quinta-feira, 26 de maio de 2011

Os gays e a Bíblia

Frei Betto


É no mínimo surpreendente constatar as pressões sobre o Senado para evitar a lei que criminaliza a homofobia. Sofrem de amnésia os que insistem em segregar, discriminar, satanizar e condenar os casais homoafetivos. No tempo de Jesus, os segregados eram os pagãos, os doentes, os que exerciam determinadas atividades profissionais, como açougueiros e fiscais de renda. Com todos esses Jesus teve uma atitude inclusiva. Mais tarde, vitimizaram indígenas, negros, hereges e judeus. Hoje, homossexuais, muçulmanos e migrantes pobres (incluídas as “pessoas diferenciadas”...).

Relações entre pessoas do mesmo sexo ainda são ilegais em mais de 80 nações. Em alguns países islâmicos elas são punidas com castigos físicos ou pena de morte (Arábia Saudita, Irã, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Nigéria etc). No 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 2008, 27 países-membros da União Europeia assinaram resolução à ONU pela “despenalização universal da homossexualidade”.

A Igreja Católica deu um pequeno passo adiante ao incluir no seu catecismo a exigência de se evitar qualquer discriminação a homossexuais. No entanto, silenciam as autoridades eclesiásticas quando se trata de se pronunciar contra a homofobia. E, no entanto, se escutou sua discordância à decisão do STF ao aprovar o direito de união civil dos homoafetivos.

Ninguém escolhe ser homo ou heterossexual. A pessoa nasce assim. E, à luz do Evangelho, a Igreja não tem o direito de encarar ninguém como homo ou hetero, e sim como filho de Deus, chamado à comunhão com Ele e com o próximo, destinatário da graça divina.

São alarmantes os índices de agressões e assassinatos de homossexuais no Brasil. A urgência de uma lei contra a violência simbólica, que instaura procedimento social e fomenta a cultura da satanização.

A Igreja Católica já não condena homossexuais, mas impede que eles manifestem o seu amor por pessoas do mesmo sexo. Ora, todo amor não decorre de Deus? Não diz a Carta de João (I,7) que “quem ama conhece a Deus” (observe que João não diz que quem conhece a Deus ama...).

Por que fingir ignorar que o amor exige união e querer que essa união permaneça à margem da lei? No matrimônio são os noivos os verdadeiros ministros. E não o padre, como muitos imaginam. Pode a teologia negar a essencial sacramentalidade da união de duas pessoas que se amam, ainda que do mesmo sexo?

Ora, direis, ouvir a Bíblia! Sim, no contexto patriarcal em que foi escrita seria estranho aprovar o homossexualismo. Mas muitas passagens o subtendem, como o amor entre Davi por Jônatas (I Samuel 18), o centurião romano interessado na cura de seu servo (Lucas 7) e os “eunucos de nascença” (Mateus 19). E a tomar a Bíblia literalmente, teríamos que passar ao fio da espada todos que professam crenças diferentes da nossa e odiar pai e mãe para verdadeiramente seguir a Jesus.

Há que passar da hermenêutica singularizadora para a hermenêutica pluralizadora. Ontem, a Igreja Católica acusava os judeus de assassinos de Jesus; condenava ao limbo crianças mortas sem batismo; considerava legítima a escravidão;e censurava o empréstimo a juros. Por que excluir casais homoafetivos de direitos civis e religiosos?

Pecado é aceitar os mecanismos de exclusão e selecionar seres humanos por fatores biológicos, raciais, étnicos ou sexuais. Todos são filhos amados por Deus. Todos têm como vocação essencial amar e ser amados. A lei é feita para a pessoa, insiste Jesus, e não a pessoa para a lei.

FREI BETTO é escritor.

Publicado em O Globo, em 23/05/2011.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Culturas francesa e americana

Gilles Lapouge


Um francês vai a Nova York. Hospeda-se no Hotel Sofitel. Toma uma ducha. Uma camareira entra no quarto para fazer a arrumação.

Alguns minutos se passam. O homem e a mulher fazem alguma coisa. Não se sabe o que. Mas parece que o homem comporta-se muito mal. Ele deixa o hotel.

E a economia mundial treme porque esse homem é o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI). E toda a política francesa naufraga, pois esse homem tinha todas as chances de tornar-se presidente da França no próximo ano.

Esses poucos minutos desconhecidos também tiveram outros efeitos.

Mostraram com crueldade o abismo que separa a cultura americana da cultura francesa. A leitura feita pela imprensa americana e pela imprensa francesa, há uma semana, dá a medida da profundidade desse abismo - "verdade do lado de cá do Atlântico, erros do lado de lá".

Quais são as queixas da imprensa francesa? Antes de tudo, da brutalidade da Justiça americana. Incansavelmente, repórteres e editorialistas franceses manifestaram seu mal-estar, seu desagrado, diante das imagens divulgadas de Dominique Strauss-Kahn apavorado, algemado, empurrado por policiais de cinema de terceira categoria e jogado à multidão.

Segundo o sociólogo Michel Fize, "essas imagens são indignas de uma nação que se diz uma grande democracia: acabamos até apreciando o sistema judiciário francês que, desde 2000, não autoriza a divulgação de imagens como essas".

Há outras críticas levantadas contra a Justiça americana: o papel do júri popular, a influência do dinheiro quando se chega a uma conciliação... Mas, em essência, as críticas concentram-se no "cerimonial" da Justiça americana, na vontade de humilhar o acusado, sobretudo se é alguém rico ou poderoso, levando a crer que isso tudo constitui um ritual religioso, destinado a aniquilar o orgulho dos poderosos e levá-los ao arrependimento.

Do lado da imprensa americana, a indignação é principalmente com a discrição que os jornais franceses mantêm quanto ao comportamento dos seus dirigentes. É verdade que nos países anglo-saxões os jornais não se acanham em dissertar sobre as "escapadas" dos poderosos, em particular no campo da sexualidade.

Na França, ao contrário, os desvios sexuais dos grandes, as bacanais, os apetites das damas, são objeto de uma "Omertà" . Total silêncio. Ou então são vagas alusões, piadas de mau gosto, nada engraçadas e horrivelmente machistas.

Deste ponto de vista, o drama de Strauss-Kahn é um caso de escola. Todos os jornalistas sabiam que não se pode deixar este homem encantador, sedutor, sozinho com uma mulher (uma jornalista, por exemplo) sem que isso provoque uma "cantada" vulgar, constrangedora".

Mas nenhum jornal na verdade disse isso. E, de repente, os americanos lançam-se furiosamente contra os pudores e "conivências" francesas. "Se o comportamento de Strauss-Kahn já tivesse sido denunciado, a tragédia do Sofitel não teria ocorrido", dizem eles.

A bola volta então para o campo francês. Os jornais da França denunciam com virulência o "voyeurismo" da imprensa anglo-saxã e esse mito da transparência absoluta, que acaba provocando no público curiosidades sórdidas, deleites lânguidos e perversões imundas.

É o caso, então, de concluir e escolher entre a escola de jornalismo americano e a francesa? Provavelmente. Mas neste ponto chego ao fim do espaço concedido para este artigo.

* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 21/05/2011.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Adeus à política partidária

Luiz Carlos Bresser-Pereira


A vida é uma soma de compromissos e de identidades. Comprometemo-nos com nossa família, com nossos amigos, com nossos colegas de trabalho, com nossos companheiros de luta política, com nosso país, e, cada vez mais, com nossa humanidade.

Mas nossa identidade não é produto apenas da nossa liberdade; é também resultado da imagem que nos é atribuída pelos outros, porque é a fidelidade a ela que nos torna previsíveis e confiáveis.

Entretanto, o mundo em nossa volta muda constantemente, o que nos obriga a estar sempre prontos a nos repensarmos, ao mesmo tempo em que repensamos o mundo em transformação.

Nesses últimos dez anos, eu mudei, e o partido político que eu ajudei a criar, o PSDB, também mudou. A mudança foi tão grande que chegou a hora de dizer adeus a esse partido, e, mais amplamente, à política partidária. Nunca fui um político "stricto sensu", porque nunca me candidatei a cargo eletivo. Mas aceitei convites e ocupei cargos importantes, sempre identificado com uma centro-esquerda social-democrática e nacionalista.

Nos debates que precederam a fundação do PSDB, a decisão de denominá-lo um partido social-democrático deixava claro o compromisso de centro-esquerda do partido.

Entretanto, enquanto assinava a ata de fundação, estava claro para mim o risco que o novo partido corria. Se o PT, que naquela época se considerava um partido socialista revolucionário, chegasse ao poder, poderia acontecer aqui no país o que aconteceu com os partidos socialistas na Europa; o PT poderia se transformar em um partido social-democrático, e o PSDB seria empurrado para a centro-direita.

Foi isso o que aconteceu, com um agravante: o partido também não se identificou com um nacionalismo econômico essencial para que o Brasil alcance os níveis de bem-estar dos países ricos.

Em 1993, tentei, em conjunto com Oded Grajew, uma aproximação entre o PSDB e o PT, mas não havia espaço nos dois partidos para isso. Em 2002, em associação com Yoshiaki Nakano, fizemos uma proposta de política de crescimento com estabilidade para o PSDB, mas ela não chegou a ser discutida.

Enquanto isso ocorria, eu, que desde 1999 me dedico apenas às atividades acadêmicas, também mudei. Reforcei minha posição de centro-esquerda e retomei meu nacionalismo econômico, que se define por uma simples e dupla convicção: que é dever primeiro do governo defender os interesses do trabalho, do capital e do conhecimento nacionais, e que essa defesa deve ser feita pelos brasileiros seguindo sua própria cabeça, já que os países ricos são nossos competidores.

O nacionalismo econômico foi fundamental para que o Brasil crescesse aceleradamente entre 1930 e 1980, mas depois, no quadro da hegemonia neoliberal, foi abandonado. Ora, no contexto da globalização, o desenvolvimento de um país depende da existência de estratégia nacional de desenvolvimento ou de competição internacional.

Na medida em que as mudanças ocorriam em direções opostas, eu me distanciava cada vez mais do PSDB. Por isso, decidi desligar-me dele. Ainda nestas últimas eleições votei em José Serra nos dois turnos.

Quis, assim, honrar compromissos antigos com ele e com Fernando Henrique -um notável homem público e um amigo- e a memória de dois estadistas do partido: Mario Covas e Franco Montoro.

A partir daqui, fico livre de compromissos partidários, como é mais adequado para alguém como eu, que decidiu não mais exercer cargos públicos, mas ser um intelectual público independente, identificado, na medida do meu possível, com o Brasil e com seu povo.

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LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 76, professor emérito da FGV-SP, é colunista da Folha . Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). É autor de, entre outras obras, "Desenvolvimento e Crise no Brasil" (Editora 34).
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/05/2011.

Oposição não enxerga os pobres

Vinicius Torres Freire


Dilma Rousseff contou ontem a sindicalistas rurais que vai cair a taxa de juros cobrada de pequenos agricultores, que vai garantir preços mínimos para a lavra deles e que a quantidade de dinheiro para o microcrédito rural não vai diminuir em relação a 2010, quando foi recorde. Quase ninguém vai dar bola.

Dilma estava tratando do Pronaf, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Pronaf? No ano passado, esse programa de empréstimos para pequenos negócios rurais (agricultura, agropecuária, floresta) fechou uns 2 milhões de contratos, mais que o dobro do número de empréstimos acertados no último ano do governo FHC, que inventou a coisa toda em 1996. O dinheiro sai de bancos federais.

O Pronaf é um desses programas meio ignorados pelas "elites", assim como no começo eram desprezadas ou avacalhadas iniciativas como o Bolsa Família, o ProUni, o aumento de vagas nas universidades federais, o Luz para Todos (eletrificação dos grotões), o Programa de Microcrédito Produtivo (que liberou 1,27 milhão de empréstimos em 2010), o aumento da aposentadoria "rural" do INSS e seu efeito sobre os pequenos negócios do interior etc.

Não vem ao caso aqui e agora discutir a qualidade ou a eficiência desses programas. Mas, juntos, afetaram e afetam a vida de milhões que passaram a vida toda largados, "desprezados e humilhados", sem oferta alguma de oportunidades, em miséria obscura e infernal.

Tais programas afetam e afetaram também a vida de gente mais remediada, mas que não podia colocar os filhos numa faculdade, o que impressiona vizinhos e parentes.

Os críticos do governo Lula, nos partidos ou nos meios de comunicação, não se davam conta do efeito e do alcance econômico (no varejo, ao menos), social e político dessas iniciativas aparentemente dispersas e pequenas. Passaram a notar a maré lulista quando era tarde demais (para a oposição). Claro que a popularidade do ex-presidente veio da estabilidade econômica, da inflação baixa e dos anos de crescimento bom, os melhores em 30 anos. Mas não apenas.

Lula e seu governo foram buscar apoios em grotões (periferias urbanas ou sertões). "Foram falar" com gente até então ignorada. Bem ou mal, o petismo-lulismo alterou o contrato político-social dos governantes com os mais pobres, quase todo mundo no Brasil.

Muitos dos críticos do governo petista de agora, o de Dilma Rousseff, concentram suas avaliações de conjuntura e perspectivas político-econômicas nos grandes números macroeconômicos: inflação, emprego, crescimento do PIB. Uns anos de inflação desagradável e o fim da "novidade" do PIB crescendo de modo contínuo de fato podem arranhar o prestígio político do petismo.

Tal análise, porém, é pobrezinha, politicamente inepta. Os críticos do governo petista parecem que vão cometer o mesmo erro de meados do governo Lula. De fato, parece que Dilma tem por ora bem menos novidades para apresentar. Parece.

Mas seu governo apronta um plano de expansão do acesso à internet, um "Web para Todos". Apronta um plano de erradicação da miséria que pretende alcançar os muitos pobres ainda desgarrados e inovar a assistência aos já atendidos por programas sociais. Melhorou as condições do Pronaf. Etc. Etc.


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 19/05/2011. 

terça-feira, 17 de maio de 2011

"Gente diferenciada"

Barbara Gancia

Alô, Governador Alckmin! Nosso time ganhou do Once Caldas, estamos com a mão na taça, dona Lu na santa paz, cunhadão em banho-maria, prefeito se afundando sozinho... Tudo azul para o seu lado, não é mesmo?

Pois então, o que o está impedindo de tocar as obras do metrô de que São Paulo tanto precisa e que o senhor conduz a passo de tartaruga?

Foram três gatos pingados fazer barulho em abaixo-assinado e isso serviu como desculpa para parar tudo mais uma vez, foi?

Em um mundo tão variado, tinha de haver 3.500 termocéfalos que não querem uma estação de metrô ao lado de casa. Vai ver que, por uma questão de gosto, eles também se posicionam contra a cura do câncer. O Taleban não proibiu a criançada de empinar pipa? Os wahabitas não detestam música? Não tem gente que come cocô? Pois então, há 3.500 seres em Higienópolis que não sabem o que estão perdendo ou que 93% dos londrinos andam de metrô e estão felizes da vida sem carro, estacionamento ou IPVA para pagar.

Tem também uma outra tropa de bucéfalos que quer declarar guerra a Higienópolis para acirrar o ódio que faz brasileiro cortar goela de brasileiro há cinco séculos.

E eu que pensei que uma das vantagens da liberdade de expressão fosse ver as pessoas certas se estrepando todas? Jair Bolsonaro virou símbolo de ódio e intolerância no país por dispor do verbo como bem entende. Agora foi a vez da mulher que não quer ser vizinha do metrô porque acha que a estação vai atrair "drogados, mendigos, camelôs e uma gente diferenciada".

Ela não precisa ser combatida com ocupação territorial na forma de uma churrascada de protesto organizada por gente "do bem", no próximo sábado, na frente do shopping Higienópolis. Isso só servirá para prejudicar os 55 mil moradores do bairro, 51.500 dos quais nada tiveram a ver com o abaixo-assinado. Ou para gratificar a molecada que pretende ir lá gritar: "Abaixo os ricos!" no intervalo entre uma comprinha e outra no shopping.

Prefiro usar a polêmica para responsabilizar o poder público pela lentidão da construção do metrô de São Paulo. Tirando os 3.500 altruístas que assinaram o pedido para a não construção da estação, não há muitos outros paulistanos que discordem: os atrasos nas obras ocorridos até hoje não podem mais ser tolerados.

E já que estamos aqui, vale a pena ler de novo um trecho da entrevista concedida ao dileto colega Mario Cesar Carvalho (por sinal, morador de Higienópolis e democrata) pelo arquiteto Richard Rogers, cocriador do Beaubourg e por muitos anos chefe da Comissão de Urbanismo de Londres, que esteve em São Paulo há pouco mais de mês:

"A integração é a única solução para as cidades. Em Londres, não temos favelas. Mas temos pessoas vivendo em habitações sociais, que são subsidiadas pelo governo. São prédios privados, nos quais o governo pode colocar pessoas pobres na porta ao lado de alguém muito rico. Uma área só para ricos contraria a ideia de cidade.

O que fazer quando ricos não querem pobres ao lado?

O sistema londrino obriga bairros ricos a terem habitações sociais. Esse tipo de sistema já é aplicado na Holanda, na Dinamarca e na Suécia. É preciso criar leis para ter essa integração. O problema de pobres e ricos no Brasil é igual ao que existia entre brancos e negros nos Estados Unidos. Cidades não podem ter guetos, seja para negros ou pobres".


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/05/2011.
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@barbaragancia

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O PT, o PSDB e o mercado político

Alexandre Barros


Tumulto e apreensão com a sugestão de Fernando Henrique Cardoso para que o PSDB pare de buscar os votos do "povão" e se concentre na classe média. Tentemos entender política como um mercado, como quase tudo na vida moderna. Há mercados para sanduíches, roupas, perfumes, joias, salvação eterna. E também para leis e políticas públicas. O mercado destas duas é a política.

Partidos buscam, como empresas, o aumento de sua fatia de mercado e dos lucros (sem bandalheiras). A vitória é o poder. Mas há uma diferença: a política é um mercado futuro. Os compradores só podem comprar a cada quatro anos no âmbito federal, pagando adiantado.

Partidos oferecem produtos de livre escolha dos consumidores (como religiões diversas oferecem a oportunidade de salvação eterna). Às vezes, mudam os produtos. São apostas no gosto dos consumidores, mesmo depois da eleição. O teste será a eleição seguinte.

Lula fez isso em 2002. Optou por mudar o produto que o PT ofereceria aos seus consumidores. Mudou a agenda econômica para oferecer um produto parecido com o do antecessor (estabilidade da moeda e controle severo da inflação) e mais políticas sociais. Acertou em ambos os casos. Foi reeleito em 2006 e fez a sua sucessora em 2010.

Nesse meio tempo seu principal concorrente, o PSDB, não conseguiu encontrar o produto que os consumidores desejavam. Naufragou com Geraldo Alckmin uma vez e duas com José Serra. Os consumidores rejeitaram os produtos e não gostaram das embalagens.

A Presidência da República é o grande mercado. Há outros menores ou secundários, que são menos importantes, Deles se ocupam o PMDB e, cada vez menos, o DEM. Todos oferecem os produtos que seus marqueteiros e cardeais acham adequados e testam a aceitação.

Depois de três derrotas no mercado presidencial, o conselheiro Fernando Henrique propôs nova estratégia: mudemos nosso público, saiamos do mercado que atende aos interesses do "povão" e nos concentremos no da classe média, porque neste temos mais chances (ou porque é desse que eu gosto mais?).

Algumas marcas fizeram isso. A maioria, entretanto, optou pela identidade de "marca de prestígio", lançando alguns produtos para consumo do "povão". Assim garantiram presença e lucros, sem perder a identidade. Exemplos: a Nikon, a Armani e, em certa medida, a Louis Vuitton. Mas não a Rolex, que manteve seus produtos na elite, ainda que contemplando diversos níveis dessa elite (produz de relógios de aço a outros de ouro, platina e diamantes).

Aqui cessam as semelhanças entre o mercado de bens e o de leis e políticas públicas. É possível sobreviver no mercado de bens e serviços porque uma empresa pode conseguir lucros suficientes para seus acionistas mantendo uma fatia limitada a consumidores de alta renda. No mercado político isso não é factível, porque política é um jogo de números e só há um ganhador. O perdedor fica fora por quatro anos, noves fora o Congresso, que vale muito menos. Na Presidência, quem tem a maior margem de mercado, além de dominá-lo por quatro anos, ainda ganha algumas vantagens para disputar a reeleição.

Parece ser nesse ponto que a estratégia de Fernando Henrique falha. Partidos só são concorrentes eficazes sob certos aspectos. Quando chega a hora em que quem tem a maior fatia do mercado leva tudo, essa comparação deixa de ter valor. Desse ponto de vista, a proposta de Fernando Henrique parece ser suicida: condenaria o PSDB a se tornar um partido marginal (ou regional), que renunciaria a disputar o grande mercado nacional para se concentrar em alguns nichos (Estados) e parte do Congresso, abdicando de pleitear a Presidência.

É uma estratégia como qualquer outra. Pode funcionar com relógios de luxo ou com as quatro únicas coisas que diferenciam os verdadeiramente ricos do restante, em sociedades de consumo de massa: obras de arte originais, iates transatlânticos, grandes jatos privados e fazendas suficientemente grandes para não ser incomodado pelo barulho dos vizinhos. Todos os outros produtos de consumo foram forçados a aceitar as regas dos mercados de massa para sobreviver e prosperar. Hoje, com dinheiro e crédito, qualquer um destes acaba sendo acessível a consumidores de classe média, que terão de fazer mais ou menos sacrifícios, mas acabarão podendo adquiri-los.

Para partidos políticos, entretanto, essa estratégia é suicida porque os condena a ser marginais e, em última instância, ao desaparecimento - ou quase. Assim, do ponto de vista dos peessedebistas, a estratégia proposta por Fernando Henrique condenaria o seu partido a ter uma fatia pequena e irrelevante do mercado, apostando num crescimento da renda e da sua distribuição que as regras de economia e da demografia dificilmente deixarão que ocorra no espaço de nossa vida.

Agora resta saber o que as equipes da empresa PSDB (seus políticos em geral) farão a esse respeito. Se o conselho aceitar a proposta de Fernando Henrique e a adotar, vão testar se a realidade concorda com o ex-presidente. Se não, pode ser obrigada a fechar as portas por falta de mercado ou involuir para se tornar uma "grande empresa de pequenos negócios". A próxima parada pode ser o fechamento ou a falência.

Sei que me arrisco fazendo previsões sobre o futuro (é mais seguro e confortável fazê-las sobre o passado), mas não existe exemplo na História recente (desde o triunfo dos mercados e do capitalismo sobre a aristocracia) em que tal caso tenha ocorrido, salvo se Fernando Henrique pretende escrever outro livro e depois pedir que o esqueçam.

Aqui vale a máxima do Barão de Itararé: melhor dois galos no terreiro do que um na cabeça.

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PH.D. EM CIÊNCIA POLÍTICA, É SÓCIO DA EARLY WARNING: RISCO POLÍTICO E POLÍTICAS PÚBLICAS(BRASÍLIA)


* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 11/05/2011.

A privatização cotidiana

Rolf Kuntz


O brasileiro terá subido um degrau na vida quando for somente esfolado por um Fisco voraz para sustentar governos incompetentes e perdulários. Sua situação, neste momento, é pior que essa. Ele é espoliado também para sustentar os interesses privados de partidos políticos, parlamentares, aliados do governo e uma porção de lucrativas entidades – fajutas ou não – oficialmente descritas como sem fins lucrativos. Mas não há sinal de upgrade. Por enquanto, o mais provável é o destino oposto, porque é quase certa a oficialização do financiamento público de campanhas. Com isso, a política brasileira continuará tão indecente quanto é hoje e o nariz de palhaço do contribuinte ficará mais ostensivo.

O Fundo Partidário distribuirá este ano R$ 301,5 milhões. Desse total, R$ 265,3 milhões correspondem à dotação orçamentária básica. O resto provém de multas cobradas pela Justiça Eleitoral e destinadas aos partidos, como determina a Lei n.º 9.096, de setembro de 1995. A dotação básica foi inflada com R$ 100 milhões, em janeiro, em manobra da Comissão Mista de Orçamento. Esse acréscimo servirá para cobrir dívidas de campanha do ano passado. A história pode ser escandalosa e, segundo o Estado, a presidente Dilma Rousseff chegou a examinar a possibilidade de um veto e foi dissuadida por auxiliares. Mas a manobra de socorro aos partidos endividados foi facilitada por uma aberração legal, o Fundo Partidário.

Não há justificativa política ou moral para a obrigação, impingida ao contribuinte, de financiar partidos, entidades privadas. Não se trata, nesse caso, de subsídios ou auxílios concedidos com base em considerações de interesse estratégico ou destinados a sustentar serviços essenciais, como aqueles prestados pelas Santas Casas. Falar em promoção da democracia para defender essa mamata é abusar das palavras.

Partidos políticos são legalmente definidos como pessoas jurídicas de direito privado. Cidadãos podem criá-los, fundi-los e extingui-los livremente, segundo o artigo 17 da Constituição Federal. Mas, segundo o mesmo artigo, os partidos “têm direito a recursos do Fundo Partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei”.

A garantia de dinheiro público a entidades privadas – e vinculadas à defesa de interesses corporativos, econômicos, ideológicos etc. – é uma das aberrações abrigadas na Constituição Federal. Algumas, como a limitação dos juros, no artigo 192, foram corrigidas. Outras, como a divisibilidade dos juízes, implícita no artigo 106, permanecem no texto. Segundo esse artigo, “os Tribunais Regionais Federais compõem-se de, no mínimo, sete juízes”, sendo um quinto recrutado dentre advogados com mais de dez anos de efetiva atividade, etc. Um quinto de 7 é 1,4.

Muito mais importante que essa curiosidade anatômico-aritmética é a confusão entre o público e o privado. A presença dessa geleia política na Constituição não deve ser casual. É característica da história brasileira e manifesta-se na rotina das instituições e dos organismos públicos. As chamadas “verbas compensatórias” servem a interesses particulares de senadores e deputados. São usadas, por exemplo, para o custeio de escritórios e de seus contatos com as bases eleitorais. Por que diabos deve o contribuinte financiar a carreira política de cada parlamentar? Por que não deixar cada um cuidar de suas despesas, com recursos próprios ou, talvez, com auxílio de seus aliados ou de seu partido? Esse custo lançado na conta do pagador de impostos é simplesmente mais um abuso, cometido, como tantos outros, em nome da democracia.

Sindicatos também são entidades privadas e representam interesses privados. Mas são beneficiados pelo imposto sindical, agora dividido também com as centrais, graças ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pode-se até discutir se o imposto sindical tem algum sentido, mas o uso desse tributo, no Brasil, tem servido principalmente para alimentar distorções na organização trabalhista e para sustentar um peleguismo cada vez mais escancarado. É, novamente, dinheiro cobrado compulsoriamente e usado para distribuir benefícios a particulares – incluídos os grupos políticos aliados aos pelegos.

O empreguismo e a distribuição de postos a aliados são formas tradicionais de privatização não declarada. Seu uso se acentuou nos últimos oito anos. A novidade recente é a disputa entre o PT e os partidos da base, motivada pelo apetite excepcional exibido neste ano pelos petistas.

Pulverizar verbas orçamentárias por meio de emendas para atender a interesses eleitorais e beneficiar entidades amigas – e às vezes fraudulentas – é prática tradicional. Também nesse caso as atenções de suas excelências passam longe do interesse público. Diante de todos esses fatos, a manobra para pagar as dívidas de campanha é quase rotineira.

* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 11/05/2011.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Vitória gay, vitória do país

Fernando de Barros e Silva


Não foi apenas uma vitória dos homossexuais. Foi uma afirmação do Estado laico, do espírito democrático e do pensamento progressista. Não é pouco no Brasil.

Basta lembrar, por exemplo, que na campanha presidencial o aborto foi objeto de uma gincana obscurantista entre os candidatos "esclarecidos". Ou não esquecer que gays (de fato ou presumidos) são espancados por gangues nas ruas, como aconteceu outro dia na Paulista.

Ao reconhecer como legal a união estável entre pessoas do mesmo sexo, o STF estendeu a esses casais os direitos dos heterossexuais -partilha de bens e herança, pensão, declaração conjunta de IR etc.

Mas, além disso, ao facultar aos gays o direito de constituir família, o STF vai contra a discriminação e a favor de uma sociedade mais tolerante e inclusiva, capaz de lidar de maneira civilizada com suas diferenças e a multiplicidade da vida.

Eram dois os argumentos legais dos adversários da causa gay: 1) a Constituição diz que "é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar"; 2) para ampliar esse conceito aos gays, seria preciso mudar a Carta, tarefa que caberia ao Congresso.

Gilmar Mendes respondeu a essas objeções no seu voto: "O fato de a Constituição proteger a união estável entre homem e mulher não significa negar a proteção à união do mesmo sexo. É dever desta Corte dar essa proteção se de alguma forma ela não foi concedida pelo órgão competente (o Congresso)".

Mas feliz, de verdade, foi a fórmula do relator do caso, ministro Ayres Britto: "Aqui é o reino da igualdade absoluta, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham".

Mesmo sem perder nada, foram derrotados aqueles que se sentem ameaçados pela sexualidade alheia (ou antes a sua própria). Perderam a igreja, os conservadores em geral e os homofóbicos em particular. Nem sempre o Brasil nos decepciona. Avançamos. Com a omissão do Congresso, pelas mãos do STF.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/05/2011.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Tragam a cabeça de Bin Laden

Marcelo Coelho


Leio na internet que o governo americano continua deliberando sobre a conveniência de divulgar ou não a foto de Bin Laden morto. “Ela é horrível”, diz um porta-voz.

Não vejo outra resposta a não ser a de que eles têm obrigação de divulgar. A decisão de matar Bin Laden, a qual não me deixa nada infeliz, tem de ser assumida em todas as suas consequências.

Se o resultado foi muito feio, que o mundo inteiro saiba que não é bonito mesmo explodir a cabeça de um homem.

Se a foto diminuir a autoconfiança dos americanos depois de divulgado o sucesso da operação, tanto melhor; contribuirá para arrefecer o senso de irrealidade, de história em quadrinhos, de filme de matinê que acompanha essas ocasiões.

Se será usada pelos adversários como exemplo da “crueldade ianque”, é uma coisa sobre a qual ninguém tem controle. Pode-se imaginar que, não divulgando foto nenhuma, os inimigos dos EUA insistirão na tese de que Bin Laden continua vivo. De resto, os mártires costumam ser bonitos. Não conheço nenhum santo que seja feio. Uma foto monstruosa de Bin Laden morto é melhor do que a foto serena do terrorista posando de sábio numa almofada do deserto.

A tese de que “é contraproducente criar um mártir” nem sempre é verdadeira. Che Guevara, como mártir, inspira e ainda representa muito ódio aos americanos. Mas se tivesse continuado vivo e atuante, certamente teria dado mais trabalho do que centenas de milhares de fotos dele espalhadas pelo mundo.

E é possível que o próprio Cristo tivesse muito menor influência depois de morto, se seus discípulos não viessem com a notícia que ele ressuscitou –e que seu corpo não foi encontrado no túmulo.


Insultos à memória

Vladimir Safatle


Em Rondônia, há uma pequena cidade chamada Presidente Médici. Este é o mesmo nome de um estádio de futebol em Sergipe.

Os paulistanos que quiserem viajar de carro para Sorocaba conhecerão a rodovia Castello Branco. Aqueles que procurarem uma via sem semáforos para o centro da capital paulista poderão pegar o elevado Costa e Silva.

Há mesmo alguns paulistanos que moram na rua Henning Boilesen: nome de um empresário dinamarquês, radicado no Brasil, que financiava generosamente a Operação Bandeirante e que, em troca, podia assistir e participar de torturas contra presos políticos na ditadura militar.

Há alguns anos, os são-carlenses foram, enfim, privados da vergonha de andar pela rua Sérgio Fleury: nome de um dos torturadores mais conhecidos da história brasileira. Estes são apenas alguns exemplos da maneira aterradora com que o dever de memória é praticado no Brasil.

Se monumentos, cidades e lugares públicos podem receber o nome seja de ditadores que transformaram o Brasil em um Estado ilegal resultante de um golpe de Estado seja de torturadores sádicos é porque muito ainda falta para que a memória social sirva como garantia de que o pior não se repetirá. Sem esta garantia vinda da memória, os crimes do passado continuarão a destruir a substância normativa do presente, a servir de ameaça surda à nossa democracia.

Lembremos como o Brasil foi capaz de legalizar o golpe de Estado em sua Constituição de 1988. Basta lermos o artigo 142, no qual as Forças Armadas são descritas como "garantidoras dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Ou seja, basta, digamos, o presidente do Senado pedir a intervenção militar em garantia da lei (mas qual? Sob qual interpretação?) e da ordem (social? Moral? Jurídica?) para legalizar constitucionalmente um golpe militar.

Tudo isso demonstra como ainda não há acordo sobre o que significou nosso passado recente. Por isso, ele teima em não morrer. Um núcleo autoritário e violador dos direitos humanos nunca foi apagado de nosso país. Não é por acaso que somos o único país latino-americano onde o número de casos de tortura em prisões cresceu em relação à ditadura.

O que não deve nos surpreender, já que ninguém foi preso, nenhuma mea-culpa dos militares foi feita, ninguém que colaborou diretamente com a construção de uma máquina de crimes estatais contra a humanidade foi objeto de repulsa social.

Que a criação de uma Comissão da Verdade possa, ao menos, fazer com que o Brasil pare de insultar a memória dos que sofreram nas mãos de um Estado ilegal governado por usurpadores de poder.

Que ninguém mais precise morar em Presidente Médici.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 03/05/2011.