quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Preconceito dá prejuízo

Marcelo Miterhof

 
No último dia 12, um menino negro de sete anos, filho de um casal de brancos, foi destratado pelo gerente de uma concessionária da BMW no Rio de Janeiro, que ao vê-lo se aproximar teria dito: "Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é lugar para você. Saia da loja. Eles pedem dinheiro e incomodam os clientes".
 
O fato é uma lamentável demonstração de preconceito, mas não é surpreendente. Em razão da notícia, a rádio CBN reapresentou uma reportagem na qual dois repórteres, um negro e outro branco, de idades próximas e vestindo roupas parecidas, testaram o atendimento que receberiam em estabelecimentos comerciais cariocas.
 
O tratamento dado ao negro foi sistematicamente pior e em boa parte das vezes nem sequer foi atendido. Em uma loja de roupas masculinas, ao branco foi oferecido um terno de maior qualidade, e, ao negro, o mais barato.
 
O diabo é que os preconceitos se devem a uma poderosa capacidade humana, a de fazer generalizações a partir de experiências limitadas. Poderosa, mas falível.
Preconceitos como o racismo ou o sexismo são frutos de generalizações indevidas e estigmatizadoras. Porém, sem conceitos prévios (preconceitos), que permitam tomar decisões rápidas, teríamos dificuldade para fazer coisas simples, como dirigir ou escolher um restaurante sem ter uma indicação.
 
Ainda assim, vale uma constatação etimológica: preconceito é sinônimo de prejuízo (em inglês, preconceito é "prejudice"). Nossos antepassados, ao criar suas línguas, perceberam que conceitos ou juízos prévios costumam levar a perdas, a ideias equivocadas. A loja da BMW teve um baita prejuízo com o episódio. Evitar comer um queijo mofado pode ser sensato, mas corre-se o risco de desprezar uma iguaria.
 
Isso não significa que se deva deixar de fazer generalizações, mas uma certa parcimônia é proveitosa. No caso da concessionária, o tratamento dado a uma criança que se aproximava foi indevido mesmo que ela não fosse filha de clientes.
 
Um bom vendedor se esforça para atender a todos bem, mesmo que muitas vezes perca tempo. Contudo, a força da capacidade humana de generalizar costuma prejudicar o exercício desse tipo de cuidado.
 
No Brasil, ser negro é uma marca de pobreza. Tal generalização não só condiz bem com a realidade como carrega outras generalizações associadas à pobreza. Por exemplo, se num comércio de luxo aparece uma criança pedindo esmolas, é provável que muitos clientes prefiram ver o gerente colocando-a para fora da loja a ter que lidar com o incômodo da pobreza que existe no país.
 
Os casos destacados não são surpreendentes, portanto. Por isso, em 19/07/2004, defendi em artigo publicado na Folha que as cotas raciais devem servir para diversificar a elite brasileira, de forma que ela passe a espelhar melhor a pluralidade étnica da população.
 
Crescimento econômico, redução das disparidades sociais e políticas públicas, como educação boa e universal, são cruciais para o país ser melhor, mas não tendem a tornar a elite mais plural.
 
Nos EUA, há uma significativa elite negra. A riqueza americana contribui para isso, mas o país já era rico quando, nos anos 60, Kennedy teve que mandar tropas federais para garantir a matrícula de negros na Universidade do Alabama. Depois, vieram as cotas raciais e os direitos civis. Hoje, o presidente da República é negro.
 
Anos depois desse primeiro artigo, a constatação é que o debate das cotas ajudou a colocar o tema racial na agenda brasileira. O percentual de autodeclaração de negros e pardos no censo do IBGE subiu significativamente. Os estudantes cotistas têm em geral bom desempenho acadêmico.
 
Apesar desses bons resultados, muitos entendem que as cotas racializam o país. Talvez, mas nesse caso é preciso apresentar outras opções para desrracializar a sociedade brasileira, pois isso é um fato, como mostram os exemplos dados.
 
Outros acreditam que o problema é existirem elites. Como a existência de elites é insofismável, prefiro que a brasileira não seja apenas branca. Tampouco sou contra as elites, que podem ter papéis importantes, como o de garantir que numa democracia a vontade da maioria seja temperada pelos direitos individuais.
 
Ruim é o elitismo, que ocorre quando a elite acredita que quem atrapalha o país é o seu povo. Para isso, a diversificação da elite é um bom remédio.
 
O poder econômico é uma arma poderosa contra os preconceitos.
 
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 31/01/2013.
* Marcelo Miterhof é economista do BNDES.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A devoção como política

Eugênio Bucci



O livro de memórias de Fernando Gabeira, Onde Está Tudo Aquilo Agora? - Minha Vida na Política (Companhia das Letras, 2012), narra os descaminhos da militância de esquerda como se relatasse os descompassos de uma seita primitiva. Em trechos espirituosos, ou mesmo espirituais, o autor aponta a associação fervorosa entre o engajamento na guerrilha e o fanatismo dos crentes. "Minha experiência tinha um ardor religioso", escreve ele sobre o período em que, jornalista bem empregado no Jornal do Brasil, resolveu mergulhar de cabeça na clandestinidade, com nome de guerra e documentação falsa, pouco tempo depois da decretação do AI-5. "O batismo com um novo nome era apenas o começo. Novos valores iriam compor meu universo, uma nova fraternidade se instalaria nas relações com os companheiros de luta e simpatizantes que se arriscavam para nos proteger." Nascia ali, para o narrador, uma comunidade de feitio religioso.

Gabeira, ex-guerrilheiro do MR-8 que tomou parte no sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, não hesita em apontar a devoção como ingrediente indispensável na têmpera dos que, como ele, queriam ser soldados do povo. Até nos aspectos mais prosaicos. Por exemplo: ele detestava acordar cedo, mas se resignou a esse dever revolucionário graças à consciência transcendente de que tinha a História em suas mãos. "Acreditar nas premissas da revolução, saber que estávamos construindo o futuro, que o socialismo compensaria a todos segundo seu trabalho, o comunismo a todos segundo suas necessidades - tudo isso ajudava a enfrentar a aspereza de saltar da cama. Tudo isso e um café amargo."

Na saborosa narrativa de Onde Está Tudo Aquilo Agora?, "acreditar nas premissas da revolução" equivale a crer em Deus, como se os neurônios ativados no cérebro do militante que acorda bem cedinho fossem os mesmos que se acendem na cabeça de um místico em oração. A chave para ingressar no combate armado seria (também) de fundo religioso, e não só racional ou "científica".

Ao contar da freira caridosa que cuidava dele num leito de hospital na Ilha das Cobras - em consequência de um tiro que levou nas costas quando foi preso -, o ex-preso político não perde o humor e tece um inspirado paralelo entre suas velhas convicções materialistas e a fé em geral. "Ela (a freira) era muito gentil, tratava-me como se eu fosse uma alma penada precisando de conforto. E tão generosa que não tive coragem de tocar no tópico 'crença religiosa': nada de discussão, defesa do materialismo." Em outra passagem, chama de "mitologia" a idolatria dos que tombaram em armas contra "o capitalismo, o imperialismo e outros ismos". Dessa "mitologia" ele retirava suas forças "para suportar a dor".

O olhar, mais do que crítico, ferino, com que Fernando Gabeira soube se afastar do fanatismo dos vigilantes da ortodoxia já fez escola. Sua tanga de crochê no célebre "Verão da Anistia" ganhou o status de marco simbólico na agenda da reconstrução da democracia brasileira (a tanga, aliás, é personagem de Onde Está Tudo Aquilo Agora?; Gabeira zomba do pessoal que achava que aquela indumentária sumária não era "coisa de homem"). Outro livro dele, O Que É Isso, Companheiro?, hoje clássico, não foi outra coisa senão um libelo contra a caretice ultraconservadora da militância - conservadora porque baseada em dogmas comportamentais. Só por essa lucidez, que o distingue e o dignifica, Fernando Gabeira merece ser lido uma vez mais.

Antes dele, é bem verdade, outros já haviam anotado - e muito bem - os mesmos traços irracionais e irracionalistas da militância daqueles tempos. Betinho foi um deles. Após abandonar o maoismo, ele acabou se tornando um símbolo suprapartidário de solidariedade e grandeza. Antes, porém, teve a coragem de elaborar uma crítica interna impiedosa. Em depoimento publicado no volume 1 de Memórias do Exílio, obra coletiva organizada por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos (publicado originalmente em Portugal, em 1976, e em 1978 no Brasil, pela Editora e Livraria Livramento Ltda.), Betinho denuncia a religiosidade das organizações comunistas: "Ao chegarmos a adotar o maoismo como religião em 1968-1969", diz ele, "tínhamos uma base para isso. Por que fomos nós e não os outros grupos? Nós saímos da Ação Católica e os outros, não. Depois de Cristo, deu-se o vazio, mas o maoismo chegou e o camarada Mao pegou de novo a bandeira".

Por essas e outras, ele conclui, taxativo: "A tendência geral da esquerda brasileira é religiosa. É equívoco pensar que a esquerda é antirreligiosa. A tendência geral da esquerda na América Latina é ser religiosa. Porque ela vem de um padrão dogmático".

Com todo o respeito a Betinho, talvez não se deva ir tão longe com essa generalização. É preciso admitir, nem que seja por uma cautela metodológica, a possível presença de alguns ateus autênticos dissolvidos nos tais "movimentos sociais organizados". Mas, a despeito de eventuais ateus ou agnósticos, a postura devocional parece dar a tônica nesses ambientes.

A histeria com que certos militantes se recusam a debater em público as mazelas dos partidos de esquerda chama a atenção - não por ser uma demonstração virtuosa de disciplina partidária, mas por ser um sintoma de silêncio obsequioso. Estamos falando, pois, de servidão, de adoração, de culto. Estamos falando de condutas reverenciais, não de atitudes de livres-pensadores.

Não estamos falando sequer de política, pois a política que se rende a tantos dogmas deixa de ser política para se converter em fundamentalismo. É aí que surgem esses fiéis ardorosos que acreditam piamente na infalibilidade dos caciques, mesmo quando os caciques carregam nos bolsos fatias do erário. Sobre tamanha devoção valeria pensar um pouco mais. E ler Gabeira.


* Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM.
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 24/01/2013.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Figuras

Roberto Damatta



Vivemos de figuras de todo tipo, como a de inocentes e de criminosos. De poetas e políticos - uns mentem falando a verdade; os outros são viciados em tratar da verdade mentindo.

A palavra "figura" agasalha muitos sentidos. O mapa do Brasil é uma figura na forma de presunto, como dizia Lima Barreto. Todo mundo sabe quem o come, mas "figura" que não sabe. Eis um outro sentido para essa imensa palavra: o fingir ou esquecer.

Todo ser imaginário é uma figura que é carta de baralho e configuração geométrica. A pirâmide serve como uma boa representação de um Brasil onde poucos governam ganhando muito e onde muitos são governados recebendo pouco.

"Figura" também significa aspecto, emblema, alegoria. Até anteontem, a figura de uma pessoa negra etiquetava um escravo; hoje, uma consciência maior da nossa alergia à igualdade faz o uniforme branco das babás virar um problema anunciado em pelo menos duas colunas importantes: a do Ancelmo Gois e a da Miriam Leitão.

E, no entanto, o branco é uma representação do limpo e do transparente. Símbolo da paz, não deixa de ser curioso como o branco se relaciona com os fantasmas envoltos em névoa. Esse nevoeiro de um Brasil escravocrata que escondemos, no qual o branco figurava como uma personificação da propriedade de pessoas.

Uniformizar, como disse Max Weber, faz parte do mundo moderno onde médicos, garçons, policiais, engenheiros, cientistas e operários estão uniformizados. A questão é o uso obrigatório e simbólico da roupa para distinguir as babás nesses clubes de elite. Ser de elite dispensa para cima; já o uso obrigatório do uniforme distingue para baixo. Uma presumida superioridade dada pela riqueza, pelo poder ou pela celebrização extingue a culpa, do mesmo modo que o emprego doméstico deve lembrar - pela roupa usada como cicatriz ou estigma - a origem escravocrata do serviço que promove a intimidade, mas (e aí está o ponto) não pode conduzir à igualdade. Ora, uma intimidade (o dar a mão) sem igualdade (o não tomar o braço) tem sido o princípio estruturante de toda a nossa vida social.

Uma das babás diz ao jornal (O Globo) que elas não têm nome. São "babás": o papel social de anjos da guarda dos filhinhos amados de suas bem-postas patroas promove o sumiço de suas cidadanias. Sempre foi assim. Façamos um teste - responda rápido: qual é o nome completo de sua empregada doméstica?

Entre a escravidão na casa e o pseudomoderno emprego doméstico quase não há hiato. A continuidade foi feita abafando a igualdade, mas mantendo a intimidade que humaniza a todos, não liquidando, porém, as subordinações. No fundo, os problemas não são somente das babás, mas das patroas receosas de serem confundidas com suas "criadas", na medida em esses serviços se profissionalizam e trazem à tona esses dilemas.

Há aqui um sintoma da silenciosa, mas permanente revolução igualitária que se realiza hoje no Brasil. Ela surge na indignação com administradores públicos corruptos e ineficientes; com o populismo calhorda que aristocratiza roubando, e é profundamente anti-igualitário porque deseja a exceção e o retorno do poder como instrumento de aristocratização; e passa por essas barbaridades de assassinar em lugares públicos como ruas e restaurantes porque o "outro" não sabe com quem está falando. Aí temos crimes cometidos em nome de uma desavença pessoal interpretada como falta de respeito, porque, se desconhecido não se comportar como um inferior, ele vira um inimigo.

Toda reação contra a regra da lei para todos revela esse nosso temor de uma impessoalidade que conduz ao igualitarismo contrário à boa e velha hierarquia que nos indicava com quem falávamos. É terrível ver sumir o mundo de exclusividades e testemunhar a raia miúda frequentando locais e usando roupas privativas dos grã-finos.

O surto de uniformizar para distinguir para baixo faz parte dessa reação à igualdade que chega para calibrar a liberdade excessiva dos que têm muito. Como distinguir para baixo se todo mundo está ficando muito parecido? Como saber com quem se está falando se não se sabe mais quem é a mãe ou a babá da criança?

Eu seria favorável ao uso compulsório do uniforme branco nos clubes se os bandidos também fossem obrigados a usar as máscaras típicas de suas figuras. Mas aí o (des)mascarar seria equivalente à revolução que tanto queremos e - eis a questão - não queremos. Senão, não seríamos campeões mundiais de empregadas domésticas.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 23/01/2013.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Proteção de toda a família humana

Ban Ki-Moon
 
Acabamos de comemorar os 64 anos de um documento que nasceu em dezembro de 1948 e mudou para sempre a visão de como tratamos os membros da família humana.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos provocou uma mudança fundamental no pensamento global, afirmando que todos os seres humanos, não alguns, não a maioria, mas todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
A luta para concretizar os ideais da declaração é o cerne da missão das Nações Unidas. A comunidade internacional tem construído um forte histórico de combate ao racismo, promoção da igualdade de gênero, proteção das crianças e quebra das barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência.
Enquanto alguns velhos preconceitos estão diminuindo, outros permanecem. Em todo o mundo, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) são agredidos, às vezes mortos. Mesmo crianças e adolescentes são insultados por seus pares, espancados e intimidados.
Pessoas LGBT sofrem no trabalho, em clínicas e hospitais e nas escolas --os mesmos lugares que deveriam protegê-los. Mais de 76 países continuam criminalizando a homossexualidade.
Muitas vezes já falei contra esta trágica e injusta discriminação, e os desenvolvimentos positivos dos últimos anos me encorajam a seguir lutando. Foram realizadas reformas em muitos países. Na ONU, tivemos inovações históricas.
Em 2011, o Conselho de Direitos Humanos adotou a primeira resolução da ONU sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero, expressando "grave preocupação" com a violência e a discriminação contra as pessoas LGBT.
A Alta Comissária publicou o primeiro relatório da ONU sobre o problema e o Conselho discutiu os resultados em 2012 --a primeira vez que um organismo da ONU fez um debate formal sobre o assunto. Os ativistas ajudaram a abrir a porta. Não podemos deixar que se feche.
É um ultraje que tantos países continuem criminalizando as pessoas só por amar outro ser humano do mesmo sexo. Em alguns casos, novas leis discriminatórias estão sendo criadas. Em outros, essas leis foram herdadas das potências coloniais. Leis enraizadas em preconceitos do século 19 estão enchendo o século 21 de ódio.
Quando me encontro com líderes de todo o mundo, levanto a minha voz e peço igualdade para os membros LGBT de nossa família humana. Muitos líderes dizem que gostariam de poder fazer mais, mas apontam a opinião pública como uma barreira para o progresso. Eles também citam as crenças religiosas e os sentimentos culturais.
Respeito plenamente os direitos dos povos em acreditar nos ensinamentos religiosos que escolheram. Isso também é um direito humano. Mas não pode haver desculpa para violência ou discriminação, nunca.
Entendo que pode ser difícil se levantar contra a opinião pública. Mas só porque a maioria desaprova determinados indivíduos, não dá direito ao Estado de reter seus direitos básicos.
A democracia é mais do que a regra da maioria. Ela exige defesa das minorias vulneráveis diante de maiorias hostis. Os governos têm o dever de desafiar o preconceito, não ceder a ele.
Todos temos um papel a desempenhar. Desmond Tutu disse recentemente que a onda da mudança é feita de até um milhão de ondulações. Ao celebrarmos os direitos humanos, vamos mais uma vez lutar pela implementação da promessa da declaração: que eles sejam para todas as pessoas --como foi planejado.
BAN KI-MOON, 68, diplomata sul-coreano, é secretário-geral da ONU
Publicado na Folha de S.Paulo, em 04/01/2013.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Teorias, fatos, indícios

Marcelo Coelho



Corre na internet, em especial nos meios favoráveis a José Dirceu, a tese de que ele foi condenado sem provas, com base unicamente na teoria do domínio do fato, desenvolvida pelo jurista alemão Claus Roxin.

Em entrevista à Folha, Roxin disse uma obviedade: a de que ninguém pode ser condenado sem provas. A frase, que terminou indo para o título da reportagem, não se referia, é claro, ao julgamento do mensalão -caso de que Roxin não tinha o menor conhecimento. Mas serviu para fortalecer a ideia de que o Supremo Tribunal Federal, aplicando erradamente a teoria, condenou José Dirceu com base em meras suposições.

Nenhuma teoria é capaz de condenar ninguém. Pelo menos desde que se abandonou a concepção medieval da "responsabilidade objetiva". A saber, a ideia de que alguém deva ser punido não pelo que fez, mas sim pelo que é. Nesse gênero de retaliação, qualquer judeu poderia pagar pelos supostos "crimes dos judeus", apenas pelo fato de ser judeu.

A teoria do domínio do fato não se confunde com a tese da responsabilidade objetiva: isso foi dito e repetido nas sessões de julgamento do mensalão.

Na névoa que se criou em torno do assunto, o fato de Claus Roxin ser alemão contribuiu até mesmo para que se jogassem suspeitas sobre a legitimidade de sua teoria.

No caso de José Dirceu, vale lembrar que as alegações finais do Ministério Público, pedindo sua condenação, nem sequer citaram a teoria do domínio do fato. Considerou-se haver provas suficientes de que era o mandante do esquema, nada mais do que isso.

O problema é que os ministros do Supremo gostam de embelezar seus votos com citações a doutrinas que, por vezes, apenas reiteram o senso comum.

Luiz Fux e Celso de Mello, nos seus votos sobre José Dirceu, estenderam-se bastante sobre o pensamento de Claus Roxin; Ricardo Lewandowski, inocentando o ex-chefe da Casa Civil, manifestou sobretudo sua preocupação de que a teoria do domínio do fato venha a ser aplicada indiscriminadamente, nas instâncias inferiores, a partir do prestígio que estava ganhando no STF.

Suponha-se, disse Lewandowski, que aconteça um vazamento de petróleo num terminal da Petrobras. O risco é que, com base na teoria do domínio do fato, terminem condenando o presidente da empresa por causa disso.

Não faz sentido, respondeu Luiz Fux. Seria preciso provar que o presidente desejou, ordenou, o tal vazamento; que tinha poder de interrompê-lo, mas não quis que isso acontecesse.

É o bom senso.

O maior problema teórico na condenação de José Dirceu, se é que podemos chamar de teórico, não está na questão do domínio do fato; a teoria nem precisaria ser invocada, ressaltou o ministro Ayres Britto, e sua condenação viria do mesmo jeito. Nem o STF inova, insistiu Celso de Mello, nesse ponto. A teoria vem sendo aplicada no Brasil há décadas, disse ele em seu voto.

O ponto polêmico, na verdade, recai sobre a qualidade das provas utilizadas para incriminar José Dirceu. Não houve nenhum e-mail, nenhuma transcrição de conversa telefônica, nenhuma filmagem, provando claramente que ele deu ordens a Delúbio Soares para corromper parlamentares.

Houve declarações de testemunhas, segundo as quais os envolvidos diretos no esquema sempre telefonavam a José Dirceu para "bater o martelo".

Houve a circunstância de que Marcos Valério se encontrou com Delúbio Soares, José Dirceu e o presidente de um banco português, na Casa Civil. O encontro seria para tratar de investimentos turísticos na Bahia, alegou-se. Investimentos turísticos? Com Marcos Valério e Delúbio? Difícil de acreditar.

Houve a circunstância de que a ex-mulher de José Dirceu obteve, por intermédio de Marcos Valério, facilidades na compra de seu apartamento. Isso coroou o conjunto probatório contra José Dirceu, disse Luiz Fux. Não teve maior importância, avaliou por outro lado a ministra Cármen Lúcia.

Cada ministro expôs suas convicções. Para a minoria, os fatos não comprovavam de forma indubitável a culpa de José Dirceu. Para a maioria, duvidoso seria achar que Delúbio Soares sozinho tivesse organizado tudo, que a negociação da emenda sobre a reforma da Previdência tivesse sido conduzida apenas pelo ministro específico da pasta, que José Dirceu teve encontros com a presidente do Banco Rural, Kátia Rabello (intermediados por Marcos Valério) e não conversou sobre empréstimos ao PT.

Quando alguns juristas reprovam a condenação por "sinais e presunções", disse a ministra Rosa Weber, há de se entender que devem ser descartados os "sinais e presunções" que deixam lugar à dúvida. Mas quando as circunstâncias estão intimamente ligadas com o crime, chegando a formar convencimentos, a ressalva não se coloca; os indícios, as inferências, têm a claridade da luz.

Não para todos, evidentemente.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/12/2012.

Questão: Universidade católica

Identidade e pluralismo: a missão da PUC-SP

Cardeal Dom Olilo Pedro Scherer


A Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) esteve em evidência na imprensa nos últimos dias, em função da recente nomeação da professora Anna Maria Marques Cintra como reitora da instituição. Quero, pois, esclarecer o papel e a preocupação da Igreja Católica, presente na gestão de uma universidade.

Antes, porém, reitero que a nomeação está de acordo com a norma da universidade. Escolhi a reitora entre os candidatos da lista tríplice organizada e encaminhada a mim pelo Conselho Superior da Universidade, como estabelece o estatuto da PUC-SP.

Há quem considere que a PUC-SP cumpriria melhor o seu papel sendo uma universidade laica, desvinculada da Igreja. Isso, porém, não seria coerente com a natureza de nossa universidade católica que, além de tudo, também é "pontifícia".

Não cabem equívocos, nesse sentido, e não dissimulo meu empenho para evidenciar e fortalecer na PUC-SP a sua identidade católica.

Assim fazendo, não busco simplesmente que ela esteja alinhada com os valores cristãos, mas que dê sua contribuição específica, como instituição católica, à sociedade paulista e brasileira.

Uma universidade católica não existe apenas para defender a Igreja. O seu fim primário é o serviço à verdade e ao bem do homem. E para nós, católicos, esse afã não coloca em risco a nossa fé: na visão cristã, é plenamente harmônica a relação entre fé e razão.

"Religião do logos, o cristianismo não relega a fé para o âmbito do irracional, mas atribui a origem e o sentido da realidade à única razão criadora", afirma Bento 16.

A unidade entre fé e razão é um elemento essencial do pensamento cristão, que não está fechado em si mesmo. A fé, ao contrário de ser limite, é luz, que amplia a visão e as perspectivas para uma análise serena e positiva dos acontecimentos sociais e para uma compreensão mais profunda do mundo e do fenômeno humano.

Para um pesquisador cristão, a coerência com a sua fé não o faz sobrepor ao seu trabalho critérios alheios à ciência; sua própria fé leva-o ao amor à verdade e ao respeito pela dignidade da pessoa humana.

Num contexto relativista, como o atual, uma universidade católica contribui para mostrar que há valores inegociáveis, como a busca da verdade, o valor da vida humana em todas as suas etapas e a dignidade da mulher.

A universidade católica, diz ainda o papa, está chamada "a não limitar a aprendizagem à funcionalidade de um êxito econômico, mas a ampliar a sua ação em vista de projetos em que o dom da inteligência investiga e desenvolve as dádivas do mundo criado, superando uma visão apenas produtivista e utilitarista da existência".

Essa especial missão não a faz ser superior às outras universidades, mas deve levá-la a uma atitude de serviço, de diálogo e de abertura às outras instituições educativas, num autêntico espírito universitário.

Reconheço que, no meio acadêmico contemporâneo, a maneira cristã de ver o mundo e o ser humano não é compartilhada por todos. No entanto, isso não desqualifica a sua contribuição para a pluralidade da cultura; antes, explicita ainda mais a sua relevância para a construção de uma sociedade aberta, na qual possa haver um confronto entre dados de fato e valores.

Karl Popper observa que uma sociedade aberta necessita de valores, que ela própria não está em condições de produzir para si mas, muitas vezes, vai buscar no cristianismo.

Por isso, mesmo, num mundo que parece esquecer-se de Deus, uma universidade católica tem uma importante função social, também como contribuição para o pluralismo e a liberdade de pensamento. E isso não parece irrelevante para o convívio democrático!

CARDEAL DOM ODILO PEDRO SCHERER, 63, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é arcebispo de São Paulo.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 07/12/2012.

 
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Universidade católica?

Vladimir Safatle



A crise na PUC-SP devido à nomeação da terceira colocada em uma lista tríplice evidenciou uma questão mais grave, que não diz respeito apenas ao mecanismo viciado de escolha de reitor. Artigo publicado na Folha por dom Odilo Pedro Scherer demonstra profunda distorção no sentido do que é uma universidade.

Uma universidade não é apenas um espaço de formação profissional e de qualificação técnica. Desde o seu início, ela foi uma ideia vinculada à constituição de um espaço crítico de livre pensar. Ela era a expressão social do desejo de que o conhecimento se desenvolvesse em um ambiente livre de dogmas, sem a tutela de autoridades externas, sejam elas vindas do Estado, da igreja ou do mercado. A universidade dialoga com essas três autoridades, mas não se submete a nenhuma delas, mesmo quando é dirigida pelo poder público, por grupos confessionais ou empresários.

Por isso, há de se falar com clareza: no interior da República, não há espaço para universidades católicas, protestantes, judaicas ou islâmicas, mas universidades dirigidas por católicos, dirigidas por protestantes etc., o que é algo totalmente diferente.

Uma universidade não existe para divulgar, de maneira exclusiva, valores de qualquer religião que seja. Ela admite que tais valores estejam presentes em seu espaço, mas admite também que nesse mesmo espaço encontremos outros valores, pois só esse livre pensar é formador do conhecimento.

Se certos setores da igreja não querem isso, principalmente depois do realinhamento conservador de Bento 16, então é melhor que eles se dediquem à gestão de seminários.

A universidade, mesmo particular, é uma autorização do poder público que exige, para tanto, a garantia de que valores fundamentais para a formação livre serão respeitados.

Se a igreja percebe a PUC como um instrumento de defesa de seus valores, então não há razão alguma para ela fazer isso com dinheiro do Estado, já que seus cursos de pós-graduação recebem dinheiro público via agências de fomento.

Ao que parece, alguns acreditam que, em uma universidade dirigida por católicos, professores não devem se manifestar publicamente a favor do aborto e do casamento homossexual. E o que fará tal universidade com professoras que abortam e professores que se declaram abertamente homossexuais? Serão convidados a se retirar?

E o professor que ensina Nietzsche e a "morte de Deus", Voltaire e seu pensamento anticlerical? Terão o mesmo destino do professor de história que pesquisou as barbáries da Inquisição ou das relações entre o Vaticano e o fascismo ou da professora de psicologia que defende teorias "queers", já acusadas pelo papa de minar os valores da família cristã?



Publicado na Folha de S.Paulo, em 11/12/2012.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A guerra de Cristina e a verdade

Clóvis Rossi




Como em toda guerra, a verdade está sendo a primeira e maior vítima do insano combate entre a presidente Cristina Kirchner e o grupo Clarín. Primeira verdade abatida no combate: a Lei de Mídia, regulamentação do audiovisual aprovada pelo Congresso, é antidemocrática e visa a impor uma ditadura na mídia.

Falso. A lei é bastante ponderada e, acima de tudo, necessária. Busca evitar a concentração de propriedade dos meios de comunicação, o que é altamente saudável.

Basta pensar no Brasil e nos danos que provocou na Bahia e no Maranhão, por exemplo, a hegemonia midiática das famílias Antônio Carlos Magalhães e José Sarney.

O problema com a lei não é ela em si, mas o fato de que está sendo usada para destilar ódio contra o grupo Clarín. E, aqui, entra-se em terreno movediço porque não está clara a razão real do ódio.

Afinal, todas as pessoas razoavelmente informadas na Argentina sabem que, nos tempos de Néstor Kirchner, marido de Cristina e presidente entre 2003 e 2007, havia frequentes reuniões na quinta presidencial de Olivos entre o casal Kirchner e Héctor Magnetto, diretor-executivo do Clarín, nas quais se gabavam de ser o trio mais poderoso do país.

Néstor, aliás, autorizou na véspera de deixar o cargo a fusão de duas operadoras de TV a cabo, com o que o grupo Clarín ficou com a posição dominante que, agora, a lei pretende recortar.

A explicação sempre usada para a ruptura é a de que o jornal pôs-se ao lado dos ruralistas no confronto com Cristina, em 2008.

Não parece motivo tão forte para instalar em Cristina tamanho ódio. Minha sensação -e admito que toda sensação pode ser enganadora- é a de que a presidente está apenas deixando aflorar a clássica tendência peronista de radicalizar amizades e inimizades até o limite da eliminação física, às vezes dentro do próprio peronismo, como aconteceu reiteradamente nos anos 60/70.

Uma segunda vítima dessa guerra é a ideia de que, se for quebrado o que governo chama de "monopólio" do Clarín (que não existe), vozes "progressistas" preencherão o espaço.

Quem avançará é o grupo Uno, de José Luis Manzano, assim descrito por Mario Antonio Santucho, simpatizante da lei e de Cristina, em texto para "Carta Maior", sítio amplamente kirchnerista: "É um ex-funcionário menemista, neoliberal e corrupto de primeira hora". Além disso, "seus empreendimentos comunicacionais são conhecidos pelos maus-tratos e pela exploração aplicados aos jornalistas e técnicos, assim como pelo escasso interesse social de sua programação".

Não dá para esquecer que a etiqueta peronista que Cristina usa carimbou desde os fascistas da Aliança Anticomunista Argentina até os revolucionários Montoneros, capazes de condenar à morte um dos seus, o poeta Juan Gelman, só por ter tido, em certo momento durante a ditadura, a coragem de reconhecer o óbvio: a luta armada fora derrotada e era preciso encontrar outro caminho.

Voltar, agora, a um maniqueísmo parecido é o pior que pode ocorrer à Argentina.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/12/2012.

Percepção e realidade

José Roberto de Toledo



2014 chegou antes de 2013. Desde a semana passada, a sucessão de Dilma Rousseff (PT) virou prato principal e é improvável que o cardápio mude pelos próximos dois anos. O molho varia do explícito (o lançamento do presidenciável Aécio Neves pelo PSDB) ao subentendido (a polêmica do pibinho), passando pelo trágico (ascensão e queda do baixo clero da corrupção petista) e o cômico (revista inglesa pedindo cabeça de ministro no Brasil).

A economia - que elegeu FHC, Lula e Dilma - é o ingrediente principal do debate, novamente. A pegadinha é que o gosto popular está cada vez mais distante do palato dos críticos. As diferenças de percepção são tão distintas quanto seus instrumentos de medida. A confiança do consumidor dá picos enquanto as aferições do PIB afundam. Investimentos param ao mesmo tempo que o crédito dispara.

Para cada indicador negativo há um positivo e vice-versa. Depende do gosto do freguês. A produção de automóveis caiu pela primeira vez desde 2002? Mas a taxa nacional de desemprego é a mais baixa desde muito antes disso. Os salários brasileiros crescem duas vezes mais do que a média mundial? Mas o capital estrangeiro foge do Brasil para Índia, China ou aonde seja.

Economistas dizem que os indicadores positivos refletem o passado e os negativos, o futuro. Eles devem ter razão, como tiveram ao prever 10 das últimas 3 recessões.

A piada é gasta porque não há outro ramo de atividade no qual projetar impunemente dê tanto prestígio e dinheiro quanto a economia. Entre 2000 e 2010, as previsões de crescimento do PIB feitas pelo mercado (e publicadas pelo boletim Focus do Banco Central) tiveram um erro médio de mais de 50%. Nove em 10 erraram. Guido Mantega está em linha com seus pares.

Probabilisticamente, se Dilma atendesse a The Economist e decapitasse o ministro da Fazenda, a presidente teria 90% de chance de trocar seis por meia dúzia.

O que tanto mudou desde 2010, quando a revista inglesa enfiou um foguete sob o Cristo Redentor, até a publicação do obituário do PIB brasileiro na semana passada? Foi o PIB ou seu parâmetro de comparação? A bipolaridade eufórico-depressiva parece estar tanto nos olhos de quem vê quanto no objeto da observação.

Aos redatores ingleses resta citar a tirada célebre: "Quando os fatos mudam, eu mudo minha cabeça, o senhor não?" A frase é ora atribuída a John Maynard Keynes, ora a John Kenneth Galbraith. Importa menos o nome do que o fato de que o autor é economista.


Economia eleitoral

Nada se correlaciona mais à popularidade presidencial do que a confiança do consumidor. Ambas estão ascendentes, apesar do pibinho. Como pode ser? Porque o consumidor avalia que sua situação financeira está melhor do que há seis meses, e acha que vai melhorar ainda mais no futuro próximo - puxada por emprego e salários em alta. É portanto um jogo de percepção e expectativa.

O PIB vai seguir a confiança do consumidor, como quer o governo, ou o consumidor vai acabar se convencendo de que o melhor já passou e trocar de canoa, como sonha a oposição? As expectativas são, em boa parte, autorrealizáveis. Portanto, vencer a batalha de versões sobre a economia é começar bem a guerra sucessória.

Chefe do PSB, Eduardo Campos se antecipou dizendo a empresários descontentes com a economia que falta rumo estratégico ao país - implícita é sua oferta por nova bússola. Campos morde e assopra. Pode ser o "tertius" que forçaria um segundo turno em 2014, ou o aliado que facilitaria a eventual reeleição de Dilma. Tudo depende das circunstâncias, ou seja, da economia.

O lançamento de Aécio foi quase um empurrão. Fernando Henrique Cardoso jogou o senador mineiro na arena. Aécio gaguejou, mas não tem opção. Se não mostrar gana para ser candidato agora, quando o PSDB não tem alternativas, vai perder o trem da história. Não assumiu o discurso, mas já age como candidato.

A redução das tarifas de energia elétrica é um ato de campanha de Dilma pela reeleição. Ao gorarem o plano presidencial, as concessionárias geridas por governadores tucanos defenderam o interesse de seus donos mas alimentaram o discurso petista de que o PSDB é demofóbico quando se trata de economia popular. 2014 já começou, mas passa pela economia de 2013.



Publicado em O Estado de S.Paulo, em 10/12/2012.

Let's move on

Fernando Rodrigues





Essa foi a expressão em inglês usada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, ao falar do mensalão. "A nação não aguenta mais este julgamento. Está na hora de acabar, está na hora. Como diriam os ingleses, let's move on".

Em português, "vamos em frente". É uma boa proposta. O STF poderia aplicá-la a outros casos aguardando julgamento. Esses processos, como diria Joaquim Barbosa, foram todos "bypassados" pelo mensalão.

Depois de amanhã, os ministros definirão se os deputados condenados por causa do mensalão devem perder o mandato sem uma votação no plenário da Câmara. Como em toda discussão jurídica, há argumentos sólidos a favor e contra.

Mas não há sob o sol um único argumento aceitável para o STF estar enrolando há dois anos o caso do deputado Natan Donadon (PMDB-RO), condenado a 13 anos, 4 meses e 10 dias de prisão pelos crimes de formação de quadrilha e peculato.

Donadon é do baixo clero. Seu nome raramente aparece no noticiário. O Supremo o condenou em outubro de 2010, mas o político continua livre, leve e solto. Exerce de maneira plena o seu mandato de deputado. Ajuda a aprovar leis, mesmo sendo considerado um quadrilheiro.

Falta o STF julgar recursos ajuizados pela defesa de Donadon e também dizer se esse político deve perder o mandato já. Por que não o fez ainda, ninguém sabe. Faltaria espaço para listar na edição inteira da Folha todos os processos que caminham a passos de tartaruga no Supremo.

É ótima, portanto, a exaltação de Joaquim Barbosa. "Let's move on". Acelerar o ritmo de andamento dos processos, inclusive o julgamento do caso do mensalão do PSDB, nascido em Minas Gerais --e relatado há vários anos pelo próprio Barbosa.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 08/12/2012.

O que surpreende é a omissão do poder público sobre o tema

Cláudia Collucci



Há algo de muito errado em um país quando mais da metade dos alunos que estão concluindo o curso de medicina, no Estado mais rico e populoso da nação, não tem domínio de áreas básicas para exercer a profissão.

Não que os resultados divulgados ontem pelo Cremesp sejam surpreendentes. Desde que a prova foi criada, há sete anos, os índices de reprovação estiveram entre 32% (2005) e 61% (2008).

Agora, porém, o impacto é maior porque todos os formandos foram avaliados.

Ainda que se pesem as críticas em relação à metodologia do exame, intriga o fato de não haver nenhuma mobilização dos ministérios da Saúde e da Educação para melhorar esse cenário.

Aferir a competência técnica dos futuros médicos antes de soltá-los no mercado deveria ser uma questão de Estado, de interesse público.

Isso se torna evidente quando os resultados do "provão" revelam que as áreas de maior reprovação são as de saúde mental (41% de acertos) e pública (46%).

Em um país em que 90% da população é usuária de alguma forma do SUS, o Estado deveria tomar para si a responsabilidade de um modelo de avaliação que conferisse a qualificação ao médico antes que ele chegasse ao mercado, a exemplo do que fazem os EUA e o Canadá.

A Inglaterra deu um passo além. Neste mês, o governo britânico instituiu um sistema que obrigará todos os médicos já formados a passarem por avaliações periódicas.

Os testes serão feitos por entidades médicas, mas tudo supervisionado pelo Ministério da Saúde britânico.

Os médicos terão de comprovar (por meio de cursos, por exemplo) que estão aptos para continuar na profissão. A palavra do paciente também contará pontos.

Levando em conta que o SUS foi inspirado no modelo britânico, é uma boa hora para o governo brasileiro aprender algumas lições de como oferecer uma saúde de melhor qualidade à população.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 07/12/2012.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A boquinha dos conselhos

Elio Gaspari


Pela boa norma da administração, todas as empresas estatais são fiscalizadas por conselhos. Em tese, eles orientam a gestão e decidem questões estratégicas. Na prática, quase sempre são uma boquinha, suplemento financeiro. Há algo como 348 cargos nesses conselhos em 93 estatais, custando pelo menos R$ 15 milhões anuais.

Uma espiada nas conexões da companheira Rose Noronha mostra a extensão dos mimos. Seu ex-marido foi nomeado conselheiro da Brasilprev, do Banco do Brasil. (Como suplente, embolsava R$ 3.330 mensais.) O doutor conseguiu a prebenda amparado num diploma falso de "baixaréu" (na expressão de Rose) em administração de empresas, emitido pelo Centro de Ensino Superior de Dracena, no interior de São Paulo. Nele lecionava Paulo Vieira, diretor da Agência Nacional de Águas, ex-conselheiro da Nossa Caixa e titular do conselho fiscal da Codesp, do porto de Santos. O doutor José Weber, braço direito do advogado-geral da União, com quem Vieira tratava dos interesses do ex-senador Gilberto Miranda, ganhou um lugar no conselho deliberativo do Funpresp, o fundo de aposentadoria complementar dos servidores. Antes, estivera no conselho da falecida Empresa Brasileira do Legado Esportivo. Não se conhecem os salários dos doutores, mas nunca valem menos de R$ 2.000 e chegam a render R$ 15 mil mensais por um reunião de duas horas.

Trata-se de uma velha gambiarra. Não foi inventada pelo PT e é praticada por governantes de todos os partidos. Os marqueses do tucanato paulista estão aí para provar isso. Os conselheiros da rede de Rose estão no andar de baixo da hierarquia do comissariado. O exemplo lhes vem do andar de cima.

A lei diz que os servidores públicos não podem receber mais de R$ 26.723,13. Esse é o salário da doutora Dilma. Ela perdeu dinheiro indo para o Alvorada, pois até março de 2010 acumulou a chefia da Casa Civil com a posição de conselheira da Petrobras. Hoje, 13 de seus ministros estão aninhados em conselhos. Como eles são 24, o teto é uma fantasia. Os comissários Miriam Belchior e Guido Mantega recebem mensalmente R$ 43.202,58, pois somam aos vencimentos de ministros do Planejamento e da Fazenda os jetons de conselheiros da Petrobras (R$ 8.323) e de sua distribuidora (R$ 8.246). Tereza Campello, ministra do Desenvolvimento Social, é conselheira da Petrobras Biocombustível. O doutor Wagner Bittencourt, da Aviação Civil, tem cadeira na Eletrobrás (R$ 4.145). Ganha uma viagem de ida a Damasco quem souber o que aviação tem a ver com energia elétrica e qual a relação entre a pasta do Planejamento e a distribuição de gasolina.

Em outubro passado a Justiça Federal do Rio Grande do Sul determinou a suspensão desses pagamentos, mas a AGU prometeu recorrer. Corda em casa de enforcado. Em janeiro, o advogado-geral Luís Inácio Adams fechava suas contas com um embolso de R$ 38,7 mil graças às suas cadeiras na Brasilcap e na Brasilprev (R$ 6.600), onde tinha o doutor Noronha como suplente. Se precisasse de ajuda tinha ao seu lado o conselheiro Weber, da Funpresp.

Se o salário de um ministro tem teto e ele recebe mais do que se pensa, Paulo Vieira e o ex-marido de Rose habilitaram-se e conseguiram suas Bolsas Conselho.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 05/12/2012.

A lei vs. a "vontade" de Israel

Clóvis Rossi



Foi inútil, como se poderia antecipar, a pressão de um punhado de países europeus para que Israel abandone o projeto de construir mais 3.000 residências para colonos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, territórios que pertencem aos palestinos, de acordo com a legislação internacional.

Na semana passada, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu já havia dado uma solene bofetada na legalidade internacional, com a sua frase sobre a decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas de conceder à Palestina o status de Estado observador.

Disse Netanyhau: "Não há decisão da ONU que possa romper 4.000 anos de vínculos entre o povo de Israel e a terra de Israel".

Dane-se a legalidade internacional. O que vale é exclusivamente a vontade "do povo de Israel".

Uma frase com esse desprezo pela única legalidade global disponível (as decisões da ONU), se pronunciada por um líder muçulmano, mais ainda se fosse iraniano, provocaria uma tempestade de condenações no Ocidente (e em Israel).

E seria justo porque, se se desrespeita o que decide a organização internacional mais legítima de que o planeta dispõe, resta apenas a lei do mais forte -e os judeus já experimentaram em carne própria o que significa a lei do mais forte.

Pena que Israel se dedique nos últimos muitos anos a adotar o seu próprio arbítrio. Não cumpre resoluções da ONU desde 1967, pelo menos, quando a organização internacional determinou que deveria devolver os territórios ocupados na guerra daquele ano.

Despreza também uma das convenções de Genebra, que veda a implantação de populações em territórios conquistados.

O número de colonos que Israel foi implantando em território palestino beira os 350 mil, sem contar os 200 mil instalados na parte oriental de Jerusalém, legalmente árabe.

Pior ainda: boa parte desses colonos dedica-se ao exercício de hostilizar os palestinos, conforme recente relatório do Comitê de Política e de Segurança da União Europeia. "Os ataques são cada vez mais severos e, em algumas áreas, mais coordenados", diz o texto, além de mais frequentes (aumentaram 32% em 2011 sobre 2010).

As hostilidades afetam homens, mulheres, crianças, campos agrícolas (10 mil árvores já foram arrancadas) e lugares de culto (só este ano, dez mesquitas foram destruídas). Não cabe aqui o argumento israelense de que, como Israel é atacada por foguetes lançados de Gaza, não pode ficar de braços cruzados. Ao contrário de Gaza, na Cisjordânia ocupada, os palestinos não disparam foguetes contra judeus.

A frase de Netanyahu torna inútil qualquer peroração legalista ou moralista a respeito da ocupação.

O que conta, na prática, é apenas o seguinte: a violação da legalidade internacional funciona para Israel?

Por enquanto, está funcionando. Mas o crescente isolamento internacional do país e o crescente alcance dos foguetes do Hamas/Jihad Islâmica sugerem que a "terra de Israel" não pode indefinidamente impor sua vontade imperial.


crossi@uol.com.br

Publicado na Folha de S.Paulo, em 04/12/2012.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Uma proposta

Adib D. Jatene



A discussão sobre a falta de médicos para atuar na periferia das grandes cidades ou em municípios remotos, ambos carentes desses profissionais, vem mobilizando todos os administradores públicos, especialmente os prefeitos, que não conseguem contratá-los para o Programa Saúde da Família (PSF), mesmo oferecendo remuneração igual ou superior a R$ 10 mil mensais. A proposta de algumas importantes figuras da administração é ampliar a oferta de vagas pela abertura de novos cursos e, simultaneamente, importar médicos formados no exterior.

Mas nenhuma dessas propostas seria capaz de corrigir a demanda atual.

Novos cursos só vão formar médicos após seis anos. Formar novos médicos no sistema atual significa considerar a residência médica indispensável. Porém o número de vagas para residência, apesar das 1.260 criadas recentemente pelo Ministério da Saúde, é ainda inferior ao número de graduandos. Também a residência médica existe apenas em grandes hospitais, que utilizam toda a moderna tecnologia. Desse modo, a residência médica forma especialistas e subespecialistas que não vão trabalhar com a população carente, mas agravar as distorções, indo atuar em áreas mais ricas e centrais das cidades.

Por outro lado, importar médicos envolve grande risco, desde que essa importação não seja feita de países onde o ensino médico prime pela qualidade.

Existe contingente significativo de alunos brasileiros buscando sua graduação em países onde há facilidade de ingresso e cujos cursos não formam o profissional com a qualidade mínima exigida. Uma vez formados, querem exercer a atividade no Brasil. A tentativa de acordos bilaterais reconhecendo automaticamente os diplomas tornou-se inviável, levando os Ministérios da Educação (MEC) e da Saúde a elaborar o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeiras (Revalida), para uniformizar os critérios nas universidades federais encarregadas dessa revalidação. Uma proposta ouvida no MEC é de que tais profissionais poderiam trabalhar por dois anos, sob supervisão de tutores, e só depois prestar o exame para revalidação. Propõem até reduzir as exigências do Revalida para facilitar a aprovação, o que nos parece inadmissível.

Nenhuma dessas duas propostas, portanto, resolveria o nosso problema.

Entendo que é o momento de propor um pré-requisito para a residência médica: cumprir dois anos no Programa Saúde da Família, supervisionado pela sua escola. Isso traria impacto de três ordens: fornecer o profissional para locais pouco atrativos, envolver a escola na assistência e reformar o ensino médico.

Diante da gravidade da situação em que nos encontramos, é ingênuo pensar que mantendo a situação atual se consiga corrigir as desigualdades. São necessárias medidas que podem ser consideradas radicais para mudar. Vivemos um tempo de mudança e o ensino médico deve mudar pensando na população desassistida, cuja condição precisa ser recuperada.

Parto do pressuposto de que nenhum país do mundo, mesmo gastando mais de US$ 7 mil per capita por ano, consegue oferecer a moderna tecnologia a todos indistintamente (assinale-se que gastamos menos de US$ 900 per capita). Mesmo porque 80% dos casos, que procuram o médico, podem ser tratados sem esses recursos, que, entretanto, devem ser postos à disposição de quem deles precisa.

Assim, o curso médico deve formar um profissional capaz de atender um paciente em situação de emergência e em situação eletiva, basicamente fazendo diagnóstico e orientando a terapêutica com base em história clínica detalhada e nos sinais obtidos pelo exame físico. Essa característica da Semiologia se está perdendo, já que é mais fácil lançar mão de exames de imagem.

Mas para o curso formar um profissional é preciso que se garanta um exercício da atividade onde, com esses pressupostos, ele poderia atuar. É necessário expor o recém-formado a atuar junto à população, supervisionado pela sua escola, antes de induzi-lo a escolher uma área de especialidade, o que, ao fim, é o que faz a residência médica.

De pouco adianta preparar esse médico se o enviarmos diretamente para a residência, que só existe em hospitais que detêm toda a tecnologia e onde se internam os 20% que necessitam dela. Antes de o curso preparar especialistas precoces, deve fazê-los atuar como médicos capazes de atender a população, sem usar a moderna tecnologia.

Além da supervisão pela sua escola, esses médicos devem contar com especialistas na área em que atuam e com possibilidade de leitos para eventuais internações, constituindo uma rede de serviços assistenciais. Para que a proposta se torne eficaz é ainda necessário corrigir a desigualdade na oferta de vagas.

Enquanto no Tocantins existe uma vaga para cada 4.068 habitantes e em Minas Gerais, uma para 6.665, em São Paulo há uma vaga para 13.193 e no Pará, uma para 19.456. Nas regionais de São Paulo a mesma desigualdade se verifica. Enquanto a regional de São José do Rio Preto tem uma vaga para 3.391 habitantes, a de Ribeirão Preto dispõe de uma para 4.712, a regional da Grande São Paulo conta com uma para 20.700 e a regional de São José dos Campos, uma para 28.957.

O médico recém-formado deve estar pronto, ao sair da escola, para trabalhar junto à população no PSF, por dois anos, como pré-requisito para buscar a residência médica. Assinale-se que quando eu cursei a Faculdade de Medicina, de 1948 a 1953, o curso era de seis anos. Hoje continua de seis anos, mas assistimos a uma avassaladora acumulação de conhecimento e tecnologia.

E o modelo deve abranger todos os recém-formados. Dessa forma, se tomarmos como parâmetro o último ano, em que mais de 13 mil médicos foram formados em dois anos, cobriríamos toda a demanda para uma área que não é atrativa, mas precisa ser atendida.


* CARDIOLOGISTA, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, DIRETOR-GERAL DO HOSPITAL DO CORAÇÃO, FOI MINISTRO DA SAÚDE

Publicado em O Estado de S.Paulo, em 03/12/2012.

O Capital do PT

José Roberto de Toledo



Em 2012, o PT tornou-se o maior partido do Brasil em votos recebidos, eleitorado a governar e dinheiro arrecadado. O partido completa 10 anos de governo federal - o maior tempo contínuo de um mesmo grupo político no poder em períodos de democracia plena. Conquistou a maior cidade do país. A presidente está no auge da popularidade e tem quase 80% de apoio no Congresso, em média. Os dois favoritos para 2014 são do PT.

Reserva moral do PSDB - nas palavras de José Serra -, Fernando Henrique Cardoso descreve sua melancolia com a política partidária e defende a necessidade de "bradar e mostrar indignação e revolta, ainda que pouco se consiga de prático". Quando a oposição está melancólica, a situação deveria estar exultante. Só que não.

O PT não sai das manchetes, mas por causa do outro lado da força. Condenada pelos ministros que pôs no Supremo Tribunal Federal, a cúpula que levou o partido ao sucesso vê-se na incômoda perspectiva de exercer o poder desde a cadeia. É um preço caro a pagar.

Provavelmente caro demais.

As contradições entre o primeiro e o terceiro parágrafos alimentam a especulação: estará o PT no cume à beira do precipício? Ou desfruta a segurança de um espaçoso planalto?

No que depender das previsões das consultorias econômicas e dos "pundits" brasilienses, a derrocada é logo ali na frente. O problema é que se tem mais chance de êxito apostando num cara ou coroa do que acreditando nas projeções de especialistas. Melhor olhar para trás e tentar entender como chegamos aqui.

A estabilização econômica propiciou a emergência de um mercado interno grande e ativo. Aumentos reais do salário mínimo diminuíram a desigualdade de renda e deram lastro para a popularização do crédito. A redução das taxas de juros rompeu o dique financeiro e deixou o dinheiro irrigar a economia. Nada disso é monopólio petista, mas foi o PT que, por oportunidade ou competência, melhor faturou eleitoralmente o processo.

Partidarizar ideias que são patrimônio nacional as enfraquece. Mercado de consumo de massa, menos desequilíbrio entre capital e trabalho, e diminuição da desigualdade de renda são conceitos sempre vulneráveis à reação de quem só se beneficia do mercado de luxo exclusivista, do "rentismo" e do "apartheid" social.

Há cada vez mais desinibidas declarações de que o aumento do salário mínimo é o problema e não a solução, de que há crédito demais para os pobres, de que bom mesmo era quando se podia ir a Paris ou Nova York sem correr o risco de ouvir português na rua.

É coincidência que essa desinibição suceda as condenações pelo STF dos malfeitos petistas? Ou que esteja entremeada a notícias de Pajeros, propinas e patifarias de parasitas do poder que tiveram sua janela de oportunidade durante o mandato do PT?

O risco embutido nos desmandos é que após a condenação das pessoas venha a condenação das ideias que mantiveram seus correligionários no poder. Mesmo que essas ideias não lhes pertençam, nem que elas, por si, tenham qualquer coisa a ver com a corrupção de quem as defendeu eleitoralmente.

Para o grosso da população, mais importante do que quem comanda do barco é que o caminho percorrido desde 1994 não seja interrompido ou, pior, feito em marcha à ré.

Dinheiro e poder. O PT lucrou com o poder. O partido movimentou R$ 1 bilhão na campanha de 2012. Foi a legenda que mais cresceu em arrecadação desde 2008: R$ 362 milhões a mais. Sua fatia cresceu no bolo financeiro dos partidos e a isso corresponderam mais prefeituras e vereadores. PSDB e PMDB arrecadaram proporcionalmente menos e viram sua influência municipal murchar. Dinheiro é voto.

Nem tanto ao precipício, nem tanto ao planalto. O PT tornou-se o maior partido em votos e eleitorado a governar, mas eles são apenas 20% do Brasil. Sua arrecadação é recorde, mas não passou de 17% do total. A presidente tem 80% de apoio no Congresso, mas perde votações com frequência, porque sua base parlamentar é movediça e infiel. Não há poder absoluto nem eterno.

Popularidade e favoritismo a dois anos da eleição valem tanto quanto ser o campeão do primeiro turno em campeonato por pontos corridos: nada - o Atlético Mineiro que o diga.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 03/12/2012.

As mães do crack

Dráuzio Varella



Difícil avistar um grupo de usuários de crack em que não haja uma menina grávida. Desviamos o olhar para não correr o risco de encontrar o delas, embaçado pela escravidão da dependência.

As razões que as levam a conceber um filho na miséria em que se encontram são óbvias: crack é droga psicoativa de uso compulsivo que destrói o caráter e subjuga o arbítrio. É um experimento macabro da natureza que reduz seres humanos à situação de animais de laboratório, condicionados a buscar a qualquer preço a recompensa que a cocaína lhes traz.

Quando o adolescente rouba a aliança de casamento da mãe viúva que pega três conduções para chegar ao trabalho, não é por falta de amor, mas pela necessidade. É a premência incoercível para sentir o baque da cocaína no cérebro, prazer intenso e fugaz como o orgasmo, que o leva a arruinar o futuro pessoal e a infernizar a vida dos familiares.

Como bem caracterizou um usuário: - Doutor, pense no desespero de correr para o banheiro no pior desarranjo intestinal. A compulsão do crack é cem vezes pior.

No caso das meninas dependentes, contingente que aumenta de forma assustadora, as consequências são mais trágicas. Muitas vezes iniciadas antes de chegar à adolescência, são elas as principais vítimas da crueldade das ruas para as quais foram arrastadas.

Às desprovidas de talento e coragem para furtar, assaltar ou pedir esmola, sobra o recurso derradeiro: vender o corpo. A preço vil, porque transitam num ambiente social formado por uma legião de desvalidos que perambula pelas cracolândias sem destino nem banho, para quem sexo não é prazer que chegue aos pés do crack.

No meio desse refugo social, quando conseguem 20 reais por um programa é motivo de festa; caso contrário, aceitam dez, o bastante para uma pedra. Em dias de menos sorte cobram cinco por uma sessão de sexo oral, provação especialmente dolorosa quando os lábios estão queimados pelo cachimbo incandescente. Esse é o cenário de horror em que engravidam.

Sem que tenham consciência de seu estado, as primeiras semanas do desenvolvimento embrionário acontecem sob o impacto da cocaína. Quando descobrem a gravidez, a realidade dificilmente se altera.

Na penitenciária feminina, atendi uma moça, que aos 13 anos deu à luz numa calçada da rua Dino Bueno, anestesiada pela droga, sem entender que aquelas cólicas eram dores de parto.

Em São Paulo, a maioria das parturientes do crack são encaminhadas para o Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, na zona leste, que procurou se adaptar para atender esse contingente que cresce a cada ano. Dez anos atrás, havia um ou dois partos de usuárias por ano, agora há pelo menos um por semana.

Como tratar dos bebês quando entram em crise de abstinência? Que destino dar a eles quando a mãe mora numa cracolândia?

Por lei, a maternidade é obrigada a entrar em contato com o Conselho Tutelar, que pode retirar o poder familiar da mãe, caso a considere incapaz de cuidar do filho. O recém-nascido vai para uma creche, enquanto a Justiça procura localizar alguém da família que se interesse em recebê-lo. Quando a tentativa falha, a criança é enviada para adoção.

Separar a mãe do filho é experiência traumática que costuma devolvê-la mais depressa para as ruas. Até a gravidez seguinte, durante a qual continuará a usar a droga. Elas assim o fazem não porque sejam mães desnaturadas, mas porque o crack é mais poderoso do que todas as vontades, mais forte até do que o instinto materno.

Exigir que sob o domínio do crack lhes sobre discernimento para a disciplina dos métodos contraceptivos, é arrogância dos ignorantes que desconhecem a ação farmacológica da cocaína; é tripudiar sobre a desgraça alheia.

Existem anticoncepcionais injetáveis administrados a cada três meses, ideais para esse tipo de situação. Como é insensato esperar que a usuária procure os serviços de saúde, não seria muito mais lógico levá-los até ela?

Antes que os defensores de ideologias medievais rotulem como eugênica essa solução, vamos deixar claro que não haveria necessidade de qualquer constrangimento, as dependentes aceitariam de bom grado a oferta do anticoncepcional.

Elas não concebem filhos com o intuito de viver os mistérios da maternidade.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 01/12/2012.

A estratégia social

André Singer



Entre a lei dos royalties e a MP das elétricas, o mandato de Dilma Rousseff vai chegando ao meio sem produzir novo marco na redução da desigualdade. O governo deveria aproveitar a janela não eleitoral que se abrirá no primeiro semestre de 2013 e enviar ao Congresso a Consolidação das Leis Sociais (CLS), que ficou na gaveta de Lula, deixando, assim, um legado definitivo.

A ampliação dos atendidos pelo Brasil Carinhoso, anunciada anteontem no Planalto, é, sem dúvida, positiva. Na prática, a presidente vem subindo o valor do Bolsa Família (BF). Pode parecer pouco para quem transita nas faixas A e B (a grande maioria dos leitores deste jornal), contudo, para os sete milhões de brasileiros que passarão a receber a partir de dezembro acréscimo mensal de R$ 15,60, constitui adição significativa.

Representará, por exemplo, aumento de 45% na transferência para um grupo familiar constituído por pai, mãe e três filhos. No caso, os R$ 78 suplementares permitirão, sobretudo onde o custo de vida é menor, como no interior do Norte e do Nordeste, incrementar o consumo de proteínas indispensáveis ao desenvolvimento das crianças. Em maio passado, outros nove milhões de beneficiários já haviam sido contemplados pela melhoria.

Daí a pensar que a mera elevação do BF possa "erradicar a pobreza absoluta", compromisso assumido na campanha de 2010, vai distância considerável.

Para diminuir a diferença entre uma coisa e outra, o Executivo rebaixou as metas, o que produz efeito estatístico enganoso. Em maio de 2011, adotou o objetivo de combater a "pobreza extrema", que se define por ingresso monetário cujo teto é a metade daquele posto pela "pobreza absoluta". Diminuiu-se, portanto, de maneira expressiva o número de indivíduos abrangidos pela categoria.

Mas não foi só. Equiparou-se a "pobreza extrema" à renda familiar per capita de até R$ 70, o que corresponde, hoje, a aproximadamente um oitavo de salário mínimo quando, usualmente, o critério adotado é de um quarto de salário mínimo, ou seja, o dobro. Em consequência, com o aporte de alguns reais ao mês, pode-se dizer que o indivíduo saltou de condição, o que é falso.

Dilma não conseguirá "erradicar a pobreza", mas tem chance de transformar em direito o progresso gradual alcançado. A aprovação da CLS pelo Legislativo, imaginada como maneira de converter em política de Estado não só a BF como a valorização do salário mínimo, o acesso ao ensino superior e outros programas desenhados pelo modelo incremental do lulismo, representaria enorme ganho de cidadania. Ainda há tempo para realizá-lo.



Publicado na Folha de S.Paulo, em 01/12/2012.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Muita terra para pouco fazendeiro

Márcio Santilli e Raul do Valle



Ganhou espaço nesta Folha a divulgação de pesquisa encomendada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) com a pretensão de traçar um perfil da população indígena do país.

Uma de suas conclusões deixa clara a tese que pretende comprovar: "A situação territorial também causa preocupação, mas não é o maior problema, como afirmado por ONGs, movimentos sociais e certas áreas de governo".

A pesquisa foi feita entre junho e julho, mas só foi divulgada agora, quando voltam à mídia os conflitos territoriais entre fazendeiros e índios guarani-caiová (MS) e xavante (MT). Os bens de consumo usados pelos índios caracterizariam "urbanização". A enquete aponta que a principal preocupação dos índios seria seu precário atendimento de saúde.

Sempre houve interesse dos índios por bens de consumo que não produzem, desde ferramentas, alimentos, remédios até televisão e celular, o que não implica serem eles menos índios ou necessitarem de menos terra. Os demais brasileiros, a começar pelos patrocinadores da pesquisa, têm interesse por bens importados e nem por isso deixam de ser brasileiros.

A própria enquete mostra que 94% dos indígenas entrevistados praticam agricultura, 85% caçam e 86% pescam frequentemente, atividades que dependem de áreas extensas e preservadas. Mostra ainda que 68% dos índios da região Sul, que têm apenas 0,18% das terras demarcadas, recebem cestas básicas, apesar de a maioria (52%) ter trabalho remunerado. No Norte, que abriga 81% das terras, só 7% dos índios depende de cestas básicas, embora poucos tenham emprego.

A tese de que a terra não é importante para os índios não é confirmada pela própria pesquisa, mas a CNA pretende deformar seus resultados para defender a aprovação de projetos no Congresso que buscam alterar a Constituição para inviabilizar a demarcação de novas terras, sobretudo quando ocupadas por grandes produtores.

A estratégia de propagar teses infundadas para justificar uma posição política já foi usada pela CNA para fragilizar o Código Florestal. Agora, pretende-se induzir a ideia de que os próprios índios não querem mais terra, embora 57% dos entrevistados na enquete tenham respondido que seus territórios são menores do que o necessário (o número chega a 92% no Sul).

A CNA sugere que "há muita terra para pouco índio", já que 520 mil indígenas aldeados vivem em 113 milhões de hectares de terras indígenas. Ocorre que 98,5% dessa área está na Amazônia, onde vivem 60% dos indígenas do país. Os outros 40% dispõem de apenas 1,5% de todas as terras, em geral em áreas exíguas. O Mato Grosso do Sul é um caso emblemático.

Muita terra têm os grandes produtores rurais, representados pela CNA. Segundo o IBGE, os 67 mil maiores proprietários possuem 195 milhões de hectares, 72% a mais que os índios. Além disso, as terras indígenas preservam 98% da sua vegetação nativa e prestam serviços ambientais a toda sociedade.

Quem mais precisa de terra são os 45 mil guarani-caiová, alvo principal da CNA, confinados em 95 mil hectares oficialmente reconhecidos, mas ainda ocupados em grande medida por fazendeiros. Eles dispõem de área muito menor que os 700 mil hectares destinados a 28 mil famílias assentadas da reforma agrária no Estado.

Melhor faria a CNA se, em vez de insistir em impedir a demarcação de terras, trabalhasse para que os governos estaduais que, no passado, emitiram títulos de propriedade inválidos, porque incidentes sobre área indígena, sejam agora responsabilizados a indenizar aqueles que, de boa fé, hoje os detêm.


MÁRCIO SANTILLI, 57, é coordenador de política e direito socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA). Foi deputado federal e presidente da Funai

RAUL DO VALLE, 35, advogado e coordenador-adjunto de Política e Direito Socioambiental do ISA

Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/11/2012.