segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Steve Jobs e o declínio americano

Rubens Ricupero


Pode impressionar como sinal de mau agouro o desaparecimento de Steve Jobs justamente no momento em que mais se discute o suposto ou real declínio dos EUA. Se examinarmos, um por um, os fatores responsáveis pelo longo predomínio dos americanos, a capacidade de invenção e inovação -da qual Jobs foi a encarnação viva- aparece não só como o mais indiscutível, mas também o mais difícil de emular e superar.
Li uma vez o artigo de um economista chinês que relativizava o êxito da China como "fábrica do mundo" e imbatível exportadora de manufaturas. O artigo lembrava que nenhum dos três produtos que haviam revolucionado o mercado nos anos recentes -o iPhone, o iPod e o iPad- tinha sido inventado pelos chineses, embora a fabricação se fizesse na China devido ao custo.
Essas três novidades se devem à inventividade de Jobs, mas é óbvio que sua morte não esgota a capacidade de inventar e renovar que os EUA não cansam de demonstrar há mais de século e meio. O que me chama a atenção nos americanos não é tanto o talento para as invenções mecânicas, a aplicação de avanços da ciência a máquinas e aparelhos que simplificam a vida cotidiana. Desse tipo de inventor, o símbolo maior foi, sem dúvida, Edison.
Há, porém, outro tipo de invenções, as intangíveis, como foram, no passado medieval ou no começo da modernidade, a criação pelos italianos da letra de câmbio, do contrato de seguro marítimo, da contabilidade de partida dupla, dos bancos e mais tarde, pelos holandeses, da sociedade por ações.
Nessa área, os americanos inovaram em quase tudo, a começar pelo comércio, que quase não havia mudado desde os tempos de fenícios e gregos. Começaram com as vendas por catálogo e reembolso postal, passaram para o supermercado, em seguida para o shopping center, o drive-in, as franquias, o fast food, só para ficar nesses exemplos.
Muito mais transformadoras e imateriais foram as invenções do cartão de crédito e do comércio e do caixa eletrônicos. O que essas invenções trouxeram foi não só a modificação por meios mecânicos de atividades tradicionais como lavar e cozinhar. Aliadas às inovações no domínio da recreação e do relacionamento -a TV, as redes sociais na internet-, elas na verdade recriaram a própria vida, a maneira como as pessoas empregam a maior parte do tempo e se relacionam.
Inovadores não convencionais, sem diploma, de gostos alternativos como Jobs são o produto de uma sociedade inquieta que continuamente se questiona e reinventa a si mesma. Sociedades hierarquizadas e autoritárias como a chinesa não possuem esse dom para inovar.
Enquanto predominava a destruição criadora ("creative destruction"), isto é, a inovação que destruía coisas antigas para dar lugar a novas e melhores, a superioridade americana não corria perigo. Se ela agora está em jogo, é por causa da criação destruidora ("destructive creation"), a financeira, aniquiladora de riqueza e geradora de injustiça.
A ameaça à superioridade americana não vem dos chineses, mas de dentro, de um modelo que dá mais poder e influência a lobistas corruptos e banqueiros destrutivos que a criadores como Jobs.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 31/10/2011.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Execução de emendas parlamentares está sujeita a fatores que alimentam corrupção

Paulo Ziulkoski
O escândalo de corrupção envolvendo as emendas parlamentares da Assembleia Legislativa de São Paulo e outros casos semelhantes no Congresso revelam que o modo como os políticos brasileiros se relacionam com o Orçamento pouco mudou desde os anos 90, época da CPI dos Anões do Orçamento.
Ainda hoje, deputados e senadores priorizam o instrumento individual a outras formas mais coletivas e republicanas de influenciar a alocação de recursos. O resultado são leis orçamentárias de ficção, como mostram os números levantados junto ao sistema de monitoramento dos gastos federais, o Siafi.
De 2003 a 2009, o Congresso aprovou R$ 89,2 bilhões em emendas parlamentares, mas apenas 30,9% foram efetivamente executadas.
Entre as emendas exclusivas (para projetos sem ligação com as prioridades do Executivo federal), que totalizaram R$ 67 bilhões, a taxa de sucesso foi de 18,3%.
Se só uma pequena parte das emendas é executada, por que parlamentares insistem em manter esse mecanismo em vez de discutir os grandes números do Orçamento?
A resposta parece ser que a incerteza sobre a execução é justamente o que valoriza a influência que um determinado parlamentar pode ter junto ao órgão executor.
Se não bastasse o caráter pessoal da emenda, sua liberação está sujeita a condicionantes de natureza política que alimentam a corrupção.
Basta verificar que a taxa de sucesso das emendas de parlamentares de aliados do governo é superior a dos demais partidos.
A probabilidade de um parlamentar do PT ter sua emenda individual executada é de 32%, contra 20% no PSDB e 18% no DEM.
Isso ajuda a entender porque o ex-presidente Lula não tentou modernizar o processo orçamentário brasileiro nos moldes do que seu partido tentou fazer nas prefeituras e Estados, com o Orçamento Participativo.

PAULO ZIULKOSKI é presidente da Confederação Nacional de Municípios e ex-prefeito de Mariana Pimental (RS)
*Publicado na Folha de S.Paulo, em 28/10/2011.

Falta aos governos impor critério a indicações

Aldo Fornazieri

A crise desencadeada a partir das suspeitas que recaem sobre o Ministério do Esporte está levando o governo a uma situação perigosa.
A pergunta central que muitas pessoas se fazem e que o governo precisa responder é a seguinte: como é possível que existam tantos supostos bolsões de corrupção sem que o governo saiba?
Afinal de contas, o governo tem órgãos de controle e de investigação como a Controladoria-Geral da União, a Abin e a Polícia Federal.
Até o próprio Congresso e a oposição mostram-se omissos na fiscalização do Executivo. Então, o que parece acontecer aos olhos da opinião pública é o seguinte jogo: as autoridades aceitam a corrupção como um dado de realidade e só reagem quando a corrupção se transforma em escândalo. Por que agem desta forma? De duas uma: ou por conveniência política ou por conivência.
No Brasil, a estabilidade política do governo e em boa medida a própria governabilidade dependem da existência de uma coalizão majoritária. Muitos culpam a coalizão como a causa da corrupção.
Trata-se de um equívoco, pois a coalizão é necessária e a corrupção não deriva da sua natureza. A corrupção está associada ao fato de ser estrutural, às acomodações políticas sem critérios na formação das coalizões governamentais e à falta de punição.
Para mudar este quadro, a atitude do governante, de quem nomeia, é fundamental. Ou ele compõe um quadro de auxiliares a partir de critérios de liderança, competência e moralidade ou ele continua sendo refém de interesses partidários e de grupos, nem sempre legítimos.
O presidente da República, o governador, o prefeito não podem simplesmente aceitar indicações dos partidos. Devem estabelecer critérios para indicação de nomes e submete-los ao seu próprio crivo.
No caso atual, seria aconselhável ao governo reiterar a combinação de dois princípios: ter uma base política estável e um ministério composto por critérios de competência e moralidade.
Reduzir bolsões de corrupção no poder público é uma urgência demandada pela necessidade de manter a legitimidade das instituições.

ALDO FORNAZIERI é diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
*Publicado na Folha de S.Paulo, em 27/10/2011.

Obama prepara guerra com Irã

Mark Weisbrot


A Administração Obama anunciou duas semanas atrás que um desastrado vendedor de carros usados iraniano-americano conspirou com um agente do governo americano que se fazia passar por representante de cartéis de drogas mexicanos para assassinar o embaixador saudita em Washington.
O anúncio suscitou reações altamente céticas de especialistas de todo o espectro político aqui.
Mas, mesmo que parte dessa história se revele verdadeira, o tratamento dado a acusações desse tipo é inerentemente político. Por exemplo, a comissão sobre o 11 de Setembro do governo investigou as ligações entre os atacantes e a família reinante saudita, mas se negou a trazer a público os resultados.
A razão disso é óbvia: existe sujeira ali, e Washington não quer criar atritos com um aliado-chave. E não esqueça que se trata de cumplicidade com um ataque em solo americano que matou 3.000 pessoas.
Contrastando com isso, a administração Obama deu grande destaque à especulação um tanto quanto dúbia de que "os mais altos escalões do governo iraniano" teriam tido envolvimento com a alegada conspiração. O presidente Obama então anunciou que "todas as opções estão sobre a mesa", o que é um conhecido código indicativo de possível ação militar. Trata-se de um discurso extremista e perigoso.
O professor da Universidade de Michigan Juan Cole, respeitado estudioso do Oriente Médio, aventou a hipótese de Obama estar procurando um confronto militar para ajudá-lo a se reeleger, diante de uma economia estagnada e do alto índice de desemprego. É possível, com certeza. Lembre que George W. Bush usou o período que antecedeu e preparou a Guerra do Iraque para conquistar as duas Casas do Congresso na eleição de 2002.
Ele nem precisou partir para a guerra. O período de preparação dos espíritos para a guerra funcionou perfeitamente para ele alcançar sua meta principal: todos os problemas mais importantes para os eleitores -a recuperação sem empregos, a seguridade social, os escândalos corporativos - sumiram do noticiário durante a temporada eleitoral. Os assessores do presidente Obama com certeza entendem essas coisas.
É claro que essa especulação mais recente, dando a entender que pode levar a uma ação militar, pode ser apenas parte da preparação de longo prazo para a guerra contra o Irã. Uma vez que isso é feito, é difícil impedir a guerra de acontecer; e, uma vez lançadas essas guerras, elas são ainda mais difíceis de concluir, como demonstram dez anos de guerra inútil no Afeganistão.
É por isso que iniciativas internacionais para fazer recuar a marcha em direção à guerra, como a proposta de troca de combustível nuclear feita por Brasil e Turquia em 2010, são tão importantes.
Recentemente o governo iraniano se propôs a parar de enriquecer urânio se os EUA fornecerem urânio para seu reator de pesquisas médicas, de que precisa para tratar pacientes com câncer. Esse urânio não poderia ser usado para armas.
O Brasil é um dos poucos países que têm a estatura internacional e o respeito necessários para ajudar a desativar esse confronto. Só podemos esperar que ele faça mais tentativas de poupar o mundo de mais uma guerra horrível.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/10/2011.

O grito dos espoliados nos EUA

Jorio Dauster


O uso das ruas e das praças como palco para manifestações de protesto chegou inesperadamente aos Estados Unidos se valendo das mesmas redes sociais com que a internet começou a reescrever a história no mundo árabe.
Sem uma lista de reivindicações -mas com o genial slogan "Ocupem Wall Street"-, gente que se diz mandatária de 99% da população veio dar um basta à ganância do 1% que se apropriou de um terço da riqueza nacional.
Em pouco tempo o movimento se estendeu por todo o país, apesar de caracterizado como "luta de classes" por Mitt Romney, favorito para concorrer à Presidência pelo Partido Republicano.
Para tanto, foi necessária uma crise de proporções imprevisíveis que dura quatro anos, com milhões de casas tomadas pelos bancos e padrões de consumo em queda, além de cerca de 24 milhões de desempregados e subempregados.
E são esses que agora, transitando da frustração para a raiva, se insurgem contra os que os empurraram para o buraco e se recusam a abrir mão de seus privilégios.
O processo decorre da "financeirização" da economia que se seguiu aos choques do petróleo e do predomínio da filosofia neoliberal do Partido Republicano.
Tão poderosas foram essas forças que Bill Clinton, convivendo com um Congresso de maioria republicana, patrocinou em 1999 a desregulamentação bancária que está na gênese da hecatombe atual.
Desde então se instalou um mandarinato cujos integrantes transitam livremente entre grandes instituições financeiras, governo e universidades, acumulando experiências variadas e muito dinheiro.
E foram esses privilegiados -sob a forma de altos salários, bônus milionários e mirabolantes opções de ações- que se apropriaram nas últimas décadas de um quinhão rapidamente crescente da riqueza nacional. Isso pode ser visto pela evolução do índice Gini, que mede a distribuição de renda.
Entre 1947 e 2007, o índice subiu nos Estados Unidos de 38 para 46. Mantidas as tendências atuais, o Brasil, que saiu de 63 em 1990 para 54 em 2008, poderá em breve exibir uma distribuição mais justa que a dos Estados Unidos!
A eleição de Barack Obama sinalizou uma primeira reação popular, pois sua plataforma preconizava a redução dos impostos sobre a classe média, a extensão dos serviços de saúde a todos e a recuperação do setor educacional.
Contudo, montando sua equipe com membros da oligarquia, incapaz de mover a economia malgrado os pacotes trilionários bancados à custa da explosão da dívida pública e de deficit orçamentários, Obama não reformou o sistema financeiro nem controlou a remuneração dos executivos, fazendo com que as suas chances de reeleição dependam de uma duvidosa retomada econômica.
E eis que se ouve o grito dos espoliados. Que efeito terá na eleição de novembro de 2012?
A reação republicana é de ira, mas os operadores do Partido Democrata também temem algo que pode espantar os financiadores da campanha. Entretanto, custa crer que nada se altere após o surgimento deste novo animal político sem lenço e sem documento.
Por quanto tempo a raiva surda fará com que tantos acampem nas ruas? Poderá o movimento manter seu caráter pacífico? Ou, tragicamente, dele brotarão mártires, como ocorre em outras paragens? O tempo dirá se o sistema político saberá reconhecer que é hora de mudar de rumo.

JORIO DAUSTER é embaixador, consultor de empresas e tradutor. Foi presidente da Companhia Vale do Rio Doce (1999 a 2001) e do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (2003 e 2006).

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/10/2011.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Eles sabem o que fazem

Vladimir Safatle

Um dos mantras preferidos daqueles que chegam aos 40 anos é: os jovens de hoje não têm grandes ideais, eles não sabem o que fazem.
Há algo cômico em comentários dessa natureza, pois os que tinham 18 anos no início dos anos 90 sabem muito bem como nossas maiores preocupações eram: encontrar uma boa rave em Maresias (SP), aprender a comer sushi e empregar-se em uma agência de publicidade. Ou seja, esses que falam dos jovens atuais foram, na maioria das vezes, jovens que não tiveram muito o que colocar na balança.
Por isso, devemos olhar com admiração o que jovens de todo o mundo fizeram em 2011.
Em Túnis, Cairo, Tel Aviv, Santiago, Madri, Roma, Atenas, Londres e, agora, Nova York, eles foram às ruas levantar pautas extremamente precisas e conscientes: o esgotamento da democracia parlamentar e a necessidade de criar uma democracia real, a deterioração dos serviços públicos e a exigência de um Estado com forte poder de luta contra a fratura social, a submissão do sistema financeiro a um profundo controle capaz de nos tirar desse nosso "capitalismo de espoliação".
Mas, mesmo assim, boa parte da imprensa mundial gosta de transformá-los em caricaturas, em sonhadores vazios sem a dimensão concreta dos problemas. Como se esses arautos da ordem tivessem alguma ideia realmente sensata de como sair da crise atual.
Na verdade, eles nem sequer têm ideia de quais são os verdadeiros problemas, já que preferem, por exemplo, nos levar a crer que a crise grega não seria o resultado da desregulamentação do sistema financeiro e de seus ataques especulativos, mas da corrupção e da "gastança" pública.
Nesse sentido, nada mais inteligente do que uma das pautas-chave do movimento "Ocupe Wall Street". Ao serem questionado sobre o que querem, muito jovens respondem: "Queremos discutir".
Pois trata-se de dizer que, após décadas da repetição compulsiva de esquemas liberais de análise socioeconômica, não sabemos mais pensar e usar a radicalidade do pensamento para questionar pressupostos, reconstruir problemas, recolocar hipóteses na mesa. O que esses jovens entenderam é: para encontrar uma verdadeira saída, devemos primeiro destruir as pseudocertezas que limitam a produtividade do pensamento. Quem não pensa contra si nunca ultrapassará os problemas nos quais se enredou.
Isso é o que alguns realmente temem: que os jovens aprendam a força da crítica. Quando perguntam "Afinal, o que vocês querem?", é só para dizer, após ouvir a resposta: "Mas vocês estão loucos".
Porém toda grande ideia apareceu, aos que temem o futuro, como loucura. Por isso, deixemos os jovens pensarem. Eles sabem o que fazem.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 25/010/2011.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Senão sua indignação

Luiz Carlos Bresser-Pereira

O movimento dos indignados que começou na Espanha há seis meses tornou-se um fenômeno mundial com extensão para Nova York onde foi denominado "Ocupe Wall Street". No último dia 15 de outubro, manifestantes, quase todos jovens, se reuniram em 951 cidades de 82 países para manifestar sua indignação em relação ao neoliberalismo e à financeirização que levaram à crise financeira global de 2008.
Eles não têm propostas, e não pretendem tomar o poder. Querem apenas mostrar a sua preocupação e a sua indignação -dois sentimentos mais que justos dados os males que essa ideologia neoliberal e a teoria econômica neoclássica que a justifica "cientificamente" já causaram, dada a grande recessão em que estão mergulhados os países ricos.
E porque, se a crise nesses países continuar a se aprofundar, amanhã esse poderá ser o presente dos países em desenvolvimento, por enquanto relativamente poupados.
Um jovem do "Ocupe Washington" foi entrevistado por esta Folha (11.out.2011). O repórter quis saber qual a diferença de seu movimento e um outro rival, o Outubro/2011: "eles são mais tradicionais, sentam-se, fazem uma lista de exigências, nós precisamos de mudanças revolucionárias dentro do sistema ou de outro sistema".
O repórter insiste: Como pretendem conseguir? "Não estamos discutindo isso agora. Estamos focados em construir nossa base, atrair pessoas para conversar… Queremos o máximo de movimentos pelo país, queremos mostrar que falamos sério, mesmo que isso leve semanas, ou meses, anos. Até que uma mudança aconteça, estaremos aqui."
Não creio que estarão, mas é preciso assinalar que esse movimento é impressionante e admirável. Será mesmo? Os 30 Anos Neoliberais do Capitalismo (1979-2008) foram realmente um imenso retrocesso social e político. E os males que provocaram ainda não se esgotaram.
Mas qual a legitimidade de um protesto sem propostas? Quem protesta não tem obrigação de dizer como se resolvem as coisas?
Minha resposta a essa pergunta é um grande e sonoro "não". Os jovens manifestantes não têm responsabilidade pela crise que está aí, nem possibilidade de resolvê-la.
Os responsáveis somos nós, os mais velhos, as elites, os que dominaram e governaram. Somos nós que temos que dar soluções. Eles podem levantar o problema, podem debater, sugerir, mas nós que decidimos.
E nós, que antes acertamos muitas vezes, que contribuímos para o progresso ou o desenvolvimento, que no pós-guerra produzimos os 30 Anos Dourados do Capitalismo (1949-1978), falhamos desde os anos 80 quando deixamos que apenas 2% da população auferisse todos os benefícios do progresso, e estamos falhando mais agora, com as consequências dos anos neoliberais.
Três anos depois da crise alguns analistas afirmam que ela foi desperdiçada. Que não aprendemos nada. Não é verdade. Aprendemos alguma coisa, e se está procurando regular os bancos, e trazer o Estado para seu papel de instituição por excelência de ação coletiva da nação.
Mas as mudanças estão sendo tímidas. Os privilégios continuam gritantes. Bem vindos os jovens que protestam. Eles têm direito a um futuro. E não têm senão sua indignação para exigi-lo.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/10/2011.

Inflação de pretígio

Vladimir Safatle

"Enquanto eu cobrava R$ 100 por sessão, tinha poucos pacientes. Quando comecei a cobrar R$ 200, por incrível que pareça, os pacientes afloraram." Esta afirmação de um amigo psicanalista talvez valha um capítulo na teoria geral da formação de preços, ao menos no Brasil.

A mudança no preço de sua sessão não foi o resultado de alguma nova conformação das dinâmicas de oferta e de procura. Ela foi, na verdade, a descoberta de que, em países com alta concentração de renda, certas pessoas estão dispostas a pagar mais simplesmente devido à crença de que as coisas caras foram feitas para ela.

Por mais que economistas gostem de dizer o contrário, a ação econômica é baseada em sistemas de crenças e expectativas cuja racionalidade é fundada em fortes disposições psicológicas "irracionais"-pois estão ligadas a fantasias.
Atualmente, alguns dos aluguéis mais caros do mundo podem ser encontrados em cidades improváveis como, São Paulo, Moscou e Luanda (capital angolana).
A razão é que tais sociedades emergentes crescem com alta desigualdade de renda, o que faz com que uma parcela mínima da população, com poder aquisitivo exorbitante, puxe para cima a cadeia de preços. Para o resto da população, melhor seria que essa parcela simplesmente não existisse.
Qualquer pessoa que frequenta restaurantes nessas cidades percebe que a disparada de preços pouco tem a ver com a flutuação do valor dos alimentos. Nossos agricultores continuam recebendo, em larga medida, valores irrisórios. Tal disparada vem da existência de pessoas que não sentem diferença entre pagar R$ 30 ou R$ 70 por um prato. Mobilizando a crença de que as coisas caras são exclusivas, elas geram, assim, um forte problema econômico.
Há de perguntar-se por que, sendo a inflação uma questão tão premente na vida nacional, nunca encontramos reflexões sobre a relação, aparentemente tão evidente, entre pressão inflacionária e desigualdade social.
Ao contrário, vê-se apenas pessoas dispostas a falar contra os "gastos públicos", isto em um país onde, vejam só vocês, escolas e saúde pública são subfinanciadas e grandes investimentos públicos em infraestrutura são urgentes.
Talvez um dia descobriremos que a economia brasileira só estará mais bem defendida contra a inflação quando a desigualdade e o consumo conspícuos que ela gera forem realmente combatidos.
O que é melhor do que reduzir os mecanismos de controle da pressão inflacionária à definição de taxas de juros, pois a disparidade de renda, além de gerar fratura social e conflito de classe, é fator de instabilidade econômica.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/10/2011.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Governo de Israel é o pior inimigo de Israel

Nicholas Kristof


Durante anos, líderes palestinos pareceram os piores inimigos do seu povo. Os radicais palestinos provocaram o antagonismo do Ocidente, e, quando os líderes militantes começaram a apelar para sequestros e foguetes, acabaram prejudicando a causa palestina no mundo todo - para quem eles justificavam atos de colonos e falcões e enfraqueciam as pombas israelenses.

O mundo hoje está de cabeça para baixo. Agora é Israel que coloca em risco a maior parte dos seus líderes e os defensores da posição radical. O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu está isolando seu país, e, francamente, sua intransigência na questão dos assentamentos parece uma política nacional suicida.

Nada é mais corrosivo do que a ampliação dos assentamentos de Israel. Eles destroem a esperança de um futuro acordo de paz. O mais recente passo em falso de Netanyahu ocorreu depois que o governo de Barack Obama se humilhou exercendo uma pressão diplomática para bloquear a solicitação palestina de reconhecimento do seu Estado na ONU.

Num momento em que Obama tinha outras prioridades - por exemplo, evitar um derretimento econômico global -, os EUA ameaçavam vetar o pedido de reconhecimento de um Estado palestino ao qual todo mundo era favorável.

Enquanto o conflito diplomático se desenrolava na ONU, Israel anunciou planos para a construção de mais 1.100 unidades habitacionais numa parte de Jerusalém fora de seus limites anteriores a 1967. Em vez de mostrar sua apreciação ao presidente Obama, Netanyahu recorreu a um golpe baixo.

Agora, prevejo uma avalanche de respostas iradas. Entendo que muitos insistam que, de qualquer maneira, Jerusalém deve pertencer inteiramente a Israel em um acordo de paz, portanto os novos assentamentos não contam. Mas, se essa é a posição, pode-se dizer adeus a qualquer acordo de paz.

Todo negociador conhece o quadro de um acordo de paz - as fronteiras de 1967 com troca de terras, Jerusalém como capital do Estado israelense e do palestino, e apenas o direito simbólico de retorno dos refugiados. A insistência numa Jerusalém totalmente israelense significa que não haverá acordo de paz.

O ex-presidente dos EUA Bill Clinton recentemente culpou Netanyahu pelo fracasso do processo de paz no Oriente Médio. Um fator secundário, observou Clinton, é a mudança demográfica e política na sociedade israelense, que tornou o país mais conservador nas questões das fronteiras e das terras.

Intransigência. Netanyahu está longe de ser o único obstáculo à paz. Os palestinos estão divididos, com o Hamas controlando Gaza. E o Hamas não só oprime o seu próprio povo como também conseguiu devastar o movimento pela paz em Israel. É a coisa mais triste na questão do Oriente Médio: intransigentes, como o Hamas, de um lado, acabam fortalecendo autoridades intransigentes como Netanyahu, do outro.

Atravessamos um período perigoso na região. A maioria dos palestinos parece achar que o processo de paz virou fumaça, e os israelenses parecem concordar. Dois terços deles afirmaram numa recente pesquisa de opinião publicada pelo jornal Yediot Ahronot que não há nenhuma possibilidade de paz com os palestinos - e jamais haverá.

A esperança mais acalentada pelos palestinos seria um amplo movimento das bases de resistência pacífica não violenta, liderado pelas mulheres e inspirado na obra de Mahatma Gandhi e do reverendo Martin Luther King. Um número cada vez maior de palestinos apoia variações desse modelo, embora às vezes o deturpem quando atiram pedras e atribuem o protagonismo a jovens de cabeça quente.

O Exército de Israel pode lidar com terroristas suicidas e foguetes. Não tenho certeza se poderia derrotar mulheres palestinas bloqueando estradas que levam a assentamentos ilegais e dispostas a suportar gás lacrimogêneo e pauladas - com vídeos imediatamente postados no YouTube.

Netanyahu também comprometeu a segurança israelense rompendo com o amigo mais importante de Israel na região, a Turquia. Agora, há também o risco de confrontos no Mar Mediterrâneo entre navios israelenses e turcos. É uma das razões pelas quais o secretário da Defesa dos EUA, Leon Panetta, recriminou o governo israelense por isolar-se diplomaticamente.

Se um acordo de paz não for concluído logo, e Israel continuar sua ocupação, será melhor conceder o direito de voto aos palestinos nas áreas controladas por eles nas próximas eleições israelenses.

Se os judeus da Cisjordânia podem votar, os palestinos também.

Democracia é isso: as pessoas têm o direito de votar para escolher o governo que controla suas vidas. Alguns israelenses pensarão que estou sendo injusto e duro, que uso dois pesos e duas medidas, destacando os defeitos israelenses e dando menos atenção a outros países da região. Justo: declaro-me culpado.

Aplico a norma mais dura a um estreito aliado americano como Israel, que é beneficiado por uma enorme ajuda americana.

Amigos não permitem que outros amigos sigam uma linha diplomática que deixa o seu país se desviar de toda esperança de paz. Hoje, os líderes israelenses comportam-se como os piores inimigos do seu país, e enfatizar isso é um ato de amizade.


* TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 11/10/2011.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Entrevista com Yoram Kaniuk

Judeu sem Religião

Entrevista com escritor Yoram Kaniuk, publicada na Folha de S. Paulo, em 06/10/2011.



Escritor israelense que ganhou na Justiça o direito de ter carteira de identidade sem registro de crença ataca a não separação entre religião e Estado e o uso do judaísmo por 'fascistas'.

Yoram Kaniuk publicou mais de 20 livros em sua premiada carreira, mas nunca ocupou tantas manchetes. O motivo foi a ação para apagar o judaísmo de sua carteira de identidade e ser registrado como "sem religião". Ele espera que a inédita vitória judicial seja um passo para acabar com o monopólio religioso em Israel.

Tomei a decisão por que não queria ser minoria em minha própria família [risos]. Sou casado há 50 anos com uma americana não judia. Minhas filhas nasceram aqui, serviram o Exército, são cidadãs israelenses, mas não são consideradas judias. Ganhei um neto e ele foi considerado "sem religião", por ser filho de não judia. Decidi que quero ser como o meu neto.

Cansei do controle da religião neste país. É um ciclo perigoso: os religiosos se fortalecem politicamente e impõem mais e mais a religião sobre nós. Até o calendário e o horário de verão são impostos pelos religiosos. Há um controle inaceitável sobre a vida das pessoas. Querem transformar Israel num Estado religioso.

Lutei pela criação deste país. O objetivo não era um Estado judeu. [David] Ben Gurion [fundador de Israel] não sonhou com isso, ele não acreditava em religião. O que ele queria era um lar nacional para o povo judeu.

Decidi que quero ter a nacionalidade judia, não a religião. Mas Israel não reconhece isso. Bibi [premiê de Israel, Binyamin Netanyahu] fala o tempo todo que os palestinos devem reconhecer o caráter nacional judeu de Israel, mas o próprio Estado não reconhece a nacionalidade judia sem a religião.

A decisão judicial é histórica. O juiz abriu uma brecha que, espero, levará à separação entre Estado e religião. Ainda não é uma revolução, mas pode ser o começo.

Esse veredicto pode começar a quebrar o monopólio político dos religiosos. Se houver separação entre Estado e religião, eles não terão mais o mesmo poder político. Hoje, nosso modelo lembra a Idade Média. Quando a religião tem o controle, a vítima é sempre a liberdade.

Minha mulher e minhas filhas nunca sofreram por não serem judias. Vivemos em Tel Aviv, uma cidade muito liberal. Mas é humilhante, porque não são como os outros.

Todas as reações que recebi até agora foram muito boas. Milhares de pessoas esperam por isso há anos, e acho que muitas seguirão o meu exemplo. Ninguém me atacou ainda, mas espero que isso aconteça [risos]. Sou um lutador. Israel tem de decidir: pode ser país democrático ou país judeu religioso. Não pode ser os dois. Religião é dogma, não aceita a democracia.

Se em um ou dois anos não acontecer uma mudança, este país está perdido. Se tornará um Estado religioso e sem mão de obra, sem soldados para defendê-lo nem gente capacitada para desenvolver alta tecnologia. Sustentamos centenas de milhares de parasitas. Hoje quase 50% dos alunos de classes primárias são ortodoxos, e a maioria não se integrará ao Estado.

Além de tudo, a falta de separação entre Estado e religião permite que o fascismo se espalhe. O incêndio criminoso da mesquita no norte de Israel é só um exemplo.

Há fascistas nos assentamentos que fazem o que querem e o governo não faz nada. Atacam árabes, arrancam suas oliveiras, vandalizam mesquitas e o governo faz vista grossa, pois teme perder seu apoio político.

Chegamos a um beco sem saída. Por isso o veredicto que me foi concedido é tão importante: cria uma brecha histórica para mudarmos isso, para acabarmos com a legitimidade dos fascistas que usam a religião.

Se Israel for mais democrático e menos religioso, o Estado poderá agir contra esses hooligans.

Vitória de escritor é vista como um passo histórico

Um passo histórico na luta pela separação entre Estado e religião em Israel.

Assim está sendo considerada por organizações de direitos civis do país a inédita decisão de uma corte de Tel Aviv de conceder ao escritor Yoram Kaniuk o direito de ser registrado como "sem religião", no lugar de judeu.

O veredicto criou enorme polêmica e reacendeu a eterna discussão em torno de um dos principais dilemas do Estado de Israel desde sua fundação - como ser ao mesmo tempo judeu e democrático.

Para os entusiastas do veredicto favorável a Kaniuk, a resposta é simples: democracia significa, por definição, separação total entre Estado e religião. Para os religiosos, é preciso preservar a influência dos tribunais religiosos.

O que mais incomoda os laicos é o monopólio religioso sobre temas civis, herança do sistema vigente durante o domínio do império otomano na antiga Palestina e também fruto de barganha política com os poderosos partidos judeus ortodoxos.

O exemplo mais gritante é a ausência de casamentos civis no país. Atualmente, judeus israelenses só podem se casar sob os auspícios das autoridades religiosas.

Uma lei aprovada no ano passado, considerada um importante marco jurídico, reconheceu as uniões civis como casamento para todos os fins. Mas a permissão só é dada a pessoas registradas como "sem religião".

Segundo a organização Nova Família, que luta contra o monopólio religioso, cerca de 3.000 israelenses viajam todo ano ao Chipre para casar-se no civil.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Bündchen também discrimina os homens

Fausto Rodrigues de Lima


Para gastar todo o dinheiro do marido e conseguir sua compreensão, a mulher brasileira precisa lhe conceder sexo. O ensinamento de uma campanha da lingerie Hope, protagonizada por Gisele Bündchen, causou justa indignação a ponto de a Secretaria de Políticas para as mulheres pedir sua suspensão.

Essa e outras manifestações sexistas escamoteiam faceta pouca explorada: o homem também é discriminado. Ora, para a campanha referida, o marido ideal precisa ser o provedor; caso contrário, não pode ter uma mulher linda e disponível para o sexo. Como um cão no cio, necessita de sexo a todo momento e a todo custo. Não deve se importar com a satisfação da parceira; basta que ela finja prazer.

Se analisarmos comerciais dirigidos aos homens, veremos que, nessas peças, eles são tratados como crianças abobalhadas. Os de cerveja os perfilam como tipos pouco inteligentes, fazendo (e rindo de) piadas idiotas, e com um só objetivo na vida: sexo. Um recente comercial da Volkswagen mostra um pai com vergonha do filho pois o menino, além de não surfar ou tocar guitarra, ainda não “pegou” uma garota.

Como todo projeto de dominação e preconceito, a discriminação de gênero, embora baseada numa suposta inferioridade feminina, atinge a todos, porque cria regras “naturais” para o comportamento dessa ou daquela pessoa, baseando-se apenas em seu sexo. Adeus, individualidade e diversidade.
No mundo que se convencionou chamar masculino, não há lugar para poesia, para emoções. Sensibilidade é uma capacidade indesejável, ligada a tudo o que é considerado inferior, ou seja, ao feminino.

A educação dirigida aos meninos é completamente diferenciada. Bonecas são brinquedos educativos para as futuras mamães, mas causam horror se manipuladas por meninos. O “instinto materno” é aprendido desde a infância, mas não se ensina o paterno (não à toa, se considera tão natural as mulheres ficarem com os filhos numa separação).
Homem não chora, é autossuficiente, não demonstra fragilidade e não leva desaforo pra casa. Se ele se irrita, agride pessoas, deve ser compreendido, porque, afinal, é apenas um. homem, infantilizado pela família e pela sociedade. Enquanto mulheres dividem com outras medos e frustrações, o homem se fecha. Do ambiente familiar, repleto de emocionalidades, resta a ele fugir. O bar e o álcool são o refúgio viril que a sociedade lhe dá.

É preciso rever certos conceitos. Isso passa pelos meios de comunicação de massa, que reforçam estereótipos e criam outros, à guisa de fazer “piadas inocentes”.
Nós, homens do século 21, somos seres pensantes. Não queremos prover ninguém, almejamos unir esforços. Se por acaso nossa renda for insuficiente ou nula, que nos respeitem. Gostamos, sim, de sexo, mas não pensamos nisso 24 horas por dia. Nos interessa o futebol mas também o balé, a música, a arte, a poesia. E choramos, sim.

Por isso, pedimos ao Conar que suspenda a propaganda da Hope e outras ridículas, não só por ofenderem nossas mães, filhas e esposas, mas por nos agredirem profundamente enquanto homens.
*FAUSTO RODRIGUES DE LIMA é promotor de Justiça do Distrito Federal e coautor do livro “violência doméstica – A Intervenção Criminal e Multidisciplinar”

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 05/10/2011.