quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Histórias do consumo

Maria Inês Dolci

José ficou feliz com a promoção de um site de compras coletivas: passagem aérea pela metade do preço. Não recebeu o bilhete aéreo nem o dinheiro de volta. Não viajou.
Maria teve de pagar, na conta de seu telefone celular, serviço que não contratou. Tenta obter o dinheiro de volta, mas mal consegue falar com um atendente e a ligação é interrompida ou transferida para outra pessoa. Uma canseira daquelas!
Seu João tem 80 anos, é aposentado e recebeu ligação de um correspondente bancário que lhe oferecia um empréstimo consignado. Contratou o crédito e ainda não viu a cor do dinheiro, embora as parcelas sejam descontadas de sua aposentadoria.
Dona Joana, 75 anos, não tem plano de saúde. Sai de casa muito cedo e pega três conduções rumo a um hospital conveniado com o SUS (Sistema Único de Saúde). As filas são imensas e ela fica assustada, porque não há datas próximas para fazer os exames de que necessita. A doença tem pressa, mas o serviço de saúde é tão lento!
Carlinha, 15 anos, é inteligente e gosta de participar das redes sociais. Onde mora não há serviço eficiente de acesso à internet. Ela conta os dias para que o Plano Nacional de Banda Larga chegue a sua cidade. Lamenta o atraso do programa.
Seu tio, Joaquim, não entendeu até hoje por que, apesar das interrupções frequentes de energia elétrica, as concessionárias reajustam a conta sem dificuldades. Ele também aguarda, até hoje, por pura teimosia, que lhe devolvam o valor pago a mais, anos a fio, nas tarifas de energia.
Paulo é um jovem executivo. Poupou muito e comprou um carro zero. O automóvel tem defeito de fabricação. Já esteve duas vezes na oficina, mas não houve uma solução para o problema. Ele sabia que teria direito a um carro zero. Na loja em que comprou o carro, disseram que não. Paulo está certo, mas terá de recorrer à Justiça para assegurar seus direitos.
Laura abasteceu seu automóvel em um posto de combustíveis e percebeu que havia algo errado. O motor começou a pifar, até parar de vez. Resultado: pagou caro pelo reparo na oficina, porque colocaram combustível adulterado no tanque do seu veículo.
Pedro lamentou ter comprado um presente de Natal para sua mãe, que mora em outra cidade, em loja virtual. A TV só foi entregue semanas depois da data prevista, após muita reclamação, em horas de ligações telefônicas.
Lídia levou um susto quando foi renovar o contrato da escola da filha. A mensalidade subiu 14%, mais do que o dobro da inflação do período. Nem comparou com seu salário, sem reajuste há alguns anos, para não ficar mais irritada ainda.
Ana não acreditou que caíra no golpe da bolsa de estudos de um curso de informática. Animou-se com a isenção da matrícula e o desconto de 50% nas mensalidades. Não teve nenhuma aula, perdeu o dinheiro e o pessoal da escola fajuta desapareceu sem deixar vestígios.
Marcos discutiu com os vendedores quando tentou financiar uma geladeira. No anúncio, diziam que o juro era zero. Por sorte, exigiu o CET (Custo Efetivo Total). Descobriu que não havia juros, mas que taxas disso e daquilo encareceriam as parcelas, disfarçadamente.
Sérgio e Patrícia se casaram e tiverem de se hospedar na casa dos pais dele depois da lua de mel. Os móveis que compraram com tanta dificuldade continuam empilhados na garagem e os presentes permanecem dentro das caixas. Eles adquiriram um apartamento na planta, mas a construtora não entregou as moradias.
Todos esses perfis de consumidores existem, não necessariamente com esses nomes. E essas histórias se repetem no Brasil, ano após ano.
Com o Código de Defesa do Consumidor, as instituições que protegem seus direitos e as ouvidorias, os brasileiros ao menos podem reclamar e lutar pelo cumprimento da lei.
Mais consciência dos empresários, mais mobilização dos cidadãos, outra visão dos juízes e dos dirigentes das agências reguladoras poderiam mudar esse quadro. Mãos à obra, então, em 2012!
MARIA INÊS DOLCI, 57, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores. Escreve às segundas-feiras, a cada 14 dias, nesta coluna.
mariainesdolci.folha.blog.uol.com.br
Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/12/2011.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O inimigo da moral

Vladimir Safatle

O primeiro atributo dos julgamentos morais é a universalidade. Pois espera-se de tais julgamentos que sejam simétricos, que tratem casos semelhantes de forma equivalente. Quando tal simetria se quebra, então os gritos moralizadores começam a soar como astúcia estratégica submetida à lógica do "para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei".

Devemos ter isso em mente quando a questão é pensar as relações entre moral e política no Brasil. Muitas vezes, a imprensa desempenhou um papel importante na revelação de práticas de corrupção arraigadas em vários estratos dos governos. No entanto houve momentos em que seu silêncio foi inaceitável.
Por exemplo, no auge do dito caso do mensalão, descobriu-se que o esquema de corrupção que gerou o escândalo fora montado pelo presidente do maior partido de oposição. Esquema criado não só para financiar sua campanha como senador mas (como o próprio afirmou em entrevista à Folha) também para arrecadar fundos para a campanha presidencial de seu candidato.

Em qualquer lugar do mundo, uma informação dessa natureza seria uma notícia espetacular. No Brasil, alguns importantes veículos da imprensa simplesmente omitiram essa informação a seus leitores durante meses.

Outro exemplo ilustrativo acontece com o metrô de São Paulo. Não bastasse ser uma obra construída a passos inacreditavelmente lentos, marcada por adiamentos reiterados, com direito a acidentes mortais resultantes de parcerias público-privadas lesivas aos interesses públicos, temos um histórico de denúncias de corrupção (caso Alstom), licitações forjadas e afastamento de seu presidente pela Justiça, que justificariam que nossos melhores jornalistas investigativos se voltassem ao subsolo de São Paulo.
Agora volta a discussão sobre o processo de privatização do governo FHC. Na época, as denúncias de malversações se avolumaram, algumas apresentadas por esta Folha. Mas vimos um festival de "engavetamento" de pedidos de investigação pela Procuradoria-Geral da União, assim como CPIs abortadas por manobras regimentais ou sufocadas em seu nascedouro. Ou seja, nada foi, de fato, investigado.

O povo brasileiro tem o direito de saber o que realmente aconteceu na venda de algumas de suas empresas mais importantes. Não é mais possível vermos essa situação na qual uma exigência de investigação concreta de corrupção é imediatamente vista por alguns como expressão de interesses partidários. O Brasil será melhor quando o ímpeto investigativo atingir a todos de maneira simétrica.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/12/2011.

Pergunta: É bom o desempenho da presidente Dilma no primeiro ano de seu mandato?



Cláudio Gonçalves Couto
SIM
Olhando além da vontade política

Ao avaliar-se o primeiro ano de uma Presidência, duas dimensões podem ser consideradas: o desempenho do governo (obra coletiva) ou o do chefe de governo (obra individual, sobretudo).
Digo "sobretudo" porque o desempenho pessoal de um presidente sujeita-se à atuação de consultores de imagem, assessores próximos, conselheiros íntimos etc. Pesquisa CNI-Ibope divulgada ontem evidencia que a população faz a distinção: enquanto 56% aprovam o governo, 72% aprovam a presidenta -superando os antecessores em igual período, desde FHC.
Só analisarei a atuação da presidenta, considerando três aspectos: (1) o perfil da liderança, (2) o contexto institucional e (3) o contexto econômico. Tornou-se lugar-comum comparar o recato de Dilma à exuberância de Lula. Se o recato fosse a contraparte da falta de carisma, seria uma desvantagem.
Todavia, Dilma aproveitou-se da característica, aparentando maior austeridade e severidade no trato da coisa pública, algo útil no enfrentamento da série de crises envolvendo ministros, abatidos um a um. Obteve ganhos de reputação (sobretudo entre os setores de altas renda e escolaridade, cansados do espalhafato lulista), acumulando fôlego político para restringir práticas predatórias de aliados e correligionários.
Como o presidencialismo de coalizão impõe custos e riscos, não era operação simples. Ao contrário do que preconiza certo moralismo voluntarista e ingênuo (se não dissimulado), é impossível governar o Brasil sem o apoio estável de 46% do Congresso, composto pelo conjunto dos partidos de adesão -que tem no PMDB a expressão mais significativa, mas compõe-se também de PR, PP e congêneres.
Também não seria possível renunciar à sustentação de "parceiros ideológicos" do partido da presidenta, como PDT e PC do B, que, não obstante a maior afinidade programática, incorreram nas mesmas práticas predatórias dos fisiológicos de direita.
É cinismo sugerir ao governante que busque se entender com a oposição para fazer avançar sua agenda. Fosse possível, não apenas Dilma e Lula teriam se entendido com PSDB e DEM, mas o governo FHC, liderado por esses partidos, teria abdicado de sua aliança com o PMDB de Sarney e com o PTB de Roberto Jefferson -o que não fez.
Diante das restrições, Dilma saiu-se bem: iniciou um processo de redução do espaço para a predação partidária do Estado, sem comprar todas as brigas de uma vez, o que inviabilizaria politicamente o governo. A rede de combate à corrupção tem se aprimorado no Brasil: no Executivo, com o reforço institucional da Polícia Federal e da Controladoria-Geral da União; no sistema de Justiça, com a consolidação de um Ministério Público independente e ativo; na sociedade, com uma imprensa plural e diligente.
Em tal cenário, o melhor que faz um presidente hábil é -sem assumir a quixotesca condição de algoz- deixar que as instituições de controle produzam seus efeitos para, na sequência, restringir o campo de atuação dos corruptos no governo. Ao que se nota, é isso o que Dilma tem feito.
Por fim, houve o agravamento da crise econômica internacional; a "marolinha" de Lula foi se tornando um tsunami. Tal situação restringe o espaço de manobra política, pois exige medidas fiscais duras, que reduzem os recursos orçamentários disponíveis para a transação política com os congressistas.
A presidenta não só logrou impor limites satisfatórios à liberação de verbas como deu condições ao Banco Central para iniciar uma quebra de paradigmas na gestão da política monetária -algo que sofreu muitas críticas dos acólitos "do mercado" de início, mas que se mostra cada vez mais uma decisão acertada.


CLÁUDIO GONÇALVES COUTO, cientista político, é professor do curso de administração pública da FGV-SP e pesquisador do CNPq.
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Marco Antonio Villa
NÃO

Um país à deriva

Na centenária história da República não houve, no primeiro ano, uma administração com tantas acusações de corrupção que levaram a demissões de ministros, como a da presidente Dilma Rousseff.
Excetuando-se o primeiro trimestre, de lá para cá a rotina foi a gerência de crises e mais crises. Nenhuma delas por questão programática ou ideológica. Não. Todas devido às gravíssimas acusações de mau uso dos recursos públicos e de favorecimentos dos parceiros da base governamental.
Neste ano ficou provado, mais uma vez, que o presidencialismo de transação é um fracasso. A partilha irresponsável da máquina pública paralisou o governo.
A incapacidade de gestão -já tão presente no final da Presidência de Lula- se aprofundou. A piora do quadro internacional não trouxe qualquer tipo de preocupação para o conjunto do governo.
Algumas medidas adotadas ficaram restritas ao Ministério da Fazenda. Como se a grave crise internacional fosse simplesmente uma mera turbulência, e não o prenúncio de longo período de estagnação, especialmente da Europa, e com repercussões ainda difíceis de quantificar na economia Ásia-Pacífico.
O governo brasileiro mantém-se como um observador passivo, e demonstrando até certo prazer mórbido com os problemas europeus e com a dificuldade da recuperação dos Estados Unidos. Como se não pudesse ser atingido gravemente pelos efeitos de uma crise no centro do sistema capitalista.
Se é correto afirmar que o mundo está iniciando um processo de inversão das antigas relações econômicas centro-periferia, isso não significa que o Brasil possa suportar um lustro sem que ocorra uma reativação das economias americana e europeia.
A crise de 2008 -e a estagnação de 2009, com crescimento negativo de 0,3%- não foi suficiente para que o governo tomasse um rumo correto. Foi guiado exclusivamente pelo viés eleitoral de curto (2010) e médio prazos (2014). A inexistência de um projeto para o país é cada dia mais evidente. Nem simples promessas eleitorais foram cumpridas.
Nenhuma delas. Serviram utilitariamente para dar algum tipo de verniz programático a uma aliança com objetivos continuístas. Foram selecionadas algumas propostas, mas sem qualquer possibilidade de viabilização. Basta citar, entre tantos exemplos, o programa (fracassado) Minha Casa, Minha Vida.
O país está à deriva. Navega por inércia. A queda da projeção da taxa de crescimento é simplesmente uma mostra da incompetência. Mas o pior está por vir.
Não foi desenvolvido nenhum plano para enfrentar com êxito a nova situação internacional. Tempo não faltou. Assim como sinais preocupantes no conjunto da economia e nas contas públicas.
A bazófia e o discurso vazio não são a melhor forma de enfrentar as dificuldades. É fundamental ter iniciativa, originalidade, propostas exequíveis e quadros técnicos com capacidade administrativa, mas o essencial é mudar a lógica perversa deste arranjo de governo.
Dizendo o óbvio -que na nossa política nem sempre é evidente-, o objetivo do governo não é saciar a base de sustentação política com o saque do erário, como vem ocorrendo até hoje. Deve ter um mínimo de responsabilidade republicana, pensar no país, e não somente no projeto continuísta.
Contudo, tendo como pano de fundo o primeiro ano de governo, a perspectiva é de imobilismo. Algumas mudanças nos ministérios devem ocorrer, pois o desgaste é inevitável. Nada indica, porém, uma alteração de rumo ou uma melhora na qualidade de gestão. A irresponsabilidade vai se manter. E caminhamos para um 2012 cinzento.

MARCO ANTONIO VILLA é historiador e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 17/12/2011.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Quanto mais, menos

Luiz Roberto Liza Curi

A expansão do ensino superior no Brasil saltou de 1,945 milhão de matrículas em 1998 para 6.379.299 em 2010. Desse volume de matrículas, 4.736.001, perto de 75%, pertencem às instituições privadas.
A pós-graduação cresceu mais de 150% em menos de dez anos. São 173 mil matrículas, sendo 144.911 (95%) em instituições públicas. Titula 50 mil mestres e doutores por ano, com um padrão de qualidade internacional.

Mas se o aumento dos pesquisadores no Brasil é comemorado como um bem nacional, o do número de graduados nem tanto. Essa expansão, sancionada por um complexo e consistente sistema de avaliação, é um significante com diversos significados.

De um lado, é apontada com certa desconfiança por parcelas da opinião pública. Algumas organizações profissionais associam explicitamente a expansão do ensino superior com a má formação. De outro lado, ela é vista como um termômetro de mobilização de investimentos financeiros pelas chamadas redes de instituições.

De nenhum lado, no entanto, a expansão, especialmente do setor privado, foi vista ou analisada como fator essencial ao desenvolvimento e à sustentação da nação. Será justo admitir que essa expansão seja um problema capaz de gerar uma lacuna no país?

No Brasil, a universalidade do acesso ao ensino superior é, de fato, um problema. Temos menos de 16% da população de 18 a 24 anos matriculada em cursos superiores. Perdemos do Paraguai (18%) e da Argentina (48%), passamos longe de Portugal (50%) e não conseguimos divisar a Coreia (78%).
Configura-se, assim, uma situação aparentemente injusta. Um índice de cobertura da população tão baixo em um setor tão criticado pelo ritmo de sua expansão!

Devemos esperar uma qualidade cada vez mais suspeita na medida em que as matriculas crescem?
É preciso reconhecer que não. É louvável o acesso dos cidadãos de baixa renda e a ampla inclusão da chamada nova classe média ao ensino superior. O problema da entrada vai se resolvendo. Falta, ainda, resolver o da saída.

O êxito de universidades, centros universitários e faculdades deve, principalmente, ser expressão da qualidade de seus concluintes, e não do número de ingressantes.

O excelente trabalho que o Ministério da Educação desenvolve na avaliação do ensino superior, que por si faz muito pelo país, deve incentivar a transformação de currículos e conteúdos na direção dos desafios sociais e tecnológicos contemporâneos.

Seria bem-vinda uma ampla interação entre a avaliação e outras políticas públicas que estimulassem as instituições de ensino superior a formar profissionais em áreas estratégicas e prioritárias ao desenvolvimento do país. Sem essa articulação a avaliação vai se transformando num instrumento do Estado destinado a proteger a sociedade de uma expansão tida como suspeita.

A dimensão do sistema de ensino superior brasileiro não pode, na direção e na velocidade econômica que o país necessita, representar, apenas, milhões de matriculas.

LUIZ ROBERTO LIZA CURI, sociólogo, é diretor nacional de educação superior e pesquisa do SEB SA. Foi diretor de políticas de educação superior do Ministério da Educação.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/12/2011.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O desafio solar

Alfredo Sirkis


Em menos de dois anos a China tornou-se líder no mercado de energia solar. Em 2010, passou a dominar 50% dele, e estima-se que até o final deste ano possa chegar a 65%.

As consequências dessa investida foram particularmente sentidas nos EUA, com a falência de fabricantes de painéis solares, como a Solyndra, da Califórnia, que recebera subsídios do governo federal muito criticados pelos republicanos que defendem interesses de empresas de petróleo e térmicas à carvão.

A queda média nos preço de painéis solares foi de 42% desde 2010. Na China, o quilowatt solar ainda custa o dobro, mas as curvas estão convergindo rapidamente na medida em que o preço do solar cai e o carvão -que a China já começa a importar- sobe de preço.

Visitei duas fábricas solares chinesas. A Shanghai Solar e a Yngli, perto de Pequim. A primeira pertence à empresa aeroespacial chinesa, e seu forte é pesquisa e inovação. Produz modelos diferentes de fotovoltaicas poli e monocristalinas.

Já a Yngli, a segunda maior da China, controla praticamente todo o ciclo fotovoltaico: das pedras de silício recém-mineradas aos blocos compactos que refina, purifica e retalha para células. Logo, com seus robôs, a uma velocidade alucinante, monta-as em painéis. A Yngli é totalmente privada e comandada "manu miliatri" por Miao Lian Sheng, peculiar capitão de indústria, amigo do presidente Hu Jintao.

Em 2008, a empresa produzia menos de 20 megawatts/hora em painéis; sua produção está programada para chegar a 1,7 gigawatts/hora, neste ano, e a 2,7, em 2012.

Vem investindo em maior rendimento e vida útil das fotovoltaicas, bem como no armazenamento de energia solar. Apostam no "Flyweel", um cilindro com dispositivo de rotação em altíssima velocidade que substitui as baterias, ponto vulnerável das instalações solares atuais.

O Brasil tem uma insolação privilegiada e abundante disponibilidade de silício de boa qualidade, mas ficou deitado em berço esplêndido enquanto Alemanha, Espanha, EUA e China investiam e competiam. Ficamos vergonhosamente para trás. Não há mais tempo para reinventar a pólvora e nos tornarmos competitivos em painéis. Precisamos encontrar outros nichos.

Também não cabe adotarmos as tarifas "feed-in", que remuneram o solar até quatro vezes mais que o preço da energia convencional. Temos tarifas elétricas muito caras, mas também recursos de pesquisa e desenvolvimento nas concessionárias que podem subsidiar o solar numa primeira fase.

Precisamos dispor de redes "inteligentes", capazes de receber a produção solar de telhados e fachadas, medi-la e abatê-la da conta de luz do consumidor. As concessionárias deverão ter que comprar pelo mesmo preço que lhe vendem.

Precisamos estimular o solar em prédios públicos, equipamentos e edificações de apoio à Copa do Mundo, aos Jogos Olímpicos e, combinado com o aquecimento solar da água, em programas de habitação.
O solar brilha à nossa porta. Vamos deixar que entre?


Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 15/12/2011.

Mobilidade versus carrocentrismo

Ricardo Abramovay


Automóveis individuais e combustíveis fósseis são as marcas mais emblemáticas da cultura, da sociedade e da economia do século XX.

A conquista da mobilidade é um ganho extraordinário, e sua influência exprime-se no próprio desenho das cidades. Entre 1950 e 1960, nada menos que 20 milhões de pessoas passaram a viver nos subúrbios norte-americanos, movendo-se diariamente para o trabalho em carros particulares. Há hoje mais de 1 bilhão de veículos motorizados. Seiscentos milhões são automóveis.

A produção global é de 70 milhões de unidades anuais e tende a crescer. Uma grande empresa petrolífera afirma em suas peças publicitárias: precisamos nos preparar, em 2020, para um mundo com mais de 2 bilhões de veículos.

O realismo dessa previsão não a faz menos sinistra. O automóvel particular, ícone da mobilidade durante dois terços do século XX, tornou-se hoje o seu avesso.

O desenvolvimento sustentável exige uma ação firme para evitar o horizonte sombrio do trânsito paralisado por três razões básicas.

Em primeiro lugar, o automóvel individual com base no motor a combustão interna é de uma ineficiência impressionante. Ele pesa 20 vezes a carga que transporta, ocupa um espaço imenso e seu motor desperdiça entre 65% e 80% da energia que consome.

É a unidade entre duas eras em extinção: a do petróleo e a do ferro. Pior: a inovação que domina o setor até hoje consiste muito mais em aumentar a potência, a velocidade e o peso dos carros do que em reduzir seu consumo de combustíveis.

Em 1990, um automóvel fazia de zero a cem quilômetros em 14,5 segundos, em média. Hoje, leva nove segundos; em alguns casos, quatro.

O consumo só diminuiu ali onde os governos impuseram metas nesta direção: na Europa e no Japão.

Foi preciso esperar a crise de 2008 para que essas metas, pela primeira vez, chegassem aos EUA. Deborah Gordon e Daniel Sperling, em "Two Billion Cars" (Oxford University Press), mostram que se trata de um dos menos inovadores segmentos da indústria contemporânea: inova no que não interessa (velocidade, potência e peso) e resiste ao que é necessário (economia de combustíveis e de materiais).

Em segundo lugar, o planejamento urbano acaba sendo norteado pela monocultura carrocentrista. Ampliar os espaços de circulação dos automóveis individuais é enxugar gelo, como já perceberam os responsáveis pelas mais dinâmicas cidades contemporâneas.

A consequência é que qualquer estratégia de crescimento econômico apoiada na instalação de mais e mais fábricas de automóveis e na expectativa de que se abram avenidas tentando dar-lhes fluidez é incompatível com cidades humanizadas e com uma economia sustentável. É acelerar em direção ao uso privado do espaço público, rumo certo, talvez, para o crescimento, mas não para o bem-estar.

Não se trata -terceiro ponto- de suprimir o automóvel individual, e sim de estimular a massificação de seu uso partilhado. Oferecer de maneira ágil e barata carros para quem não quer ter carro já é um negócio próspero em diversos países desenvolvidos, e os meios da economia da informação em rede permitem que este seja um caminho para dissociar a mobilidade da propriedade de um veículo individual.

Eficiência no uso de materiais e de energia, oferta real de alternativas de locomoção e estímulo ao uso partilhado do que até aqui foi estritamente individual são os caminhos para sustentabilidade nos transportes. A distância com relação às prioridades dos setores público e privado no Brasil não poderia ser maior.

 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 14/12/2011.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

A difícil vida do PSDB

Janio de Freitas


O Diagnóstico feito pelo ex-senador Tasso Jereissati para a perda de expressão do PSDB sintetiza, com crueza, as opiniões predominantes na cúpula partidária: "O PT roubou a nossa agenda".

Apesar da concordância de fundo, os encontros partidários que buscam possíveis soluções não tornam mais convincente aquela conclusão. E ainda agravam o impasse entre correntes na cúpula partidária.
Daí, a rigor, a estranhada ausência de uma exposição de fins jornalísticos, por breve que fosse, do que se passou na reunião feita para análises e propostas inovadoras.

O constatável, por transbordamento, foi a oposição ainda mais explícita da corrente de José Serra à presença do deputado pernambucano Sérgio Guerra na presidência do partido. Sérgio Guerra, por sinal, muito qualificado para o posto.

A situação do PSDB não é simples. Já a partir da ideia generalizada de que o governo Lula se apropriou, e o de Dilma mantém, "a agenda" dos peessedebistas.

Só os petistas obcecados contestam que Lula, enquanto Antonio Palocci e Henrique Meirelles foram as figuras centrais do governo, continuasse a política econômica de Fernando Henrique.

Essa continuidade foi a opção estratégica que neutralizou a engatilhada reação do sistema financeiro privado e, em geral, do poder econômico a Lula e ao ilusório "governo do PT". Mas não foi daí que emergiu a onda lulista. São inseparáveis, na ascensão, três fatores.

Com a substituição de Palocci por Guido Mantega e a entrada de Dilma Rousseff no círculo da Presidência, aos componentes conservadores da política econômica foram acrescentadas a pregação de Lula pelo crescimento e medidas objetivas nesse sentido. A neutralidade do poder econômico privado deslizou assim para adesão, difícil de disfarçar, ao governo e a Lula.

O terceiro fator nesta série foi a projeção do Brasil no mundo, com significação especial nos países importantes e nos organismos por eles dominados. Obra da política externa, com seus lances inéditos de soberania e com a contribuição pessoal do íntimo metalúrgico nas cortes e nos tapetes aristocráticos. Quase nada considerado até agora, este fator, suponho, teve influência muito grande também na projeção interna de Lula, em todas as classes sociais.

Em outro plano, o assistencialismo de grande escala, sem precedente no Brasil, e a persistente presença pessoal de Lula no país todo, com farta propagação pela mesma mídia que o repudiava, conjugaram-se como engrenagens relojoeiras. Com efeitos não só nas classes beneficiadas, mas até para a projeção internacional, sob o rótulo de distribuição de renda.

Todos esses traços do período de Lula estariam muito bem em um governo social-democrata, como deveria ser o do PSDB ao menos para justificar seu nome. Mas ficou muito longe disso. Exceto a identificação das políticas econômicas na primeira parte da administração Lula, houve divergência em tudo o mais que foi determinante para a caracterização dos dois governos.

A ideia de apropriação indébita do que seria a agenda dos peessedebistas é cômoda, mas equivocada. Seu governo de oito anos não fez o que não quis. O sucessor, a par dos seus defeitos e deficiências, quis e fez o que o governo do PSDB não fez porque não quis. O que também pode ser dito assim: não fez porque fazê-lo não era sua agenda.

O problema que o PSDB encontra, e não reconhece, é de identidade. Pensou representar a social-democracia e quem a praticou, nos seus próprios termos, foi outro. Sem olhar-se no espelho, o PSDB não poderá sair para vida nova.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 29/11/2011.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A marcha de juízes insensatos

Elio Gaspari
As guildas e o corporativismo de juízes estão produzindo fatos e números que apequenam o Poder Judiciário. A corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon, criticou a "impunidade da magistratura", reclamou da sua blindagem e fez a frase de sua vida: "Sabe que dia eu vou inspecionar São Paulo? No dia em que o sargento Garcia prender o Zorro." (O gorducho Garcia está atrás dele desde 1919.)
Em seguida, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso (ex-desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo), deu-lhe resposta: "Em 40 anos de magistratura nunca li coisa tão grave. (...) É um atentado ao Estado democrático de Direito".
Menos de um mês depois, o presidente do tribunal paulista pediu à Secretaria de Segurança a criação da figura de um "delegado especial" para cuidar de incidentes que envolvam juízes ou desembargadores. Só para eles. Os cardeais, as costureiras e os contadores continuariam democraticamente com a patuleia.
Vai-se adiante e vê-se que em 152 inquéritos que tramitam no STF envolvendo deputados, senadores e ministros, os nomes dos hierarcas são protegidos, apesar de não correrem em segredo de Justiça. Por exemplo: há um inquérito que trata das atividades de J.M.R. (A deputada filmada recebendo dinheiro do mensalão do DEM chama-se Jaqueline Maria Roriz, mas isso não é da sua conta.)
A blindagem do andar de cima tem registro estatístico: há no Brasil 512 mil presos, 76 por corrupção passiva.
As guildas de magistrados organizam eventos arrecadando patrocínios com empresários e instituições que têm interesse em processos que podem passar por suas mesas. Isso para não falar do turismo embutido em muitos congressos, conferências e reuniões de fancaria. A doutora Eliana Calmon pretende estabelecer critérios para essas atividades e as associações nacionais de juízes federais e do Trabalho informam que recorrerão em defesa daquilo que é um direito "inerente a todos os brasileiros e ao regime democrático".
Grande ideia, pois os tribunais são o foro adequado para resolver questões desse tipo. (Graças à grita de alguns magistrados, Eliana Calmon detonou uma caixa de fraudes nos empréstimos que a Associação de Juízes Federais da 1ª Região fazia em uma financeira.)
A magistratura é uma carreira vitalícia iniciada, por concurso, num patamar de R$ 18 mil mensais, com dois meses de férias, aposentadoria integral e plano de saúde. Ninguém pode demitir um juiz. Já o juiz pode ir embora no dia que quiser, passando para a advocacia privada, muitas vezes com êxito. Essa característica diferencia os magistrados dos vereadores e deputados, obrigados a renovar o contrato de trabalho junto à clientela a cada quatro anos. Eles optaram por uma carreira especial e são os responsáveis exclusivos pelo prestígio do Poder republicano que exercem. A insensatez e o corporativismo jogaram a imagem do Judiciário no balcão da defesa de causas perdidas.
Não se pode criar um critério para decidir o que engrandece ou apequena a magistratura. Pode-se, contudo, seguir a recomendação subjetiva do juiz Potter Stewart, da Corte Suprema americana, tratando de outra agenda: "Eu não sei definir pornografia, mas reconheço-a quando a vejo".
Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/11/2011.

O Brasil e a zona do euro

Mark Weisbrot

Foi noticiado ontem que o Brasil está mais uma vez estudando fazer uma contribuição para ajudar a Europa a sair de sua crise financeira. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, negou os relatos de que teriam sido oferecidos US$ 10 bilhões, mas indicou que o Brasil estaria disposto a alguma contribuição via FMI.
A renda per capita do Brasil, US$ 10,8 mil/ano, é mais ou menos um terço da renda per capita dos países da zona do euro. A Europa pode ajudar a si mesma. Na verdade, a Europa precisa realmente ajudar a si mesma, e o FMI não está ajudando a Europa agora, não mais do que ajudou o Brasil nos anos 90.
O governo Lula saldou as dívidas que ainda tinha com o FMI em 2005 por uma boa razão: para garantir que o FMI não exercesse mais influência sobre a política econômica brasileira. No caso do Brasil, o FMI era controlado pelo Departamento do Tesouro dos EUA. Hoje, no caso da maioria dos empréstimos do FMI na Europa, não é o Tesouro americano quem manda - são as autoridades europeias que estão tomando as decisões. E elas são mais ideologicamente de direita que o FMI, que é o sócio júnior na crise contínua que se desenrola na Europa.
O BCE (Banco Central Europeu) é o pior infrator nesse caso, recusando-se a cumprir suas responsabilidades como banco central. Ele se recusa a participar do fundo necessário para avalizar os títulos de dívida italianos, parte indispensável à resolução da crise.
A Itália precisa refinanciar cerca de US$ 413 milhões em títulos governamentais nos próximos 12 meses. Os mercados financeiros empurraram os custos de crédito da Itália a níveis recordes. O rendimento sobre títulos de dez anos fechou ontem em 6,77% . Essa taxa precisa ser reduzida ou ao menos impedida de subir, se quisermos que a Itália evite um calote, e o Banco Central Europeu tem o poder de fazer isso, mas até agora vem se negando.
É uma política muito diferente da do banco central dos EUA, que criou mais de US$ 2 trilhões desde a recessão nos EUA. A crise atual é fruto do medo nos mercados financeiros de que as autoridades europeias estejam começando a fazer com a Itália o que fizeram com a Grécia.
As autoridades europeias empurraram a Grécia para uma situação insustentável, ao forçá-la a restringir seu Orçamento em uma recessão. Isso levou a economia grega a encolher ainda mais; ela terá uma contração de 5,5% este ano.
A economia menor significa menos receita para o governo, o que quer dizer que a Grécia terá que reduzir seu Orçamento mais ainda para alcançar a meta, e assim por diante, numa espiral descendente.
Agora o mesmo processo começou na Itália, mas a Itália tem cinco vezes mais dívida que a Grécia.
Talvez o Brasil e outros países que queiram oferecer contribuições ao FMI devessem tirar uma lição do próprio FMI -condicionar suas contribuições a uma mudança de política. O dinheiro só deveria ser disponibilizado se as autoridades europeias cancelassem a maioria da dívida grega, reduzissem os juros de longo prazo para as economias mais fracas da região e revertessem suas políticas macroeconômicas para permitir que todas as economias da zona do euro que enfrentam problemas pudessem crescer e, crescendo, sair dessa crise.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 09/11/2011.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Latino-americanização da Europa

Moisés Naím


Algumas semanas atrás, participei de uma reunião em Bruxelas que coincidiu com a cúpula em que líderes europeus traçaram o plano para estabilizar o velho continente. Também por coincidência, muitas das delegações à cúpula estavam hospedadas no hotel em que minha reunião -que não era ligada à cúpula- estava tendo lugar.
Inevitavelmente, ao final do dia ou durante o café da manhã, vários colegas e eu conversávamos informalmente com amigos que trabalham nas equipes técnicas que dão apoio às negociações de alto nível.
As histórias, a ansiedade e a exaustão deles (trabalhavam sem parar havia vários meses) trouxeram de volta muitas memórias: numa carreira anterior, eu estive envolvido em um processo semelhante em meu próprio país, a Venezuela, e depois trabalhei no Banco Mundial e estive próximo de negociações semelhantes em outros países.
Em Bruxelas, fiquei fascinado com as semelhanças entre a crise europeia e as que testemunhei no passado. Mas fiquei ainda mais surpreso ao constatar que as autoridades europeias ignoravam as experiências de outros países com crises.
Qualquer sugestão de que poderia haver lições úteis a tirar das crises de dívida latino-americanas era rejeitada educadamente, mas com firmeza. "A Europa é diferente" foi a reação automática deles. "Temos o euro; nossas economias e sistemas financeiros são diferentes, assim como nossa política e cultura."
Isso tudo é verdade. Mas há outras realidades que também são verdade. Entre 1980 e 2003, a América Latina sofreu 38 crises econômicas, e a região -suas autoridades, os reguladores e, sim, até mesmo o público e os políticos- aprendeu com esses episódios dolorosos.
Talvez a lição principal seja o que eu chamo "o poder do pacote". O "pacote" é um conjunto abrangente, maciço, digno de crédito e sustentável de medidas, que não oferece só cortes e austeridade, mas também crescimento, redes de segurança social, reformas estruturais, empregos e esperança para o futuro.
Decisões econômicas fragmentadas, tomadas em partes e frequentemente contraditórias não funcionam. Elas são muito tentadoras, porque criam a ilusão de uma solução que evita as medidas mais impopulares. Mas, mais cedo do que tarde, a realidade teima em mostrar que as medidas parciais não estão funcionando, que se desperdiçaram tempo e dinheiro e que outra coisa se faz necessária.
E essa outra coisa é o pacote abrangente, que inclui remédios fortes para todos os males que afetam a economia: dívida demais, gastos governamentais demais, bancos insuficientemente capitalizados, supervisão ineficiente, políticas fiscal e monetária não coordenadas, baixa competitividade internacional e regras que inibem o investimento e a geração de empregos.
Quando críticos descrevem a crise europeia como sendo "semelhante à latino-americana", pensam na América Latina que sofreu as crises, não na que sabe como evitá-las.
Hoje, a maioria dos países latino-americanos tem economias em crescimento e bancos sólidos. O que desejamos para a Europa é que suas economias comecem a assemelhar-se mais às da nova América Latina e menos às da velha Europa.

@moisesnaim
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 04/11/2011.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Steve Jobs e o declínio americano

Rubens Ricupero


Pode impressionar como sinal de mau agouro o desaparecimento de Steve Jobs justamente no momento em que mais se discute o suposto ou real declínio dos EUA. Se examinarmos, um por um, os fatores responsáveis pelo longo predomínio dos americanos, a capacidade de invenção e inovação -da qual Jobs foi a encarnação viva- aparece não só como o mais indiscutível, mas também o mais difícil de emular e superar.
Li uma vez o artigo de um economista chinês que relativizava o êxito da China como "fábrica do mundo" e imbatível exportadora de manufaturas. O artigo lembrava que nenhum dos três produtos que haviam revolucionado o mercado nos anos recentes -o iPhone, o iPod e o iPad- tinha sido inventado pelos chineses, embora a fabricação se fizesse na China devido ao custo.
Essas três novidades se devem à inventividade de Jobs, mas é óbvio que sua morte não esgota a capacidade de inventar e renovar que os EUA não cansam de demonstrar há mais de século e meio. O que me chama a atenção nos americanos não é tanto o talento para as invenções mecânicas, a aplicação de avanços da ciência a máquinas e aparelhos que simplificam a vida cotidiana. Desse tipo de inventor, o símbolo maior foi, sem dúvida, Edison.
Há, porém, outro tipo de invenções, as intangíveis, como foram, no passado medieval ou no começo da modernidade, a criação pelos italianos da letra de câmbio, do contrato de seguro marítimo, da contabilidade de partida dupla, dos bancos e mais tarde, pelos holandeses, da sociedade por ações.
Nessa área, os americanos inovaram em quase tudo, a começar pelo comércio, que quase não havia mudado desde os tempos de fenícios e gregos. Começaram com as vendas por catálogo e reembolso postal, passaram para o supermercado, em seguida para o shopping center, o drive-in, as franquias, o fast food, só para ficar nesses exemplos.
Muito mais transformadoras e imateriais foram as invenções do cartão de crédito e do comércio e do caixa eletrônicos. O que essas invenções trouxeram foi não só a modificação por meios mecânicos de atividades tradicionais como lavar e cozinhar. Aliadas às inovações no domínio da recreação e do relacionamento -a TV, as redes sociais na internet-, elas na verdade recriaram a própria vida, a maneira como as pessoas empregam a maior parte do tempo e se relacionam.
Inovadores não convencionais, sem diploma, de gostos alternativos como Jobs são o produto de uma sociedade inquieta que continuamente se questiona e reinventa a si mesma. Sociedades hierarquizadas e autoritárias como a chinesa não possuem esse dom para inovar.
Enquanto predominava a destruição criadora ("creative destruction"), isto é, a inovação que destruía coisas antigas para dar lugar a novas e melhores, a superioridade americana não corria perigo. Se ela agora está em jogo, é por causa da criação destruidora ("destructive creation"), a financeira, aniquiladora de riqueza e geradora de injustiça.
A ameaça à superioridade americana não vem dos chineses, mas de dentro, de um modelo que dá mais poder e influência a lobistas corruptos e banqueiros destrutivos que a criadores como Jobs.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 31/10/2011.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Execução de emendas parlamentares está sujeita a fatores que alimentam corrupção

Paulo Ziulkoski
O escândalo de corrupção envolvendo as emendas parlamentares da Assembleia Legislativa de São Paulo e outros casos semelhantes no Congresso revelam que o modo como os políticos brasileiros se relacionam com o Orçamento pouco mudou desde os anos 90, época da CPI dos Anões do Orçamento.
Ainda hoje, deputados e senadores priorizam o instrumento individual a outras formas mais coletivas e republicanas de influenciar a alocação de recursos. O resultado são leis orçamentárias de ficção, como mostram os números levantados junto ao sistema de monitoramento dos gastos federais, o Siafi.
De 2003 a 2009, o Congresso aprovou R$ 89,2 bilhões em emendas parlamentares, mas apenas 30,9% foram efetivamente executadas.
Entre as emendas exclusivas (para projetos sem ligação com as prioridades do Executivo federal), que totalizaram R$ 67 bilhões, a taxa de sucesso foi de 18,3%.
Se só uma pequena parte das emendas é executada, por que parlamentares insistem em manter esse mecanismo em vez de discutir os grandes números do Orçamento?
A resposta parece ser que a incerteza sobre a execução é justamente o que valoriza a influência que um determinado parlamentar pode ter junto ao órgão executor.
Se não bastasse o caráter pessoal da emenda, sua liberação está sujeita a condicionantes de natureza política que alimentam a corrupção.
Basta verificar que a taxa de sucesso das emendas de parlamentares de aliados do governo é superior a dos demais partidos.
A probabilidade de um parlamentar do PT ter sua emenda individual executada é de 32%, contra 20% no PSDB e 18% no DEM.
Isso ajuda a entender porque o ex-presidente Lula não tentou modernizar o processo orçamentário brasileiro nos moldes do que seu partido tentou fazer nas prefeituras e Estados, com o Orçamento Participativo.

PAULO ZIULKOSKI é presidente da Confederação Nacional de Municípios e ex-prefeito de Mariana Pimental (RS)
*Publicado na Folha de S.Paulo, em 28/10/2011.

Falta aos governos impor critério a indicações

Aldo Fornazieri

A crise desencadeada a partir das suspeitas que recaem sobre o Ministério do Esporte está levando o governo a uma situação perigosa.
A pergunta central que muitas pessoas se fazem e que o governo precisa responder é a seguinte: como é possível que existam tantos supostos bolsões de corrupção sem que o governo saiba?
Afinal de contas, o governo tem órgãos de controle e de investigação como a Controladoria-Geral da União, a Abin e a Polícia Federal.
Até o próprio Congresso e a oposição mostram-se omissos na fiscalização do Executivo. Então, o que parece acontecer aos olhos da opinião pública é o seguinte jogo: as autoridades aceitam a corrupção como um dado de realidade e só reagem quando a corrupção se transforma em escândalo. Por que agem desta forma? De duas uma: ou por conveniência política ou por conivência.
No Brasil, a estabilidade política do governo e em boa medida a própria governabilidade dependem da existência de uma coalizão majoritária. Muitos culpam a coalizão como a causa da corrupção.
Trata-se de um equívoco, pois a coalizão é necessária e a corrupção não deriva da sua natureza. A corrupção está associada ao fato de ser estrutural, às acomodações políticas sem critérios na formação das coalizões governamentais e à falta de punição.
Para mudar este quadro, a atitude do governante, de quem nomeia, é fundamental. Ou ele compõe um quadro de auxiliares a partir de critérios de liderança, competência e moralidade ou ele continua sendo refém de interesses partidários e de grupos, nem sempre legítimos.
O presidente da República, o governador, o prefeito não podem simplesmente aceitar indicações dos partidos. Devem estabelecer critérios para indicação de nomes e submete-los ao seu próprio crivo.
No caso atual, seria aconselhável ao governo reiterar a combinação de dois princípios: ter uma base política estável e um ministério composto por critérios de competência e moralidade.
Reduzir bolsões de corrupção no poder público é uma urgência demandada pela necessidade de manter a legitimidade das instituições.

ALDO FORNAZIERI é diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
*Publicado na Folha de S.Paulo, em 27/10/2011.

Obama prepara guerra com Irã

Mark Weisbrot


A Administração Obama anunciou duas semanas atrás que um desastrado vendedor de carros usados iraniano-americano conspirou com um agente do governo americano que se fazia passar por representante de cartéis de drogas mexicanos para assassinar o embaixador saudita em Washington.
O anúncio suscitou reações altamente céticas de especialistas de todo o espectro político aqui.
Mas, mesmo que parte dessa história se revele verdadeira, o tratamento dado a acusações desse tipo é inerentemente político. Por exemplo, a comissão sobre o 11 de Setembro do governo investigou as ligações entre os atacantes e a família reinante saudita, mas se negou a trazer a público os resultados.
A razão disso é óbvia: existe sujeira ali, e Washington não quer criar atritos com um aliado-chave. E não esqueça que se trata de cumplicidade com um ataque em solo americano que matou 3.000 pessoas.
Contrastando com isso, a administração Obama deu grande destaque à especulação um tanto quanto dúbia de que "os mais altos escalões do governo iraniano" teriam tido envolvimento com a alegada conspiração. O presidente Obama então anunciou que "todas as opções estão sobre a mesa", o que é um conhecido código indicativo de possível ação militar. Trata-se de um discurso extremista e perigoso.
O professor da Universidade de Michigan Juan Cole, respeitado estudioso do Oriente Médio, aventou a hipótese de Obama estar procurando um confronto militar para ajudá-lo a se reeleger, diante de uma economia estagnada e do alto índice de desemprego. É possível, com certeza. Lembre que George W. Bush usou o período que antecedeu e preparou a Guerra do Iraque para conquistar as duas Casas do Congresso na eleição de 2002.
Ele nem precisou partir para a guerra. O período de preparação dos espíritos para a guerra funcionou perfeitamente para ele alcançar sua meta principal: todos os problemas mais importantes para os eleitores -a recuperação sem empregos, a seguridade social, os escândalos corporativos - sumiram do noticiário durante a temporada eleitoral. Os assessores do presidente Obama com certeza entendem essas coisas.
É claro que essa especulação mais recente, dando a entender que pode levar a uma ação militar, pode ser apenas parte da preparação de longo prazo para a guerra contra o Irã. Uma vez que isso é feito, é difícil impedir a guerra de acontecer; e, uma vez lançadas essas guerras, elas são ainda mais difíceis de concluir, como demonstram dez anos de guerra inútil no Afeganistão.
É por isso que iniciativas internacionais para fazer recuar a marcha em direção à guerra, como a proposta de troca de combustível nuclear feita por Brasil e Turquia em 2010, são tão importantes.
Recentemente o governo iraniano se propôs a parar de enriquecer urânio se os EUA fornecerem urânio para seu reator de pesquisas médicas, de que precisa para tratar pacientes com câncer. Esse urânio não poderia ser usado para armas.
O Brasil é um dos poucos países que têm a estatura internacional e o respeito necessários para ajudar a desativar esse confronto. Só podemos esperar que ele faça mais tentativas de poupar o mundo de mais uma guerra horrível.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/10/2011.

O grito dos espoliados nos EUA

Jorio Dauster


O uso das ruas e das praças como palco para manifestações de protesto chegou inesperadamente aos Estados Unidos se valendo das mesmas redes sociais com que a internet começou a reescrever a história no mundo árabe.
Sem uma lista de reivindicações -mas com o genial slogan "Ocupem Wall Street"-, gente que se diz mandatária de 99% da população veio dar um basta à ganância do 1% que se apropriou de um terço da riqueza nacional.
Em pouco tempo o movimento se estendeu por todo o país, apesar de caracterizado como "luta de classes" por Mitt Romney, favorito para concorrer à Presidência pelo Partido Republicano.
Para tanto, foi necessária uma crise de proporções imprevisíveis que dura quatro anos, com milhões de casas tomadas pelos bancos e padrões de consumo em queda, além de cerca de 24 milhões de desempregados e subempregados.
E são esses que agora, transitando da frustração para a raiva, se insurgem contra os que os empurraram para o buraco e se recusam a abrir mão de seus privilégios.
O processo decorre da "financeirização" da economia que se seguiu aos choques do petróleo e do predomínio da filosofia neoliberal do Partido Republicano.
Tão poderosas foram essas forças que Bill Clinton, convivendo com um Congresso de maioria republicana, patrocinou em 1999 a desregulamentação bancária que está na gênese da hecatombe atual.
Desde então se instalou um mandarinato cujos integrantes transitam livremente entre grandes instituições financeiras, governo e universidades, acumulando experiências variadas e muito dinheiro.
E foram esses privilegiados -sob a forma de altos salários, bônus milionários e mirabolantes opções de ações- que se apropriaram nas últimas décadas de um quinhão rapidamente crescente da riqueza nacional. Isso pode ser visto pela evolução do índice Gini, que mede a distribuição de renda.
Entre 1947 e 2007, o índice subiu nos Estados Unidos de 38 para 46. Mantidas as tendências atuais, o Brasil, que saiu de 63 em 1990 para 54 em 2008, poderá em breve exibir uma distribuição mais justa que a dos Estados Unidos!
A eleição de Barack Obama sinalizou uma primeira reação popular, pois sua plataforma preconizava a redução dos impostos sobre a classe média, a extensão dos serviços de saúde a todos e a recuperação do setor educacional.
Contudo, montando sua equipe com membros da oligarquia, incapaz de mover a economia malgrado os pacotes trilionários bancados à custa da explosão da dívida pública e de deficit orçamentários, Obama não reformou o sistema financeiro nem controlou a remuneração dos executivos, fazendo com que as suas chances de reeleição dependam de uma duvidosa retomada econômica.
E eis que se ouve o grito dos espoliados. Que efeito terá na eleição de novembro de 2012?
A reação republicana é de ira, mas os operadores do Partido Democrata também temem algo que pode espantar os financiadores da campanha. Entretanto, custa crer que nada se altere após o surgimento deste novo animal político sem lenço e sem documento.
Por quanto tempo a raiva surda fará com que tantos acampem nas ruas? Poderá o movimento manter seu caráter pacífico? Ou, tragicamente, dele brotarão mártires, como ocorre em outras paragens? O tempo dirá se o sistema político saberá reconhecer que é hora de mudar de rumo.

JORIO DAUSTER é embaixador, consultor de empresas e tradutor. Foi presidente da Companhia Vale do Rio Doce (1999 a 2001) e do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (2003 e 2006).

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 26/10/2011.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Eles sabem o que fazem

Vladimir Safatle

Um dos mantras preferidos daqueles que chegam aos 40 anos é: os jovens de hoje não têm grandes ideais, eles não sabem o que fazem.
Há algo cômico em comentários dessa natureza, pois os que tinham 18 anos no início dos anos 90 sabem muito bem como nossas maiores preocupações eram: encontrar uma boa rave em Maresias (SP), aprender a comer sushi e empregar-se em uma agência de publicidade. Ou seja, esses que falam dos jovens atuais foram, na maioria das vezes, jovens que não tiveram muito o que colocar na balança.
Por isso, devemos olhar com admiração o que jovens de todo o mundo fizeram em 2011.
Em Túnis, Cairo, Tel Aviv, Santiago, Madri, Roma, Atenas, Londres e, agora, Nova York, eles foram às ruas levantar pautas extremamente precisas e conscientes: o esgotamento da democracia parlamentar e a necessidade de criar uma democracia real, a deterioração dos serviços públicos e a exigência de um Estado com forte poder de luta contra a fratura social, a submissão do sistema financeiro a um profundo controle capaz de nos tirar desse nosso "capitalismo de espoliação".
Mas, mesmo assim, boa parte da imprensa mundial gosta de transformá-los em caricaturas, em sonhadores vazios sem a dimensão concreta dos problemas. Como se esses arautos da ordem tivessem alguma ideia realmente sensata de como sair da crise atual.
Na verdade, eles nem sequer têm ideia de quais são os verdadeiros problemas, já que preferem, por exemplo, nos levar a crer que a crise grega não seria o resultado da desregulamentação do sistema financeiro e de seus ataques especulativos, mas da corrupção e da "gastança" pública.
Nesse sentido, nada mais inteligente do que uma das pautas-chave do movimento "Ocupe Wall Street". Ao serem questionado sobre o que querem, muito jovens respondem: "Queremos discutir".
Pois trata-se de dizer que, após décadas da repetição compulsiva de esquemas liberais de análise socioeconômica, não sabemos mais pensar e usar a radicalidade do pensamento para questionar pressupostos, reconstruir problemas, recolocar hipóteses na mesa. O que esses jovens entenderam é: para encontrar uma verdadeira saída, devemos primeiro destruir as pseudocertezas que limitam a produtividade do pensamento. Quem não pensa contra si nunca ultrapassará os problemas nos quais se enredou.
Isso é o que alguns realmente temem: que os jovens aprendam a força da crítica. Quando perguntam "Afinal, o que vocês querem?", é só para dizer, após ouvir a resposta: "Mas vocês estão loucos".
Porém toda grande ideia apareceu, aos que temem o futuro, como loucura. Por isso, deixemos os jovens pensarem. Eles sabem o que fazem.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 25/010/2011.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Senão sua indignação

Luiz Carlos Bresser-Pereira

O movimento dos indignados que começou na Espanha há seis meses tornou-se um fenômeno mundial com extensão para Nova York onde foi denominado "Ocupe Wall Street". No último dia 15 de outubro, manifestantes, quase todos jovens, se reuniram em 951 cidades de 82 países para manifestar sua indignação em relação ao neoliberalismo e à financeirização que levaram à crise financeira global de 2008.
Eles não têm propostas, e não pretendem tomar o poder. Querem apenas mostrar a sua preocupação e a sua indignação -dois sentimentos mais que justos dados os males que essa ideologia neoliberal e a teoria econômica neoclássica que a justifica "cientificamente" já causaram, dada a grande recessão em que estão mergulhados os países ricos.
E porque, se a crise nesses países continuar a se aprofundar, amanhã esse poderá ser o presente dos países em desenvolvimento, por enquanto relativamente poupados.
Um jovem do "Ocupe Washington" foi entrevistado por esta Folha (11.out.2011). O repórter quis saber qual a diferença de seu movimento e um outro rival, o Outubro/2011: "eles são mais tradicionais, sentam-se, fazem uma lista de exigências, nós precisamos de mudanças revolucionárias dentro do sistema ou de outro sistema".
O repórter insiste: Como pretendem conseguir? "Não estamos discutindo isso agora. Estamos focados em construir nossa base, atrair pessoas para conversar… Queremos o máximo de movimentos pelo país, queremos mostrar que falamos sério, mesmo que isso leve semanas, ou meses, anos. Até que uma mudança aconteça, estaremos aqui."
Não creio que estarão, mas é preciso assinalar que esse movimento é impressionante e admirável. Será mesmo? Os 30 Anos Neoliberais do Capitalismo (1979-2008) foram realmente um imenso retrocesso social e político. E os males que provocaram ainda não se esgotaram.
Mas qual a legitimidade de um protesto sem propostas? Quem protesta não tem obrigação de dizer como se resolvem as coisas?
Minha resposta a essa pergunta é um grande e sonoro "não". Os jovens manifestantes não têm responsabilidade pela crise que está aí, nem possibilidade de resolvê-la.
Os responsáveis somos nós, os mais velhos, as elites, os que dominaram e governaram. Somos nós que temos que dar soluções. Eles podem levantar o problema, podem debater, sugerir, mas nós que decidimos.
E nós, que antes acertamos muitas vezes, que contribuímos para o progresso ou o desenvolvimento, que no pós-guerra produzimos os 30 Anos Dourados do Capitalismo (1949-1978), falhamos desde os anos 80 quando deixamos que apenas 2% da população auferisse todos os benefícios do progresso, e estamos falhando mais agora, com as consequências dos anos neoliberais.
Três anos depois da crise alguns analistas afirmam que ela foi desperdiçada. Que não aprendemos nada. Não é verdade. Aprendemos alguma coisa, e se está procurando regular os bancos, e trazer o Estado para seu papel de instituição por excelência de ação coletiva da nação.
Mas as mudanças estão sendo tímidas. Os privilégios continuam gritantes. Bem vindos os jovens que protestam. Eles têm direito a um futuro. E não têm senão sua indignação para exigi-lo.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/10/2011.

Inflação de pretígio

Vladimir Safatle

"Enquanto eu cobrava R$ 100 por sessão, tinha poucos pacientes. Quando comecei a cobrar R$ 200, por incrível que pareça, os pacientes afloraram." Esta afirmação de um amigo psicanalista talvez valha um capítulo na teoria geral da formação de preços, ao menos no Brasil.

A mudança no preço de sua sessão não foi o resultado de alguma nova conformação das dinâmicas de oferta e de procura. Ela foi, na verdade, a descoberta de que, em países com alta concentração de renda, certas pessoas estão dispostas a pagar mais simplesmente devido à crença de que as coisas caras foram feitas para ela.

Por mais que economistas gostem de dizer o contrário, a ação econômica é baseada em sistemas de crenças e expectativas cuja racionalidade é fundada em fortes disposições psicológicas "irracionais"-pois estão ligadas a fantasias.
Atualmente, alguns dos aluguéis mais caros do mundo podem ser encontrados em cidades improváveis como, São Paulo, Moscou e Luanda (capital angolana).
A razão é que tais sociedades emergentes crescem com alta desigualdade de renda, o que faz com que uma parcela mínima da população, com poder aquisitivo exorbitante, puxe para cima a cadeia de preços. Para o resto da população, melhor seria que essa parcela simplesmente não existisse.
Qualquer pessoa que frequenta restaurantes nessas cidades percebe que a disparada de preços pouco tem a ver com a flutuação do valor dos alimentos. Nossos agricultores continuam recebendo, em larga medida, valores irrisórios. Tal disparada vem da existência de pessoas que não sentem diferença entre pagar R$ 30 ou R$ 70 por um prato. Mobilizando a crença de que as coisas caras são exclusivas, elas geram, assim, um forte problema econômico.
Há de perguntar-se por que, sendo a inflação uma questão tão premente na vida nacional, nunca encontramos reflexões sobre a relação, aparentemente tão evidente, entre pressão inflacionária e desigualdade social.
Ao contrário, vê-se apenas pessoas dispostas a falar contra os "gastos públicos", isto em um país onde, vejam só vocês, escolas e saúde pública são subfinanciadas e grandes investimentos públicos em infraestrutura são urgentes.
Talvez um dia descobriremos que a economia brasileira só estará mais bem defendida contra a inflação quando a desigualdade e o consumo conspícuos que ela gera forem realmente combatidos.
O que é melhor do que reduzir os mecanismos de controle da pressão inflacionária à definição de taxas de juros, pois a disparidade de renda, além de gerar fratura social e conflito de classe, é fator de instabilidade econômica.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/10/2011.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Governo de Israel é o pior inimigo de Israel

Nicholas Kristof


Durante anos, líderes palestinos pareceram os piores inimigos do seu povo. Os radicais palestinos provocaram o antagonismo do Ocidente, e, quando os líderes militantes começaram a apelar para sequestros e foguetes, acabaram prejudicando a causa palestina no mundo todo - para quem eles justificavam atos de colonos e falcões e enfraqueciam as pombas israelenses.

O mundo hoje está de cabeça para baixo. Agora é Israel que coloca em risco a maior parte dos seus líderes e os defensores da posição radical. O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu está isolando seu país, e, francamente, sua intransigência na questão dos assentamentos parece uma política nacional suicida.

Nada é mais corrosivo do que a ampliação dos assentamentos de Israel. Eles destroem a esperança de um futuro acordo de paz. O mais recente passo em falso de Netanyahu ocorreu depois que o governo de Barack Obama se humilhou exercendo uma pressão diplomática para bloquear a solicitação palestina de reconhecimento do seu Estado na ONU.

Num momento em que Obama tinha outras prioridades - por exemplo, evitar um derretimento econômico global -, os EUA ameaçavam vetar o pedido de reconhecimento de um Estado palestino ao qual todo mundo era favorável.

Enquanto o conflito diplomático se desenrolava na ONU, Israel anunciou planos para a construção de mais 1.100 unidades habitacionais numa parte de Jerusalém fora de seus limites anteriores a 1967. Em vez de mostrar sua apreciação ao presidente Obama, Netanyahu recorreu a um golpe baixo.

Agora, prevejo uma avalanche de respostas iradas. Entendo que muitos insistam que, de qualquer maneira, Jerusalém deve pertencer inteiramente a Israel em um acordo de paz, portanto os novos assentamentos não contam. Mas, se essa é a posição, pode-se dizer adeus a qualquer acordo de paz.

Todo negociador conhece o quadro de um acordo de paz - as fronteiras de 1967 com troca de terras, Jerusalém como capital do Estado israelense e do palestino, e apenas o direito simbólico de retorno dos refugiados. A insistência numa Jerusalém totalmente israelense significa que não haverá acordo de paz.

O ex-presidente dos EUA Bill Clinton recentemente culpou Netanyahu pelo fracasso do processo de paz no Oriente Médio. Um fator secundário, observou Clinton, é a mudança demográfica e política na sociedade israelense, que tornou o país mais conservador nas questões das fronteiras e das terras.

Intransigência. Netanyahu está longe de ser o único obstáculo à paz. Os palestinos estão divididos, com o Hamas controlando Gaza. E o Hamas não só oprime o seu próprio povo como também conseguiu devastar o movimento pela paz em Israel. É a coisa mais triste na questão do Oriente Médio: intransigentes, como o Hamas, de um lado, acabam fortalecendo autoridades intransigentes como Netanyahu, do outro.

Atravessamos um período perigoso na região. A maioria dos palestinos parece achar que o processo de paz virou fumaça, e os israelenses parecem concordar. Dois terços deles afirmaram numa recente pesquisa de opinião publicada pelo jornal Yediot Ahronot que não há nenhuma possibilidade de paz com os palestinos - e jamais haverá.

A esperança mais acalentada pelos palestinos seria um amplo movimento das bases de resistência pacífica não violenta, liderado pelas mulheres e inspirado na obra de Mahatma Gandhi e do reverendo Martin Luther King. Um número cada vez maior de palestinos apoia variações desse modelo, embora às vezes o deturpem quando atiram pedras e atribuem o protagonismo a jovens de cabeça quente.

O Exército de Israel pode lidar com terroristas suicidas e foguetes. Não tenho certeza se poderia derrotar mulheres palestinas bloqueando estradas que levam a assentamentos ilegais e dispostas a suportar gás lacrimogêneo e pauladas - com vídeos imediatamente postados no YouTube.

Netanyahu também comprometeu a segurança israelense rompendo com o amigo mais importante de Israel na região, a Turquia. Agora, há também o risco de confrontos no Mar Mediterrâneo entre navios israelenses e turcos. É uma das razões pelas quais o secretário da Defesa dos EUA, Leon Panetta, recriminou o governo israelense por isolar-se diplomaticamente.

Se um acordo de paz não for concluído logo, e Israel continuar sua ocupação, será melhor conceder o direito de voto aos palestinos nas áreas controladas por eles nas próximas eleições israelenses.

Se os judeus da Cisjordânia podem votar, os palestinos também.

Democracia é isso: as pessoas têm o direito de votar para escolher o governo que controla suas vidas. Alguns israelenses pensarão que estou sendo injusto e duro, que uso dois pesos e duas medidas, destacando os defeitos israelenses e dando menos atenção a outros países da região. Justo: declaro-me culpado.

Aplico a norma mais dura a um estreito aliado americano como Israel, que é beneficiado por uma enorme ajuda americana.

Amigos não permitem que outros amigos sigam uma linha diplomática que deixa o seu país se desviar de toda esperança de paz. Hoje, os líderes israelenses comportam-se como os piores inimigos do seu país, e enfatizar isso é um ato de amizade.


* TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 11/10/2011.