lado o dos que dizem que a parcialidade da grande imprensa brasileira chegou a uma espécia de paroxismo com a perspectiva de uma vitória da Dilma com maioria no Congresso, e que há uma conspiração em curso dos grupos que controlam a mídia no país para evitar que isto aconteça. Do outro o dos que veem na vitória da Dilma com maioria uma ameaça à liberdade de pensamento e expressão no Brasil, ainda mais depois do que andou dizendo o Lula – comparado ao Mussolini como líderde uma ameaça populista à nossa democracia – sobre uma grande imprensa “oposicionista”.

Dois exageros perfeitamente compreensíveis, como se vê. O pessoal só exagerou um pouco demais. É difícil imaginar as quatro ou cinco famílias supostamente donas do espaço publicitário no país reunidas para evitar a continuação de um governo que ampliou este espaço como nenhum outro. Já é difícil imaginar as tais famílias juntas por qualquer motivo. E alguém acredita que a Dilma, uma vez eleita, convocaria os barões da imprensa para, embaixo de um retrato do Duce de Garanhuns, ordená-los a publicar só o que o governo quer, sob pena de represálias?

De um lado ou de outro, busca-se uma mobilização contra fantasmas inventados. Ou um pouco exagerados.

Mas sejamos como o grande Stanislaw e perdoemos os que exageram. É época de eleições, grandes questões, para não falar em grandes somas, estão emjogo, a moderação e o senso comum perdem para as paixões e, afinal,

o “pessoal” é assim mesmo. Aconteça o que acontecer, eu estou saindo de férias.
 
* Artigo publicado em O Estado de S.Paulo, de 30/09/2010.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Manifesto x Carta

Há poucos dias, alguns artistas, juristas e acadêmicos lançaram o “Manifesto em Defesa da Democracia”, em que criticam a atuação do presidente Lula e de seu governo por conduta supostamente contrária à democracia. Hoje, outro grupo de juristas lançou, em resposta, a “Carta ao Povo Brasileiro”, em que defendem Lula e seu governo como democráticos.

Entre seus signatários do “Manifesto” estão o jurista Hélio Bicudo, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso, o poeta Ferreira Gullar, d. Paulo Evaristo Arns, os historiadores Marco Antonio Villa e Bóris Fausto, o embaixador Celso Lafer, os atores Carlos Vereza e Mauro Mendonça.

Entre os signatários da “Carta” estão os professores Celso Antonio Bandeira de Mello e Dalmo de Abreu Dallari, o advogado e ex-presidente da OAB Cezar Britto e o ex-Ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos.

Abaixo, os dois textos:

***

MANIFESTO EM DEFESA DA DEMOCRACIA


"Em uma democracia, nenhum dos Poderes é soberano. Soberana é a Constituição, pois é ela quem dá corpo e alma à soberania do povo.

Acima dos políticos estão as instituições, pilares do regime democrático. Hoje, no Brasil, os inconformados com a democracia representativa se organizam no governo para solapar o regime democrático.

É intolerável assistir ao uso de órgãos do Estado como extensão de um partido político, máquina de violação de sigilos e de agressão a direitos individuais.

É inaceitável que a militância partidária tenha convertido os órgãos da administração direta, empresas estatais e fundos de pensão em centros de produção de dossiês contra adversários políticos.

É lamentável que o Presidente esconda no governo que vemos o governo que não vemos, no qual as relações de compadrio e da fisiologia, quando não escandalosamente familiares, arbitram os altos interesses do país, negando-se a qualquer controle.

É inconcebível que uma das mais importantes democracias do mundo seja assombrada por uma forma de autoritarismo hipócrita, que, na certeza da impunidade, já não se preocupa mais nem mesmo em fingir honestidade.

É constrangedor que o Presidente da República não entenda que o seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas vinte e quatro horas do dia. Não há ''depois do expediente'' para um Chefe de Estado. É constrangedor também que ele não tenha a compostura de separar o homem de Estado do homem de partido, pondo-se a aviltar os seus adversários políticos com linguagem inaceitável, incompatível com o decoro do cargo, numa manifestação escancarada de abuso de poder político e de uso da máquina oficial em favor de uma candidatura. Ele não vê no ''outro'' um adversário que deve ser vencido segundo regras da Democracia, mas um inimigo que tem de ser eliminado.

É aviltante que o governo estimule e financie a ação de grupos que pedem abertamente restrições à liberdade de imprensa, propondo mecanismos autoritários de submissão de jornalistas e empresas de comunicação às determinações de um partido político e de seus interesses.

É repugnante que essa mesma máquina oficial de publicidade tenha sido mobilizada para reescrever a História, procurando desmerecer o trabalho de brasileiros e brasileiras que construíram as bases da estabilidade econômica e política, com o fim da inflação, a democratização do crédito, a expansão da telefonia e outras transformações que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo.

É um insulto à República que o Poder Legislativo seja tratado como mera extensão do Executivo, explicitando o intento de encabrestar o Senado. É um escárnio que o mesmo Presidente lamente publicamente o fato de ter de se submeter às decisões do Poder Judiciário.

Cumpre-nos, pois, combater essa visão regressiva do processo político, que supõe que o poder conquistado nas urnas ou a popularidade de um líder lhe conferem licença para rasgar a Constituição e as leis. Propomos uma firme mobilização em favor de sua preservação, repudiando a ação daqueles que hoje usam de subterfúgios para solapá-las. É preciso brecar essa marcha para o autoritarismo.

Brasileiros erguem sua voz em defesa da Constituição, das instituições e da legalidade.

Não precisamos de soberanos com pretensões paternas, mas de democratas convictos."

***

CARTA AO POVO BRASILEIRO

“Em uma democracia, todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou pela mediação de seus representantes eleitos por um processo eleitoral justo e representativo. Em uma democracia, a manifestação do pensamento é livre. Em uma democracia as decisões populares são preservadas por instituições republicanas e isentas como o Judiciário, o Ministério Público, a imprensa livre, os movimentos populares, as organizações da sociedade civil, os sindicatos, dentre outras.

Estes valores democráticos, consagrados na Constituição da República de 1988, foram preservados e consolidados pelo atual governo.

Governo que jamais transigiu com o autoritarismo. Governo que não se deixou seduzir pela popularidade a ponto de macular as instituições democráticas. Governo cujo Presidente deixa seu cargo com 80% de aprovação popular sem tentar alterar casuisticamente a Constituição para buscar um novo mandato. Governo que sempre escolheu para Chefe do Ministério Público Federal o primeiro de uma lista tríplice elaborada pela categoria e não alguém de seu convívio ou conveniência. Governo que estruturou a polícia federal, a Defensoria Pública, que apoiou a criação do Conselho Nacional de Justiça e a ampliação da democratização das instituições judiciais.

Nos últimos anos, com vigor, a liberdade de manifestação de idéias fluiu no País. Não houve um ato sequer do governo que limitasse a expressão do pensamento em sua plenitude.

Não se pode cunhar de autoritário um governo por fazer criticas a setores da imprensa ou a seus adversários, já que a própria crítica é direito de qualquer cidadão, inclusive do Presidente da República.

Estamos às vésperas das eleições para Presidente da República, dentre outros cargos. Eleições que concretizam os preceitos da democracia, sendo salutar que o processo eleitoral conte com a participação de todos.

Mas é lamentável que se queira negar ao Presidente da República o direito de, como cidadão, opinar, apoiar, manifestar-se sobre as próximas eleições. O direito de expressão é sagrado para todos – imprensa, oposição, e qualquer cidadão. O Presidente da República, como qualquer cidadão, possui o direito de participar do processo político-eleitoral e, igualmente como qualquer cidadão, encontra-se submetido à jurisdição eleitoral. Não se vêem atentados à Constituição, tampouco às instituições, que exercem com liberdade a plenitude de suas atribuições.

Como disse Goffredo em sua célebre Carta: “Ao povo é que compete tomar a decisão política fundamental, que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica que se deseja viver”. Deixemos, pois, o povo tomar a decisão dentro de um processo eleitoral legítimo, dentro de um civilizado embate de idéias, sem desqualificações açodadas e superficiais, e com a participação de todos os brasileiros.”

Barão do Rio Branco x Celso Amorim

João Daniel Lima de Almeida

Não é trivial que, 98 anos após o falecimento do patrono da diplomacia brasileira --em pleno Carnaval, é bom lembrar-- um chanceler tenha finalmente ultrapassado-o em tempo de permanência no cargo, ainda que de modo não-contínuo.

Ousar comparar os períodos do barão do Rio Branco (1902-12) e de Celso Amorim (1993-4 e 2003-10) há de levantar criticas. Críticas metodológicas, pois os puristas recusam a possibilidade de comparar períodos tão distintos da história nacional, e críticas político-ideológicas, naturais quando se tratam de personalidades vivas e atuantes, ainda mais se ombreadas à ícones, como é o caso do Barão. Ciente dos riscos, assumo a tarefa.

Três foram os principais desafios enfrentados pelo Barão do Rio Branco no período de sua chancelaria ao longo de quatro presidentes (Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca): 1) A rivalidade com os argentinos; 2) A defesa contra o imperialismo europeu; e, 3) A resolução dos problemas de limites brasileiros.

O primeiro problema permaneceria mesmo após sua gestão, e muitas das tentativas do Barão em equalizá-lo não deram resultados de curto prazo. Com nosso principal vizinho multiplicaram-se tensões comerciais, de imigração e até militares, como se viu no episódio do reaparelhamento naval do Brasil.

O segundo problema foi significativamente equacionado ao longo de sua gestão. Não desapareceu, mas diminui dramaticamente. O Brasil passa a ser respeitado na Europa e não se repetem episódios como o da ocupação brasileira da Ilha de Trindade pelos ingleses (1895) ou intervenção naval como a que ocorreu durante a revolta da Armada (1893) ou anos depois, na Venezuela (1902). No episódio conhecido como "O Caso Panther", a maior potência militar do mundo, a Alemanha, pediu desculpas ao Brasil por ter desembarcado marinheiros em território nacional sem autorização. O Brasil de Rio Branco não seria tratado como uma colônia européia.

É no triunfo sobre o terceiro problema que repousam os louros e glórias de José Maria da Silva Paranhos Jr. Sucesso é pouco! Se até hoje falamos 1 barão para se referir a mil cruzeiros, se o nome da capital do Acre, da principal avenida do centro do Rio de Janeiro e da prestigiosa escola diplomática brasileira levam seu nome, se o carnaval de 1912 foi interrompido por sua morte, é sobretudo porque, graças a ele, o Brasil é o único pais do mundo que, tendo dimensões continentais, não tem problemas de fronteiras com seus vizinhos. Em menos de 10 anos todas foram negociadas de modo pacífico, sem recurso às armas.

Duas estratégias foram essenciais para estes sucessos: 1) O americanismo e 2) a diplomacia do prestígio. E são essas estratégias que permitem melhor a comparação entre o Barão e Celso Amorim, já que, é claro, nossos objetivos de inserção internacional mudaram em um século.

A construção de uma 'aliança especial' informal com os EUA, à época maior comprador do nosso café, permitiu ao Brasil se beneficiar pragmaticamente nas disputas regionais. A Doutrina Monroe norte-americana garantiria proteção diplomática e, eventualmente militar, contra o imperialismo. A neutralidade norte-americana garantiu que o Barão não tivesse que se preocupar com intervenções estadunidenses em nossas questões de fronteiras. Exemplo paradigmático dessa estratégia foi o caso do Acre, arrendado pelos bolivianos à uma empresa de capital norte-americano (Bolivian Syndicate) foi indenizada pelo Brasil antes que isso pudesse chamar atenção do governo de Washington. Hoje, se o barão estivesse vivo, se aproximaria da China, da Índia, da África do Sul, que ocupam papel análogo de potências emergentes no cenário internacional. A diferença é que, no primeiro caso, havia assimetria clara de poder desfavorável ao Brasil. Hoje o Brasil quer fazer parte do clube de modo igualitário.

Já a "diplomacia do prestígio" ecoa até hoje na boca do nosso novo recordista do século 21. Superamos o "complexo de vira-latas". A melhora da imagem internacional do Brasil à época significou a abertura (ou reabertura, dado que Campos Salles, por economia de recursos havia fechado várias) de novas legações no exterior, além de estimular a criação de legações estrangeiras no Rio de Janeiro. Hoje o foco está na África e Ásia, onde cada nova embaixada (dezenas foram abertas) representa um voto potencial para as pretensões políticas brasileiras em foros multilaterais. A participação do Brasil em conferências internacionais (como a famosa conferência de Haia, na qual Rui Barbosa foi nosso delegado), tendo o Brasil sediado várias delas guarda analogias com as variadas siglas (BRIC, IBAS, ASPA, CASA, etc..) e Gês dos quais o Brasil faz parte hoje. O primeiro cardeal brasileiro (Joaquim Arcoverde) e as amplas reformas urbanas e sanitárias da capital com Pereira Passos e Oswaldo Cruz para "civilizar" o Rio de Janeiro, a vitória no concurso de arquitetura na exposição de Saint Louis com o Palácio Monroe (desmontado no governo Geisel), guardam hoje paralelo importante com a conquista da sede da Copa e das Olimpíadas.

Política externa é política de Estado, não de governo. No Brasil, o Itamaraty é o mais perto que se conseguiu chegar de uma burocracia de tipo weberiano e isso é garantia de continuidades, mais que de rupturas, na história de nossa política exterior. É como guiar um transatlântico, onde correções de rumo devem ser planejadas cuidadosamente com o olhar em cartas e instrumentos cuja trajetória futura é o guia do presente, ao contrário do Jet Ski ou da lancha, escravas da conjuntura e dos metros seguintes. Nesse leme, dez anos é muito tempo e os resultados de longo prazo. Se o barão serviu de paradigma por mais de meio século (seu legado durou, no mínimo, até a PEI em 1961), me parece que o atual modelo de inserção internacional brasileiro veio para ficar e guiará o Brasil no século XXI. Não como "vira-latas" do passado, ou como os rottweillers e Pitt-bulls americanos e soviéticos da guerra-fria, mas como um São Bernardo, grande e pacífico, respeitado por seus méritos e prestígio e não somente por sua força.

João Daniel Lima de Almeida é mestre em Relações Internacionais pela PUC-RJ

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Os que "defendem a democracia"

Vladimir Safatle


A reta final desta campanha presidencial talvez seja lembrada como o início de um certo realinhamento da política brasileira. Durante o governo Lula, vimos várias críticas às práticas políticas do consórcio governista. De fato, um dos pontos fracos do governo foi a ausência de vontade política capaz de ultrapassar os vícios institucionais da democracia brasileira, suas negociações obscuras, impronunciáveis, assim como de inaugurar um ciclo de aprofundamento das práticas de participação popular na gestão do Estado.

No entanto, não foram problemas dessa natureza que levaram a oposição a terminar a campanha presidencial vociferando acusações como "fascismo", "igual a Mussolini", "chavismo", "autoritarismo" e "destruidor da liberdade de expressão e da democracia". Uma subida de tom que, provavelmente, não desaparecerá nos próximos anos. Por trás dessa "defesa" da democracia e da liberdade, há uma estranha mutação do sentido das palavras. Isto a ponto de podermos dizer que, com defensores desta natureza, a democracia brasileira não precisa de inimigos.

Por exemplo, eles gostam de dizer que a democracia exige instituições fortes e estáveis, mas normalmente temem qualquer um que lembre que, acima de tudo, a democracia exige poder instituinte soberano e sempre presente.

A democracia nunca temeu modificar e reconstruir instituições que funcionam mal. Poderia arrolar aqui a história da estrutura institucional de países como a França, para ficar em apenas um exemplo.

O fato realmente mortal para a democracia é quando alguns conseguem impor a opinião de que o aumento da visibilidade do poder instituinte, da força da participação popular, é um risco à "normalidade institucional". Tentar desqualificar a discussão sobre a participação popular como "chavismo" é tão tosco quanto dizer que a democracia parlamentar não passa da figura política da gestão do capital.

Por outro lado, acusar o governo de atentar contra a liberdade quando afirma que certos órgãos de imprensa agem como partidos políticos é, isso sim, querer ignorar a natureza do embate democrático.

É absolutamente normal que certos setores da imprensa sejam claramente definidos do ponto de vista ideológico e que tomem posição a partir disso. Da mesma forma, é normal que setores da classe política procurem criticar tais pontos de vista. O governo Barack Obama afirmou, com todas as letras, que a Foxnews agia como um partido político e, nem por isso, foi comparado a Mussolini. Não há por que ver algo diferente no caso brasileiro.

Uma certa serenidade a respeito das relações entre mídia e democracia é mais do que necessária atualmente. Contrariamente ao que querem alguns, a imprensa não é responsável por todos os males do país, nem os casos de corrupção foram invenções das Redações. No entanto, discussões sobre avaliação de concessões públicas de meios de comunicação, oligopolização e concentração do mercado de informações, criação de órgãos e conselhos públicos de fiscalização não escondem, necessariamente, a sanha de destruir a liberdade de expressão.

VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP

* Artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 27/09/2010.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Corrida de Dez Dias

Luis Fernando Veríssimo

 De hoje à data da eleição teremos dez dias de manchetes nos jornais e duas edições da Veja. Não sei até quando podem ser publicadas as pesquisas sobre intenção de voto, mas até a última publicação - aquela que, segundo os céticos, é a mais confiável, pois é a que garante a credibilidade e o futuro dos pesquisadores - veremos uma corrida emocionante: o noticiário perseguindo os índices da Dilma para tentar derrubá-los antes da chegada, no dia 3.

O prêmio, se conseguirem, será um segundo turno. Se não conseguirem a única dúvida que restará será: se diz a presidente ou a presidenta?

Até agora as notícias de corrupção na Casa Civil não afetaram os índices da Dilma. Estou escrevendo na terça, talvez as últimas pesquisas mostrem um efeito retardado. Mas ainda faltam dez dias de manchetes e duas edições da Veja, quem sabe o que virá por aí? O governo Lula tem um bom retrospecto na sua competição com o noticiário. A popularidade do Lula não só resistiu a tudo, inclusive às mancadas e aos impropérios do próprio Lula, como cresceu com os oito anos de denúncias e noticiário negativo. Desde UDN x Getúlio nenhum presidente brasileiro foi tão atacado e denunciado quanto Lula. Desde sempre, nenhum presidente brasileiro acabou seu mandato tão bem cotado.

Acrescente-se ao paradoxo o fato de que o eleitorado brasileiro é tradicionalmente, às vezes simplisticamente, moralista. Elegeu Jânio para varrer a sujeira do governo Juscelino, elegeu Collor para acabar com os marajás, aplaudiu a queda do Collor por corrupção presumida e houve até quem pedisse o impedimento do Itamar por proximidade temerária com calcinha transparente.

Mas o moralismo tornou-se politicamente irrelevante com Lula e, por tabela, para os índices da Dilma. É improvável que volte a ser decisivo em dez dias. Mas nunca se sabe. O que talvez precise ser revisado, depois dos oito anos do Lula e depois destas eleições, quando a poeira baixar, seja o conceito da imprensa como formadora de opiniões.

Mas a corrida dos dez dias começa hoje e seu resultado ninguém pode prever com certeza. Virá alguma bomba de fragmentação de última hora ou tudo que poderia explodir já explodiu? O que prevalecerá no final, os índices inalterados da Dilma ou o noticiário? Faça a sua aposta.

* Artigo publicado em O Estado de S.Paulo, de 23/09/2010.

O Discurso da Ingratidão

O discurso da ingratidão de Lula em relação a FHC faz tanto sentido quanto o da ingratidão de FHC diante de Collor. Afinal, da mesma forma que seria impensável o crescimento com inclusão dos anos Lula sem a estabilidade advinda do Plano Real, o êxito deste só foi possível graças ao estupendo acúmulo das reservas internacionais gerada pela abertura ao mercado financeiro na era Collor. Sem diminuir a importância do Real, que soube aliar o engenhoso modelo da URV com a contenção dos déficits públicos, principalmente pela escalada da receita tributária, vale lembrar que a hiperinflação foi debelada não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. O aumento da liquidez internacional após a globalização financeira foi condição sine qua non para o sucesso dos planos de estabilização mundo afora, Real incluído. Ademais, se o PT foi contra o Plano Real, também se pode aventar que a política econômica do PSDB não geraria o crescimento com inclusão, já que predominava a ideia de que a ascensão da renda das camadas mais baixas seria inflacionária. Em suma, FHC e Lula, cada qual teve sua virtu e sua fortuna, seus méritos e deméritos. Certo estava Caetano Veloso quando disse ser um luxo para o Brasil ter FHC seguido por Lula na Presidência. Completo: neste caso, a mudança na ordem dos fatores alteraria o produto.
JFQ

Aproveitar os espaços

Amir Khair


Ganha destaque neste período de disputa eleitoral o que pretendem fazer os candidatos à Presidência sobre os principais temas, como a questão fiscal, as contas externas e o câmbio. No entanto, as propostas têm sido de forma geral genéricas. Talvez para evitar compromissos claros e/ou desgastes eleitorais.

De qualquer forma há um reconhecimento de avanços na economia e na parte social, embora estejam aquém das necessidades do País. O mercado financeiro prevê um crescimento econômico de 4% a 4,5% para os próximos anos. Desde 2004, está na média de 4,5%, apesar da crise e das altas taxas de juros cobradas pelos bancos. Creio que será superior a 5%, caso continue a política de aproveitar o potencial de consumo existente, facilitada por taxas de juros cadentes. Espaço para isso não falta.

Ajuste fiscal. Crescimento de 5%, com redução de 1 ponto porcentual (p.p.) da Selic por ano e superávit primário (receitas menos despesas exclusive juros) de 1,8% do PIB permitiriam obter ao final de 2014 equilíbrio fiscal e dívida líquida de 30% do PIB. Em relação ao PIB, as despesas com juros cairiam dos atuais 5,4% para 1,8% em 2014 com economia de 3,6 p.p. (5,4 menos 1,8). Esse é o principal ajuste fiscal a ser feito. Para comparar, na Previdência Social a diferença entre contribuições e benefícios, equivocadamente chamada de déficit da Previdência, deverá atingir este ano 1,2% do PIB, mesmo nível de 2002. Assim, esse ajuste de 3,6% do PIB equivale a três vezes o "déficit" da Previdência.

Despesas. O enfoque nas despesas públicas é importante quanto ao destino dos recursos e sua gestão, que tem muito espaço para melhorar. Ainda bem. Mas a análise isolada da despesa, sem considerar o seu impacto nas receitas, pode induzir a erro. É o caso, por exemplo, da elevação do salário mínimo. É fácil calcular seu impacto nas despesas da Previdência, mas não se dimensionam os retornos de arrecadação para a União, Estados e municípios pelo crescimento da massa salarial, produção, lucro e consumo.

Tripé. Os dois principais candidatos prometem manter o tripé: meta de inflação, superávit primário e câmbio flutuante. Creio, no entanto, que este tripé está superado. Primeiro, porque o crescimento econômico, ausente neste tripé, influencia todas as suas variáveis. Segundo, porque não existe câmbio flutuante, dadas as intervenções do Banco Central (BC) e, agora, do Fundo Soberano. Terceiro, porque o resultado primário não expressa o resultado fiscal, que inclui todas as despesas, inclusive os juros. Quarto, porque o regime de metas de inflação, para funcionar melhor, deveria fixar, em vez da meta para o ano, meta para os próximos 12 meses e usar, em vez do IPCA, o seu núcleo, que expurga alterações sazonais e circunstanciais, provocadas por fatores temporários ou casuais.

Sobre isso, o efeito anormal das chuvas sobre os preços dos alimentos gerou forte impacto inflacionário no 1.º trimestre, depois eliminado por inflação praticamente nula de junho a agosto, quando os preços dos alimentos voltaram à normalidade. No entanto, a escalada inflacionária do início do ano serviu para elevar desnecessariamente a Selic. Agora, com atraso, o BC reconheceu que a inflação não seria tão elevada quanto parecia e, ao não elevar mais a Selic, desagradou ao mercado financeiro, que adora uma Selic robusta.

Reservas e câmbio. O aumento das reservas internacionais para segurar o câmbio é um tiro no pé. Aumenta a dívida pública, o déficit fiscal e atrai mais dólares. É jogar dinheiro fora. Para atenuar o problema do câmbio apreciado é necessária a elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e retornar a aplicação do Imposto de Renda sobre as aplicações de estrangeiros em carteira (ações e títulos públicos) para reduzir/eliminar os ganhos de arbitragem. Isso eleva a arrecadação fiscal e limita a ação especulativa sobre o real.

Tem muito espaço para avançar na melhoria dos fundamentos macroeconômicos no próximo governo. O que não se pode é dar marcha à ré com políticas tendentes a segurar o potencial de crescimento do País.

Amir Khair é consultor, mestre em finanças públicas pela FGV.

* Artigo publicado em O Estado de S.Paulo, de 23/09/2010.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Como votar para deputado

Jairo Nicolau


Já recebi quase uma dezena de e-mails com seleções das cenas mais bizarras do horário eleitoral deste ano. O conjunto é quase sempre grotesco e desanimador. Antes tínhamos acesso às campanhas dos candidatos de nosso Estado. O YouTube ampliou enormemente nossas opções. Podemos assistir a performances de candidatos de mais 26 Estados.

Não dá para dimensionar os efeitos negativos destes vídeos sobre uma avaliação geral sobre a política e a atividade parlamentar. Nos resta apenas esperar mais uns dias para observar o perfil dos eleitos, e para sabermos se houve um aumento do números de votos em branco e nulos. Preocupante, por enquanto, somente a informação trazida pela pesquisa do Datafolha, feita em nove Estados, sobre a intenção de voto para deputado. A pouco menos de um mês para as eleições (a pesquisa foi feita nos dias 7 e 8 de setembro), apenas 1/3 dos eleitores já havia escolhido seu candidato.

Na semana passada, perguntei a um grupo de estudantes universitários se eles sabiam quais eram as regras para apuração dos votos para deputado. Quase todos responderam que os mais votados do Estado são os eleitos. Em um Estado como São Paulo, com uma bancada de 70 deputados na Câmara, os 70 mais votados seriam escolhidos. Eles ficaram surpresos quando disse que estavam errados.

Mas por que será que quase todas as pessoas imaginam que seja assim? Minha desconfiança é de que a lógica das eleições majoritárias para os cargos do Executivo acaba contaminando a visão dos eleitores. Se durante a campanha os deputados pedem votos para si como fazem os candidatos para presidente, governos de Estado e senador, e se no momento de votação, diante da urna eletrônica, os eleitores quase sempre votam em nomes e assistem a seus retratos aparecerem na tela, é natural que tenhamos a impressão que o sistema é semelhante: o candidato mais votado para governador fica com a vaga; os mais votados para o Legislativo são eleitos.

O que poucos eleitores sabem é que o sistema eleitoral utilizado nas eleições para Câmara dos Deputados e Assembleia Legislativa é o proporcional. Neste sistema o mais importante é saber quantos votos cada partido (ou coligação) recebeu.

Quando digita os números dos candidatos a deputado estadual e federal, os eleitores não imaginam a quantidade de detalhes que afetam o "destino de seu voto". Vejamos alguns deles.

1. Se você anula ou vota em branco, seu voto não tem nenhuma serventia na distribuição das cadeiras. A urna eletrônica traz um botão verde que permite ao eleitor votar em branco. O botão é uma herança do período (até 1996) que os votos em branco eram considerados para a distribuição das cadeiras. Para anular o voto é preciso digitar um número inexistente (tarefa difícil, com tantos partidos e candidatos). Apesar da diferença, os dois votos têm o mesmo destino: são ignorados para a distribuição das cadeiras.

2. Se você vota em um determinado candidato, este será somado ao de outros candidatos do mesmo partido (ou coligação). O voto para cargos do Executivo e para senador não é transferível. Vai para aquele nome e ponto. Nas eleições para deputado, um voto é agregado aos de outros nomes da lista (que pode ser um partido ou coligação).

Os eleitores, quase nunca, conhecem os detalhes das coligações eleitorais. Por isso o espanto quando foi divulgada a informação de que os votos do candidato Tiririca (o mais bizarro da temporada) será agregado aos votos do PT e do PCdoB. Não tem jeito: o mais doutrinário comunista será ajudado pelos votos do candidato abestado; e vice-versa.

3. Se você vota na legenda, seu voto é somado aos votos dos candidatos que pertencem àquela legenda. Caso o partido esteja coligado, entram na conta os votos dos candidatos e o voto de legenda de outros partidos.

Muitos eleitores acreditam que a melhor maneira de ajudar a um partido é votar na legenda. Se o partido estiver coligado, é a pior. No exemplo acima, pense no destino do voto dado na legenda do PT. Serviu para aumentar a bancada da coligação. Mas não ajudou particularmente ao PT.

4. Se o partido que você votou não atingir um mínimo de voto (o quociente eleitoral), ele não pode receber nenhuma cadeira.

O quociente eleitoral é o resultado da divisão dos votos válidos (dados em candidatos e legenda) dividido pelo número de cadeiras. Pelas minhas contas, o quociente eleitoral para deputado federal em São Paulo este ano deve ser de cerca de 300 mil votos.

Um partido que, por exemplo, obtenha 290 mil votos está fora da distribuição das cadeiras. Esses votos têm o mesmo destino dos anulados e deixados em branco: não servem para nada.

5. Você pode votar em um candidato que recebeu muitos votos e ele pode não se eleger; enquanto outro com muito menos votos é eleito. E vice-versa.

O sistema procura distribuir as cadeiras proporcionalmente aos votos dos partidos (e coligações). Não garante que nomes que individualmente obtiveram muitos votos serão eleitos. Nem que nomes com poucos votos não possam entrar. O Prona, partido de Enéas, elegeu o deputado Vanderley Assis em São Paulo (2002) com menos de 275 votos.

Exemplos extremos como o do deputado do Prona acabam confundindo ainda mais os eleitores. Como vimos, grande parte deles pensa que utilizamos um sistema majoritário na disputa para a Câmara dos Deputados.

Todos os anos o TSE apresenta durante a campanha peças publicitárias chamando a atenção para a responsabilidade da escolha nas eleições para deputado. São as campanhas pelo voto consciente. Talvez valesse a pena esclarecer os eleitores sobre o "destino" do voto. Como vimos, um aspecto está associado a outros. A campanha poderia ter a seguinte premissa: vote consciente para deputado, mas saiba para onde está indo o seu voto.

* Artigo publicado em O Estado de S.Paulo, dia 22/09/2010.

domingo, 19 de setembro de 2010

A História e Seus Ardis: O lulismo posto à prova em 2010

André Singer




Conta-se que certa vez o engenheiro Leonel Brizola teria levado o metalúrgico Lula ao túmulo de Getúlio Vargas em São Borja (RS). Lá chegando, o gaúcho pôs-se a conversar com o ex-presidente. Depois de algumas palavras introdutórias, apresentou o líder do PT ao homem que liderou a Revolução de 1930: “Doutor Getúlio, este é o Lula”, disse, ou algo parecido. Em seguida, pediu que Lula cumprimentasse o morto. Não se sabe a reação do petista.

Será que algum dos personagens do encontro pressentiu que, naquela hora, estavam sendo reatados fios interrompidos da história brasileira? Desconfio que não.

Os tempos eram de furiosa desmontagem neoliberal da herança populista dos anos 1940/50. Mesmo aliados, em 1998 PT e PDT -praticamente tudo o que restava de esquerda eleitoralmente relevante- perderiam para Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno. O consulado tucano parecia destinado a durar pelo menos 20 anos e trazer em definitivo o neoliberalismo para o Brasil.

BRECHA Foi por uma brecha imprevista, aberta pelo aumento do desemprego no segundo mandato de FHC, que Lula encontrou o caminho para a Presidência da República. Para aproveitá-la, fez substanciais concessões ao capital, pois a ameaça de radicalização teria afastado o eleitorado de baixíssima renda, o qual deseja que as mudanças se deem sem ameaça à ordem.1

Apesar da pacificação conquistada com a “Carta ao Povo Brasileiro” ter sido suficiente para vencer, o subproletariado não aderiu em bloco. Havia mais apoio entre os que tinham renda familiar acima de cinco salários mínimos do que entre os que ganhavam menos do que isso, como, aliás, sempre acontecera desde 1989. Ainda que as diferenças pudessem ser pequenas, elas expressavam a persistente desconfiança do “povão” em relação ao radicalismo do PT.

Depois de 2002, tudo iria mudar. A vitória levaria ao poder talvez o mais varguista dos sucessores do dr. Getúlio. Não em aspectos superficiais, pois nestes são expressivas as diferenças entre o latifundiário do Sul e o retirante do Nordeste. Tampouco no sentido de arbitrar, desde o alto, o interesse de inúmeras frações de classe, fazendo um governo que atende do banqueiro ao morador de rua. Dadas as condições, todos os presidentes tentam o mesmo milagre.

O que há de especificamente varguista é a ligação com setores populares antes desarticulados. Ao constituir, desde o alto, o povo em ator político, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aos pobres que Getúlio encarnou.

BURGUESIA EM CALMA Mas em 1º de janeiro de 2003 ninguém poderia prever o enredo urdido pela história. Para manter em calma a burguesia, o mandato inicial de Lula, como se recorda, foi marcado pela condução conservadora nos três principais itens da macroeconomia: altos superavits primários, juros elevados e câmbio flutuante. Na aparência, o governo seguia o rumo de FHC e seria levado à impopularidade pelas mesmas boas razões.

De fato, 2003 foi um ano recessivo e causou desconforto nos setores progressistas. Ao final, parte da esquerda deixou o PT para formar o PSOL. Mesmo com a retomada econômica no horizonte de 2004, Brizola deve ter morrido em desacordo com Lula, por ter transigido com o adversário.

Ocorre que, de maneira discreta, outro tripé de medidas punha em marcha um aumento do consumo popular, na contramão da ortodoxia. No final de 2003, dois programas, aparentemente marginais, foram lançados sem estardalhaço: o Bolsa Família e o crédito consignado. Um era visto como mera junção das iniciativas de FHC. O segundo, como paliativo para os altíssimos juros praticados pelo Banco Central.

Em 2004, o salário mínimo começa a se recuperar, movimento acelerado em 2005. Comendo o mingau pela borda, os três aportes juntos começaram a surtir um efeito tão poderoso quanto subestimado: o mercado interno de massa se mexia, apesar do conservadorismo macroeconômico.

Nas pequenas localidades do interior nordestino, na vasta região amazônica, nos lugares onde a aposentadoria representava o único meio de vida, havia um verdadeiro espetáculo de crescimento, o qual passava despercebido para os “formadores de opinião”.

PASSO DECISIVO Quando sobrevém a tempestade do “mensalão” em 2005 -e, despertado do sono eterno pela reedição do cerco midiático de que fora vítima meio século antes no Catete, o espectro do dr. Getúlio começa a rondar o Planalto-, já estavam dadas as condições para o passo decisivo.

Em 3 de agosto -sempre agosto-, em Garanhuns (PE), perante milhares de camponeses pobres da região em que nascera, Lula desafiou os que lhe moviam a guerra de notícias: “Se eu for [candidato], com ódio ou sem ódio, eles vão ter que me engolir outra vez”.

Até então, a ligação entre Lula e os setores populares era virtual. Chegara ao topo cavalgando uma onda de insatisfação puxada pela classe média. Optou por não confrontar os donos do dinheiro. Perdeu parte da esquerda. Na margem, acionou mecanismos quase invisíveis de ajuda aos mais necessitados, cujo efeito ninguém conhecia bem.

Foi só então que, empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua base se encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo que identificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto.

PLACAS TECTÔNICAS Os setores mais sensíveis da oposição perceberam que fora dada a ignição a uma fagulha de alta potência e decidiram recuar. A hipótese de impedimento foi arquivada, para decepção dos que não haviam entendido que placas tectônicas do Brasil profundo estavam em movimento.

Em 25 de agosto, um dia depois do aniversário do suicídio de Vargas, Lula podia declarar perante o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social que a página fora virada: “Nem farei o que fez o Getúlio Vargas, nem farei o que fez o Jânio Quadros, nem farei o que fez o João Goulart. O meu comportamento será o comportamento que teve o Juscelino Kubitschek: paciência, paciência e paciência”. Uma onda vinda de baixo sustentava a bonomia presidencial.

O Lula que emerge nos braços do povo, depois da crise, depende menos do beneplácito do capital. Daí a entrada de Dilma Rousseff e Guido Mantega em postos estratégicos, o que mudou aspectos relevantes da política macroeconômica. Os investimentos públicos, contidos por uma execução orçamentária contracionista, foram descongelados no final de 2005. O salário mínimo tem um aumento real de 14% em 2006.

POLARIZAÇÃO Para o público informado, a constatação do que ocorrera ainda demoraria a chegar. Foi preciso atingir o segundo turno de 2006 para que ficasse claro que o povo tinha tomado partido, ainda que em certos ambientes de classe média “ninguém” votasse em Lula.

A distribuição dos votos por renda mostra a intensa polarização social por ocasião do pleito de 2006. Pela primeira vez, o andar de baixo tinha fechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define o realinhamento iniciado quatro anos antes.

Embora, do ponto de vista quantitativo, a mudança relevante tenha se dado em 2002, o que define o período é o duplo movimento de afastamento da classe média e aproximação dos mais pobres. Por isso, o mais correto é pensar que o realinhamento começa em 2002, mas só adquire a feição definitiva em 2006. Como, por sinal, aconteceu com Roosevelt entre 1932 e 1936.

SEGUNDO MANDATO Assentado sobre uma correlação de forças com menor pendência para o capital, o segundo mandato permitirá a Lula maior desenvoltura. Com o lançamento do PAC, fruto de um orçamento menos engessado, aumentam as obras públicas, as quais vão absorver mão de obra, além de induzir ao investimento privado.

Em 2007, foi gerado 1,6 milhão de empregos, 30% a mais do que no ano anterior. A recuperação do salário mínimo é acelerada, com aumento real de 31% de 2007 a 2010, contra 19% no primeiro mandato, conforme estimativa de um dos diretores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)2. A geração de emprego e renda explica os 70% de aprovação do governo desde então.

Nem mesmo a derrubada da CPMF, com a qual a burguesia mostrou os dentes no final de 2007, reduziu o ritmo dos projetos governamentais. A transferência de renda continuou a crescer. Foi só ao encontrar a parede do tsunami financeiro, no último trimestre de 2008, que se interrompeu o ciclo ascendente de produção e consumo. Teria chegado, então, segundo alguns, a hora da verdade. Com as exportações em baixa, o lulismo iria definhar.

COMPRAR SEM MEDO Mas o lulismo já contava com um mercado interno de massa ativado, capaz de contrabalançar o impacto da crise no comércio exterior. A ideia, difundida pelo presidente, de que a população podia comprar sem medo de quebrar, ajudou a conter o que poderia ser um choque recessivo e a relançar a economia em tempo curto e velocidade alta.

Além da desoneração fiscal estratégica, como a do IPI sobre os automóveis e os eletrodomésticos da linha branca, o papel dos bancos públicos -em particular o do BNDES- na sustentação das empresas aumentou a capacidade do Estado para conduzir a economia. Numa manobra que lembra a de Vargas na Segunda Guerra, Lula utilizou a situação externa para impulsionar a produção local.

Surge uma camada de empresários -Eike Batista parece ser figura emblemática, como notava dias atrás um economista-, dispostos a seguir as orientações do governo. A principal delas é puxar o crescimento por meio de grandes obras, como as de Itaboraí -o novel polo petroquímico no Estado do Rio-, as de Suape (PE) e de Belo Monte, na Amazônia. Cada uma delas alavancará regiões inteiras.

Por fim, a aliança entre a burguesia e o povo, relíquia de tempos passados que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializa diante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixe mentir.

PROJETO PLURICLASSISTA A candidatura Dilma representa o arco que o lulismo construiu. A ex-ministra, por sua biografia, é talhada para levar adiante um projeto nacional pluriclassista. O fato de ter sido do PDT até pouco tempo atrás não é casual. A mãe do PAC tem uma visão dos setores estratégicos em que a burguesia terá que investir, com o BNDES.

O povo lulista, que deseja distribuição da renda sem radicalização política, já dá sinais de que o alinhamento fechado em 2006 está em vigor. Em duas semanas de propaganda eleitoral na TV, Dilma subiu 9 pontos percentuais e Serra caiu 5. À medida que os mais pobres adquirem a informação de que ela é a candidata de Lula, o perfil do seu eleitorado se aproxima do que foi o de Lula em 2006. Ou seja, o voto em Dilma cresce conforme cai a renda, a escolaridade e a prosperidade regional.

A classe média tradicional, em que pese aprovar o governo, continuará a votar na oposição, como demonstram a dianteira de Serra em Curitiba e o virtual empate em São Paulo, municípios em que o peso numérico das camadas intermediárias é significativo.

Parte delas, sobretudo entre os jovens universitários, deverá optar por Marina Silva. Isso explica por que os que têm renda familiar mensal acima de cinco salários mínimos dão 12 pontos percentuais de vantagem para a soma de Serra e Marina sobre Dilma na pesquisa Datafolha concluída em 3/9.

O problema da oposição é que esse segmento reúne apenas 14% do eleitorado, de acordo com a amostra utilizada pelo Datafolha, enquanto os mais pobres (até dois salários mínimos de renda familiar mensal) são 48% do eleitorado. Nesse segmento, Dilma possui uma diferença de 22 pontos percentuais sobre Serra e Marina somados! Se vier a ganhar no primeiro turno, será graças ao apoio, sobretudo, dos eleitores de baixíssima renda, como ocorreu com Lula na eleição passada.

REALINHAMENTO A feição popular da provável vitória de Dilma confirma, assim, a hipótese que sugerimos no ano passado a respeito da novidade que emergiu em 2006. Se estivermos certos, por um bom tempo o PSDB precisará aprender a falar a linguagem do lulismo para ter chances eleitorais. Não se trata de mexicanização, mas de realinhamento, o qual significa menos a vitória reiterada de um mesmo grupo e mais a definição de uma agenda que decorre do vínculo entre certas camadas e partidos ou candidatos.

Quando um governo põe em marcha mecanismos de ascensão social como os que se deram no New Deal, e como estamos a assistir hoje no Brasil, determina o andamento da política por um longo período. Num primeiro momento, trata-se da adesão dos setores beneficiados aos partidos envolvidos na mudança -o Partido Democrata nos EUA, o PT no Brasil.

Com o passar do tempo e as oscilações da conjuntura, os aderentes menos entusiastas podem votar em outro partido, mesmo sem romper o alinhamento inicial. Foi o que aconteceu com as vitórias do republicano Eisenhower (1952 e 1956) e dos democratas Kennedy (1960) e Johnson (1964).

Mas para isso a oposição não pode ser extremada, como bem o percebeu a hábil Marina Silva. Até certa altura da sua campanha, José Serra igualmente trilhou esse caminho. Foi a fase em que propôs cortar juros e duplicar a abrangência do Bolsa Família.

Depois, tragado pela lógica do escândalo, retornou ao caminho udenista da denúncia moral, que só garante os votos de classe média -o que, no Brasil, não ganha eleição. Convém lembrar que no ciclo dominado pelo alinhamento varguista, a UDN só conseguiu vencer com um candidato: Jânio Quadros, que falava a linguagem populista. Fora disso, resta o golpe, sombra da qual estamos livres.

DURAÇÃO Qual será a duração do ciclo aberto em 2002, completado em 2006, e, aparentemente, a ser confirmado em 2010? O realinhamento abrange, por definição, um período longo. O último que vivemos, dominado pelo oposicionismo do MDB/PMDB, durou 12 anos (1974-86) e foi sepultado, quem sabe antes do tempo, pelo fracasso em controlar a inflação. A resposta para o atual momento também deve contemplar a economia.

Por isso, as condições de manter, pelo menos, o ritmo de crescimento médio alcançado no segundo mandato de Lula, algo como 4,5% de elevação anual do PIB, estarão no centro das preocupações do novo presidente. Sem ele, as premissas do lulismo ficam ameaçadas. Recados criptografados sobre a necessidade de reduzir a rapidez do crescimento e de fazer um ajuste fiscal duro já apareceram na imprensa, dirigidos a Dilma, provável vencedora.

O capital financeiro -apelidado na mídia de “os mercados”- vai lhe cobrar o tradicional pedágio de quem ainda não “provou” ser confiável. Caso os reclamos de pisar no freio não sejam atendidos, sempre haverá o recurso de o BC -cuja direção deverá continuar com alguém como Henrique Meirelles, senão o próprio- aumentar os juros. O aumento real do salário mínimo no primeiro ano de governo, que dependerá da presidente, pois o PIB ficou estagnado em 2009, será outro teste relevante.

CABO DE GUERRA Convém notar que, no segundo mandato de Lula, ainda que de modo relutante, o BC foi obrigado a trabalhar com juros mais baixos. Mas o cabo de guerra será reiniciado no dia 3 de janeiro de 2011. Com os jogadores em posse de um estoque de fichas renovados pela eleição, uns apostarão em uma recuperação do espaço perdido, outros numa aceleração do caminho trilhado no segundo mandato.

O PMDB, elevado à posição de sócio importante da vitória, atribuiu-se, na campanha, o papel de interlocutor com o empresariado. O PT, possivelmente fortalecido por uma bancada maior, deverá, pela lógica, fazer-lhe o contraponto do ângulo popular. A escolha dos presidentes da Câmara e do Senado, em fevereiro, servirá de termômetro para o balanço das respectivas forças.

O futuro do lulismo dependerá de continuar incorporando, com salários melhores, os pobres ao mundo do trabalho formal. Em torno desse ponto é que se darão os principais conflitos e se definirá a extensão do ciclo. Alguns analistas da oposição alertam para a proximidade de um índice de emprego que começará a encarecer a mão de obra e gerar inflação. Como mostra Stiglitz,3 é a conversa habitual dos conservadores para brecar a expansão econômica.

Por fim, não se deve esquecer que uma palavra decisiva sobre esses embates virá de São Bernardo, onde residirá o ex-presidente, bem mais perto da capital do que foi, no passado, São Borja.

Aguardam-se os conselhos de Vargas e Brizola, dos quais poderemos tomar conhecimento naquelas mensagens psicografadas por Elio Gaspari.

--------------------------------------------------------------------------------

Notas

1. Ver André Singer. “Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo”, “Novos Estudos”, 85, nov 2009. Link para o artigo em folha.com/ilustríssima

2. Ver João Sicsú. “Dois Projetos em Disputa”. “Teoria e Debate”, 88, mai/jun 2010.

3. Ver Joseph Stiglitz, “Os Exuberantes Anos 90″, Companhia das Letras, 2003.
 
* Artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 18/09/2010.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Foster Dulles

Luis Fernando Veríssimo


Não pude ir à sabatina dos candidatos à presidência feita por colunistas e leitores de O Globo na semana passada, mas mandei perguntas por e-mail. Respondendo à minha pergunta sobre se, caso ele fosse eleito, a política externa brasileira voltaria a ser a que era antes do governo Lula, mais alinhada com os Estados Unidos, Serra respondeu que teria uma política própria, presumivelmente diferente da política do Fernando Henrique também. Mas antes fez um preâmbulo, lembrando o livro O Senhor Embaixador, em que, segundo Serra, meu pai se revela um admirador de John Foster Dulles, secretário de Estado americano que foi o grande estrategista da Guerra Fria com a União Soviética, famoso pela sua doutrina do "brinkmanship", ou a arte de levar as confrontações até a beira de uma guerra quente, sem dar o passo fatal. "No caso da família Verissimo houve uma alternância", disse Serra, pois o filho, eu, "passou para o lado contrário em matéria de questão externa." Não entendi: o lado contrário do que, da Guerra Fria? Posso garantir que não sou pelo alinhamento da nossa política externa com a União Soviética contra o Foster Dulles, mesmo se conseguíssemos encontrar os dois ainda vivos, e mesmo que meu desejo valesse alguma coisa.

Como eu, o Serra deve ter lido O Senhor Embaixador há algum tempo. Não surpreende que não se lembre bem do que leu. Foster Dulles foi, sim, uma figura admirável, do ponto de vista puramente literário. Incorporava um certo tipo de aristocracia americana que durante algum tempo fez do Departamento de Estado o seu feudo fechado e do anticomunismo sua principal faina intelectual. Depois este patriciado estanque foi substituído por tecnocratas tipo McNamara, que deram o passo fatal além da beira e empurram o país para o abismo do Vietnã. Nenhum tinha aquela empáfia de nascença que caracterizava Dulles e seus pares e mal camuflava sua arrogância. Meu pai não admirava a política de Dulles, Serra. Um personagem do livro expressa sua opinião sobre Dulles como a fascinante figura literária que foi.

O Senhor Embaixador foi baseado, em boa parte, na experiência do meu pai como diretor de Assuntos Culturais da União Pan Americana, ligada à Organização dos Estados Americanos, em Washington, de 1953 a 1956. A personalidade que, este sim, ele mais admirou no período foi Alberto Lleras Camargo, ex-presidente da Colômbia pelo Partido Liberal que dirigiu a OEA até 54 e saiu do cargo fazendo um famoso discurso em que desancava a intromissão americana em assuntos internos da América Latina e propunha um novo relacionamento, não submisso, dos latinos com os Estados Unidos. Lleras Camargo foi o primeiro estadista latino-americano da sua estatura e com suas credenciais a dizer coisa parecida. Recomendo ao Serra que, quando tiver tempo, leia Solo de Clarineta, vol. 1, livro de memórias do meu pai, para saber com que figuras ele realmente simpatizou, na época, e com quem concordava.

Foster Dulles foi o autor da frase "um país não tem amigos, tem interesses". Uma frase cínica mas, infelizmente, certeira. Se a resposta do Serra à minha pergunta significa que a submissão não volta e os interesses do Brasil, e não as velhas pseudoamizades, valeriam mais na sua hipotética política externa, a família Verissimo agradece.

* Artigo publicado em O Estado de S.Paulo de 16/09/2010.

As fichas na mesa

Janio de Freitas


A possibilidade de que o Supremo Tribunal Federal libere os candidatos de ficha suja é real, ainda que não seja segura nenhuma das diferentes notícias sobre a posição de cada ministro.
 



Mas não há dúvida de que em todas as classes sociais, em todo o país, a grande maioria, mais do que deseja, anseia pela aplicação da Lei da Ficha Limpa já nestas eleições. A contradição não se limita, porém, a esperáveis interpretações jurídicas pelo adiamento da lei e, de outra parte, a posição quase unânime da população.

Em síntese, os integrantes do STF vão definir-se sobre a aplicação ou não da Ficha Limpa, "lei de iniciativa popular" aprovada neste ano, em relação ao preceito de que leis não podem incidir sobre fatos anteriores à sua vigência. Matéria jurídica. Uma vez decidida pela votação no STF, ponto final.

Mas o terceiro componente da questão não é menos vigoroso: há necessidade de algo como a Ficha Limpa, imediata, necessidade urgente. É indispensável dar início a medidas que sustem a degradação da política e da administração pública. A falta de qualquer contraposição a esse processo, que vem de décadas, acelerou-o e o trouxe a um ponto em que a vida pública já se faz em um pântano.

A própria Lei da Ficha Limpa é como uma comprovação desesperada da realidade repugnante: a lei só existe porque nasceu dos que estão fora do pântano, nem na política, nem na administração pública. Todas as frequentes alterações da legislação eleitoral, nas quais se conjugaram congressistas e governos, trataram de preservar as causas, os meios e os fins da degradação política. Tanto na sua prática, como na deteriorante composição humana. E assim também preservaram e ampliaram a irrigação, por esse caldo fétido, da administração pública.

O que esperar ainda diante da degradação que todos veem? Quem pode assegurar que o país não está nos limites finais da possibilidade de alguma contenção, para tentar um processo retroativo?

O desenrolar das eleições proporciona uma visão do que já se passa como consequência do pântano da política e da administração pública. A duas semanas do encerramento da campanha eleitoral, o descaso dos eleitores -uma recusa consciente e nauseada- não tem equivalente nos nossos anais desde a República. Nada de espontâneo, de voluntarioso, acontece nas ruas e nas praças, em relação às eleições. Nas rodas pessoais, nenhum toque eleitoral sobrevive a mais de duas ou três frases desmaiadas. O eleitorado não está nas eleições. Sabe dela, tem seus votos porque há de tê-los, mas não é parte. E deveria ser a principal, no entanto.

Caminha-se no rumo contrário à politização, por superficial que seja. Força-se a distância entre o país e os fundamentos de uma cultura política capaz de torná-lo, no futuro promissor que se avizinha, menos sujeito a se fazer conduzir por demagogias e marquetismos.
* Artigo publicado na Folha de S.Paulo de 16/09/2010.

Pavana para uma infanta defunta

Vinicius Torres Freire


DEFUNTA é a oposição. Uma pavana é também uma descompostura, mas, principalmente, uma dança da Renascença, embora a oposição esteja sendo varrida em ritmo de pancadão. O PSDB dança primeiro, pois é o príncipe da oposição defunta.

O tucanato existia já, "avant la lettre", no governo de Franco Montoro em São Paulo (1983-86). O partido surgiu no final dos anos 1980 como uma dissidência de "poucos e bons" do PMDB.

Saíram porque foram atropelados pelo domínio quercista no Estado (1987-1994). Porque se diziam enojados com a fisiologia, a inépcia e o populismo do governo peemedebista de José Sarney (1985-90), aliás características de muito governador e líder do PMDB eleito graças ao estelionato eleitoral do Plano Cruzado. Esse PMDB mantém-se até hoje forte e sacudido.

Tinham convicções parlamentaristas. Tal crença talvez se devesse em parte à consciência de que o partido teria dificuldades de vencer eleições diretas. Era de fato um partido de quadros políticos e intelectuais da elite mais ilustrada do país, mas sem raiz popular.

Quase deram um "primeiro-ministro" e um gabinete a Fernando Collor. Acabariam por assumir tais funções sob Itamar Franco. Graças à habilidade de Fernando Henrique Cardoso e seu Plano Real, chegaram ao poder. Mas suas conexões sociais jamais foram muito além da universidade, de altos quadros das grandes empresas, de organizações civis de classe média (alta) e empresariais.

O fim do governo FHC marcou a debandada de muitos quadros tucanos, que foram ganhar a vida no mercado. Suas lideranças mais importantes envelheceram, se aposentaram ou morreram. Algumas das restantes se odeiam.

As derrotas de 2002 e 2006 não fizeram o partido mover uma palha a fim de se recompor. "Tucanos de alma", como peemedebistas gaúchos e pernambucanos, não se tornaram PSDB de fato devido a quizilas regionais. O PSDB também não procurou agregar novos nomes "bons" da política dos Estados menos centrais. Seus governos melhores são de gerentes sem ideias ou inspiração. Os demais não diferem do padrão PMDB.

O PSDB perdeu vínculos com a nova universidade. Nada fez para ir ao movimento estudantil. Ignora a organização de base. Quando muito, sua raiz são comitês de prefeitos. Os tucanos não têm nem quiseram ter vínculos com os "movimentos sociais", de resto filiados ao petismo. Têm o vício de identificar "popular" com "populista". Tampouco procuraram congregar outros setores sociais em torno de um programa próprio -agregar militantes em torno de temas como educação ou os impostos, tanto faz. Não o fizeram.

Sendo por vício de origem um "partido de quadros", acabou se tornando um partido elitista sem elite. Vivia de nomes "históricos", hoje apenas nomes de rua. Poderia ao menos ter nomeado um "ministério paralelo", quadros aptos a criticar Lula com base em programas. Mas qual programa?

O PSDB não entendeu o "contrato social" de Lula, que, mal ou bem, mudou o Brasil. Deixou parte do país entregue ao atraso do PMDB, parte à carcomida oligarquia nordestina do DEM. O PSDB descolou-se da realidade social, econômica e regional do país. Padece de inanição política.


* Artigo publicado na Folha de S.Paulo de 29/08/2010. 

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Quem é o palhaço?

José Roberto de Toledo


Francisco Everardo Oliveira Silva corre o risco de ser o deputado federal mais votado do Brasil em 3 de outubro. Não se espante se você não reconhece o nome, nem seus próprios eleitores reconheceriam. Oliveira Silva é conhecido apenas por seu apelido, Tiririca.

Ele aparece em primeiro lugar no conjunto de pesquisas do Ibope sobre a eleição para a Câmara dos Deputados em São Paulo. Como é o Estado com o maior eleitorado, não será surpresa se Oliveira Silva acabar sendo o campeão nacional de votos de 2010.

Se você não tem visto muita TV nas últimas décadas e passou incólume pela propaganda eleitoral até agora, Tiririca é ator e palhaço profissional. Tem 45 anos, lê e escreve, se autodefine como "abestado" e seu slogan é "pior que tá num fica, vote Tiririca".

Não é uma piada. É um projeto político. Oliveira Silva é candidato pelo PR, em coligação que inclui o PT e o PC do B. Prova da seriedade do projeto é que, até o último dia 3, o partido havia investido R$ 594 mil, oficialmente, na campanha do palhaço. E não deve parar por aí.

Tiririca é o principal puxador de votos do PR, do PT e do PC do B em São Paulo. Se chegar a um milhão de sufrágios, seu excedente de votos elegerá mais quatro ou cinco deputados da coligação. O eleitor vota em Tiririca e pode eleger Valdemar Costa Neto (PR), Ricardo Berzoini (PT) ou o delegado Protógenes (PC do B).

O "projeto Tiririca" é um bom retrato do sistema de coligações que impera nas eleições parlamentares brasileiras - uma salada farta de siglas, conexões improváveis, legendas de aluguel e uma pitada muito pequena de ideologia.

Das 27 legendas que disputam as eleições para a Câmara dos Deputados, apenas os quatro partidos de esquerda (PSTU, PCO, PSOL e PCB) são seletivos nas coligações: não se misturam na grande maioria das vezes. Melhor deixá-los em um prato à parte.

Entre as outras 23 legendas da salada, vale quase tudo. O PP, por exemplo, coligou-se 169 vezes a todos os outros 22 partidos, em 26 das 27 unidades da Federação. O PRB fez igual. Isso significa aliar-se ora ao PT, ora ao seu arqui-inimigo PSDB, conforme a conveniência.

PP e PRB são os campeões das alianças, mas não são exceção. Das 23 legendas da salada coligada, só o PV fez menos de 100 conexões com outros partidos. Mas bateu na trave: 97. A salada é sortida. Tem de PT com DEM (uma vez) a comunista com democrata-cristão (seis vezes). Só não tem petista com tucano.

Se dividirmos a travessa em duas partes, numa ponta está o PT, na outra, o PSDB. O PMDB fica no meio. Perseguidos pelo poder, os peemedebistas aparecem como fortes aliados tanto de tucanos (6 vezes) quanto de petistas (11 vezes).

As conexões mais intensas do PT são com PC do B, PR, PRB, PSB, PDT e PMDB. E as do PSDB são com DEM, PPS, PSC, PMN, PR, PRB e PMDB. Mas as relações são abertas, não pressupõem exclusividade. Vez ou outra uma legenda dá uma escapadinha para o outro lado, sem culpa ou ressentimentos.

Os mais cínicos dirão que a política partidária brasileira continua a mesma. Mudam os nomes, mas não os sobrenomes. No seu "Deputados 2010", o Ibope identificou uma penca de herdeiros do poder (apud Francisco Antonio Doria) entre os favoritos a se elegerem para a Câmara.

São rostos novos para nomes conhecidos. Como os de Ana Arraes (Pernambuco), Ratinho Jr. e Zeca Dirceu (ambos no Paraná), ACM Neto (Bahia), Rodrigo Maia e Leonardo Piciani (ambos no Rio de Janeiro).

Nomes fortes foi justamente o que faltou para o PT paulista. O partido precisou improvisar nova estratégia. Além de se coligar ao PR de Tiririca, ressuscitou a tática de pedir votos para a legenda do partido. Está dando certo: a sigla do PT está em segundo lugar em citações no ranking do Ibope.

A falta de nomes conhecidos está confundindo os paulistas. Instado pelo Ibope a dizer em quem votará para deputado federal, há quem responda "Serra", "Fernando Henrique Cardoso", "Marina Silva", "Alckmin", "Mercadante" ou até quem evoque "Mario Covas".

De todos os Estados onde o Ibope faz seu ranking para a Câmara, São Paulo é onde menos eleitores são capazes de citar um candidato a deputado federal: apenas 12%. Em Pernambuco essa taxa já chegou a 19%, e no Distrito Federal, a 21%.

Não é de espantar, portanto, que Tiririca seja o mais lembrado entre os paulistas. Nem de que alguém tenha pensado em usar um palhaço como puxador de votos. Pensando bem, até faz sentido.


* Publicado em O Estado de S.Paulo de 13/09/2010.

"Não tem mais centro nem periferia"

ENTREVISTA COM MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES


 A ascensão da China, com uma demanda por produtos primários que vai durar décadas, mudou a divisão internacional do trabalho e tornou datada a dicotomia entre industrialização e produção de commodities que marcou a trajetória brasileira desde os anos 1930.

Quem afirma é a economista Maria da Conceição Tavares, veterana expoente do desenvolvimentismo, que durante o século 20 propôs a ação do Estado para a industrialização, a fim de superar a desvantagem nas relações de troca no antigo sistema sob hegemonia econômica dos EUA --que, ao também produzirem matérias-primas, forçavam a baixa de seus preços.

"Não tem centro e periferia como antes. Há países de desenvolvimento intermediário, entre os quais estamos", afirma Conceição.

Ela deu entrevista à Folha às vésperas de ser homenageada amanhã, no Rio, no lançamento do livro "O Papel do BNDE na Industrialização do Brasil", fruto de pesquisa que coordenou para o Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

O novo cenário não quer dizer, afirma, que o país deva descuidar do parque industrial. Ela se preocupa com a avalanche de importações e defende o papel do BNDES no apoio a grandes empresas nacionais.

Petista, Conceição aposta que Dilma Rousseff mudará a orientação ortodoxa do BC, caso eleita, e diz que o tucano José Serra, colega do tempo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) com quem há 40 anos escreveu um artigo marco, "Além da Estagnação", é conservador na área social. Abaixo, a íntegra da entrevista.

FOLHA - Um dos problemas recorrentes do período de industrialização abordado no livro é o déficit no balanço de pagamentos. Hoje essa preocupação surge de novo. Os riscos são os mesmos?

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES - Não, naquela altura o problema era basicamente a rigidez da pauta de exportações, que não é o caso agora. A gente só tinha produtos primários e o único período em que houve aumento de preços das matérias-primas foi durante a Guerra da Coreia (1950-1953).

Além disso, o processo de substituição de importações não poupava divisas, pelo contrário, era para substituir importações por produtos internos. Ao fazer isso, ampliava o mercado interno e ampliava a demanda [por bens de capital importados para aumentar a produção]. Hoje em dia você tem uma indústria montada. O problema é o câmbio.

FOLHA - Mas há toda a preocupação com a primarização da pauta de exportações brasileiras.

CONCEIÇÃO - Isso não tem nenhum cabimento, porque a primarização da pauta de exportações de hoje não se parece nada com a de então. Ao contrário daquela época, quando havia relações de troca desfavoráveis, as relações são favoráveis. Quem demanda produtos primários é a China e a Ásia inteira, que crescem muito mais do que o resto do mundo. Naquela época, os EUA eram nossos concorrentes.

FOLHA - O candidato José Serra fala muito do risco de desindustrialização no Brasil. A sra. acha que existe esse risco?

CONCEIÇÃO - Desindustrialização houve no governo deles, do Fernando Henrique, com uma política de câmbio completamente irresponsável, uma taxa de juros alta, que começou a afrouxar a partir do segundo mandato.

O problema de agora é que, com a crise mundial, o dólar desvalorizou e todas as moedas valorizaram, exceto a moeda chinesa, que está amarrada ao dólar e controlada, com controle de capitais. O resto foi para o diabo.

Agora é um problema de valorização e isso não afeta as exportações. Isso afeta as importações, que estão disparando. A gente não sabe se estão disparando como reação apenas ao câmbio ou à recuperação da economia. Eu acho que são os dois. A indústria sofreu um abalo em 2009, e neste ano recuperou com muita força. Agora está desacelerando. Tem que estar sempre avaliando. Se você deixar entrar à galega acaba desindustrializando.

FOLHA - E o que pode ser feito?

CONCEIÇÃO - O próprio ministro da Fazenda já avisou que tem que controlar essa taxa de câmbio, não pode deixar rolar.

FOLHA - Mas o câmbio não tem relação com os juros do Banco Central, que atraem capital de fora?

CONCEIÇÃO - Tem, mas não só. Porque a valorização deu em todos os países, mesmo os que praticam taxas de juros negativas, que é o caso do Japão. É a situação particular do dólar agora que está fazendo isso.

A situação, portanto, não se parece nada com a do período entre 1950 e 1980. Não tem crise no balanço de pagamentos no sentido clássico. E muito menos dívida externa. Conseguimos passar essa crise sem problemas na dívida externa, com reservas, coisa que nunca aconteceu em nenhuma crise internacional desde o século 19. Agora, tem que ter uma política industrial mais clara, uma política cambial obviamente controlada, que não se resolva apenas com os juros.

FOLHA - Outra discussão que tem uma analogia com o período atual é a ideia de criar um mercado de capitais privado, bancos de investimentos privados que financiem investimentos de longo prazo, o que foi tentado pelo Roberto Campos no primeiro governo da ditadura.

CONCEIÇÃO - A ideia do mercado de capitais estava lá na reforma administrativa Bulhões-Campos. O problema é que ele veio com a ideia dos bancos de investimentos, que não funcionaram.

FOLHA - Mas essa discussão volta agora, não?

CONCEIÇÃO - A dos bancos de investimentos, não. O problema é que nem os bancos nem os mercados de capitais não estão financiando desenvolvimento em longo prazo.

FOLHA - E é possível que isso, que nunca aconteceu, aconteça agora?

CONCEIÇÃO - Eu não acredito muito. Porque na verdade o mercado de capitais serve basicamente em toda parte não é para financiar desenvolvimento, é para transformar patrimônio. Mas enfim, essa é uma ideia antiga, continuam a fazer esforço. O financiamento na verdade depende mais do crédito de longo prazo, e aí é que se tem que arrumar um jeito de que haja um crédito em longo prazo que não dependa apenas do BNDES e da Caixa Econômica, que carregam nas costas.

FOLHA - Como avalia às críticas feitas ao perfil dos empréstimos do BNDES, para grandes grupos?

CONCEIÇÃO - A imprensa conservadora, que nunca gostou do BNDES, vem com esse papo de que a capitalização [do banco] vai para a dívida pública, o que não é verdade. Formalmente vai para a dívida fiscal, mas na verdade não é assim em longo prazo. Porque você empresta, mas eles retornam. E o retorno do investimento é sempre positivo. O BNDES não está emprestando a ninguém com retorno negativo.

FOLHA - Mas até o Carlos Lessa [ex-presidente do BNDES] afirma que o banco deveria ser mais exigente sobre investimentos no Brasil ao fazer empréstimos a grandes empresas.

CONCEIÇÃO - Lessa nesse particular discrepa do [Luciano] Coutinho, que tem a visão do que ocorreu na Ásia, no Japão, na Coreia, do "pick the winner" [escolha o vencedor], que tem que escolher as empresas vencedoras para que elas sejam competitivas lá fora, para que elas se internacionalizem com poder de mercado. Essa é a única diferença, porque o Lessa é desenvolvimentista, o Coutinho também. Só tem desenvolvimentista agora. Liberal, só tem a charanga.

FOLHA - A Dilma e o Serra também são desenvolvimentistas.

CONCEIÇÃO - Do ponto de vista da operação fiscal, o Serra é ortodoxo, e isso é ruim. Ele quer acelerar a contração do gasto público. No fundo, ele não leva a sério as políticas de bem-estar social, a universalização da educação, da saúde, que tornaram o Orçamento mais pesado. Se cortar, não se pode fazer nada de política universal, tem que ficar só com política para pobre.

Mas não há dúvida de que o Serra também é desenvolvimentista do ponto de vista industrial. O problema dele são os programas sociais, o aumento da Previdência, do salário mínimo, todas as medidas de alcance social mais profundo que o Lula tomou. Nas políticas compensatórias, eu não creio que ele voltaria atrás, que ninguém é maluco. A universalização é que é o problema, as políticas sociais de longo alcance. O gasto com educação, saúde, Previdência.

FOLHA - No segundo governo Vargas [1951-1954], quando começa o Plano de Reaparelhamento Econômico, o ministério lembra o do primeiro governo Lula, com empresários e monetaristas no comando da política econômica. Como interpretar essa coincidência?

CONCEIÇÃO - Por sorte, depois do interregno monetarista do [Eugenio] Gudin [ministro da Fazenda de Café Filho, entre 1954 e 1955], veio o JK, que era desenvolvimentista. O [Horacio] Lafer [ministro da Fazenda de Vargas] queria fazer presidente do BNDE o Gudin, e não conseguiu, porque o Vargas não dormia de touca. O que ele fez é foi compor uma parte da diretoria do banco com pessoal que veio da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos [1951-1953], entre os quais o Roberto Campos e o Glycon de Paiva, que ficaram como diretores, e colocou o homem dele, que era o gaúcho Ari Frederico Torres, como superintendente.

O problema é que o homem dele não entendia muito de economia, e por aí não foi. Mas havia os diretores que eram da Assessoria Econômica do Vargas. Então a assessoria do banco era composta metade de conservadores e metade de nacionalistas.

No que diz respeito a Lula, graças a Deus caiu o ministro da Fazenda [Antônio Palocci] e entrou o [Guido] Mantega, que é desenvolvimentista. O problema foi o Banco Central. O Banco Central é problema sempre, porque a estrutura do BC foi montada de tal maneira que os que não pensam da mesma maneira não têm futuro.

Um dos meninos mais brilhantes da atual Fazenda é o Nelson Barbosa [secretário de Acompanhamento Econômico]. Ele é um keynesiano um pouco ortodoxo. Ele é originariamente do BC, fez concurso e passou. O [Luiz Eduardo] Melin [chefe de gabinete da Fazenda] também é do BC. Mas eles não podem fazer nada, porque começam uma carreira e tem em cima a diretoria que é toda conservadora.

Tem é que fazer com o BC o mesmo que foi feito no BNDES pelo Vargas, uma diretoria mista, metade conservadora, para agradar os banqueiros e eles não encherem muito o saco, senão eles enchem mesmo, e outra metade para ajudar o desenvolvimento, fazer uma política monetária menos estúpida.

Quer dizer, o conservador no governo Lula foi só a política monetária. E não foi pouca porcaria, eu concordo. Briguei para burro.

FOLHA - Mas isso num governo Dilma pode mudar?

CONCEIÇÃO - Com certeza vai mudar. É só esperar e ver. Mas não é mole, porque o pessoal mais desenvolvimentista tem muito pouca prática de mercado. Tem que ter os que têm prática de mercado, porque senão você não consegue operar o banco. Houve sempre uma tensão muita grande entre a Fazenda e o BC [no segundo mandato de Lula], que nunca foi o caso na história do Brasil, em que sempre Fazenda e BC eram conservadores e Planejamento, Indústria e Comércio eram desenvolvimentistas. Mas isso não é mais assim.

FOLHA - Mas é melhor ter a tensão?

CONCEIÇÃO - Por mim não, mas, como eu estou dizendo, não tem economista progressista com domínio de BC, com exceção desses dois que eu mencionei, que foram do BC. Foram meus alunos, trabalharam comigo, conhecem teoria monetária. A esquerda tem mania de não gostar de política monetária. A única monetarista de esquerda era eu, mas é óbvio que eu não posso ser presidente do BC com 80 anos e com esse temperamento que eu tenho. Tem também o [Luiz Gonzaga] Beluzzo, o próprio Luciano Coutinho.

FOLHA - Então hoje, ao contrário da década de 90, começa a haver um predomínio do pensamento desenvolvimentista?

CONCEIÇÃO - No Brasil sim, mas não no mundo. Olha para a Europa. A Europa está num reacionarismo conservador que é uma desgraça, está pior que os EUA. Nos EUA, até os conservadores viraram keynesianos por causa da crise. Na Europa, os caras estão fiscalistas ao extremo, estão arrebentando com a Europa, tem uma tendência japonesa [de estagnação] acentuada.

FOLHA - Essa conjuntura internacional, em que a China é o grande demandante, favorece o Brasil?

CONCEIÇÃO - É favorável. Quem é hoje o grande centro manufatureiro no mundo? É a Ásia, ninguém compete em produtos manufaturados com eles, mesmo com a taxa de câmbio melhor. Então aqui tem que ter um certo controle das importações, mesmo disfarçado. Mas como, por outro lado, eles são realmente os maiores demandantes de matérias-primas, hoje, sobretudo para a América do Sul Brasil, Argentina, Chile, isso faz uma diferença cavalar.

FOLHA - E dumping [venda abaixo do valor] de produtos chineses?

CONCEIÇÃO - A China não está tendo o sucesso que está por causa de dumping, é por causa da política inteira. Se houver dumping é feito pelas multinacionais que lá estão, porque, ao contrário do Japão, a China não fez restrições a que na área exportadora entrassem as multinacionais.

Você não pode deixar de levar em conta que mudou a divisão internacional do trabalho. Paradoxalmente, não vejo muita gente mencionar isso. Houve uma mudança radical da divisão internacional do trabalho, na qual nós estamos bem colocados porque a gente exporta para todo mundo. E, em particular, no que diz respeito a matérias-primas, exportamos mais para a China do que para a Europa, por exemplo. Nunca exportamos matérias-primas para os EUA.

FOLHA - Mas a China também pode competir com os produtos industriais brasileiros em terceiros mercados.

CONCEIÇÃO - Ela pode competir com quem ela quiser. Claro que temos que nos precaver. Por que a tendência hoje entre países em desenvolvimento é de acordos bilaterais, quando sempre fomos multilateralistas? É porque o comércio multilateral está de pernas para o ar. A crise americana arrebentou com o sistema todo, com o sistema monetário, o sistema de comércio internacional.

Estamos num período de transição, no qual acho que o Brasil tem chance. Ter uma disponibilidade de recursos naturais como nós temos, que vai da água ao petróleo, não é qualquer país que tem. Isso ajuda, ao contrário de antes. Não estamos baseados no café, mas numa pauta totalmente diversificada. E a coisa do pré-sal vai ajudar.

FOLHA - Quando teve o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, com o Geisel (1975-1979), ele tentou dar um salto qualitativo tecnológico.

CONCEIÇÃO - Tentou, e nós começamos a exportação de manufaturas para valer.

FOLHA - Mas o Brasil ainda tem dificuldade de desenvolvimento tecnológico, por exemplo em computadores.

CONCEIÇÃO - Tem menos do que tinha na época. No Geisel, ainda estávamos começando e a área de computadores fracassou. O projeto Cobra foi um desastre. Aí só avançamos na área bancária, temos a mais desenvolvida em matéria de computação do mundo. Estamos com tecnologia avançada em aviões, em perfuração de petróleo, o que não é pouca porcaria.

FOLHA - Mas em relação à competição chinesa em informática, máquinas?

CONCEIÇÃO - O que tem que entender é que a China é um híbrido. Não pode ser considerada mais um país em desenvolvimento, mas tem uma área subdesenvolvida, com uma população gigantesca, no campo. A China ainda tem que caminhar para dentro, desenvolver o mercado interno. Mas ela tem um solo esgotado. Ao contrário da mudança de centro [capitalista] da Inglaterra, que não tinha produtos primários, para os EUA, que tinham, o que levou ao fim do modelo primário-exportador na América Latina, a China vai ter décadas ainda importando produtos primários, tanto na parte alimentar quanto na de minério e petróleo. Para nós está bom.

FOLHA - Mas quando se fala do risco de desindustrialização...

CONCEIÇÃO - É por causa das importações e do câmbio. O resto quem fala está fazendo blá-blá-blá, porque toda a indústria está aí ainda.

FOLHA - Mas um argumento é que a indústria é que dá emprego de qualidade para os jovens, e não o setor primário.

CONCEIÇÃO - Não é verdade. Os empregos de qualidade costumam ser no setor terciário, nos bancos e nos serviços de utilidade pública. Pelo lado do emprego eu não estaria preocupada. Estamos com problema de desemprego estrutural, mas devido à pobreza. Com uma política de combate à pobreza e com uma política de educação você repõe as bases de um país desenvolvido. Desta vez, acho que a maldição do [Celso] Furtado, que era desenvolvimento junto com subdesenvolvimento, pode terminar.

Na indústria, a parte de capital estrangeiro em geral não faz desenvolvimento tecnólogico, traz da matriz, o que é um problema. Mas, como a divisão internacional do trabalho está mudando, também há a tendência de adaptar produtos a cada mercado em que as empresas estão instaladas.

Quanto à indústria nacional, o Ministério de Ciência e Tecnologia e a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] continuam fazendo o que podem para fazer semeadura de tecnologia, sobretudo na pequena e na média empresas. O BNDES faz também para a grande empresa, até porque ninguém acredita que seja possível competir lá fora sem isso. Se não tivéssemos tido avanço tecnológico em aços especiais, claro que a Gerdau não estaria com filiais até nos EUA.

Eu tenho trabalhado na questão da internacionalização do capital, e tenho a impressão que por esse lado não estamos tão mal. O nosso problema é fechar a brecha entre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento nosso, que é menos problema do que para a China e para a Índia.

São situações muito díspares. Não tem centro e periferia como antes. Tem países de desenvolvimento intermediário, entre os quais estamos. A Rússia sim desmantelou a indústria toda. Só exporta gás e petróleo. Isso é que é uma situação ruim. Está lá no Bric [Brasil, Rússia, Índia e China] um pouco fora de propósito.

A discussão agricultura versus indústria é datada, do pós-Segunda Guerra. Ninguém vai fazer uma opção por um outro. Precisa de agricultura familiar, de agrobusiness, da indústria de transformação.

Agora, estou de acordo que, na indústria eletroeletrônica, por causa da Zona Franca de Manaus, montamos uma fábrica de montagem e não avançou ainda. Mas vai avançar, não tem dúvida. Até porque o BNDES tem política setorial, como na farmacêutica e na química.

FOLHA - E a acusação de que o governo Lula escolhe as empresas beneficiadas?

CONCEIÇÃO - Política industrial só horizontal não vai para lugar nenhum. Tem que continuar as horizontais, mas tem que fazer as setoriais. Se não escolher setores e empresas, não avança. Não estamos num mundo de concorrência perfeita. Estamos num mundo monopolista. Se não tiver grande empresa aqui, não vamos para lugar nenhum.

FOLHA - O período do livro é caracterizado como a "modernização conservadora" do Brasil. O Brasil ainda vive esse fenômeno ou pode acertar contas nesse ponto?

CONCEIÇÃO - A parte da modernização conservadora que diz respeito ao grande capital, bancário, industrial, uma parte das construturas, vive. Grande capital é grande capital, está pouco se lixando para ideologia. É conservador no sentido de que não teve uma democratização da propriedade.

FOLHA - Não teve reforma agrária.

CONCEIÇÃO - Tem que terminar, com a pequena produção agrícola independente, e a pequena e a média empresas com tecnologia e apoio. Essa ideia do cartão BNDES, que aliás foi o Lessa que inventou, com o qual se pode pedir R$ 1 milhão para fazer uma padaria, montar uma pequena empresa. O Lessa botou o BNDES outra vez no espírito de ser um banco de desenvolvimento. No governo de Fernando Henrique, era só um banco da privataria. Só não foi ameaçado porque tem a indústria que demanda recursos.

FOLHA - A senhora está otimista, então?

CONCEIÇÃO - Pela primeira vez na história do Brasil não há uma crise da dívida externa. Em segundo lugar, voltamos a usar o BNDES, desde o começo do governo Lula, para promover o desenvolvimento. A coisa social mudou também radicalmente. Consolidou-se a inflação baixa, não precisa ter taxa de juros lá em cima para que ela caia. Está estabilizada.

Isso muda tudo, porque a inflação é uma praga para os salários. O pessoal da esquerda não levava isso em conta, o que era uma asneira. Com inflação, nenhuma política salarial resolve. Lembra que tinha indexação dos salários e a inflação corria na frente.

Estamos numa situação bem melhor do que nunca estivemos desde a década de 30. E também com estabilidade política, por mais que façam esse banzé. Se você afirmou a democracia, se está afirmando as políticas sociais, se está continuando a política industrial, eu estou otimista, pela primeira vez, para dizer a verdade, porque em geral sou pessimista. Espero não me equivocar, mas, também, se me equivocar não vou estar viva para ver.

FOLHA - E como a sra. vê a situação dos EUA?

CONCEIÇÃO - Estou com os keynesianos de lá, como o [Paul] Krugman. Acho que fizeram pouco e mal feito. Mas isso não é culpa do presidente. Ele tem um Congresso desvairadamente conservador.

Isso sim me preocupa [no Brasil]. O pessoal só presta atenção na eleição para a Presidência, mas é importante ver o Congresso. Vamos ver se dá um Senado um pouco melhor, mas de qualquer maneira a capacidade de negociação continua. Nisso o velho [economista ortodoxo Otavio Gouveia de] Bulhões [1906-1990], meu mestre antigo, tinha razão, que o Executivo é mais forte, mas para fazer reformas tem que passar pelo Congresso.

Algumas coisas, como reforma tributária e política, dependem do Congresso, e em geral os congressistas não querem mudar o status quo. São reformas que eu vejo que são importantes, e que o Congresso provalmente vai continuar no chove não molha. Vamos ver se a gente consegue.

FOLHA - Mas a reforma tributária deve reduzir a carga como proporção do PIB ou a natureza dos impostos?

CONCEIÇÃO - Como vai mudar a carga sobre o PIB, com as demandas de política pública que você precisa fazer? Não, tem que mudar a carga mal distribuída e a estrutura dos tributos, que é muito complexa, muito atrapalhada. Continua aquela briga entre os Estados sobre o ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias].

Hoje o Lula já sacou que precisa fazer aliança nos dois sentidos, com o PMDB para uns fins e com os partidos minoritários da esquerda para o outro. Acho que não está tão difícil como já esteve.

FOLHA - Mas a sra. acha que, qualquer que seja o sucessor do Lula, vai ter o jogo de cintura dele?

CONCEIÇÃO - Qualquer que seja é problema seu. Eu acho que já está decidido. Mas pode ser de novo que eu esteja otimista demais. O fato é que, com Dilma ou Serra, haverá o mesmo problema no Congresso, essas duas reformas serão difíceis. Depende de quem eles botarem para ser o negociador com o Congresso.

Evidente que a capacidade do Lula ninguém vai ter mais neste país, porque o único com capacidade semelhante foi o Vargas. Acabou mal, coitado, o que não é o caso do Lula, que negociou durante oito anos e está terminando muito bem. Isso também é uma novidade. Você já viu algum presidente que veio do povo como esse, apesar de todos os percalços e denúncias, ter conseguido isso? Além do fato de hoje o Brasil estar no cenário internacional graças a ele.

São coisas que, para mim, marcam uma mudança e uma transição. Estou convencida de que estamos numa transição e que efetivamente, ganhe quem ganhe, não vão arrebentar com o Brasil, embora eu prefira a Dilma porque conheço o caráter progressista dela e o Serra ficou mais conservador.

 
* Entrevista concedida à jornalista Cláudia Antunes, publicada na Folha de S.Paulo, em 12/09/2010.