sexta-feira, 29 de abril de 2011

Buuu

Luis Fernando Veríssimo


Diálogo urbano, no meio de um engarrafamento. Carro a carro.

- É nisso que deu, oito anos de governo Lula. Este caos. Todo o mundo com carro, e todos os carros na rua ao mesmo tempo. Não tem mais hora de pique, agora é pique o dia inteiro. Foram criar a tal nova classe média e o resultado está aí: ninguém consegue mais se mexer. E não é só o trânsito. As lojas estão cheias. Há filas para comprar em toda parte. E vá tentar viajar de avião. Até para o exterior - tudo lotado. Um inferno. Será que não previram isto? Será que ninguém se deu conta dos efeitos que uma distribuição de renda irresponsável teria sobre a população e a economia? Que botar dinheiro na mão das pessoas só criaria esta confusão? Razão tinha quem dizia que um governo do PT seria um desastre, que era melhor emigrar. Quem pode viver em meio a uma euforia assim? E o pior: a nova classe média não sabe consumir. Não está acostumada a comprar certas coisas. Já vi gente apertando secador de cabelo e lepitopi como e fosse manga na feira. É constrangedor. E as ruas estão cheias de motoristas novatos com seu primeiro carro, com acesso ao seu primeiro acelerador e ao seu primeiro delírio de velocidade. O perigo só não é maior porque o trânsito não anda. É por isso que eu sou contra o Lula, contra o que ele e o PT fizeram com este país. Viver no Brasil ficou insuportável.

- A nova classe média nos descaracterizou?

- Exatamente. Nós não éramos assim. Nós nunca fomos assim. Lula acabou com o que tínhamos de mais nosso, que era a pirâmide social. Uma coisa antiga, sólida, estruturada...

- Buuu para o Lula, então?

- Buuu para o Lula!

- E buuu para o Fernando Henrique?

- Buuu para o... Como, "buuu para o Fernando Henrique"?!

- Não é o que estão dizendo? Que tudo que está aí começou com o Fernando Henrique? Que só o que o Lula fez foi continuar o que já tinha sido começado? Que o governo Lula foi irrelevante?

- Sim. Não. Quer dizer...

- Se você concorda que o governo Lula foi apenas o governo Fernando Henrique de barba, está dizendo que o verdadeiro culpado do caos é o Fernando Henrique.

- Claro que não. Se o responsável fosse o Fernando Henrique eu não chamaria de caos, nem seria contra.

- Por quê?

- Porque um é um e o outro é outro, e eu prefiro o outro.

- Então você não acha que Lula foi irrelevante e só continuou o que o Fernando Henrique começou, como dizem os que defendem o Fernando Henrique?

- Acho, mas...

Nesse momento o trânsito começou a andar e o diálogo acabou.


* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 28/04/2011.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Uma história real de vingança na escola

Mayra Dias Gomes


Bullyng se tornou assunto quente de repente. A palavra é tão nova no nosso vocabulário que nem sequer tem tradução para o português. Mas quem pode dizer que nunca sofreu algum tipo de intimidação ou violência durante os complicados anos escolares?

Eu sofri. E estaria mentindo se dissesse que nunca senti vontade de me vingar de quem mexia com minha autoestima.

Quando escrevi meu primeiro livro, "Fugalaça", aos 17 anos, essa mesma ideia estava na minha cabeça. Felizmente, usei o papel para expressar minha revolta e consegui superação.

Não foi o caso de outros como Eric Harris, Dylan Kleblold e Wellington Menezes de Oliveira, agora conhecido no mundo todo por seu crime bárbaro e inexplicável. Ou do americano Marty Puccio, sua namorada Lisa Conelly e mais cinco amigos. Os sete foram apelidados de The Broward County Seven depois de terem sido condenados pelo assassinato de Bobby Kent, melhor amigo de Marty, em 1993.

A história é tão chocante que ganhou um livro, "Bully: A True Story of High School Revenge" (a verdadeira história de uma vingança escolar, em inglês), e um filme dirigido por Larry Clark, encurtado para "Bully".

O filme retrata Bobby Kent como um bully de dar nojo: sacana, manipulador e violento, vive batendo em Marty e até o obriga a se envolver em atividades homossexuais para ganhar dinheiro. Até que a namorada de Marty descobre que está grávida. Ela decide, então, que Bobby precisa sumir, ou seja, morrer.

Depois do crime, os adolescentes pagam a pena.

A lição é clara. Nas palavras de Martin Luther King, "aquela velha lei do olho por olho acabará deixando todos cegos". O que fazem conosco nos cria, mas sempre podemos procurar tratamento e evitar que um ato covarde de violência termine com a nossa vida e acabe a definindo.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/04/2011.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O papel da oposição

Fernando Henrique Cardoso


Há muitos anos, na década de 1970, escrevi um artigo com o título acima no jornal Opinião, que pertencia à chamada imprensa “nanica”, mas era influente. Referia-me ao papel do MDB e das oposições não institucionais. Na época, me parecia ser necessário reforçar a frente única antiautoritária e eu conclamava as esquerdas não armadas, sobretudo as universitárias, a se unirem com um objetivo claro: apoiar a luta do MDB no Congresso e mobilizar a sociedade pela democracia.

Só dez anos depois a sociedade passou a atuar mais diretamente em favor dos objetivos pregados pela oposição, aos quais se somaram também palavras de ordem econômicas, como o fim do “arrocho” salarial.

No entretempo, vivia-se no embalo do crescimento econômico e da aceitação popular dos generais presidentes, sendo que o mais criticado pelas oposições, em função do aumento de práticas repressivas, o general Médici, foi o mais popular: 75% de aprovação.

Não obstante, não desanimávamos. Graças à persistência de algumas vozes, como a de Ulisses Guimarães, às inquietações sociais manifestadas pelas greves do final da década e ao aproveitamento pelos opositores de toda brecha que os atropelos do exercício do governo, ou as dificuldades da economia proporcionaram (como as crises do petróleo, o aumento da dívida externa e a inflação), as oposições não calavam. Em 1974, o MDB até alcançou expressiva vitória eleitoral em pleno regime autoritário.

Por que escrevo isso novamente, 35 anos depois?

Para recordar que cabe às oposições, como é óbvio e quase ridículo de escrever, se oporem ao governo. Mas para tal precisam afirmar posições, pois, se não falam em nome de alguma causa, alguma política e alguns valores, as vozes se perdem no burburinho das maledicências diárias sem chegar aos ouvidos do povo. Todas as vozes se confundem e não faltará quem diga - pois dizem mesmo sem ser certo - que todos, governo e oposição, são farinhas do mesmo saco, no fundo “políticos”. E o que se pode esperar dos políticos, pensa o povo, senão a busca de vantagens pessoais, quando não clientelismo e corrupção?

Diante do autoritarismo era mais fácil fincar estacas em um terreno político e alvejar o outro lado. Na situação presente, as dificuldades são maiores. Isso graças à convergência entre dois processos não totalmente independentes: o “triunfo do capitalismo” entre nós (sob sua forma global, diga-se) e a adesão progressiva - no começo envergonhada e por fim mais deslavada - do petismo lulista à nova ordem e a suas ideologias.

Se a estes processos somarmos o efeito dissolvente que o carisma de Lula produziu nas instituições, as oposições têm de se situar politicamente em um quadro complexo.

Complexidade crescente a partir dos primeiros passos do governo Dilma que, com estilo até agora contrastante com o do antecessor, pode envolver parte das classes médias. Estas, a despeito dos êxitos econômicos e da publicidade desbragada do governo anterior, mantiveram certa reserva diante de Lula. Esta reserva pode diminuir com relação ao governo atual se ele, seja por que razão for, comportar-se de maneira distinta do governo anterior.

É cedo para avaliar a consistência de mudanças no estilo de governar da presidente Dilma. Estamos no início do mandato e os sinais de novos rumos dados até agora são insuficientes para avaliar o percurso futuro.

É preciso refazer caminhos

Antes de especificar estes argumentos, esclareço que a maior complexidade para as oposições se firmarem no quadro atual - comparando com o que ocorreu no regime autoritário, e mesmo com o petismo durante meu governo, pois o PT mantinha uma retórica semianticapitalista - não diminui a importância de fincar a oposição no terreno político e dos valores, para que não se perca no oportunismo nem perca eficácia e sentido, aumentando o desânimo que leva à inação.

É preciso, portanto, refazer caminhos, a começar pelo reconhecimento da derrota: uma oposição que perde três disputas presidenciais não pode se acomodar com a falta de autocrítica e insistir em escusas que jogam a responsabilidade pelos fracassos no terreno “do outro”. Não estou, portanto, utilizando o que disse acima para justificar certa perplexidade das oposições, mas para situar melhor o campo no qual se devem mover.

Se as forças governistas foram capazes de mudar camaleonicamente a ponto de reivindicarem o terem construído a estabilidade financeira e a abertura da economia, formando os “campeões nacionais” - as empresas que se globalizam - isso se deu porque as oposições minimizaram a capacidade de contorcionismo do PT, que começou com a Carta aos Brasileiros de junho de 1994 e se desnudou quando Lula foi simultaneamente ao Fórum Social de Porto Alegre e a Davos.

Era o sinal de “adeus às armas”: socialismo só para enganar trouxas, nacional–desenvolvimentismo só como “etapa”. Uma tendência, contudo, não mudou, a do hegemonismo, ainda assim, aceitando aliados de cabresto.

Segmentos numerosos das oposições de hoje, mesmo no PSDB, aceitaram a modernização representada pelo governo FHC com dor de consciência, pois sentiam bater no coração as mensagens atrasadas do esquerdismo petista ou de sua leniência com o empreguismo estatal.

Não reivindicaram com força, por isso mesmo, os feitos da modernização econômica e do fortalecimento das instituições, fato muito bem exemplificado pela displicência em defender os êxitos da privatização ou as políticas saneadoras, ou de recusar com vigor a mentira repetida de que houve compra de votos pelo governo para a aprovação da emenda da reeleição, ou de denunciar atrasos institucionais, como a perda de autonomia e importância das agências reguladoras.

Da mesma maneira, só para dar mais alguns exemplos, o Proer e o Proes, graças aos quais o sistema financeiro se tornou mais sólido, foram solenemente ignorados, quando não estigmatizados. Os efeitos positivos da quebra dos monopólios, o do petróleo mais que qualquer outro, levando a Petrobras a competir e a atuar como empresa global e não como repartição pública, não foram reivindicados como êxitos do PSDB.

O estupendo sucesso da Vale, da Embraer ou das teles e da Rede Ferroviária sucumbiu no murmúrio maledicente de “privatarias” que não existiram. A política de valorização do salário mínimo, que se iniciou no governo Itamar Franco e se firmou no do PSDB, virou glória do petismo.

As políticas compensatórias iniciadas no governo do PSDB - as bolsas - que o próprio Lula acusava de serem esmolas e quase naufragaram no natimorto Fome Zero - voltaram a brilhar na boca de Lula, pai dos pobres, diante do silêncio da oposição e deslumbramento do país e… do mundo!

Não escrevo isso como lamúria, nem com a vã pretensão de imaginar que é hora de reivindicar feitos do governo peessedebista. Inês é morta, o passado… passou. Nem seria justo dizer que não houve nas oposições quem mencionasse com coragem muito do que fizemos e criticasse o lulismo.

As vozes dos setores mais vigorosos da oposição se estiolaram, entretanto, nos muros do Congresso e este perdeu força política e capacidade de ressonância. Os partidos se transformaram em clubes congressuais, abandonando as ruas; muitos parlamentares trocaram o exercício do poder no Congresso por um prato de lentilhas: a cada nova negociação para assegurar a “governabilidade”, mais vantagens recebem os congressistas e menos força político-transformadora tem o Congresso.

Na medida em que a maioria dos partidos e dos parlamentares foi entrando no jogo de fazer emendas ao orçamento (para beneficiar suas regiões, interesses - legítimos ou não - de entidades e, por fim, sua reeleição), o Congresso foi perdendo relevância e poder.

Consequentemente, as vozes parlamentares, em especial as de oposição, que são as que mais precisam da instituição parlamentar para que seu brado seja escutado, perderam ressonância na sociedade.

Com a aceitação sem protesto do “modo lulista de governar” por meio de medidas provisórias, para que serve o Congresso senão para chancelar decisões do Executivo e receber benesses? Principalmente, quando muitos congressistas estão dispostos a fazer o papel de maioria obediente a troco da liberação pelo Executivo das verbas de suas emendas, sem esquecer que alguns oposicionistas embarcam na mesma canoa.

Ironicamente, uma importante modificação institucional, a descentralização da ação executiva federal, estabelecida na Constituição de 1988 e consubstanciada desde os governos Itamar Franco e FHC, diluiu sua efetividade técnico–administrativa em uma pletora de recursos orçamentários “carimbados”, isto é, de orientação político-clientelista definida, acarretando sujeição ao Poder Central, ou, melhor, a quem o simboliza pessoalmente e ao partido hegemônico.

Neste sentido, diminuiu o papel político dos governadores, bastião do oposicionismo em estados importantes, pois a relação entre prefeituras e governo federal saltou os governos estaduais e passou a se dar mais diretamente com a presidência da República, por meio de uma secretaria especial colada ao gabinete presidencial.

Como, por outra parte, existe - ou existiu até a pouco - certa folga fiscal e a sociedade passa por período de intensa mobilidade social movida pelo dinamismo da economia internacional e pelas políticas de expansão do mercado interno que geram emprego, o desfazimento institucional produzido pelo lulismo e a difusão de práticas clientelísticas e corruptoras foram sendo absorvidos, diante da indiferença da sociedade.

Na época do mensalão, houve um início de desvendamento do novo Sistema (com S maiúsculo, como se escrevia para descrever o modelo político criado pelos governos militares).

Então, ainda havia indignação diante das denúncias que a mídia fazia e os partidos ecoavam no Parlamento. Pouco a pouco, embora a mídia continue a fazer denúncias, a própria opinião pública, isto é, os setores da opinião nacional que recebem informações, como que se anestesiou. Os cidadãos cansaram de ouvir tanto horror perante os céus sem que nada mude. Diante deste quadro, o que podem fazer as oposições?

Definir o público a ser alcançado

Em primeiro lugar, não manter ilusões: é pouco o que os partidos podem fazer para que a voz de seus parlamentares alcance a sociedade.

É preciso que as oposições se deem conta de que existe um público distinto do que se prende ao jogo político tradicional e ao que é mais atingido pelos mecanismos governamentais de difusão televisiva e midiática em geral.

As oposições se baseiam em partidos não propriamente mobilizadores de massas. A definição de qual é o outro público a ser alcançado pelas oposições e como fazer para chegar até ele e ampliar a audiência crítica é fundamental.

Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os “movimentos sociais” ou o “povão”, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos. Isto porque o governo “aparelhou”, cooptou com benesses e recursos as principais centrais sindicais e os movimentos organizados da sociedade civil e dispõe de mecanismos de concessão de benesses às massas carentes mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas, além da influência que exerce na mídia com as verbas publicitárias.
 
* Publicado na Revista Interesse Nacional, n. 13, abril-junho 2011

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Bresser-Pereira deixa o PSDB

Entrevista com Luiz Carlos Bresser-Pereira



Do Valor Econômico

Em entrevista a Maria Inês Nassif, do Valor Econômico, Bresser-Pereira admite que não escapou à sedução do neoliberalismo, nos anos 90. Mas define uma diferença de origem entre ele e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como intelectuais: o nacionalismo. Segundo o ex-ministro, a teoria da dependência associada, de Fernando Henrique, caiu como uma luva para a esquerda americana — não por intenção do autor mas por conveniência do “império”.

No governo, FHC não se contradisse: a teoria da dependência associada pregava o crescimento do país com capital externo. O caráter não nacionalista dos governos tucanos era absolutamente compatível com a teoria da dependência associada do intelectual Fernando Henrique. Abaixo a íntegra da entrevista.

Por uma ideia de nação

Maria Inês Nassif
De São Paulo

Intelectual full-time desde que deixou o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, em 1999, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, depois da conturbada campanha eleitoral do ano passado, eliminou seu último vínculo com a política institucional: declarou-se desligado do PSDB, que, segundo ele, caminhou de forma definitiva para a direita ideológica, empurrado pela acomodação do PT na posição da social-democracia, da qual, ao longo de oito anos de governo Lula, acabou por desalojar os tucanos.

O desligamento partidário é que apenas não se concretizou na burocracia do partido por questões de ordem prática: Bresser-Pereira precisa ir pessoalmente ao diretório, para oficializar seu desencanto é marca também o retorno do intelectual à sua origem desenvolvimentista. Bresser-Pereira conta com satisfação ter sido influenciado diretamente pela escola do Iseb de Hélio Jaguaribe e Inácio Rangel, nos anos 50, e pela escola estruturalista cepalina de Celso Furtado. Foi a atração pelo desenvolvimentismo que o levou a abjurar o direito e tornar-se um economista e cientista social do desenvolvimento. Não sem desvios, reconhece. Bresser-Pereira não escapou à sedução do neoliberalismo, nos anos 90, como de resto toda a social-democracia europeia. Mas define uma diferença de origem entre ele e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como intelectuais: o nacionalismo.

Para Bresser-Pereira, a teoria da dependência associada, de Fernando Henrique, não por intenção do autor, mas por conveniência do “império”, caiu como uma luva para a esquerda americana. No governo, Fernando Henrique não se contradisse: a teoria da dependência associada pregava o crescimento do país com capital externo. O caráter não nacionalista dos governos tucanos era absolutamente compatível com a teoria da dependência associada do intelectual Fernando Henrique.

Bresser-Pereira vai lançar o último livro de uma trilogia que, no seu entender, marca não apenas seu retorno às ideias nacionalistas, mas a formulação do que ele considera uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento. “Construindo o Estado Republicano”, de 2004, é a consolidação dessas ideias no plano político; “Globalização e Competição”, na teoria econômica. O terceiro, “Capital, Organização e Crise Global: Teoria Social para o Longo Século XX: 1900-2008″, fecha o círculo do pensamento de Bresser-Pereira na teoria social.

***

Valor: O senhor considera que, de alguma forma, tenha antecipado o debate sobre o neoliberalismo?



Luiz Carlos Bresser-Pereira: Antecipei, mas depois afrouxei. Em 1990, dei a aula magna da Anpec [Associação Nacional dos Centros de Pós-graduação em Economia], que depois foi publicada na revista do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], onde fiz a primeira crítica, que eu conheça, ao Consenso de Washington. A esquerda, em geral, só veio a descobrir o Consenso de Washington em 1993. A primeira reunião que deu no Consenso de Washington foi em 1989. Mas eu soube dela, e fiz a minha crítica em 1990. Daí o John Williamson fez um segundo seminário sobre o Consenso de Washington, em 1993. E não sei por que cargas d’água fui convidado, acho que por causa da minha experiência com o Plano Bresser. Estava lá também o José Luiz Fiori. A primeira crítica violenta ao neoliberalismo, pelo menos que eu tenha lido, foi do Fiori, e foi feita a partir da segunda reunião, ou seja, quatro anos depois da minha crítica. Mas foi uma crítica violenta e a minha não foi tanto, porque eu não sou tão de esquerda quanto ele, temos posições um pouco diferentes.



Valor: No momento, o senhor faz um retorno ao nacionalismo. E como foi o encontro com o desenvolvimentismo?



Bresser-Pereira: Eu tinha 20 anos, estava começando o terceiro ano da faculdade de direito, em 1955, era católico da Ação Católica e ia ser juiz de direito. Era esse o meu projeto. Daí, numa colônia de férias da Ação Católica, da JEC [Juventude Estudantil Católica], em janeiro, eu li uma edição dos “Cadernos de Nosso Tempo”, o de número quatro, do grupo que formaria naquele ano o Iseb [Instituto Superior de Estudos Brasileiros], com trabalhos do Hélio Jaguaribe, do Alberto Guerreiro Ramos, do Inácio Rangel, do Álvaro Vieira Pinto, do Roland Corbisier e do Nelson Werneck Sodré. Li e vi que lá tinha uma história do Brasil diferente: era um Brasil que tinha sido colônia, depois havia sido semicolônia, e isso era novidade para mim. E a partir de 1930 começava a revolução nacional brasileira e a revolução industrial brasileira, liderada por Getúlio Vargas, numa associação política que colocava juntos alguns setores da velha oligarquia, que Inácio Rangel chamava de substituidora de importações, com os industriais, a burocracia pública e os trabalhadores urbanos que estavam surgindo. Falavam tudo isso em função da eleição próxima do Juscelino Kubitschek, que eles apoiavam. Aquilo fez todo sentido para mim, entendi tudo que estava acontecendo em volta de mim, entendi todos os meus amigos, minha família, todo o país: ou era a UDN, liberal, associada ao império, tentando impedir a industrialização do país, porque o Brasil era essencialmente agrário — agora está ficando outra vez –, ou os que defendiam o desenvolvimento industrial brasileiro. Era o desenvolvimentismo, e o nacionalismo. Para enfrentar o império, você tem que ser uma nação, e uma nação tem que ter uma estratégia nacional de desenvolvimento. Tornei-me um nacionalista e um desenvolvimentista de esquerda – de centro-esquerda, pois nunca fui comunista. Naquele dia, em Itanhaém, na colônia de férias da JEC, depois de ler aquela revista que alguém tinha deixado em cima da mesa, tomei uma decisão: não vou ser mais juiz de direito. Vou terminar a faculdade de direito e eu já estava noivo desta senhora que é minha esposa, Vera Cecília –, mas vou ser sociólogo ou economista do desenvolvimento. E a minha vida foi isso.



Valor: Esse foi um caminho seguido sem desvios?



Bresser-Pereira: Nesse projeto, fui fazer meu mestrado nos Estados Unidos, por conta já da Fundação Getúlio Vargas. Então já fui influenciado pelas ideias americanas de modernização etc. Voltei para o Brasil e fui diretor do Pão de Açúcar — isso também faz com que você vá perdendo um pouco das suas garras, seu caráter crítico. Você começa a viver a sociedade e querer consertá-la, mas…



Valor: O senhor tinha militância partidária na época em que decidiu mudar de rumo?



Bresser-Pereira: Naquele momento, eu era do PDC, o Partido Democrata Cristão, e todos os meus amigos também – o Plínio de Arruda Sampaio, o Jorge Cunha Lima, o Chico Whitaker. Éramos do PDC de Franco Montoro e Queiroz Filho. Vieram, então, as eleições presidenciais de 1955, e o PDC aprovou a candidatura Juarez Távora. Daí eu me declarei rompido com o PDC. Resultado: quando, em 1958, o Carvalho Pinto ganhou a eleição em São Paulo, associado ao PDC, todos os meus amigos estavam no governo. Eu não, eu já estava na oposição. Como não sou político — sou capaz de fazer política, mas não é esta minha vocação –, rompi com o PDC, mas isso não significou que eu fosse bater à porta do PTB, não, deixei a coisa ficar.



Valor: Quando o senhor acha que houve uma interseção entre seu pensamento e do grupo de Fernando Henrique?



Bresser-Pereira: Nos anos 70, o marxismo estava em plena moda. Foi quando conheci e fiquei amigo do Fernando Henrique Cardoso, do Arthur Gianotti etc. [então no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap], que eram de centro-esquerda e democráticos, como eu também me considerava. Naquele momento, eu já estava formado e tinha publicado meu primeiro livro, “Desenvolvimento e Crise no Brasil”, em 1968, que é um livro nacionalista, desenvolvimentista e de centro-esquerda. Fez um grande sucesso. E daí cheguei no Cebrap. Eu estava perfeitamente de acordo com eles [os integrantes do Cebrap] na luta pela democracia e igualmente fazia a crítica de um certo autoritarismo desenvolvimentista que tínhamos tido antes, da despreocupação com a democracia a que tendíamos antes; estava de pleno acordo com as posições de esquerda e já estava estudando antes e naquele momento, com Yoshiaki Nakano, a teoria econômica de Marx e Keynes e Kalecky. Só que não percebi que havia um conflito muito grande na parte nacionalista, que a teoria da dependência associada do Fernando Henrique era incompatível com o nacionalismo econômico. Só descobri isso depois que saí do governo de Fernando Henrique, muitos anos depois.



Valor: O senhor acha, então, que Fernando Henrique não contradisse, no governo, sua obra teórica?



Bresser-Pereira: Não contradisse do ponto de vista nacionalista.



Valor: Quando o senhor assumiu, de fato, a social-democracia?



Bresser-Pereira: No governo Montoro, eu completei 20 anos no Pão de Açúcar, já tinha resolvido a minha vida financeira não totalmente, mas razoavelmente bem, e fui para o secretariado. Depois de quatro anos no governo do Estado, fui para o Ministério da Fazenda. Eu tinha criado com Yoshiaki Nakano um departamento de economia na FGV, que era heterodoxo, nacional-desenvolvimentista e keynesiano. Nossas referências eram Marx e Keynes, e Celso Furtado e Inácio Rangel. Era assim que via o mundo e acho que foi isso que fiz no Ministério da Fazenda. No começo dos anos 80, pensei um pouco e decidi que seria um social-democrata. Naquela época, no meu grupo, no grupo do Cebrap etc., ser social-democrata era ser um traidor da revolução socialista. Eu disse: então eu sou um traidor da revolução socialista porque não sou de direita, sou de centro-esquerda, portanto sou social-democrata, a favor da reforma do Estado, do Estado de bem estar social, essas coisas.



Valor: Então, o senhor está onde sempre esteve?



Bresser-Pereira: No governo Fernando Henrique, ou nos anos 90, a hegemonia neoliberal foi muito violenta. Foi tão violenta que também atingiu a mim. Não escapei dela. Logo que saí do governo, publiquei um livro chamado “A crise do Estado”. Aí, resolvi publicá-lo em inglês e revi o livro todo, de forma que, quatro anos depois, ele foi publicado em inglês. Quando isso aconteceu, eu já estava entusiasmado com a vitória do Fernando Henrique e influenciado pelas ideias liberais. Eu não tinha me tornado um neoliberal de forma nenhuma, tenho certeza disso, mas estava mais perto do neoliberalismo do que estou hoje.



Valor: Caiu no conto da globalização?



Bresser-Pereira: Um pouco. Não totalmente, mas ninguém é de ferro. O grande problema da social-democracia é que ela se deixou influenciar, no mundo inteiro. A Terceira Via, por exemplo, hoje tão criticada, tinha um grande intelectual como Anthony Giddens por trás dela, um homem de centro-esquerda. Foi nesse estado de espírito que entrei no governo Fernando Henrique. Mas também foi lá que tomei um susto. Via um governo muito honesto, gente muito séria, via uma preocupação com a área social que era de centro-esquerda – comandada pela Ruth Cardoso e pelo Vilmar Faria, que faziam um belo trabalho, coordenando ministérios; o trabalho feito na educação e na saúde foi realmente bom. Por aí, estávamos em casa. Eu estava fazendo a reforma gerencial, que era uma reforma essencialmente para fortalecer o Estado social, pois era a reforma dos serviços sociais e científicos do Estado. Mas fiquei surpreso com duas coisas dentro do governo: uma, que não havia nenhuma perspectiva nacional, não havia nenhuma distinção entre empresa nacional e estrangeira. Muito pelo contrário: Fernando Henrique dizia forte e firmemente que não havia essa diferença, que era tudo rigorosamente igual – e isso é bobagem, é coisa que os americanos e europeus contam para nós, mas nunca praticaram. Aquilo me deixava muito incomodado. E a outra coisa que me deixou muito incomodado foi a política econômica.



Valor: Mas houve um grande êxito no combate à inflação.



Bresser-Pereira: Desde 1980, e até 1994, não fiz outra coisa na área econômica além de lidar com a alta inflação brasileira. Eu só tinha um objetivo: a alta inflação inercial que começa em 1980 e vai até 1994. O primeiro paper sobre inflação inercial no Brasil fui eu que escrevi. O primeiro paper que foi escrito no Brasil – acho que no mundo – sobre inflação inercial foi publicado por mim e pelo Nakano, em 1983. Em 1984, eu já estava publicando um livro sobre inflação inercial, chamado “Inflação e Recessão”. Nessa época, o pessoal da PUC também trabalhou em suas contribuições. Eu me associei a eles. Eu me associei a três jovens economistas, o Pérsio Arida, o André Lara Rezende e o Chico Lopes. Existiam oito economistas no Brasil que entendiam de inflação inercial: os três que eu citei, o Edmar Bacha, mais o Eduardo Modiano, no Rio, o Nakano, eu e o Mário Henrique Simonsen. Ninguém mais. E precisava que aquilo fosse entendido para neutralizar aquela inflação, que resultou finalmente no Plano Real, na URV. Tentou-se antes com as tablitas, mas não deu certo. O Plano Real foi um sucesso, construído rigorosamente sob uma política heterodoxa — não existiu nada mais heterodoxo do que a URV, nada a ver com as coisas que o FMI e o Banco Mundial nos diziam para fazer. Aí, no dia seguinte que o plano dá certo, o Brasil se entrega novamente de mãos atadas para o Banco Mundial e para o FMI. Ou seja, compõe com o Consenso de Washington, com a ortodoxia internacional. Essa é a política econômica e a política de reformas do Fernando Henrique. As privatizações, algumas que eu apoiei, e outras, como a do setor elétrico, com a qual eu não concordava, porque tem monopólio. Então, comecei a criticar essa política ao Fernando Henrique, mas internamente, nos quatro anos que estive no governo. Todo mês, pelo menos uma vez por mês.



Valor: Todo mês?



Bresser-Pereira: Eu tinha um despacho normal com o presidente uma vez por mês, pelo menos. Fiz uma carta para ele, a carta está no meu site. Naqueles quatro anos e meio em que trabalhei no governo, não escrevi nada sobre economia, a não ser um pequeno paper chamado “As três formas de desvalorizar o câmbio”. Eu sabia que o Brasil precisava dramaticamente valorizar seu câmbio, porque estávamos caminhando para uma crise financeira – e, de fato, em 1999, entramos de cabeça numa crise causada pela nossa incompetência ou pela nossa subordinação ao FMI, ao Banco Mundial, às finanças internacionais, ao neoliberalismo. Fiz o artigo e publiquei na “Revista de Economia Política”. E ninguém percebeu. Mandei para o Fernando Henrique também. Passou-se um mês ou dois e veio o Delfim, no seu artigo na “Folha”: “Olha o Bresser criticando o governo” (risos) É muito inteligente o raio do Delfim, acho que é o melhor economista que o Brasil tem.



Valor: Mas o senhor não assumiu uma posição de confronto com o governo.



Bresser-Pereira: Quando saí do governo, saí incomodado e fui para Oxford, mas eu não ia criticar o Fernando Henrique, uma pessoa de quem gosto, que respeito sob todos os pontos de vista, assim que saísse. E não falei nada, evidentemente. E quando fui fazer o primeiro paper, lá em Oxford mesmo, fiz um paper não sobre o Brasil, mas sobre a América Latina, não sobre os últimos cinco anos, mas sobre os últimos 20 anos.



Valor: Como foi o retorno, de fato, ao desenvolvimentismo?



Bresser-Pereira: Comecei em Oxford uma grande aventura intelectual, que resultou numa proposta de estratégia nacional-desenvolvimentista alternativa ao Consenso de Washington. Quando voltei, comecei a desenvolver um conjunto de ideias novas, em relação à macroeconomia do desenvolvimento, inicialmente com o Nakano, e nós fizemos dois papers, sobre a taxa de juros e a economia brasileira de um modo geral. O último artigo nasceu de um almoço meu com o José Aníbal, então presidente do PSDB. Eu estava indignado com a política econômica do Fernando Henrique e disse isso ele, que me propôs: “Por que você não escreve sobre isso?” Aí eu chamei o Nakano e fiz esse paper, que é a base do que se chama hoje de Hipótese Bresser-Nakano, que causou um grande debate no Brasil. Mas o PSDB não disse uma palavra sobre isso. Nunca me chamou para discutir o paper (risos). O paper chama-se “Uma estratégia de desenvolvimento com estabilidade”. Depois fizemos um segundo paper, este em inglês, chamado “Economics and the assault on the market”. Era o problema da taxa de câmbio.



Valor: Do ponto de vista acadêmico, portanto, o senhor não se considera da mesma escola que Fernando Henrique?



Bresser-Pereira: Fui dar uma aula em Paris, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e aí o Afrânio Garcia, um antropólogo que substituiu Ignacy Sachs na direção de um centro sobre o Brasil, e mais um cientista político do Rio Grande do Sul, o Hélgio Trindade, fizeram comigo uma entrevista para uma pesquisa, em outubro de 2003. Num certo momento, disse a eles: “Não sou da escola de sociologia de São Paulo, sou da escola do Iseb”. O Afrânio disse: “O quê?” Era uma surpresa para ele. Eu me formei a partir do pensamento do Celso Furtado, do Inácio Rangel — o Celso Furtado não foi do Iseb, mas era da Cepal, e a Cepal cepalina era estruturalista, como o Iseb. É claro que fiquei amigo da escola de sociologia de São Paulo, a escola do Florestan Fernandes e do Fernando Henrique, que vai dar na teoria da dependência, mas não tenho nada a ver com isso. Quando eu disse isso, o Afrânio pediu para eu fazer um seminário. Fiz dois papers. Um, que se chama “O conceito de desenvolvimento do Iseb” e outro, mais interessante, que se chama “Do Iseb e da Cepal à teoria da dependência”, em que vou fazer a crítica da dependência.



Valor: Isso foi em que ano?



Bresser-Pereira: Foi em 2004. Para fazer esse paper, fui rever as ideias do Fernando Henrique. Eu sabia que ele tinha deixado de ser esquerda, mas eu também tinha deixado um pouco de ser esquerda. Eu continuava um pouco e ele tinha deixado de ser mais do que eu. Mas o que não era claro para mim era a parte nacionalista, a parte de poupança externa, essas coisas. Aí fui ler outra vez o livro clássico dele e do Enzo Faletto (“Dependência e Desenvolvimento na América Latina). E vi que Fernando Henrique estava perfeitamente coerente. O que é a teoria da dependência? É uma teoria que vai se opor à teoria cepalina, ou isebiana, do imperialismo e do desenvolvimentismo, que defende como saída para o desenvolvimento uma revolução nacional, associando empresários, trabalhadores e governo, para fazer a revolução capitalista. O socialismo ficava para depois. A teoria da dependência foi criada pelo André Gunther Frank, um notável marxista alemão que estudou muitos e muitos anos na Bélgica e que em 1965 publicou um pequeno artigo chamado “O desenvolvimento do subdesenvolvimento”, brilhante e radical. É a crítica à teoria da revolução capitalista, à teoria da aliança da esquerda com a burguesia. É a afirmação categórica de que não existia, nunca existiu e nunca existiria burguesia nacional no Brasil ou na América Latina. No Brasil, os seguidores de Gunther Frank eram o Ruy Mauro Marini e o Teotônio dos Santos, mas no final, e curiosamente, o seguidor deles mais ilustre vai ser o Florestan Fernandes maduro. Eles concordam que não existe burguesia nacional. Quando a burguesia nacional é compradora, entreguista, associada ao imperialismo, a única solução é fazer a revolução socialista. É bem louco, mas é lógico. Aí vieram o Fernando Henrique e o Enzo Faletto e disseram que havia alternativa, a dependência associada. Ou seja, as multinacionais é que seriam a fonte do desenvolvimento brasileiro, cresceríamos com poupança externa. Era a subordinação ao império. Claro que o império ficou maravilhado. A teoria da dependência foi um grande sucesso – e tem um artigo realmente engraçado do Fernando Henrique, em que ele fala com surpresa da grande recepção que teve a teoria da dependência associada nos Estados Unidos. Ele é um homem inteligente e correto, não estava fazendo uma adesão, mas o fato concreto é que os outros liam e faziam suas interpretações. Na prática, era uma maravilha: a esquerda americana, que se reúne nas conferências da Latin America Student Association, nos Estados Unidos, encontrava um homem democrático de esquerda que via nos Estados Unidos um grande amigo na luta pela justiça social. Quando fiz essa revisão, estava começando a romper com o PSDB.



Valor: E quando o senhor chegou ao PSDB?



Bresser-Pereira: Em 1988, fui um dos fundadores do PSDB. Na época da fundação, o Montoro não queria o nome de social-democracia para o partido, porque tinha origem na democracia cristã, que a vida inteira tinha lutado contra os social-democratas na Inglaterra, na Alemanha e na Itália. Nós ganhamos, pelo fato de sermos centro-esquerda. Mas aí ele dizia: “Muito bem, mas e se esse bendito PT, que se diz revolucionário, que tem propostas para a economia brasileira completamente irresponsáveis, chega no poder ou perto do poder e se domestica, e se torna social-democrata, como aconteceu na Europa? Eles têm toda uma integração com os trabalhadores sindicalizados, que nós não temos, então nós vamos ser empurrados para a direita”. E foi isso que aconteceu.



Valor: Quando o senhor considera que o PSDB começa essa trajetória para a direita?



Bresser-Pereira: O Fernando Henrique teve dois azares: o primeiro foi que governou o país no auge absoluto do neoliberalismo, enquanto Lula governou no momento em que o neoliberalismo começa a entrar em crise; e o segundo é que seu governo não gozou do aumento dos preços das commodities de que o Lula desfrutou. Mas o fato concreto é que no governo Fernando Henrique o partido já caminhava para a direita muito claramente. Daí o PT ganhou a eleição e assumiu uma posição de centro-esquerda, tornou-se o partido social-democrata brasileiro — e o PSDB, naturalmente, continuou sua marcha acelerada para a direita. Nas últimas eleições, ele foi o partido dos ricos. Isso, desde 2006. É a primeira vez na história do Brasil que nós temos eleições em que é absolutamente nítida a distinção entre a direita e a esquerda, ou seja, entre os pobres e a classe média e os ricos. E um partido desse não me serve, seja pela minha posição social-democrata, seja pela minha posição nacionalista econômica – tenho horror profundo e absoluto do nacionalismo étnico. Acho que a globalização é uma grande competição a nível mundial, quando todos os mercados se abriram, e passou a haver uma competição global não apenas das empresas, mas dos países. E você precisa, mais do que nunca, uma estratégia nacional de desenvolvimento.



Valor: Retomar a ideia de nação, que ficou meio apagada nos anos 90?



Bresser-Pereira: Isso, retomar a ideia de nação. E a própria ideia de centro-esquerda, que ficou um pouco apagada nesse período. Às vezes me perguntam: “Se você não é mais um membro do PSDB, foram eles que mudaram ou você?” Fomos os dois. Eles mudaram mais para a direita e eu mudei um pouco mais para a esquerda. Recuperei algumas ideias nacionalistas que achava muito importantes. E consegui desenvolver – e isso é rigorosamente novo – uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento. São três livros: o que tem a teoria política (“Construindo o Estado Republicano”), que saiu em 2004 pela Oxford University Press, e no Brasil em 2009; um livro econômico, “Globalização e Competição”; e um de teoria social, que estou terminando e vou enviar para uma editora agora (“Capital, Organização e Crise Global: Teoria Social para o Longo Século XX: 1900-2008″). Uma coisa importante também é que, nesses 11 anos, pela primeira vez na minha vida, desde 1959/61, sou intelectual em tempo integral. Como não faço outra coisa a não ser isso, as ideias se organizaram, se estruturaram. Estou muito ativo.



Valor: Houve uma grande ofensiva contra os gastos sociais no governo Fernando Henrique. O que o senhor acha disso?



Bresser-Pereira: Foi feito um grande contrato no final da ditadura, que se consolidou na Constituinte. A grande coalizão política das diretas-já, da transição democrática, foi dizendo o seguinte: o Brasil é muito desigual, muito injusto, nosso objetivo é diminuir a desigualdade. Como? Através de expropriação? Não, isso nem se discutia. Através de impostos progressivos ou coisa que o valha? Não, nem pensar. Não se discuta isso. Como então? Aumentando o gasto social. E foi o que se fez. A Constituição de 1988 é isso, reflete essa visão.



Valor: A Constituição de 1988 é populista?



Bresser-Pereira: É um pouco populista também. Mas a coisa para mim mais importante é que naquela Constituição se definiram os direitos sociais, entre eles se estabeleceu o direito universal à saúde. Eu me lembro muito bem quando o meu amigo Fernão Bracher falava — e não apenas ele: “Essa Constituição estabelece princípios que não podem jamais ser cumpridos”. Não é verdade. No meio desses direitos que foram estabelecidos tinha o direito universal à saúde. E o que aconteceu? Foi para a Constituição e foi cumprido. Eu duvido que você encontre qualquer outro país com uma renda per capita como a nossa que tenha um sistema universal de saúde. Os Estados Unidos não têm. E mesmo esses países europeus não têm muito isso.



Valor: Nesse período pós-redemocratização, havia populismo ou acirram-se as disputas ideológicas no parlamento?



Bresser-Pereira: Havia populismo, sim. Para se ter uma ideia, quando assumi o Ministério da Fazenda, o Celso Furtado e o Olavo Setúbal chegaram a me dizer, quase com as mesmas palavras: “Bresser, você é um louco, você está assumindo o Ministério da Fazenda na pior crise desde 1930″. Eu estava sabendo. Alguém tinha que assumir. Por que não eu? A primeira coisa que vi foi o país quebrado em nível internacional. Tinha moratória e as reservas estavam zerando, zeravam em três meses. Aliás, quem me informou isso foi o [José] Sarney (presidente da República de 1985 a 1990), porque eu nem sabia quando fui conversar com ele. E depois fui conferir com o Banco Central se era verdade. Era. A parte fiscal também estava um caos total, tudo quebrado, governo federal quebrado, governos estaduais quebrados. Então, eu disse que ia fazer ajuste fiscal. Aí veio a bancada do PMDB, que era o meu partido, me visitar, a chamada “bancada econômica do PMDB”. Eu disse para eles que a situação era muito grave. Não contei que estava fazendo o Plano Bresser, pois não podia contar, mas contei que ia fazer o ajuste. Eles ficaram indignados e montaram uma campanha para me expulsar do partido. A convenção do PMDB estava programada para 30 de junho. Sabendo daquilo, fui falar com o doutor Ulysses e disse: “Estão querendo me expulsar do partido porque defendi o ajuste fiscal”. O doutor Ulysses falou com a Conceição [Maria da Conceição Tavares] e com o Luciano Coutinho, e foram os dois que seguraram um pouco. O populismo era total. Foi aí que resolvi também que ia conversar com o FMI. Mas o FMI estava apavorado, porque era proibido para um ministro conversar com o FMI. Aí eu disse: “Vou conversar, não vou esconder nada”.



Valor: Qual a sua visão da política econômica do início da Nova República?



Bresser-Pereira: A democracia tinha levado a uma visão da economia liderada por João Manuel Cardoso de Mello, que era um desastre absoluto. E o Luiz Gonzaga Belluzzo, que é um excelente economista, estava quieto. João Manuel é que entrava em cena quando se tratava de decisões políticas. O Dilson Funaro (ministro da Fazenda) não entendia nada.



Valor: Mas era a grande estrela do Plano Cruzado, não era?



Bresser-Pereira: De fato. O Dilson era ministro, isso era em agosto de 1986, e nós fomos jantar com ele. Ele chegou um pouco atrasado e as pessoas praticamente levantaram quando ele chegou. Ele tinha virado um deus. Daí, conversando com ele, eu disse: “A situação é muito grave, esse plano vai estourar, é insustentável, é preciso fazer um ajuste fiscal grande”. Ele virou-se para mim e disse: “Pode deixar, eu vou para a televisão, faço um apelo e o povo baixa o consumo”. Ele me disse isso tranquilamente. Aí, em janeiro, a coisa já tinha explodido, eu encontro com o João Manuel no Palácio dos Bandeirantes e disse a ele: “É preciso fazer um ajuste fiscal imediato”. E ele respondeu: “Não, pode deixar, está tudo sob controle”. E aquilo explodindo… E explodiu de vez, foi uma coisa terrível, foi a explosão mais violenta que ocorreu no país. Havia tido uma expansão enorme da renda, dos salários e dos impostos e depois caiu tudo.



Valor: E o senhor assumiu o Ministério da Fazenda.



Bresser-Pereira: Pois é. E daí veio o Walter Barelli, que era presidente do Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], e disse que o Plano Bresser implicou numa redução de 30% dos salários. De fato, estava havendo uma redução de 30% dos salários. Mas eu disse: “Barelli, não é o Plano Bresser, houve um aumento de 30% dos salários no Plano Cruzado e, com a explosão da inflação, houve uma queda dos salários do mesmo valor. E com o meu plano eu estou aumentando em 7% o salário real, estou recuperando o salário real”. Não havia santo que fizesse o Barelli entender. Falei, então: “Espere as estatísticas”. Só que elas demoravam três meses. Três meses depois, deu exatamente o que eu tinha falado.



Valor: O que o senhor acha que está acontecendo com o quadro partidário?



Bresser-Pereira: O PSDB, paradoxalmente, e apesar da história de seus líderes, tornou-se um partido de centro-direita. O PT se tornou um partido de centro-esquerda, o que também era previsível. Falam muito mal do PMDB, e é razoável que se fale, mas é o partido do poder, que está sempre no poder porque está no centro. Isso faz parte. É preciso separar bem: existem os partidos que são meramente de negócios. Não é que todos são. O PSDB não é um partido de negócios, o PT certamente não é, parecia que o PSB não era, mas está virando a curto prazo, o PTB sempre foi um partido de negócios, e vários outros. O que chamo de partido de negócios é o partido em que os deputados estão lá, os políticos estão no partido exclusivamente com o objetivo de defender os seus interesses, e mais nada. Tenho uma briga muito grande com os cientistas políticos neoliberais, da escolha racional, para quem os políticos são homens que meramente se preocupam com seus interesses, ou fazem escolhas exclusivamente entre a vontade de ser reeleitos, que é o seu interesse, e a corrupção. Estou cansado de conhecer políticos que agem de acordo com o interesse público, que fazem trade-offs entre seus interesses e o interesse público. Mas o fato é que, em alguns partidos, os políticos são rigorosamente de acordo com o governo neoliberal — não que eles sejam neoliberais, mas são corruptos mesmo.



Valor: Há políticos para todos os gostos, então.



Bresser-Pereira: Uma coisa que as pessoas têm que entender é que a ética da política é muito diferente da ética de negócios. Na ética dos negócios, é razoável que cada um defenda seus interesses; na ética da política isso não é aceitável. Felizmente, temos muitos políticos que defendem o interesse público, muitos no PMDB também. Existem bons políticos em todos partidos, embora o interesse público seja mais forte em alguns. Acho que uma análise mais interessante que foi feita da política nos últimos anos foi a do lulismo, do André Singer, pois ele separa o lulismo do PT. Entendo que o PT perdeu uma parte de seu apoio ideológico quando fez seus compromissos, mas é muito importante na política aceitar compromissos. O que existe no Brasil é a crítica aos políticos feita por jornalistas e por jornais, partilhada pela opinião pública normal, que não compreendem a lógica do “compromise”. Isto está na minha cabeça desde criança: quando eu tinha uns oito ou nove anos, perguntei para o meu pai o que era política. Ele disse: “Política é a arte do compromisso”. Entendi naquela ocasião, e isso ficou na minha cabeça. Porque a única forma de conseguir maioria e governar é fazendo compromissos, não tem jeito. O eleitor não tem compromisso nenhum: ele vota naquele que ele acha melhor e acabou-se. Agora, quando você se vê governador, presidente, tem que fazer compromisso, não tem jeito. Compromissos são concessões políticas, acordos, o que é absolutamente legítimo. É o que Max Weber chama de ética da responsabilidade. Nossos políticos não são tão ruins quanto dizem.



Valor: O senhor acha que tem uma demonização aí.



Bresser-Pereira: Ah, tem uma demonização.



Valor: A quem isso serve?



Bresser-Pereira: Isso é muito claro. Eu uso uma frase do Jacques Rancière, sociólogo político francês, de esquerda, sobre o ódio à democracia. A democracia sempre foi uma demanda dos pobres, dos trabalhadores, de classes médias republicanas, nunca foi dos ricos. Os ricos odeiam a democracia, embora digam que defendem. Eles sabem que a democracia não vai expropriá-los, que a ditadura da maioria não vai expropriá-los, mas eles continuam liberais e, se não têm ódio, pelo menos têm medo da democracia. E qual a melhor forma de neutralizar a democracia? São duas. Uma é fazer campanhas eleitorais muito caras. Então, financiamento público de campanha, jamais. Rico não aceita isso em hipótese alguma. A outra estratégia é desmoralizar os políticos.



Valor: A crítica também não é democrática?



Bresser-Pereira: Sim, é claro que pode criticar. A imprensa faz um grande serviço à nação criticando os políticos, e criticando os capitalistas, e criticando tudo em volta, essa é sua função. O ponto é até onde chega a crítica razoável e até onde vira uma crítica violenta, que é um desrespeito às pessoas e é uma forma de limitar o poder dos políticos, e, portanto, o poder do povo — isso é uma dialética também. Uma coisa clara é que a corrupção existe porque o capitalismo é essencialmente um sistema corrupto e os capitalistas estão permanentemente corrompendo o setor público. É fácil verificar quem são os servidores públicos mais corruptos. Quem corrompe professor universitário? Ninguém. E quem corrompe delegado de polícia? É claro que tem um monte de gente interessada em corromper delegado de polícia, fiscal da Receita.Os fiscais da Receita não são intrinsecamente mais desonestos que os professores. Fizeram concursos mais ou menos igualmente, são pessoas igualmente respeitáveis, só que uns são submetidos a processos de corrupção por parte das empresas; outros, não.



Valor: O capitalismo é ruim?



Bresser-Pereira: Acho o capitalismo o melhor sistema que existe, porque não tem outro. Acho que a democracia é, de longe, o melhor sistema, apesar de tudo. Outra coisa é o problema do progresso. Acredito piamente no progresso, mas porque acredito na revolução capitalista eu acabei de entender o Hegel. E o que entendi essencialmente do Hegel? Para Hegel, o Estado é a realização suprema da razão humana. É isso que ele diz, de várias maneiras. O Estado é, em primeiro lugar, a lei, depois a organização em torno dessa lei. Onde a razão humana está melhor expressa, no Haiti ou na Dinamarca? É evidente que na Dinamarca. O Estado dinamarquês é muito superior ao Estado haitiano, que nem existe, ou mesmo ao Estado boliviano ou paraguaio, ou mesmo ao Estado brasileiro, ou ao Estado francês, que é bem melhor ainda que o nosso. O americano não é grande coisa, e não é melhor que o nosso. A razão humana que os dinamarqueses colocaram na construção do seu Estado e da sua sociedade foi superior à nossa. Espero que cheguemos lá. E essa construção se faz com a política, essa é uma construção e é política. É uma construção que você está fazendo todo dia. Ernest Renan diz que a nação é uma construção de todos os dias – a sociedade civil é uma construção de todos os dias, o Estado é uma construção de todos os dias. Isso te dá uma visão do mundo que é otimista. Afinal, você acredita que vai dar certo. Essa construção é sempre feita de baixo, é resultado de uma luta social dos mais pobres, que defendem seus interesses, e de uma parte da classe média que eu chamo de republicana. E o que é uma classe republicana? Um indivíduo republicano é aquele que é capaz de agir não apenas de acordo com os seus próprios interesses, mas tem que definir o que é interesse geral. A tendência nossa, de todas as classes, é mostrar o seu interesse como interesse público e acabou-se. É muito fácil desse jeito. Mas há pessoas que são capazes – e eu estou convencido que é um número razoavelmente grande de pessoas – de fazer os trade-offs entre os interesses próprios e o interesse público.



Valor: O que o senhor acha do Bolsa Família?



Bresser-Pereira: Acho uma maravilha. Sempre acreditei piamente na competição. Quando pensava naquela emenda da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade –, eu entendia perfeitamente as ideias de liberdade e igualdade, mas a fraternidade eu achava simplesmente simpática. Nesses últimos anos, todavia, descobri que é absolutamente fundamental. E por quê? Porque na sociedade em que vivemos existe uma quantidade muito grande de pessoas cuja capacidade de competir é muito limitada. Mesmo que tenha educação, por características pessoais, geralmente de equilíbrio emocional, às vezes de inteligência, essas pessoas não são capazes de se defender da competição como devem. E aí que entra a fraternidade. O Bolsa Família é um mecanismo altamente fraterno. O Lula sabe da necessidade da fraternidade, da solidariedade, a vida dele deve ter lhe ensinado. Ele é perfeitamente capaz de competir por conta dele, isso é evidente. Mas sabe a importância da solidariedade.



Valor: O Estado social é o caminho natural para o país?



Bresser-Pereira: No Brasil, o Estado social é uma coisa séria. Uma carga tributária de 35% é muito alta, de fato, mas isso é o resultado de um acordo social e é uma compensação. Na Ásia, a carga tributária é muito menor, e lá não existe Estado social, mas as medidas de distribuição de renda são muito melhores. Os países asiáticos que não passaram pelo comunismo já tinham um esquema de solidariedade familiar e um esquema de mercado amarrado no campo de convenções, que permite uma distribuição de renda muito melhor. Então, o Estado é muito menor. No Brasil aconteceu o contrário, inclusive por causa de nossa origem escravista muito forte e relativamente recente. O Estado social veio aqui como uma solução muito forte, muito boa, e é um elemento absolutamente fundamental. Do ponto de vista ético, é um elemento de fraternidade e de solidariedade, mas do ponto de vista social e político é um fenômeno de coesão. A estabilidade desse sistema é dada pela coesão social. Isso não foi o Lula quem fez, foi a democracia, o próprio Sarney já começou, depois Itamar, Fernando Henrique e Lula continuaram. Só no governo Collor isso parou um pouquinho. É um projeto, um compromisso, mas agora no outro sentido: a palavra “compromisso” em português é uma desgraça; em inglês são duas palavras, “commitment” e “compromise”. Aqui no Brasil é uma só, tem que explicar. Naquela época, o compromisso foi o “commitment” de fazer a distribuição via gasto social. Dizem que o Bolsa Família desestimula o trabalho. Isso é bobagem, é absolutamente secundário.

Chega de sexo!

Barbara Gancia


Não é preciso ser nenhum Contardo Calligaris, nenhuma Rosely Sayão, diria que não é preciso nem mesmo saber se Sigmund Freud vivia entre os aborígenes australianos ou em Viena e Londres do século 19 para ter certeza de que o atirador que encerrou prematuramente a vida de 12 brasileirinhos tinha um problema de ordem sexual.

Fico pensando no quanto alguém tem de estar perturbado para se imaginar nu e sem sopro, jogado sobre a pedra fria do IML depois de cometer um crime bárbaro seguido de suicídio, cuja única preocupação ao se ver nessa posição seja a de que irá ter o corpo manipulado por mãos ímpias, ou melhor dizendo, por quem já perdeu a virgindade.

Tudo bem, os especialistas falam em esquizofrenia, em surto e coisa e tal. Mas eu fico pensando. O pedido que ele deixou na carta-testamento encontrada pela polícia foi esse, não? Que quando seu corpo estivesse sendo preparado para ser sepultado, não deveria ser tocado por nenhum "impuro", "fornicador" ou "adúltero". Será que ele imaginava estar livrando as crianças que matou do pecado?

Foi sugerido que o atirador pudesse ser portador do vírus da AIDS. Ué? Ele tinha histórico de compartilhamento de seringas por uso de drogas? Ou se imaginava como tal em mais uma de tantas facetas de uma identidade fragmentada? Agora é fácil perguntar, mas como é que ninguém ao seu redor percebeu tamanho sofrimento?

E faz sentido que, quando parece estar manifestando sua espiritualidade, ele só consiga papagaiar uma caricatura de talibã que nada tem a ver com o islâmismo. O sujeito definitivamente tentava de tudo para dominar seus instintos mais rudimentares.

Em uma sociedade evoluída, a questão da preferência sexual -são quantas, 15 ou, sei lá, 56 opções no cardápio? Sendo que ao menos 55 parecem mais ou menos iguais- não deveria ser valorizada, discutida ou sequer admitida a sua existência. Sexualidade é uma só, posto que todos temos um cérebro, um coração, uma libido e uma língua. Por isso chamamos de "sexo" e não de "atletismo" ou quiçá de "boliche", justamente porque versa sobre o íntimo e metade ou mais da graça reside em seu mistério.

Alô, seu Bolsonarossauro! Até quando o Vaticano vai usar a sexualidade da gente como instrumento político é o que a gente deveria estar se perguntando, não se a Preta Gil faz suruba.

Nesta semana, a polícia encontrou o corpo de uma garota de 16 anos, em Itarumã, Goiás. Suspeita-se que tenha sido morta a facadas, depois de ter sido emboscada por parentes de sua namorada que não aceitavam o relacionamento.

Em outro caso, no sábado passado, Michael, jogador do Vôlei Futuro, se viu forçado a assumir sua homossexualidade publicamente ao ser humilhado em estádio de Contagem, MG. "Foi a primeira vez que vi um estádio inteiro gritando "bicha" em alto e bom som", diz. "Tinha até criança, senhora, muita gente gritando". Pois eu digo que ninguém mais merece sofrer por causa da sexualidade. Ninguém.

Para combater a boçalidade, Marcelo Tas nos apresentou sua filha Luísa no "CQC" desta semana, uma luminosa estudante de direito, bolsista da American University em Washington e estagiária da OEA:  youtube.com/watch?v=WLhxyOMriXU.

Fui às lágrimas quando vi e agradeço profundamente pelo gesto.


@barbaragancia
Publicado na Folha de S.Paulo, em 08/04/2011.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Levantes em nome de um mesmo Deus

Gilles Lapouge


O escritor francês André Malraux profetizou, há 30 anos, que o século 20 seria um "século religioso". Ele estava certo. A cada dia que passa, as matanças enlutam o mundo e, muitas vezes, nos damos conta de que, por trás das bandeiras políticas ou dos pretextos econômicos, encontramos o mesmo ator, Deus, ou antes, as efígies deletérias que vergonhosamente nos são apresentadas como representações de Deus.

O último episódio dessa triste época ocorreu no Paquistão, país muçulmano, onde recentemente tumultos ensanguentaram algumas cidades, como Mazar-i-Sharif e Kandahar, com um saldo de 20 mortos e centenas de feridos. Qual é o motivo?

Teremos de procurá-lo do outro lado do mundo, nos Estados Unidos, na Flórida, onde o pastor Terry Jones, que dirige a igreja Dove World, com apenas 30 seguidores, teve a ideia, cultivada há anos, de queimar em público o Alcorão, livro sagrado da religião islâmica.

Ele mostrou sua perseverança. Há alguns meses, preparou o que podemos chamar, em memória das piores páginas da Idade Média e do tempo das bruxarias, de seu "auto de fé". A prefeitura de Gainesville, da qual depende o pastor Jones, na realidade proibiu fogueiras na frente da igreja.

Jones refletiu e, finalmente, encontrou a solução: "o auto de fé" seria cometido no interior da igreja. O Alcorão resiste às chamas, mas precisou de dez minutos para se reduzir a cinzas.

Como resposta imediata, outros "autos de fé" acenderam-se do outro lado do mundo, no Paquistão muçulmano. Só que lá não foi papel que queimou, e sim corpos humanos. Em Mazar-i-Sharif, foi atacada a missão local da ONU: 20 mortos. No dia seguinte, em Kandahar, novamente foram atacados locais da ONU: três mortos, além de outros assassinatos, aqui e ali.

O pastor Terry Jones deve estar satisfeito: pôde constatar que suas ideias já não passam despercebidas. Ele se acalmará agora? De jeito nenhum. Começou a angariar dinheiro para ir mais longe em seu apostolado e organizar o julgamento público do Profeta Maomé.

No Paquistão, a cruzada antimuçulmana do pastor Terry Jones teve efeitos terríveis. Não apenas a morte de dezenas de inocentes, mas também a irritação dos sentimentos antiocidentais, que já são intensos no Paquistão, país tão próximo do Afeganistão e que sustenta sem admiti-lo o combate dos taleban contra as forças do Ocidente (americanos, franceses, britânicos...).

Manifestações relâmpago percorreram as grandes cidades paquistanesas, exigindo o fechamento das bases americanas na Ásia. O general americano David Petraeus, que comanda as forças aliadas no Afeganistão, definiu o gesto do pastor Jones como "detestável".

A guerra imunda travada durante um século na Irlanda entre protestantes e católicos, terminou, enfim, há alguns anos.

Imediatamente, as religiões reacenderam suas fogueiras em toda parte.

Nas torres de Nova York e em outros lugares, os islâmicos de Osama Bin Laden massacraram milhares de inocentes. Na Costa do Marfim, há um mês, os cristãos do sul (ligados a Laurent Gbagbo) matam os muçulmanos do norte (ligados a Alassane Ouattara), e os muçulmanos do norte degolam os cristãos do sul.

Se eu fosse Deus, o do Cristo, dos judeus ou dos muçulmanos, estaria realmente farto de todos esses fanáticos, de todos esses cretinos, do tipo Bin Laden ou Terry Jones, que me invocam e matam, enquanto eu peço que se amem.
Tradução de Anna Capovilla
* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 05/04/2011.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

É preciso aproveitar o “momento Bolsonaro”

Para muitos, Jair Bolsonaro é polêmico. Para outros, como o petista Cândido Vacarezza, Bolsonaro é estúpido. Para alguns, o parlamentar carioca é preconceituoso, mas há também – e são muitos – os que o consideram “apenas” sincero em suas convicções.

Seja lá o perfil que se atribua a Bolsonaro, há uma série de temas relevantes que vieram à tona com sua nova “performance”, na famosa entrevista ao CQC. Assim como uma série de medidas que podem ser tomadas, incentivadas por este “momento Bolsonaro”. São elas:


Um “preconceito aceitável”?

Admitamos como verdadeira que a resposta dada a Preta Gil, como alega o deputado, não se referia aos negros, mas aos gays. Logo, concluiremos: o deputado pensa que preconceito contra negros não é aceitável, mas contra gays, sim.

Talvez esteja, de fato, arraigada na sociedade brasileira atual essa impressão: a homofobia é um “preconceito aceitável”. Ou, quem sabe, sequer seja admitida como um preconceito. Mas, sim, proteção da família, da moral e dos bons costumes. Podem, inclusive, argumentar que homossexualismo é doença ou coisa do demo.

Historicamente, às mulheres não cabiam os mesmos direitos atribuídos aos homens. O direito ao voto, por exemplo, ou o termo “mulher honesta”, constante do Código Penal até há pouco tempo, evidenciam que o machismo, além de culturalmente sedimentado, estava institucionalizado no próprio ordenamento legal. Após brava luta feminista, hoje, pelo menos à vista de todos, não é admissível determinadas atitudes contra as mulheres, muito embora, claro, elas tenham muito ainda por conquistar. Bem, o próprio fato de termos hoje uma presidenta, democraticamente eleita, é sinal de que algo mudou.

Com os negros ocorre algo parecido. Em uma sociedade historicamente marcada pela escravidão, apesar de não termos tido algo como o apartheid sul-africano ou as leis discriminatórias norte-americanas – nos tempos em que não se imaginaria Mandela ou Obama eleitos presidentes –, tivemos (e ainda temos, em boa medida) formas de perpetuação dos negros em posições subalternas, alijados de conquistas e direitos. De qualquer forma, para usar um exemplo relativamente recente, se um jogador de futebol xingar outro de macaco, é bem possível que saia do estádio direto para uma delegacia, além de responder a processo judicial.

Em suma, mulheres e negros avançaram na conquista efetiva de direitos. Avançaram na luta contra a discriminação. Além disso, destaco: institucionalizaram algumas de suas conquistas. A Constituição de 1988 afirma que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5º, I), assim como o racismo é crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII). Em âmbito infraconstitucional, mulheres e negros também encontram guarida legal, como, por exemplo, na Lei 7716/89 (crimes de preconceito de raça ou de cor) ou na Lei 11340/06 (Maria da Penha).

No entanto, em que pese o art. 3º, IV, da Constituição, que determina como objetivo do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação, desconheço proteção legal específica aos homossexuais.

Eis a primeira medida que pode ser feita a partir do “momento Bolsonaro”: a promulgação de lei que criminalize a homofobia.

Há, sim, projetos tramitando no Congresso. O que talvez não há – pelo menos até agora – é a oportunidade para fazer com que tal projeto seja transformado em lei. Vale dizer, o que não ocorre, em medida considerável, por força de bancadas e parlamentares religiosos. Porém, da mesma forma, a submissão da mulher ao homem e a escravidão já foram tolerados e respaldados em discursos com citações bíblicas, em sermões de quem, em tese, fala em nome de Deus. É possível que se questione vigorosamente a naturalidade, ainda muito presente, com que os homossexuais são atacados sob o pretexto abjeto de se tratar de um preconceito em nome do Todo-Poderoso. Como se sua existência, e não a violência discriminatória ou mesmo física que sofrem, fosse um acinte às pessoas de bem e às famílias. Pelo menos, é o que pregam os que se acham donos da família e de Deus.

Questão de opinião?

Para surpresa de muitos, pululam aos milhares na internet manifestações favoráveis a Jair Bolsonaro. Afora quem comungue do pensamento retrógrado do deputado, há um argumento que chama a atenção: a democracia requer que se respeite todas as opiniões. Assim, o comentário racista ou homofóbico de Bolsonaro é interpretado como “mera” opinião, tão garantida pela Constituição como os direitos dos negros e dos gays. Simples assim. Será?

Os defensores de Bolsonaro apontam sua fidelidade às convicções. Cumulado a isso, o fato de a democracia exigir que se respeite a opinião alheia, por mais avessa que seja às nossas próprias opiniões ou valores. No entanto, também em nome da democracia, há limites à manifestação das opiniões. Por exemplo: em nome desse regime político, posso exaltar o nazismo ou o holocausto? Posso externar minha simpatia a crimes como a tortura? Posso fazer apologia da discriminação racial ou sexual? Não. Há, inclusive, limites impostos pela própria Constituição e por leis infraconstitucionais, como já dito.

Além disso, o parlamentar é enaltecido pela “coragem de falar o que pensa” e – o elogia da moda – por ser ficha limpa. O ficha limpa virou um bordão do senso comum, uma panaceia para todos os males da política e do Brasil. Como se todos os prós e contras nacionais fossem separáveis – qual o joio do trigo – entre fichas sujas e fichas limpas. Pior: como se apologia à tortura, assassinatos, racismo ou homofobia não fossem tão ou mais repugnantes que a clássica corrupção. Do “rouba, mas faz”, Bolsonaro inaugura o slogan “tortura e discrimina, mas é ficha limpa”.

Essa defesa do deputado reside em indisfarçável incapacidade em lidar com a democracia. Como também se trata de déficit democrático, em sentido contrário, sua condenação sumária. No caso dos defensores, prospera a falácia de que “no tempo dos militares” não havia corrupção. Mentira que deve ser contraditada, tanto pelo fato de na ditadura a imprensa ser tenazmente censurada – o que impedia a produção livre e a credibilidade das notícias ou denúncias de quaisquer espécie –, como pelo fato de os militares terem encontrado sustentação política em figuras para lá de suspeitas – para dizer o mínimo do mínimo –, como Paulo Maluf (eleito prefeito e governador e candidato à Presidência sob as bênçãos dos quartéis) ou José Sarney (presidente do PDS, partido da ditadura).

Segunda conclusão: É preciso aproveitar este momento para, sem qualquer sentimento de injustiça, levar adiante o processo de cassação do deputado Jair Bolsonaro. É preciso que se respeite a democracia e o Estado de direito que o Brasil, a duríssimas penas, e contra pessoas como o deputado Bolsonaro, conseguiu construir e, apesar dos pesares, manter e desenvolver.

Reforma política e o voto em lista

Chama a atenção o silêncio do Partido Progressista, o PP, do qual faz parte o deputado Bolsonaro. Afinal, o partido não tem qualquer responsabilidade sobre o que fazem seus parlamentares. Ou, quem sabe, não deve tomar partido (com o perdão do trocadilho) por atitudes “individuais” de seus filiados. Ou, ainda, como quem cala consente, não vê nada de mais nas “polêmicas” opiniões do nobre deputado.

Sim, claro que o partido deve ser chamado a se explicar e a assumir responsabilidades que também são suas. É legítimo que se lhe cobre a punição, até mesmo a desfiliação compulsória do mandatário de cargo político eleito sob sua legenda. Mas, diante da inércia, o que fazer?

Tramita atualmente no Congresso o projeto de reforma política. O principal tópico da reforma é a mudança do sistema eleitoral. Voto em lista, voto distrital, voto distrital misto são sistemas existentes nas democracias consolidadas e que servem como referência para as discussões da reforma brasileira. Eu, particularmente, tenho simpatia pelo voto em lista, muito embora considere pertinentes as críticas que tal sistema sofre, sobretudo, pelo possível fortalecimento excessivo do poder dos caciques de cada partido. Estes podem determinar unilateralmente os nomes da lista, tirando do eleitor a possibilidade de escolher os parlamentares que serão eleitos. Dessa forma, sou favorável ao voto em lista, mas com ressalvas. Por exemplo: a democracia interna dos partidos deve ser um pressuposto, não uma prerrogativa de cada agremiação. A escolha dos nomes da lista deve vir, obrigatoriamente, em prévias partidárias. Ou ainda – proposta minha – o voto pode ser dado em dois turnos: no primeiro, escolhe-se os partidos, determinando-se o percentual de cadeiras que cada qual terá; no segundo, em voto facultativo, também os eleitores escolhem os nomes que preencherão as cadeiras.

Votando a Bolsonaro, o voto em lista traz a vantagem de o próprio partido ser impelido a defender todos os seus candidatos. Ou melhor, todos os companheiros de lista teriam a missão de defender todos os nomes da lista, numa estratégia “um por todos e todos por um”. Por extensão, veriam-se obrigados a extirpar da lista aqueles candidatos que prejudicariam sua própria eleição. Em síntese, a presença de Bolsonaro – considerando suposta rejeição causada por seu nome – dificultaria a eleição de todos os seus colegas de PP. Diferentemente de hoje, quando todos se beneficiam dos votos trazidos por quem quer que seja, aumentando a soma do coeficiente eleitoral.

Terceira conclusão: É preciso aproveitar o “momento Bolsonaro” para levar adiante a reforma política e discutir a proposta do voto em lista, com salvaguardas para que os núcleos duros dos partidos não se tornem castas intocáveis e poderosíssimas no sistema político.

A Comissão da Verdade

Por fim, diante de mais uma manifestação de desapreço pela vida e pela dignidade humana sob a forma de apologia da tortura, é preciso que a Comissão da Verdade seja, finalmente, constituída. Assim como ocorreu na África do Sul, por determinação de Mandela e sob a coordenação de Desmond Tutu – dois prêmios Nobel da paz –, na Espanha, Portugal e em outros países.

Não se trata de revanchismo ou coisa do tipo, mas de resgate da história e devida responsabilização do Estado e seus agentes para com famílias de pessoas cujas vidas foram covardemente ceifadas. Há um abismo entre o Brasil e outros países que passaram pela vergonha da ditadura. Na Argentina, por exemplo, até mesmo ex-presidentes foram punidos. Lá, a punição dos agentes da ditadura não é vista sob a ótica do revanchismo, mas da justiça – a propósito, recomendo o ótimo filme “O Segredo dos Seus Olhos”, ganhador do Oscar (recomendo também o documentário brasileiro “Cidadão Boilesen”). Seria difícil imaginar os argentinos impassíveis com o desdém de um deputado pela busca angustiante dos restos mortais de familiares, como verificado no desenho do cachorrinho, colado na porta do gabinete de Bolsonaro.

Falando nisso, aproveito para aplaudir ação do promotor Otávio Bravo, do Ministério Público Militar do Rio, que abriu investigação sobre desaparecimentos de pessoas durante a ditadura com a participação de agentes das Forças Armadas ou que tenha ocorrido dentro de suas unidades. Aplaudo, especialmente, a inteligência da tese defendida pelo promotor, que postula que os casos de desaparecidos devem ser considerados sequestro em andamento até a localização de eventual resto mortal ou de “evidências verossímeis” de que as vítimas foram soltas ou mortas. Em suma, trata os casos sob o fundamento das leis penais vigentes, driblando o eterno pretexto de que a Lei de Anistia protege “os dois lados”.

Concluindo: é preciso aproveitar o “momento Bolsonaro” para efetivar a Comissão da Verdade.

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Conclusão geral: à parte a repugnância gerada por seu protagonista, o “momento Bolsonaro” pode ser bastante útil para se concretizar algumas medidas politicamente difíceis. No caso, a promulgação de lei que criminalize a homofobia, a abertura do processo da cassação do próprio deputado, a reforma política e a constituição da Comissão da Verdade.