quarta-feira, 29 de junho de 2011

Ricos pagam pouco

Vladimir Safatle


Há alguns dias, uma pesquisa veio mostrar o que todos aqueles que realmente se preocupam com reforma tributária no Brasil sabem: os ricos pagam pouco imposto.

Quem recebe R$ 3.300 por mês, leva para casa, descontados Imposto de Renda e Previdência, 84% do seu salário. Já alguém que ganha R$ 26.600 por mês, leva 74%.

Um profissional holandês, por exemplo, pode contar apenas com 55% de seu salário, e mesmo um norte-americano traz para casa menos que um brasileiro: 70%.

Ao mesmo tempo em que descobríamos a vida tranquila dos ricos brasileiros, chega a notícia de que a quantidade de milionários no Brasil aumentou 5,9% em 2010, atingindo a marca de 115,4 mil pessoas com fortuna de, ao menos, US$ 1 milhão.

O que não deveria nos surpreender. Afinal, vivemos em um país onde o processo de concentração de renda está tão institucionalizado que as classes mais abastadas têm um sistema de defesa de seus rendimentos sem par em outros países industrializados.

Dentro de alguns anos, a chamada nova classe média descobrirá que não conseguirá mais continuar sua ascensão social. Entre outras coisas, ela tomará consciência de como seu orçamento é brutalmente corroído por despesas com educação e saúde.

Um Estado preocupado com seu povo taxaria os ricos e as grandes fortunas a fim de ter dinheiro suficiente para criar um verdadeiro sistema público de educação e saúde.

Por que não criar, por exemplo, um imposto sobre grandes fortunas vinculado exclusivamente à educação? Isto permitiria que essa nova classe média continuasse sua ascensão social.

Tal ascensão seria ainda mais facilitada se a carga tributária brasileira parasse de privilegiar o consumo, e focasse a renda. Uma carga focada no consumo, ou seja, embutida em produtos, é mais sentida por quem ganha menos.

Há pouco, um estudo mostrou como o 0,1% mais bem pago no Reino Unido recebia, em 1979, 1,3% dos salários.

Hoje, recebe 5% e, em 2030, deve receber 14%.

Costuma-se dizer que uma das maiores astúcias do Diabo é nos convencer de que ele não existe. Uma das maiores astúcias do discurso conservador é nos convencer, diante de dados dessa natureza, de que conflito de classe é um delírio de esquerdista centenário.

Mesmo que vejamos um processo brutal de concentração de renda institucionalizado e intocado por qualquer partido que esteja no poder, mesmo que vejamos a tendência de espoliação dos recursos de países industrializados por camadas mais ricas da população, tudo deve ser um complô dos incompetentes contra aqueles que bravamente venceram na vida graças apenas a seu entusiasmo e capacidade visionária, não é mesmo?
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 28/06/2011.

Por que o carro é mais barato na Argentina e no Chile?

Joel Silveira Leite


* Postado no blog: * Publicado em http://omundoemmovimento.blog.uol.com.br/arch2011-06-01_2011-06-30.html#2011_06-27_18_42_25-142809534-0
 28/06/2011
- Veja o que as montadoras falam (e o que não falam) sobre o assunto
- O Lucro Brasil não fica só na montadora, mas em toda a cadeia produtiva

A ACARA, Associacion de Concessionários de Automotores De La Republica Argentina, divulgou no congresso dos distribuidores dos Estados Unidos (N.A.D.A), em São Francisco, em fevereiro deste ano, os valores comercializados do Corolla em três países:

No Brasil o carro custa US$ 37.636,00, na Argentina US$ 21.658,00 e nos EUA US$ 15.450,00.

Outro exemplo de causar revolta: o Jetta é vendido no México por R$ 32,5 mil. No Brasil esse carro custa R$ 65,7 mil.

Por que essa diferença? Vários dirigentes foram ouvidos com o objetivo de esclarecer o “fenômeno”. Alguns “explicaram”, mas não justificaram. Outros se negaram a falar do assunto.

Quer mais? O Gol I-Motion com airbags e ABS fabricado no Brasil é vendido no Chile por R$ 29 mil. Aqui custa R$ 46 mil.

O Corolla não é exceção. O Kia Soul, fabricado na Coréia, custa US$ 18 mil no Paraguai e US$ 33 mil no Brasil. Não há imposto que justifique tamanha diferença de preço.

A Volkswagen não explica a diferença de preço entre os dois países. Solicitada pela reportagem, enviou o seguinte comunicado:

“As principais razões para a diferença de preços do veículo no Chile e no Brasil podem ser atribuídas à diferença tributária e tarifária entre os dois países e também à variação cambial”.

Questionada, a empresa enviou nova explicação:

“As condições relacionadas aos contratos de exportação são temas estratégicos e abordados exclusivamente entre as partes envolvidas”.

Nenhum dirigente contesta o fato de o carro brasileiro ser caro. Mas o assunto é tão evitado que até mesmo consultores independentes não arriscam a falar, como o nosso entrevistado, um ex-executivo de uma grande montadora, hoje sócio de uma consultoria, e que pediu para não ser identificado.

Ele explicou que no segmento B do mercado, onde estão os carros de entrada, Corsa, Palio, Fiesta, Gol, a margem de lucro não é tão grande, porque as fábricas ganham no volume de venda e na lealdade à marca. Mas nos segmentos superiores o lucro é bem maior.

O que faz a fábrica ter um lucro maior no Brasil do que no México, segundo consultor, é o fato do México ter um “mercado mais competitivo” (?).

Um dirigente da Honda, ouvido em off, responsabilizou o “drawback”, para explicar a diferença de preço do City vendido no Brasil e no México. O “drawback” é a devolução do imposto cobrado pelo Brasil na importação de peças e componentes importados para a produção do carro. Quando esse carro é exportado, o imposto que incidiu sobre esses componentes é devolvido, de forma que o “valor base” de exportação é menor do que o custo industrial, isto é: o City é exportado para o México por um valor menor do que os R$ 20,3 mil. Mas quanto é o valor dos impostos das peças importadas usadas no City feito em Sumaré? A fonte da Honda não responde, assim como outros dirigentes da indústria se negam a falar do assunto.

Mas quanto poderá ser o custo dos equipamentos importados no City? Com certeza é menor do que a diferença de preço entre o carro vendido no Brasil e no México (R$ 15 mil).

A conta não bate e as montadoras não ajudam a resolver a equação. Apesar da grande concorrência, nenhuma das montadoras ousa baixar os preços dos seus produtos. Uma vez estabelecido, ninguém quer abrir mão do apetitoso “Lucro Brasil”.

Ouvido pela AutoInforme, quando esteve em visita a Manaus, o presidente mundial da Honda, Takanobu Ito, respondeu que, retirando os impostos, o preço do carro no Brasil é mais caro que em outros países porque “aqui se pratica um preço mais próximo da realidade. Lá fora é mais sacrificado vender automóveis”.

Ele disse que o fator câmbio pesa na composição do preço do carro no Brasil, mas lembrou que o que conta é o valor percebido. “O que vale é o preço que o mercado paga”.

E porque o consumidor brasileiro paga mais do que os outros?

“Eu também queria entender – respondeu Takanobu Ito – a verdade é que o Brasil tem um custo de vida muito alto. Até os sanduíches do McDonalds aqui são os mais caros do mundo”.

“Se a moeda for o Big Mac – confirmou Sérgio Habib, que foi presidente da Citroën e hoje é importador da chinesa JAC - o custo de vida do brasileiro é o mais caro do mundo. O sanduíche custa US$ 3,60 lá e R$ 14,00 aqui”. Sérgio Habib investigou o mercado chinês durante um ano e meio à procura por uma marca que pudesse representar no Brasil. E descobriu que o governo chinês não dá subsídio à indústria automobilística; que o salário dos engenheiros e dos operários chineses não são menores do que os dos brasileiros.

“Tem muita coisa errada no Brasil – disse Habib, não é só o preço do carro que é caro. Um galpão na China custa R$ 400,00 o metro quadrado, no Brasil custa R$ 1,2 mil. O frete de Xangai e Pequim custa US$ 160,00 e de São Paulo a Salvador R$ 1,8 mil”.

Para o presidente da PSA Peugeot Citroën, Carlos Gomes, os preços dos carros no Brasil são determinados pela Fiat e pela Volkswagen. “As demais montadoras seguem o patamar traçado pelas líderes, donas dos maiores volumes de venda e referência do mercado”, disse.

Fazendo uma comparação grosseira, ele citou o mercado da moda, talvez o que mais dita preço e o que mais distorce a relação custo e preço:

“Me diga, por que a Louis Vuitton deveria baixar os preços das suas bolsas?”, questionou.

Ele se refere ao “valor percebido” pelo cliente. É isso que vale.

“O preço não tem nada a ver com o custo do produto. Quem define o preço é o mercado”, disse um executivo da Mercedes-Benz, para explicar porque o brasileiro paga R$ 265.00,00 por uma ML 350, que nos Estados Unidos custa o equivalente a R$ 75 mil.

“Por que baixar o preço se o consumidor paga?”, explicou o executivo.

Amanhã a terceira e última parte da reportagem especial LUCRO BRASIL: “Quando um carro não tem concorrente direto, a montadora joga o preço lá pra cima. Se colar, colou”.

Leia abaixo a 1º parte da reportagem


* Colaboraram Ademir Gonçalves e Luiz Cipolli

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27/06/2011

Lucro Brasil faz o consumidor pagar o carro mais caro do mundo



O Brasil tem o carro mais caro do mundo. Por quê? Os principais argumentos das montadoras para justificar o alto preço do automóvel vendido no Brasil são a alta carga tributária e a baixa escala de produção. Outro vilão seria o “alto valor da mão de obra”, mas os fabricantes não revelam quanto os salários – e os benefícios sociais - representam no preço final do carro. Muito menos os custos de produção, um segredo protegido por lei.

A explicação dos fabricantes para vender no Brasil o carro mais caro do mundo é o chamado Custo Brasil, isto é, a alta carga tributária somada ao custo do capital, que onera a produção. Mas as histórias que você verá a seguir vão mostrar que o grande vilão dos preços é, sim, o Lucro Brasil. Em nenhum país do mundo onde a indústria automobilística tem um peso importante no PIB, o carro custa tão caro para o consumidor.

A indústria culpa também o que chama de Terceira Folha pelo aumento do custo de produção: gastos com funcionários, que deveriam ser papel do estado, mas que as empresas acabam tendo que assumir, como condução, assistência médica e outros benefícios trabalhistas.

Com um mercado interno de um milhão de unidades em 1978, as fábricas argumentavam que seria impossível produzir um carro barato. Era preciso aumentar a escala de produção para, assim, baratear os custos dos fornecedores e chegar a um preço final no nível dos demais países produtores.

Pois bem: o Brasil fechou 2010 como o quinto maior produtor de veículos do mundo e como o quarto maior mercado consumidor, com 3,5 milhões de unidades vendidas no mercado interno e uma produção de 3,638 milhões de unidades.

Três milhões e meio de carros não seria um volume suficiente para baratear o produto? Quanto será preciso produzir para que o consumidor brasileiro possa comprar um carro com preço equivalente ao dos demais países?

Segundo Cledorvino Belini, presidente da Anfavea, “é verdade que a produção aumentou, mas agora ela está distribuída em mais de 20 empresas, de modo que a escala continua baixa”. Ele elegeu um novo patamar para que o volume possa propiciar uma redução do preço final: cinco milhões de carros.

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A carga tributária caiu e o preço do carro subiu

O imposto, o eterno vilão, caiu nos últimos anos. Em 1997, o carro 1.0 pagava 26,2% de impostos, o carro com motor até 100cv recolhia 34,8% (gasolina) e 32,5% (álcool). Para motores mais potentes o imposto era de 36,9% para gasolina e 34,8% a álcool.

Hoje – com os critérios alterados – o carro 1.0 recolhe 27,1%, a faixa de 1.0 a 2.0 paga 30,4% para motor a gasolina e 29,2% para motor a álcool. E na faixa superior, acima de 2.0, o imposto é de 36,4% para carro a gasolina e 33,8% a álcool.

Quer dizer: o carro popular teve um acréscimo de 0,9 ponto percentual na carga tributária, enquanto nas demais categorias o imposto diminuiu: o carro médio a gasolina paga 4,4 pontos percentuais a menos. O imposto da versão álcool/flex caiu de 32,5% para 29,2%. No segmento de luxo, o imposto também caiu: 0,5 ponto no carro e gasolina (de 36.9% para 36,4%) e 1 ponto percentual no álcool/flex.

Enquanto a carga tributária total do País, conforme o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, cresceu de 30,03% no ano 2000 para 35,04% em 2010, o imposto sobre veículo não acompanhou esse aumento.

Isso sem contar as ações do governo, que baixaram o IPI (retirou, no caso dos carros 1.0) durante a crise econômica. A política de incentivos durou de dezembro de 2008 a abril de 2010, reduzindo o preço do carro em mais de 5% sem que esse benefício fosse totalmente repassado para o consumidor.

As montadoras têm uma margem de lucro muito maior no Brasil do que em outros países. Uma pesquisa feita pelo banco de investimento Morgan Stanley, da Inglaterra, mostrou que algumas montadoras instaladas no Brasil são responsáveis por boa parte do lucro mundial das suas matrizes e que grande parte desse lucro vem da venda dos carros com aparência fora-de-estrada. Derivados de carros de passeio comuns, esses carros ganham uma maquiagem e um estilo aventureiro. Alguns têm suspensão elevada, pneus de uso misto, estribos laterais. Outros têm faróis de milha e, alguns, o estepe na traseira, o que confere uma aparência mais esportiva.

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A margem de lucro é três vezes maior que em outros países

O Banco Morgan concluiu que esses carros são altamente lucrativos, têm uma margem muito maior do que a dos carros dos quais são derivados. Os técnicos da instituição calcularam que o custo de produção desses carros, como o CrossFox, da Volks, e o Palio Adventure, da Fiat, é 5 a 7% acima do custo de produção dos modelos dos quais derivam: Fox e Palio Weekend. Mas são vendidos por 10% a 15% a mais.

O Palio Adventure (que tem motor 1.8 e sistema locker), custa R$ 52,5 mil e a versão normal R$ 40,9 mil (motor 1.4), uma diferença de 28,5%. No caso do Doblò (que tem a mesma configuração), a versão Adventure custa 9,3% a mais.

O analista Adam Jonas, responsável pela pesquisa, concluiu que, no geral, a margem de lucro das montadoras no Brasil chega a ser três vezes maior que a de outros países.

O Honda City é um bom exemplo do que ocorre com o preço do carro no Brasil. Fabricado em Sumaré, no interior de São Paulo, ele é vendido no México por R$ 25,8 mil (versão LX). Neste preço está incluído o frete, de R$ 3,5 mil, e a margem de lucro da revenda, em torno de R$ 2 mil. Restam, portanto R$ 20,3 mil.

Adicionando os custos de impostos e distribuição aos R$ 20,3 mil, teremos R$ 16.413,32 de carga tributária (de 29,2%) e R$ 3.979,66 de margem de lucro das concessionárias (10%). A soma dá R$ 40.692,00. Considerando que nos R$ 20,3 mil faturados para o México a montadora já tem a sua margem de lucro, o “Lucro Brasil” (adicional) é de R$ 15.518,00: R$ 56.210,00 (preço vendido no Brasil) menos R$ 40.692,00.

Isso sem considerar que o carro que vai para o México tem mais equipamentos de série: freios a disco nas quatro rodas com ABS e EBD, airbag duplo, ar-condicionado, vidros, travas e retrovisores elétricos. O motor é o mesmo: 1.5 de 116cv.

Será possível que a montadora tenha um lucro adicional de R$ 15,5 mil num carro desses? O que a Honda fala sobre isso? Nada. Consultada, a montadora apenas diz que a empresa “não fala sobre o assunto”.

Na Argentina, a versão básica, a LX com câmbio manual, airbag duplo e rodas de liga leve de 15 polegadas, custa a partir de US$ 20.100 (R$ 35.600), segundo o Auto Blog.

Já o Hyundai ix35 é vendido na Argentina com o nome de Novo Tucson 2011 por R$ 56 mil, 37% a menos do que o consumidor brasileiro paga por ele: R$ 88 mil.

Leia amanhã a 2º parte da reportagem especial LUCRO BRASIL: Por que o mesmo carro é mais barato na Argentina e no Chile?

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Democracia real

Vladimir Safatle

As atuais manifestações que sacodem a Europa trouxeram uma reivindicação que há muito não se ouvia em países como Reino Unido, Espanha, França: democracia real. Há algo de importante aqui.

Pois poderíamos nos perguntar o que haveria de fictício na democracia de países que aprendemos a ver como exemplos de sistemas políticos consolidados. Por que largas parcelas de sua população compreendem que há algo no jogo democrático que parece ter se reduzido exatamente à condição de mero jogo?

Talvez tais manifestantes entenderam que a democracia parlamentar é incapaz de impor limites e de resistir aos interesses do sistema financeiro. Ela é incapaz de defender as populações quando os agentes financeiros começam a operar, de modo cinicamente claro, a partir dos princípios de um capitalismo de espoliação dos recursos públicos.

Não é por outra razão que se ouve, cada vez mais, a afirmação de que a alternância de partidos no poder não implica mais alternativas de modelos de compreensão dos conflitos e políticas sociais. Por isso, o cansaço em relação aos partidos tradicionais não é sinal do esgotamento da política. Na verdade, ele é o sintoma mais evidente de uma demanda de política, de uma demanda de politização da economia.

Em momentos assim, devemos lembrar que a democracia parlamentar não é o último capítulo da democracia efetiva. A Islândia tem algo a nos ensinar sobre isso.

Um dos primeiros países atingidos pela crise econômica de 2008, a Islândia decidiu que o uso de dinheiro público para indenizar bancos seria objeto de plebiscito. Maneira de recuperar um conceito decisivo, mas bem esquecido, da democracia, a saber, a soberania popular. O resultado foi o apoio massivo ao calote.

Mesmo sabendo dos riscos de tal decisão, o povo islandês preferiu realizar um princípio básico da soberania popular: quem paga a orquestra, escolhe a música.

Se a conta vai para a população, é ela quem deve decidir o que fazer, e não um conjunto de tecnocratas que terão seus empregos garantidos nos bancos ou de parlamentares cujas campanhas são financiadas por esses bancos. Como disse o presidente islandês, Ólafur Ragnar Grímsson: "A Islândia é uma democracia, não um sistema financeiro".

O interessante é que, com isso, saímos dos impasses da democracia parlamentar para dar um passo decisivo em direção a uma democracia plebiscitária capaz de institucionalizar a manifestação necessária da soberania popular.

É tal processo que nos coloca nas vias de uma democracia real. Ele é a condição primeira para sair da crise. Pois a verdadeira questão que tal crise nos coloca é política: que regime político é este que permitiu um descalabro deste tamanho na calada da noite?
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 21/06/2011.

Questionar dogmas

Amir Khair

O dogma pode ser caracterizado como sendo uma crença estabelecida sobre a qual não cabe discussão. É muitas vezes usado para se referir a qualquer crença que é mantida insistentemente.

Muitas vezes repetida, determinada ideia acaba por se assemelhar a um dogma. Na economia têm sido usadas pelas análises tradicionais duas afirmações que se assemelham ao conceito de dogma: 1) a economia não pode crescer acima de determinado nível, pois ocorrerá necessariamente inflação; 2) a Selic só poderá cair depois que caírem as despesas do governo federal.

1º Dogma. Crescimento x Inflação: o conceito de produto potencial é normalmente usado como sendo o máximo crescimento que é possível alcançar sem causar elevação da inflação. É uma simplificação de uma realidade complexa de vários fatores que atuam sobre o crescimento e a inflação de origem interna e externa ao país. A globalização comercial e financeira invadiu a “tranquilidade” que reinava nas economias nacionais e passou a ter importância crescente na determinação do crescimento e na inflação de cada país, e de forma mais intensa quanto mais exposto ao comércio e sistema financeiro fora de suas fronteiras.

Quando ocorre um processo inflacionário em escala internacional, como uma crise na oferta de petróleo, crescem os custos dos seus derivados, dos produtos petroquímicos, da energia e dos fretes que dependem do óleo diesel. O mesmo vale para choques de oferta de alimentos e metais.

Como o último movimento da elevação da inflação começou a acorrer em escala global a partir de meados de 2010, com a subida dos preços dos alimentos e commodities (incluindo petróleo, alguns alimentos e metais), os países passaram a combatê-la com os instrumentos fiscais e monetários ao seu alcance.

Os países desenvolvidos, com economias estagnadas, sentiram menos seus efeitos, pois o consumo e o investimento se encontram, desde a crise de 2008, em níveis baixos e, as taxas de desemprego, ao redor de 10%, com a população envolvida em dívidas geradas pelo excesso de financiamentos, especialmente o imobiliário.

O mesmo não está ocorrendo nos países emergentes, que apresentam crescimentos ao nível do que vinha ocorrendo antes da crise de 2008. Assim, o consumo e o investimento continuam permitindo o desenvolvimento natural que vinha ocorrendo e, estão sofrendo um pouco mais de pressão de demanda, que criou uma elevação de preços mais acentuada do que nos países desenvolvidos. Diante desse quadro, há que tomar decisões que possam otimizar os benefícios da continuidade do crescimento, com razoável controle do processo inflacionário. Medidas de abrandamento da liquidez e elevação dos juros foram acionadas pelos emergentes, mas dentro de níveis compatíveis a não sacrificar o crescimento.

Por outro lado, foram ativados os investimentos para elevar a capacidade de atendimento de bens e serviços em expansão. Assim, o controle inflacionário é atacado pelas suas duas frentes: elevação da oferta e regulação da demanda por adequação do nível e condições do crédito de forma a não artificializar o consumo, criando riscos de elevação da inadimplência dos consumidores. No âmbito dessa política de manter o crescimento econômico com controle inflacionário, chama mais a atenção a questão das taxas de juros reais das diversas economias dentro desse processo. Era de se esperar que, para conter a inflação, as taxas reais de juros dos emergentes subissem para ficar no campo positivo. Não foi o que ocorreu. Nos países desenvolvidos, mais preocupados em retomar o crescimento, as taxas reais de juros foram para o campo negativo.

Logo após a elevação da Selic pelo Copom para 12,25% ao ano, no último dia 9, a Corretora Cruzeiro do Sul apresentou o ranking das taxas básicas de juros reais de uma amostra representativa das 40 principais economias. O Brasil liderou essa relação com 6,8%, mais de quatro vezes superior ao Chile, o segundo, com 1,5%. Os emergentes, exclusive o Brasil, apresentaram taxa negativa de 0,8% e, os desenvolvidos, taxa negativa de 1,4%. A média do conjunto dos 40 países foi de 0,9% negativa.

Chama a atenção o fato de ser tão discrepante a situação dos juros no Brasil e, isso merece prioridade de preocupação não apenas do governo federal, mas de toda a sociedade. O que poderia justificar tamanha discrepância? Segundo as análises tradicionais lideradas pelo mercado financeiro, essa taxa de juros é a necessária para evitar que a inflação dispare, pois existe um excesso de demanda que deve ser combatido com uma taxa de juros que desestimule o consumo e, embora não declarado, o investimento, pois ele é parte integrante da demanda.

Assim, seria necessária forte contenção do crescimento para ficar abaixo do famoso produto potencial, que é uma medida teórica que varia conforme o interesse maior ou menor de apertar o deslanche da economia.

Por essa corrente de pensamento, é preciso abortar o crescimento para um ritmo inferior a 4% ao ano, ou seja, estamos condenados a crescer bem menos que os emergentes, de 6,5%, segundo o FMI, embora se tenha potencial de crescimento acima de 5%.

O que importa é continuar crescendo, mas procurando manter o controle sobre os fatores ao alcance do País para minimizar o impacto inflacionário. É falsa a afirmativa de que o combate à inflação deva se dar encolhendo a economia via elevação da Selic. O tiro pode sair pela culatra, pois ao elevar a Selic, reduz a possibilidade de as empresas investirem, o que prejudica a ampliação necessária da oferta de bens e serviços.

2º Dogma. A Selic só poderá cair depois que caírem as despesas do governo federal: é comum avaliar a questão fiscal apenas pelo lado das despesas de custeio. A fragilidade dessas análises é: 1) só considerar as despesas do governo federal, ignorando que Estados e municípios respondem por metade da despesa do setor público; 2) não considerar como despesa os investimentos e os juros; 3) não considerar os reflexos que determinados tipos de despesas de custeio (transferências de renda) geram crescimento e arrecadação superior às despesas que foram usadas.

A Selic pode cair sim, e já deveria ter caído há muito tempo. Aliviaria parte substancial da despesa do setor público, reduziria a demanda pelo efeito riqueza, reduziria rapidamente a relação dívida/PIB, reduziria a bomba de sucção da especulação internacional propiciada pela Selic, reduziria o custo das reservas internacionais e não artificializaria o câmbio.

Embora fundamental nas despesas públicas a gestão eficiente, eficaz e efetiva, toda economia em despesas (custeio, investimento e juros) deve ser usada não para reduzir a despesa pública, mas rentabilizá-la para permitir a redução do elevado déficit social e de infraestrutura do País. Para isso, o aliado mais importante é o crescimento econômico via incorporação de amplas camadas da população ao mercado formal de trabalho, que é a meta perseguida pelo governo. É melhor deixar os dogmas no campo da fé religiosa.

Amir Khair é mestre em Finanças Públicas pela FGV e consultor
* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 20/06/2011.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Teleproblemas

Maria Inês Dolci

Por que as operadoras de telefonia estão boicotando o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL)?

Pelo mesmo motivo que as leva a prestar um serviço ruim e caro -dos mais caros do mundo, aliás. Porque "há algo de muito errado no reino das telecomunicações".

O PNBL nem é um plano tão ousado assim, uma vez que pretende levar internet a 68% dos domicílios, com velocidade de até 1 Mbps, por até R$ 35. Convenhamos que o "até 1 Mbps" ainda nos deixará longe da banda larga de outros países.

Mas, pelo menos, o PNBL fixa um teto de preço e tem abrangência boa, uma vez que o acesso à internet é fundamental para que os cidadãos não fiquem fora do mundo digital, inclusive em termos de informação e de conhecimento.

A exclusão digital, hoje, tende a se transformar em perda de qualidade de vida e em limitação no mercado de trabalho. Consequentemente, com queda de rendimento e de ascensão social.

É preciso que o governo federal aproveite esse episódio -a resistência das teles- para mudar o tratamento que recebem quando não retornam aos consumidores o que cobram por seus serviços, principalmente em telefonia móvel.

Uma das saídas para o impasse -a ameaça de convidar empresas estrangeiras para o PNBL- deveria valer também para os demais serviços de má qualidade.

Há certa reserva de mercado que não se justifica, pois as companhias são privadas.

Nunca é demais lembrar que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) trata as teles a pão de ló, como se dizia antigamente.

Por exemplo, a agência se nega a tornar pública a lista dos bens, como imóveis e softwares -que devem retornar à União em 2025. São os chamados "bens reversíveis". Muitos desses bens já foram vendidos, embora a Lei Geral de Telecomunicações proíba que isso ocorra sem a autorização da Anatel.

Então, há por aqui um estranho panorama: tarifas caríssimas, serviço ruim, tratamento meia-boca e total e absoluta complacência da agência reguladora e do Ministério das Comunicações com as companhias responsáveis por essas infrações ao Código de Defesa do Consumidor (CDC). Somente isso já valeria uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso, para que os brasileiros saibam o que há por trás das telecomunicações no país.

A impressão que fica é a de que as operadoras de telefonia fazem o que fazem porque são grandes e fortes. Que não há ninguém, entre as autoridades dos três Poderes, com coragem para enfrentá-las.

Até agora, a presidente Dilma Rousseff sinalizou mudanças no relacionamento com as operadoras.

Primeiramente, ao exigir mais velocidade no PNBL. E, como a Folha noticiou, teria autorizado o convite a empresas estrangeiras para participar do PNBL, se a resistência das operadoras continuar.

São reações adequadas, mas há que mudar o principal, no dia a dia de atuação dessas empresas. Não por acaso, são elas que lideram os rankings de reclamações dos órgãos de defesa do consumidor.

As operadoras móveis querem participar da popularização da banda larga. Aqui, caberia uma avaliação criteriosa, porque também não se destacam pela qualidade dos serviços prestados.

Uma das áreas vitais para o desenvolvimento de uma nação moderna está, então, nas mãos de empresas que deixam muito a desejar em todos os sentidos, inclusive bens públicos, que retornarão à União em pouco mais de dez anos, se não forem dilapidados até lá.

Ninguém está satisfeito, mas as providências para mudar esse quadro não parecem suficientes.

Não há nada que justifique a tranquilidade com que as companhias dessa área passam por cima dos interesses dos consumidores.

Queremos somente bons serviços, a preços justos. Não é pedir demais, exceto se as teles, como os bancos, tiverem licença e proteção para fazer as coisas como acharem certo, mesmo quando estiverem erradas.

É uma resposta que os cidadãos esperam para ontem.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/06/2011.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Democracia


Glauber Piva

Será que alguém ainda acha que os dias que correm são apenas a sucessão de mesquinharias sem importância? Nas ruas de São Paulo, a violenta e intolerante polícia militar alimentou seus calos com flores. Nas praças de Madrid, os jovens trocaram os botellóns por gritos por mudança. Em países árabes, ruas e praças se fizeram ágoras pulsantes. Na internet, uma criação militar pra fins de controle, vemos as relações serem reinventadas e lideranças consolidadas serem desdenhadas. Você acha mesmo que vivemos dias de mesquinharias sem consequências?

Jovens e não-jovens de São Paulo e do mundo parecem resignificar o mundo com suas lutas e suas armas. Marcam encontro em novos lugares, republicizam as ruas e dão novo fôlego à idéia de que cidadania é o direito a ter direitos; o direito a inventar novos direitos. Como nos lembrou José Luis Fiori dia desses, ao citar Foucault, “foi de mesquinharia em mesquinharia, de pequena em pequena coisa, que finalmente as grandes coisas se formaram”. Para Foucault, toda grande mudança teve “pequenos começos, baixos, mesquinhos, inconfessáveis.”

Algo me diz que uma grande mudança se avizinha. Não acredito que o capitalismo vá fraquejar e se perder. No âmbito das relações econômicas, o sistema saberá se adaptar. Isso quer dizer, portanto, que talvez não estejamos às portas de uma revolução (no sentido de ruptura de modelos e mudança de classe no exercício do poder), mas talvez estejamos naquele breve intervalo mesquinho e tênue que divide o deslumbre do vislumbre. E isso, em si, já pode ser muita coisa.

Na cultura, por exemplo, há um novo modo de produção instalado. E isso é uma alteração tecnológica que transforma definitivamente a relação do público com sua própria cultura. E, pra não dizer que não falei das flores, a cultura, suas mesquinharias, seu modo de produção, de exercício e de fruição tem mais a ver com a foto acima do que imaginam filósofos de filosofias vãs.

* Glauber Piva é sociólogo e diretor da ANCINE.

Chega de Danos

Amir Khair


O Brasil ainda não se livrou do veneno que o impede de ter uma economia saudável e de crescer de forma sustentada, com baixa inflação, contas internas e externas equilibradas e forte distribuição de renda. Esse veneno é a Selic, a mais alta taxa básica real de juros do mundo há anos, que deteriora nossos fundamentos macroeconômicos. O mercado financeiro diz ser ela necessária para controlar a inflação. Mas, além de não conseguir isso, cria problemas fiscais, cambiais e desestimula investimentos. Essa jabuticaba brasileira passou a criar mais danos após a crise de 2008.

Tsunami de dólares. Para sair da crise de 2008, os bancos centrais dos países desenvolvidos injetaram trilhões de dólares, euros e ienes para socorrer seus sistemas financeiros, entupidos de títulos pobres. Assumiram dívidas e déficits fiscais elevados, a serem pagos pela população via aperto fiscal. Foram cortados direitos e salários, o consumo despencou, cresceram o desemprego, a tensão social e a instabilidade política.

Os emergentes não tinham títulos podres, estavam crescendo, enfrentaram bem a crise e fortaleceram sua posição no mercado global, sem grandes sacrifícios às suas populações, mantendo taxas de juros reais próximas de zero. O Brasil, porém, buscou retomar o crescimento, mas manteve a Selic alta, o que acelerou a desindustrialização, elevou déficits fiscais e agravou o rombo nas contas externas.

Há fortes indícios de que os desenvolvidos, sem perspectivas de ampliar o consumo interno, continuarão a elevar a liquidez, desvalorizando suas moedas para aumentar seu poder competitivo nas exportações e, assim, gerar empregos.

Diante dessa avalanche de liquidez, à procura de ganhos com juros mundo afora, o Brasil é o preferido. Não adianta o governo reclamar dos EUA pela emissão de dólares, nem da China por manter sua moeda acompanhando a desvalorização do dólar. Nem esperar que, elevando o IOF para 6%, irá deter essa avalanche de dólares. Há várias portas de escape usadas pelos especuladores internacionais, como as megaentradas artificiais de Investimentos Estrangeiros Diretos, que não têm IOF. No primeiro quadrimestre, cresceram 135% sobre o igual período de 2010.

Os danos da política de atração dessa liquidez pela Selic são muitos, não cabem no espaço deste artigo. Eis alguns.

1) O custo de todos os programas governamentais para a população de baixa renda é de 1,1% do PIB. Com juros, que beneficiam as camadas de renda média e alta, o custo é de 5,6% do PIB. É uma distribuição de renda às avessas.

2) O Banco Central, ao elevar a Selic, atrai mais ainda a liquidez externa, que eleva a oferta de empréstimos, estimulando o consumo. Depois reclama que a invasão de liquidez prejudica a inflação (???).

3) Pagamos 5,6% do PIB de juros, ante uma média internacional de 1,8%. Jogam-se fora 3,8% do PIB, que poderia ser usado para elevação dos investimentos, redução da carga tributária, ampliação dos programas de renda e melhora na área social.

4) A supervalorização cambial, devido à Selic, cria um rombo externo desde 2008 e pode atingir, neste ano, US$ 60 bilhões!

5) O diferencial entre juros internos e externos custou cerca de R$ 50 bilhões em 2010 para manter as reservas internacionais do País. Neste ano, poderão ser R$ 60 bilhões!

6) Inibe investir com risco na produção, quando a Selic dá bons ganhos sem risco, com liquidez imediata.

7) Com supervalorização cambial, tudo lá fora ficou mais barato (Importação de produto acabado dispara, Estado, 5/6). Daí o boom das importações e do turismo externo. Para piorar a competitividade, o alto custo Brasil.

Diante de todos esses danos, é lamentável a decisão do Copom de continuar aumentando a Selic, conforme o desejo do mercado financeiro. Mais danos virão. Segundo a corretora Cruzeiro do Sul, a taxa real de juros avançou para 6,8% ao ano, mais do que quatro vezes o 2.º colocado, o Chile, com 1,5%. A taxa média de juros de 40 países pesquisados está negativa em 0,9%.

Chega de danos! Vamos baixar a Selic ao nível internacional e combater a inflação por mais limitação do crédito ao consumo, via maior exigência de capital e de depósito compulsório ao sistema financeiro.

AMIR KHAIR É MESTRE EM FINANÇAS PÚBLICAS PELA FGV E CONSULTOR
* Publicado em O Estado de S. Paulo, em 10/06/2011.

Vitória do lulismo

Vladimir Safatle

A eleição peruana que deu a vitória a Ollanta Humala é, em vários sentidos, paradigmática. Primeiro porque demonstra como a direita latino-americana é uma espécie de movimento que sempre volta ao mesmo lugar.

Contra uma candidatura que julgam desfavorável aos "mercados" e disposta a questionar um modelo econômico marcado por crescimento com concentração de renda e desigualdade, a velha tríade empresários/igreja/setores hegemônicos da mídia se dispôs a sustentar qualquer um.

No caso peruano, "qualquer um" era Keiko Fujimori, a representante orgânica de uma das épocas mais sombrias da história recente da América Latina. Filha de um ex-presidente preso por violações brutais contra os direitos humanos, golpe de estado e ações como a esterilização forçada de cerca de 250 mil mulheres indígenas pobres.

Essa mesma tríade nunca teve problemas em apoiar ditadores, caudilhos, desde que sentisse que as peças do poder estavam mudando de lugar. Isto a ponto de um dos raros verdadeiros liberais do continente, o escritor Mario Vargas Llosa, escandalizar-se com a ausência de cerimônia no apoio de outros ditos liberais a um projeto político que significava o coroamento da mistura entre autoritarismo político e ações econômicas liberais impostas com a força de choques elétricos. Mistura tipicamente latino-americana, já louvada por Milton Friedman em carta de elogio a Pinochet.

Por outro lado, a vitória de Humala demonstra a força de exportação do lulismo e os limites do chavismo como referência para a esquerda latino-americana. Enquanto vestiu o figurino chavista, Humala perdeu.

Quando usou a receituário do lulismo, ganhou.

De fato, Lula consolidou a imagem de uma certa "esquerda bipolar" que visa usar o Estado para dar conta dos interesses do setor financeiro e do empresariado, enquanto cria amplos sistemas de assistência social capazes de minorar a pobreza.

Uma esquerda que se esmera em jogar em dois tabuleiros na esperança de diminuir os conflitos políticos, ao contrário do que ocorreu na Venezuela, no Equador e na Bolívia. Foi esta a via que escolheram Mauricio Funes (El Salvador), Fernando Lugo (Paraguai) e José Mujica (Uruguai): figuras de um tipo de Internacional Lulista em formação.

Tal lógica bipolar tem limites, já que a modificação dos processos estruturais de produção da desigualdade econômica (como baixos impostos para ricos, ausência de mecanismo de limitação do consumo conspícuo e de investimento estatal em saúde e educação) são evitados por coalizões governamentais heterodoxas. Mas parece que ela mudou completamente o cenário político latino-americano.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 07/06/2011.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Somo tudo palaciano

Roberto DaMatta

Com o devido respeito, mas nessa era petista, quando misturamos o pior do mercado com o mais desonesto estatismo, o caso Palocci ultrapassa a trivial suspeita de enriquecimento indébito. Ele contempla aspectos típicos do lulopetismo, bem como o passado do suspeito, mas vai adiante. Mais uma vez ele nos põe diante de nós mesmos, já que todos somos palocianos ou palacianos e temos a certeza de que, uma vez na panelinha, a "ética da condescendência" que sustenta o nosso espírito ainda patronal-escravocrata salva qualquer um do inferno. Mesmo quando se fala errado e relativiza-se o moralismo da língua culta, vendendo (eis o que conta) milhares de livros ao Ministério da Educação. A questão, entretanto, é que esse aumento patrimonial comicamente extraordinário abre uma porta sequer ventilada pela teoria política nacional.

Refiro-me ao fato de que, no Brasil, o Estado não é um instrumento da burguesia, como manda o velho Marx. É, isso sim, um veículo de enriquecimento e de aristocratização de seus funcionários, na razão direta de sua importância dentro das suas burocracias. Basta tabular o aumento patrimonial dos seus membros situando o quanto possuíam e quanto eles amealharam depois que cumpriram os tremendos sacrifícios de fazer parte do poder para verificar o triunfo da mendacidade com o povo, pelo povo, e para cada um de deles!

Na relação até hoje mal estudada entre o Estado (com suas leis) e a sociedade (com seus costumes e tradições), esses casos revelam algo típico da tal América-Latina: o fato de que o Estado é hierarquicamente superior à sociedade. Ele traz à tona o mito segundo o qual, quando Deus nos inventou, Ele primeiro fez o Estado (com seus caudilhos, ministros, secretários, puxa-sacos e toda a malta que estamos fartos de conhecer), e depois fez uma desprezível sociedade com a sua miscigenação, os seus burgueses, sua abjeta classe média e a massa de miseráveis com escolas (mas sem professores respeitados e bem pagos); com hospitais (mas sem médicos); com delegacias (mas com policiais bandidos) e com essa esquerda autocomplacente que inventou a bolsa-ditadura, que anistia destruidores da floresta e que ama o atraso.

Quando surge a suspeita de um enriquecimento ridiculamente excepcional, como esse de Antonio Palocci - imagine, leitor, você em quatro anos ter mais 19 apartamentos, mesmo pequenos como o seu! -, batemos de frente com um aspecto pouco visto. Refiro-me ao fato de tanto a direita quanto o centro e a esquerda serem todos viciados em Estado! A estadofilia, estadomania e estadolatria é o cerne do nosso republicanismo, é ele - supomos! - que vai corrigir a sociedade. Por isso é centralizador, autoritário e perdulário. Ele usa leis para não mudar costumes.

Num país do tamanho do Brasil é impossível não desperdiçar recursos com a centralização. É impossível controlar de Brasília o que se passa no cu de judas! Mais: nada melhor para a ladroagem, para o tráfico de influência e para o furto cínico dos dinheiros do povo do que essa concepção de um Estado autista, com razões que só ele conhece. Um órgão engessado em si mesmo e avesso ao mercado e a qualquer tipo de controle, competição ou competência. Tudo isso que o lulopetismo endossou por ignorância e/ou malandragem, mas que ainda goza de um inigualável prestígio junto da nossa opinião pública dita mais esclarecida que tem horror ao mercado.

Por quê? Porque esse é o resultado da operação de um Estado feito de parentes e amigos que eram de sangue e hoje - eis a contribuição petista - são ideológicos. Um Estado autocomplacente e referido, como mostra esse vergonhoso governo de coalizão que serve primeiro e si próprio, depois a si mesmo e, em terceiro e último lugar, aos seus adoradores. Jamais lhe passa pela sua cachola, cheia de prêmios a serem distribuídos aos seus compadres, servir à sociedade que o sustenta.

Numa estadolatria, há alergia a competição e a seguir o básico das repúblicas: atribuir responsabilidade. Daí o "eu não sabia", pois todos concordam com o descalabro, mas nada acontece. Como punir o ministro? Como sair de um viés aristocrático que foi justamente a matriz social dos republicanos que queriam ser presidentes, fiscais do consumo, embaixadores, ministros do Supremo e senadores? As mensagens não passam nessas redes administrativas em contradição cujos agentes sabem que enriquecer fácil significa criar dificuldade para vender facilidade. Algo simples de fazer nas sucessivas aristocracias que têm usado o liberalismo político como um disfarce para assaltar o Brasil. Em outras palavras: o governo dá para seus filhos; nós, os trabalhadores assalariados que não temos cláusulas secretas com quem nos paga, como é o caso do Palocci, pagamos a conta!

Será que ninguém sacou a burrice de aplicar marxismo burguês a um Brasil tocado a escravidão? Um país com uma burguesia contra máquinas e toda ela apadrinhada por si mesma? Eu fico com vergonha ao ler como a nossa burguesia é reacionária quando sei que a modernização política do Brasil foi feita por um avô fujão, por um filho mau-caráter e por um neto que não sabia o que acontecia em sua volta. A partir das repúblicas de 89, contam-se nos dedos os administradores e políticos que não multiplicaram por 20, 200 ou 2.000 seus patrimônios graças ao controle de um pedaço do Estado!

Palocci é juvenil perto dos outros que, se citados, tomariam todo o espaço de um jornal. Aguardo suas explicações que serão normas de ouro para o enriquecimento blitzkrieg.
 
* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 01/06/2011.

Dilma e as provas de fogo

Aldo Fornaziari

Por ocasião da passagem dos cem dias do governo Dilma produziram-se, de modo geral, dois tipos de análises, ambos equivocados. Uns cobravam da presidente a realização de um programa impossível de realizar em tão curto espaço de tempo. Numa conjuntura de continuidade, como é a atual, em cem dias não havia como fazer muita coisa diferente do que foi feito. Outros vislumbraram uma mudança extraordinária no governo e novos rumos imprimidos por Dilma em relação ao governo Lula. O estilo recatado e gerencial de Dilma era apontado como qualidade nova e essencial que, por si só, já atestaria o sucesso do governo. O suposto gerencialismo de Dilma foi usado como um antídoto para combater o politicismo e o dirigismo de Lula.

A ênfase no gerencialismo, quando se trata da discussão das qualidades de um governante, representa um significativo equívoco. As qualidades que se requerem de um líder político são bem diversas das de um bom gerente. O gerente, como regra, lida com situações definidas, com orçamentos adequados, com altas condições de controle de variáveis e com situações e obediências quase expressas de subordinados. O líder político lida com conjunturas de imprevisibilidade, com recursos escassos e com alto grau de conflitos. Precisa dirigir e orientar o povo, coordenar aliados e combater adversários. Precisa lidar com o impacto de ações de múltiplos sujeitos sobre o Estado e sobre o governo. Do governante se requer o domínio da arte política e virtudes bem diversas das do gerente.

Se o líder político tiver capacidades gerenciais, tanto melhor. Mas, a rigor, não precisa tê-las. Recruta quem as tem. Ele precisa ter capacidade de comando, de direção e de imprimir sentido à ação de liderados e à sociedade. Um bom gerente poderá ser um bom governante. Mas não o será por ser um bom gerente, mas por ter qualidades políticas pertinentes.

Como se sabe, a presidente Dilma, em sua carreira pública, foi mais afeita a funções gerenciais que de liderança política propriamente dita. Para ter êxito como presidente terá de se tornar líder política no sentido estrito da expressão. Passado o período do crédito político obtido pela vitória, pela herança positiva do governo Lula e pela alta expectativa que o povo sempre nutre pelos novos governantes, agora Dilma começa a ingressar num período de provas de fogo, no qual sua capacidade de liderança política será cada vez mais testada.

Dilma enfrentou prematuramente uma prova de fogo: a crise envolvendo o ministro Palocci. Permanecendo Palocci no governo ou saindo, Dilma e o governo estão arcando com um desgaste inevitável. O problema é saber qual será o menor desgaste: manter Palocci ou afastá-lo. Em episódios desse tipo, a melhor teoria maquiaveliana do bom governo tem recomendações expressas. O líder - no caso, Dilma - deve prestigiar apenas ministros que honram o governo por sua eficácia, sua competência e seu compromisso com a coisa pública. Nos demais casos, o líder não deve fidelidade a ministros. São os ministros que devem fidelidade ao governante. O governante deve, acima de tudo, fidelidade ao povo que o elegeu. Lula e FHC, de modo geral, procederam bem nesses casos: desfizeram-se de ministros problemáticos. Um governante precisa saber que da mesma forma que não pode ter superministros, pois estes enfraquecem a figura do líder, não pode julgar nenhum ministro insubstituível. Supor a existência de ministros insubstituíveis é um indicador de fraqueza do próprio governante.

A crise envolvendo Palocci e a derrota do governo na votação do Código Florestal confirmam a ideia de que o principal desafio de Dilma é político. A intervenção de Lula para controlar a crise, embora aparentemente necessária, é inadequada para Dilma, pois sinaliza a sua dificuldade de condução política. Por outro lado, continua valendo a tese de que denúncias de corrupção poderão ser fatais para o êxito político do governo Dilma. Governantes que não têm um lastro de enraizamento popular são muito mais suscetíveis de perder prestígio e credibilidade em face de denúncias. Denúncias, além de municiarem a oposição com poder de fogo, aumentam o poder de barganha dos aliados sobre o governo.

Na verdade, a construção política que está sendo processada em torno da figura da presidente Dilma já vinha apresentando sinais de equívocos e de limites antes da crise Palocci. A ideia de uma presidente recatada e recolhida, pouco exposta ao público, é equivocada. Por vivermos numa sociedade dinâmica, marcada pela mobilidade social e definida por uma sociabilidade emotiva, requer-se um governante presente e ativo no comando e na orientação dos rumos políticos, sociais e econômicos do País.

A presidente da República deve ser o centro da agenda política do País. Seu contanto com o público, com a opinião pública, deve ser permanente, orientador dos rumos do País e renovador das esperanças. Mesmo em momentos de calmaria política e de ausência de perturbações o governante deve renovar as esperanças do povo e da nação, despertando suas energias e potências, dirigindo o presente apontado o futuro. Sem esta fantasia real e mobilizadora não há bom governo.

O espaço político não comporta vazios. Ou é ocupado por quem governa ou será ocupado pelo advento dos imprevistos, da má fortuna e pela agenda negativa. Poderá ser também ocupado pelo aparecimento de uma nova liderança ou pela oposição. Mas, neste ponto, como a oposição também está em crise, Dilma não deixa de ter sorte. O problema todo é que a política do País pode mergulhar num período de anomia e apatia, e isso não é bom para o Brasil, que precisa de virtudes republicanas e competência dos líderes e governantes para enfrentar os desafios do século 21.
 
* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 01/06/2011.