segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Cerco a Assange deixa jornalismo vulnerável, afirma Greenwald

Entrevista a JANAINA LAGE

O escritor e advogado constitucionalista norte-americano Glenn Greenwald afirma que, caso os EUA consigam processar o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, jornalistas ficarão mais vulneráveis a ações judiciais.

Colunista da revista digital "Salon.com", Greenwald tem sido uma das vozes de defesa do WikiLeaks na imprensa americana.

Para ele, não há base legal para processar o site porque é uma organização dissociada de qualquer Estado e só existe na internet.
 
Jornais norte-americanos já citaram como possíveis bases legais para um processo contra Assange a lei de espionagem, de 1917, e a lei de fraude e abuso de computadores, de 1986.

O escritor concedeu entrevista à Folha após palestra no Iesp-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos).

Greenwald vive no Rio de Janeiro há quase seis anos. A seguir, trechos da entrevista.

***

Folha -- O que os documentos vazados pelo WikiLeaks revelam sobre a diplomacia americana?

Glenn Greenwald -- Não existe uma diplomacia americana à parte dos demais objetivos do governo. Os diplomatas são usados para espionar outros países e para levantar dados de inteligência da mesma forma que a CIA seria usada.

O papel da diplomacia é evitar guerras, mas muitos documentos mostram tudo menos isso. Há diplomatas tentando convencer outros países a deixar que os EUA participem de ações militares em seus territórios.

Folha - Na semana passada, a Força Aérea dos EUA bloqueou o acesso às páginas de veículos que publicam vazamentos. A polêmica em torno do WikiLeaks pode trazer de volta a discussão sobre censura na internet?

Glenn Greenwald -- Isso vai justificar na cabeça de muita gente que seja criado algum tipo de repressão ou censura na internet, o que é um retrocesso. As pesquisas com o público americano mostram que a maioria acredita que o WikiLeaks causou mais danos do que benefícios e que Assange deve ser encarcerado.

Os governos sempre querem controlar a internet. A razão pela qual não podem fazer isso é a oposição pública. O compromisso do WikiLeaks com a transparência pode aumentar o apoio público ao controle da internet.

Folha - Como o sr. compara os governos de Barack Obama e George W. Bush em relação à liberdade de imprensa?

Glenn Greenwald -- Quando Obama concorreu à Presidência, criticava Bush por sua guerra contra a transparência. A realidade é que não só ele continuou a maioria destas políticas como, em alguns casos, elas até pioraram.

O governo Bush ameaçou mover ações contra jornalistas que publicaram informações secretas e processar pessoas do governo responsáveis pelos vazamentos, mas quase nunca fez isso. O governo Obama já trouxe cinco diferentes ações contra pessoas do governo que vazaram informações.

Folha -- O sr. citou um artigo do professor Jay Rosen, da New York University, que afirma que parte da repercussão do WikiLeaks é resultado da morte do jornalismo americano...

Glenn Greenwald -- Depois do 11 de Setembro, a grande imprensa se tornou completamente identificada com o governo.

Eles cobriram a Guerra do Iraque embarcados com o Exército e começaram a ver o mundo pela perspectiva do governo.

A maior desgraça é que nosso governo levou o país a uma das mais terríveis guerras dos últimos cem anos baseado integralmente em mentiras, e a classe jornalística não se deu ao trabalho de submeter as informações a qualquer escrutínio.

Folha -- Quais as consequências de um eventual processo dos EUA contra Assange?

Glenn Greenwald -- Isso vai tornar os processos contra jornalistas muito mais prováveis. Se você criar uma teoria legal que permita um processo contra o WikiLeaks, isso dará poder ao governo de processar jornalistas por revelar seus segredos.

Revelar segredos de governo representa o corpo e também a alma do jornalismo investigativo.

Folha -- Por que o sr. afirma que o WikiLeaks não está sujeito às leis americanas?

Glenn Greenwald -- O WikiLeaks não é brasileiro ou americano. É uma organização sem Estado, não pertence a nenhum país e não existe fisicamente em lugar algum, apenas na internet. Não há mecanismo para definir qual lei se aplica a ele. Não se pode levá-lo à Justiça e obrigá-lo a revelar suas fontes. A maioria das pessoas não consegue pensar dissociada do Estado.

Parte do caráter único do WikiLeaks vem do fato de Assange ter sido criado de forma transnacional.

Ele se mudou centenas de vezes e foi criado de forma a não confiar ou seguir nenhuma autoridade.

Folha -- Por que a "Time" elegeu Mark Zuckerberg personalidade do ano quando os leitores escolheram Assange?

Glenn Greenwald -- Muitas pessoas usam o Facebook e Mark Zuckerberg ganha muito dinheiro com isso, mas se ele não existisse, nada iria mudar. A "Time" já elegeu Adolf Hitler e Joseph Stalin como personalidades.

Quando as pessoas perguntam zangadas: "Mas como vocês fizeram isso"? Eles sempre dizem que não é a opção de que gostamos, mas a que teve maior impacto.

Em 2001 a pessoa de maior impacto foi Osama bin Laden, mas eles tiveram muito medo e escolheram Rudolph Giuliani [ex-prefeito de Nova York]. Agora, é claro que Assange tem mais impacto do que Zuckerberg.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 19/12/2010.

Por quem é mais racional

Luiz Carlos Bresser-Pereira


Durante os 30 anos neoliberais aprendíamos que o Estado era a fonte de todos os males; que o setor privado estava sempre equilibrado porque era coordenado pelo mercado, enquanto que o Estado -regido pela política- era objeto do populismo econômico e se constituía em um obstáculo maior ao crescimento com estabilidade.

Além de antidemocrática, a tese era falsa, porque as crises financeiras demonstraram através dos tempos que o mercado jamais foi capaz de controlar o comportamento especulativo dos agentes privados.

E era meia verdade em relação ao Estado, porque há políticos populistas, mas a maioria é responsável fiscalmente, porque sabe que dessa responsabilidade depende sua sobrevivência.

O que não estava claro era que os grandes deficit financeiros do Estado eram devidos ao setor privado, não ao populismo dos políticos.

Quando estoura uma crise bancária, o Estado, primeiro, age como um emprestador de última instância para socorrer os bancos, e, em seguida, aumenta os seus gastos para restabelecer a demanda agregada e evitar o colapso do sistema econômico.

Em consequência desses dois fatos, incorre em grande deficit público, e a dívida pública se torna muito elevada não obstante não tenha havido irresponsabilidade fiscal.

Este fato tornou-se patente em relação aos grandes países ricos na crise financeira global de 2008.

Na maioria dos casos os governos estavam com suas contas equilibradas; a irresponsabilidade foi privada e se expressou em bolhas de ativos: de imóveis, de commodities, e do mercado acionário.

Quando a crise arrebentou, apenas o Estado tinha condições de socorrer o setor privado. Foi o que fez; em consequência, seu deficit público e sua dívida pública explodiram.

Estes fatos podem ser observados de maneira clara em um país pequeno como a Irlanda, que, agora, está na crista da crise financeira de 2008, hoje transformada em quase-estagnação dos países ricos.

O governo estava com seu deficit público sob controle, de forma que, entre 2004 e 2007, a dívida pública diminuiu de 30% para 25% do PIB. Entretanto, quando rompeu a crise e os bancos quebraram, o deficit público explodiu e, neste ano, se forem considerados os aportes aos bancos, o deficit público será de 32% do PIB! Em consequência, a dívida pública já no ano da crise subiu para 44%, em 2009 foi para 65%, e neste ano deverá alcançar 99% do PIB!

O caso é exemplar. E a crise como um todo mostra uma coisa mais geral: os governos dos Estados são mais racionais do que os agentes privados e suas empresas. Sim, mais racionais.

O político toma decisões com razoável conhecimento das consequências de seus atos, enquanto que os agentes privados fazem profecias autorrealizadas ao preverem o aumento dos preços dos ativos e os comprarem.

Entram, assim, em um ciclo irracional de manias, euforias e crises. Em outras palavras, as bolhas de ativos surgem, crescem e explodem porque compras de ativos promoveram a valorização prevista.

Não estou sugerindo que o mercado seja uma instituição de coordenação econômica que possamos dispensar. É insubstituível. Mas desde que permanentemente regulado e rerregulado por quem é mais racional: o Estado.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 19/12/2010.

A corrupção é estrutural no Estado brasileiro, afirma Cardozo

Entrevista: A corrupção é estrutural no Estado brasileiro, diz Cardozo
VALDO CRUZ e ANA FLOR




Em sua opinião, há uma visão "ilusória" de que há hoje mais corrupção do que no passado. Repetindo o que o próprio presidente Lula costuma dizer, diz que o problema ficou "mais visível" com a atuação da Polícia Federal.

Em entrevista à Folha na última quinta-feira, Cardozo defendeu a reforma política _algo que seus antecessores tentaram, sem sucesso.

Segundo ele, é preciso mudar o financiamento de campanhas porque não se pode descartar que, "num sistema como esse, o crime organizado financie a eleição".

***

Folha - O governo Dilma fará a reforma política?

José Eduardo Cardozo - Ela é imprescindível para o país e é a tendência da presidente eleita, Dilma Rousseff. Tenho uma série de convicções a respeito, mas, como ministro da Justiça, vou construir o que for possível. Estou absolutamente convencido de que o governo sozinho, sem diálogo com o Congresso e a sociedade, jamais fará uma reforma política. É tarefa inadiável.

Defendo com vigor o financiamento público.

Por quê?

Por várias razões. Nosso sistema não guarda nenhuma isonomia de quem disputa. O resultado de uma eleição é determinado pelo potencial financeiro. Na majoritária não diria que é tanto assim, mas na eleição proporcional isso é de uma evidência total. Quem tem grandes recursos financeiros tem mais condições de se eleger. É uma eleição que se faz sem um debate político aprofundado, programático.

O parlamentar fica preso a seus financiadores?

Não posso generalizar. Mas posso dizer que uma situação desse tipo agrava relações que não são boas para o processo democrático. Você tem no Brasil financiadores eleitorais que são corretos, sérios e éticos, e parlamentares que também o são. Mas tem também pessoas que se aproveitam de situações das mais perigosas e acabam complicando o sistema. Não se pode afastar a hipótese de que, num sistema como esse, o crime organizado financie a eleição.

Sem um papel ativo do governo nada anda no Congresso. Como fazer?

Sem participação do governo federal e sem interação com a sociedade, que desperte energia para alavancar esse processo, é muito difícil. Terei uma posição privilegiada, submetido a uma presidente eleita que tem uma excelente visão sobre o tema.

Vamos fazer algo dialogado, em que se busque mais convergência do que divergência. Se conseguirmos fazê-la, talvez ela não saia exatamente como eu desejaria, mas pelo menos faremos aquilo que for possível.

É o melhor momento?

O primeiro ano de governo é quando você dá passos para fazer reformas estruturantes. A reforma política é uma delas. A tributária é outra.

A Polícia Federal é responsável por investigar corrupção. Qual será sua orientação?

Quanto mais se combate a corrupção, que é estrutural no Estado brasileiro, mais ela aparece. O combate à corrupção passa pela punição subjetiva dos envolvidos, mas também pelo ataque das causas estruturantes. O nosso sistema político gera, inexoravelmente, corrupção.

Se não tivéssemos tido no governo Lula uma Polícia Federal que tivesse atuado de forma republicana, talvez tivéssemos a ilusão de que a corrupção é menor.

Isso deu uma dimensão de que hoje existe mais corrupção. Não é verdade.

Como avalia o mensalão?

Diria que houve toda uma investigação, há um processo em curso na Justiça e acho que ela decidirá a respeito. Tenho afirmado que, ao menos na fase de investigação no Congresso. vi casos que considerei decisões injustas.

E cito um caso com grande tranquilidade, porque a pessoa não é da minha corrente política, que é o do José Dirceu. Eu analisei o caso, e ele foi condenado pela Câmara sem prova, foi uma condenação política. Afirmei na época, afirmo hoje e voltarei a afirmar depois. E não falo como petista, mas como advogado e professor de direito.

* Publicada na Folha de S.Paulo, em 19/12/2010.
Futuro ministro da Justiça, o petista José Eduardo Cardozo, 51, afirma que a corrupção é "estrutural" no Estado brasileiro e que seu combate será prioridade.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A construção do mito Assange

Washington Araújo

Digam o que disserem, esperneiem como quiserem, tomem as medidas mais tradicionais e também as mais estapafúrdias possíveis para amordaçá-lo, retenham seus movimentos, a verdade é que se existe alguém, nos dias que correm, melhor antenado com a ideia de cidadania para além das fronteiras puramente nacionais, esse alguém é um australiano com seus incompletos 40 anos de idade.

Não me precipito ao afirmar que estamos vendo a construção de um mito. É corrente que mitos são importantes porque representam uma imagem de sucesso e glória que todo mundo almeja, mas é também evidente que a aura do mito transcende sua obra. Mitos não são criados por serem explicáveis, são idolatrados. Mitos tendem sempre a valorizar determinada característica humana vista sob enfoque bastante positivo. É a passagem do tempo que confere ao mito a percepção de alguém ou de algo que ultrapassa seu valor real, intrínseco e passa a referir todo o conjunto de virtudes humanas.

Os elementos constitutivos para a criação de um mito podem ser ruins ou bons para a verdade. Mas a verdade é sempre factual quando se trata de esquadrinhar a pessoa humana e, no fundo, quem torna mito alguém é a trajetória percorrida por esse alguém. A trajetória do homem-que-se-torna-mito tem relação quase sempre direta de escolhas e estratégias adotadas durante o caminho de mitificação, seja na falsificação ou na comprovação de sua excelência.

Julian Assange parte da premissa que sua criatura – o WikiLeaks – “publica sem medo fatos que precisam ser tornados públicos”. Notem que a atividade principal de sua criatura é publicar e sua principal característica abarca um sentido de urgência e de necessidade: “Fatos que precisam ser tornados públicos”. Não esqueçamos do destemor, da ousadia e do passo à frente simbolizado pelas palavras “sem medo”. É aqui que começa a atividade maior de Julian Assange: ele sabe o que quer fazer, o que sente que deve ser feito e está consciente dos riscos envolvidos. E porque se sente investido de lutar por algo em que acredita, alcança com inédita velocidade essa aura de benfeitor, de quem consegue reanimar antigas utopias humanas, como essa da busca da verdade, verdade que deve ser alcançada a qualquer custo. Mesmo que sempre… no limite.

Liberdade de expressão

Para nossa grande imprensa, que tem elegido a defesa da liberdade de expressão com aquele ardor digno dos seguidores de Antonio Conselheiro no episódio de Canudos, soa patético que não conheçamos nenhum editorial inflamado em defesa de Assange e contra sua prisão, aparentemente causada por suas peripécias sexuais na Suécia e que incluem até uma obscura história de estupro. Qualquer biscoito (cookie, em inglês), além de qualquer cidadão norte-americano medianamente informado e mesmo qualquer dona de casa alemã que assine Der Spiegel, sabe muito bem que sua prisão tem tudo a ver com os transtornos que o WikiLeaks vem causando à imagem e às relações de Washington com governos do resto do mundo.

Não se exigirá mestrado ou doutorado em Comunicação, conferido por Cambridge ou por Harvard, para que não tarde a que a história da diplomacia no século 21 venha a ser ensinada em dois períodos de tempo distintos: antes e depois dos wikileaks.

Julian Assange assume que “qualquer governo corre o risco de ser corrompido caso não seja vigiado cuidadosamente”. Até aqui, nada demais, porque data de muito longe o ditado de que “o poder corrompe”. E o que exerce o poder em uma sociedade? Primeiramente, o governo. Uma coisa é inferir sabedoria popular, geralmente fundada na experiência dos antigos. Mas agora a coisa é bem diferente. A novidade é que esse axioma acaba de ser comprovado cientificamente em um trabalho de pesquisadores da renomada Kellogg School of Management, nos Estados Unidos. Foi após uma série de testes comportamentais com voluntários que ficou evidenciada a forma como o poder costuma, em geral, mudar as pessoas para pior.

Em testes, os poderosos não só trapaceavam mais, não só usavam os mais sórdidos golpes, aqueles bem abaixo da linha da cintura, como também se mostravam mais hipócritas ao se desculpar por atitudes que condenavam nos outros. Neste contexto, vale conferir a afirmação do psicólogo social Adam Galinsky, professor de Ética e Decisões em Gerência da Kellogg School of Management e um dos autores do estudo, quando diz que “os poderosos acreditam que devem ser excluídos de certas regras”.

A propósito, é isso o que precisamente vem acontecendo se considerarmos as reações de Washington aos wikileaks. Quem não lembra que há apenas um ano, em resposta a ações do governo da China contra o Google, a secretária de Estado americana Hillary Clinton fez apaixonado discurso em defesa da liberdade de expressão na internet? A senhora Clinton não parou por aí. Foi além: “Mesmo em países autoritários, governados por ditadores, redes de informação têm ajudado pessoas a descobrir novos fatos e feito governos mais transparentes”. Seria patético, não fosse apenas ridículo, o uso contumaz de dois pesos e duas medidas quando autoridade política trata de atacar governo estrangeiro que é acometido por sua própria enfermidade.

Documentos secretos

Julian Assange se expressa com clareza quando o assunto é a sua entidade WikiLeaks. Sabendo que tem gente que acredita ser ele um pacifista nato, totalmente avesso às guerras, ele trata logo de desfazer o “piedoso engano”:

“As pessoas afirmaram que sou antiguerra: que fique registrado, eu não sou. Algumas vezes, nações precisam ir à guerra e simplesmente há guerras. Mas não há nada mais errado do que um governo mentir à sua população sobre estas guerras e então pedir a estes mesmos cidadãos que coloquem suas vidas e o dinheiro de seus impostos a serviço dessas mentiras. Se uma guerra é justificável, então diga a verdade e a população dirá se deve apoiá-la ou não.”

Há um quê de quixotesco no pensamento e na ação de Assange quando vemos quão distante ele se encontra da realpolitik. Não será a política o campo para a dissimulação, para vestir de significado novo velhas ações, para utilizar todos os meios ao alcance com o intuito de conquistar esta ou aquela vitória política? Não foi o Departamento de Estado dos EUA que buscou negociar com o primeiro-ministro da Eslovênia um encontro com o presidente Barack Obama desde que a Eslovênia aceitasse, em troca, receber um preso de Guantánamo?

Por extensão, seria equivocado inferir que o mundo da política internacional é o vale-tudo cotidiano entre os que tudo podem e os que pouco podem? E, por acaso, já não intuíamos isso? Claro! O que o WikiLeaks faz é retirar das relações diplomáticas mantidas pelos EUA com outros países o benefício da dúvida. E, em caso de dúvida, se existe uma arena em que a ultrapassagem é quase sempre certa é a da política internacional.

O que existia de fato para justificar a guerra no Iraque? Dúvidas. Apenas dúvidas sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque governado por Saddam Hussein. Devo registrar que não é de hoje que o WikiLeaks divulga documentos secretos. Isso é feito há anos. Mas só ganhou destaque internacional em 2010, com três vazamentos: (1) publicou um vídeo confidencial, feito por um helicóptero americano, que parece mostrar um ataque contra dois funcionários da agência de notícias Reuters e outros civis; (2) tornou públicos 77 mil arquivos de inteligência dos EUA sobre a guerra do Afeganistão; e, (3) divulgou mais 400 mil arquivos expondo ataques, detenções e interrogatórios no Iraque.

“O melhor dos desinfetantes”

Se o jornalismo tradicional – aquele que é impresso em jornais e revistas, que é ouvido nas rádios e assistido nos telejornais – constrói sua versão da realidade tendo como ponto de partida apenas uma ou duas peças do quebra-cabeça, e sobre estas cobre o restante da imagem com a opinião de seus colunistas e comentaristas, quase sempre de política ou de economia, o WikiLeaks arroga para si o mérito de realizar jornalismo científico, aquele que opera com outros suportes de mídia para trazer as notícias para as pessoas, “mas também para provar que essas notícias são verdadeiras”. E como faz isso? Com a palavra Julian Assange:

“O jornalismo científico permite que você leia as notícias, e então clique num link para ver o documento original no qual a notícia foi baseada. Desta maneira você mesmo pode julgar: esta notícia é verdadeira? Os jornalistas a reportaram de maneira precisa?”

Infelizmente, o governo norte-americano, diante do escrutínio público de menos de 5% do material que ainda deve ser revelado, ao invés de fazer uma inadiável releitura de sua política internacional, de seus pressupostos e de suas atividades bastante heterodoxas, estará, neste momento, planejando novas estratégias, esquemas e modus procedendis para cobrir de sigilo (e suspeição) o que sempre fez: tudo é permissível para alcançar seus fins políticos, econômicos e financeiros – e isto inclui o direito de não precisar prestar contas a ninguém. O WikiLeaks ajudou a rasgar as duas pontas da capa que lhe encobria as vergonhas e reduziu a pó sua autoafirmação de que seu governo constituía a única e inatacável fonte da autoridade moral do planeta. Não mais.

A sociedade, os governos e a imprensa serão melhores com Julian Assange?

Acredito que sim. E por várias razões, dentre as quais destaco que seu WikiLeaks entrega um espelho a cada diplomata para que possa aferir o grau de sinceridade e também de hipocrisia de suas ações. O WikiLeaks abre imensa clareira no cipoal de boas intenções que costumam vicejar nas relações entre governos e apenas camuflam os objetivos reais da diplomacia de uma nação sobre outra, e fica mais evidente quando joga pesados fachos de luz sobre a nação que se apresenta como a mais rica do planeta, a mais equipada militarmente, a mais influente politicamente. E a imprensa passa a ter a oportunidade raríssima de tirar a prova dos noves sobre seu alinhamento automático a qualquer governo, bem como sobre sua postura ácida e crítica às ações de qualquer governo.

Há quase um século, o juiz americano Louis Brandeis disse que “a luz do sol é o melhor dos desinfetantes”. Se vivo fosse, talvez dissesse o mesmo com outro enunciado: “O trabalho do WikiLeaks é o melhor dos desinfetantes.”

* Publicado no Observatório da Imprensa

sábado, 11 de dezembro de 2010

Os meios e os fins

Jânio de Freitas

Estava muito esquisito. Precisar fazer estupro, logo na Suécia de tão dourada generosidade? Ainda se fosse na Suíça, nada a estranhar. E reclamação contra assédio masculino? Na Bélgica ainda podia ser.

As coisas, porém, afinal voltam à sua natureza nos lugares apropriados. E fica-se sabendo que a acusação a Julian Assange de “estuprar uma mulher sueca e molestar sexualmente outra”, como os meios de comunicação repetem mundo afora há duas semanas, foi não usar preservativo, pode-se supor que com proveito mútuo, e, no outro caso, um ensaio compartilhado.

Mas a conduta dos meios de comunicação não deixou de atingir a reputação de Assange e, com isso, contribuir para a sufocação que governos poderosos buscam aplicar à divulgação que esse valente australiano faz de documentos sigilosos, pelo seu site WikiLeaks.

Não estamos só diante de muitos gatos graúdos e um ratinho que lhes roubou pedaços do melhor queijo escondidos com cuidado. É de liberdade de informação que se trata. É do direito dos cidadãos de saber o que seus governos dizem e fazem sorrateiramente, no jogo em que as peças são as comunidades nacionais.

É de jornalismo que se trata. E os meios de comunicação jornalística estão ficando tão mal quanto os países, governos e personagens desnudados pelo Wikileaks. Era a hora de estarem todos em campanha contra os governantes que querem sufocar as revelações. Ou seja, em defesa da liberdade de informação, da própria razão de ser que os jornais, TVs, rádios e revistas propagam ser a sua.

Com escassas exceções, que se saiba, os meios de comunicação estão muito mais identificados com os governos e governantes do que com os cidadãos-leitores e com a liberdade de informação. A união e a contundência que têm na defesa da sua liberdade de empresas, dada como liberdade de imprensa, não se mostra: segue, nos Estados Unidos, o aprendizado imposto pela era Bush e, no restante do Ocidente, os reflexos desse aprendizado sob a paranoia do terrorismo.

Os jornalistas profissionais não estão melhor do que os meios de comunicação. Poucos são os seus recursos de expressão, mas, ao que se deduz do noticiário rarefeito, as manifestações de repúdio à pressão contra as revelações do Wikileaks são feitas por leitores/espectadores. Os jornalistas apenas as registram, pouco e mal.

A VÍTIMA

Forçado a demitir-se da relatoria do Orçamento da União para 2011, sob acusação de destinar verbas a entidades fantasmas de suas proximidades, o senador Gim Argello se diz vítima de injustiça. Tem alguma razão.

O que se poderia esperar do suplente de Joaquim Roriz? Apesar disso, foi-lhe entregue a seleção, distribuição e criação de verbas para a governança do país. E, quando faz o que lhe é próprio, forçando-no a sair. Tratamento injusto, sem dúvida.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/12/2010.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Aula de Imperialismo Contemporâneo

Emir Sader

 Os EUA se tornaram uma potência imperial na disputa pela sucessão da Inglaterra como potência hegemônica, com a Alemanha. As duas guerras mundiais – tipicamente guerras interimperialistas, pela repartição do mundo colonial entre as grandes potências, conforme a certeira previsão de Lenin – definiram a hegemonia norteamericana à cabeça do bloco de forças imperialistas.

No final da Segunda Guerra, os EUA tiveram que compartilhar o mundo com a URSS – a outra superpotência, não por seu poderio econômico, mas militar, que lhe dava uma paridade política. Foi o período denominado de “guerra fria”, que condicionava todos os conflitos em qualquer zona do mundo, que terminavam redefinidos no seu sentido no marco do enfrentamento entre os dois grandes blocos que dominavam a cena mundial.

Nesse período os EUA consolidaram seu poderio como gendarme mundial, poder imperial que tinha se iniciado na América Latina e o Caribe e que se estendeu pela Europa, Asia e Africa. Invasões, ocupações, golpes militares, ditaduras – marcaram a trajetória imperial norteamericana. Montaram o mais gigantesco aparelho de contra inteligência, acoplado a um monstruoso aparato militar.

Terminada a guerra fria, com a desaparição de um dos campos e a vitória do outro, esses mecanismos não foram desmontados. A OTAN, nascida supostamente para deter o “expansionismo soviético”, não foi desmontada, mas reciclada para combater os novos inimigos: o “terrorismo”, o “islamismo”, o “narcotráfico”, etc.

Os documentos publicados confirmam tudo o que os aparentemente paranoicos difundiam sobre os planos e as ações dos EUA no mundo. Eles são a única potência global, aquela que tem interesses em qualquer parte do mundo e, se não os tem, os cria. Que pretende zelar pela ordem norteamericana no mundo, a todo preço – com ameaças, ataques, difusão de noticias falsas, ocupações, etc., etc.

Qualquer compreensão do mundo contemporâneo que não leve em contra, como fator central a hegemonia imperial norteamericana, não capta o essencial das relações de poder que regem o mundo. A leitura dos documentos é uma aula sobre o imperialismo contemporâneo.