segunda-feira, 30 de julho de 2012

O que pode levar a uma cidade sustentável?

Washington Novaes



Pois não é que, enquanto o eleitor se pergunta, aflito, em quem votar para resolver os dramáticos problemas das nossas insustentáveis grandes cidades, um pequeno país de 450 mil habitantes - a África Equatorial - anuncia (Estado, 10/6) que até 2025 terá construído uma nova capital "inteiramente sustentável" de 40 mil casas para 140 mil habitantes, toda ela só com "energias renováveis", principalmente a fotovoltaica? Mas como afastar as dúvidas do eleitor brasileiro que pergunta por que se vai eliminar uma "florestal equatorial" - tão útil nestes tempos de problemas climáticos - e substituí-la por áreas urbanas?

Bem ou mal, o tema das "cidades sustentáveis" entra na nossa pauta. Com Pernambuco, por exemplo, planejando todo um bairro exemplar em matéria de água, esgotos, lixo, energia, telecomunicações, em torno do estádio onde haverá jogos da Copa de 2014, inspirado em Yokohama (Valor, 24/6), conhecida como "a primeira cidade inteligente do Japão". E até já se noticia (12/7) que o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking de "construções sustentáveis" no mundo, depois de Estados Unidos, China e Emirados Árabes - já temos 52 certificadas e 474 "em busca do selo", por gastarem 30% menos de energia, 50% menos de água (com reutilização), reduzirem e reciclarem resíduos, além de só utilizarem madeira certificada e empregarem aquecedores solares.

"As cidades também morrem", afirma o professor da USP João Sette Whitaker Ferreira (Eco 21, junho de 2012), ressaltando que, enquanto há 50 anos se alardeava que "São Paulo não pode parar", hoje se afirma que a cidade "não pode morrer" - mas tudo se faz para a "morte anunciada", ao mesmo tempo que o modelo se reproduz pelo País todo. Abrem-se na capital paulista mais pistas para 800 novos automóveis por dia, quem depende de coletivos gasta quatro horas diárias nos deslocamentos, os bairros desfiguram-se, shoppings e condomínios fechados avançam nos poucos espaços ainda disponíveis, 4 milhões de pessoas moram em favelas na região metropolitana.

Não é um problema só brasileiro. Em 1800, 3% da população mundial vivia em cidades, hoje estamos perto de 500 cidades com mais de 1 milhão de pessoas cada uma, quase 1 bilhão vive em favelas. Aqui, com perto de 85% da população em áreas urbanas, 50,5 milhões, segundo o IBGE, vivem em moradias sem árvores no entorno (26/5), seis em dez residências estão em quarteirões sem bueiros, esgotos correm na porta das casas de 18,6 milhões de pessoas. Quase metade do solo da cidade de São Paulo está impermeabilizada, as variações de temperatura entre uma região e outra da cidade podem ser superiores a 10 graus (26/3).

Estamos muito atrasados. Na Europa, 186 cidades proibiram o trânsito ou criaram áreas de restrição a veículos com alto teor de emissão (26/2), com destaque para a Alemanha. Ali, em um ano o nível de poluição do ar baixou 12%. Londres, Estocolmo, Roma, Amsterdam seguem no mesmo rumo, criando limite de 50 microgramas de material particulado por metro cúbico de ar, obedecendo à proposta da Organização Mundial de Saúde. No Brasil o limite é três vezes maior.

E há novos problemas claros ou no horizonte, contra os quais já tomaram posição cidades como Pyongyang, que não permite a ocupação de espaços públicos urbanos por cartazes, grafites, propaganda na fachada de lojas, anúncios em néon (New Scientist, 19/5). É uma nova e imensa ameaça nos grandes centros urbanos, atopetados por informações gráficas e digitais projetadas. Quem as deterá? Com que armas, se as maiores fabricantes de equipamentos digitais lançam a cada dia novos geradores de "realidade ampliada", a partir de fotos, vídeos e teatralizações projetados? O próprio interior das casas começa a ser tomado por telas gigantescas.

Um bom ponto de partida para discussões sobre as áreas urbanas e seus problemas pode ser o recém-editado livro Cidades Sustentáveis, Cidades Inteligentes" (Brookman, 2012), em que o professor Carlos Leite (USP, Universidade Presbiteriana Mackenzie) e a professora Juliana Marques Awad argumentam que "a cidade sustentável é possível", pode ser reinventada. Mas seria "ingênuo pensar que as inovações tecnológicas do século 21 propiciarão maior inclusão social e cidades mais democráticas, por si sós". A s cidades - que se tornaram "a maior pauta do planeta" - "terão de se reinventar", quando nada porque já respondem por dois terços do consumo de energia e 75% da geração de resíduos e contribuem decisivamente para o processo de esgotamento de recursos hídricos, com um consumo médio insustentável de 200 litros diários por habitante. "Cidades sustentáveis são cidades compactas", dizem os autores, que estudam vários casos, entre eles os de Montreal, Barcelona e São Francisco. E propõem vários caminhos, com intervenções que conduzam à regulação das cidades e à reestruturação produtiva, capazes de levar à sustentabilidade urbana.

Mas cabe repetir o que têm dito vários pensadores: é preciso mudar o olhar; nossas políticas urbanas se tornaram muito "grandes", distantes dos problemas do cotidiano do cidadão comum; ao mesmo tempo, muito circunscritas, são incapazes de formular macropolíticas coordenadas que enfrentem os megaproblemas. No caso paulistano, por exemplo, é preciso ter uma política ampla e coordenadora das questões que abranjam toda a região metropolitana; mas é preciso descentralizar a execução e colocá-la sob a guarda das comunidades regionais/locais. Não custa lembrar que há alguns anos um grupo de professores da Universidade de São Paulo preparou um plano para a capital paulista que previa a formação de conselhos regionais e subprefeituras, com a participação e decisão de conselhos da comunidade até sobre o orçamento; mas as discussões na Câmara Municipal levaram a esquecer o macroplano e ficar só com a criação de novos cargos.

Por aí não se vai a lugar nenhum - a não ser a problemas mais dramáticos.


E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 27/07/2012.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

A Síria é gêmea do Iraque

Thomas L. Friedman


Deus sabe que estou torcendo para que as forças da oposição obtenham na Síria uma rápida vitória por conta própria e demonstrem inclinações tão democráticas quanto esperamos. Mas a probabilidade desse resultado, o melhor possível, é baixa. E isso porque a Síria se parece muito com o Iraque. Na verdade, a Síria é como uma gêmea do Iraque - uma ditadura multissectária governada por uma minoria que era mantida pela mão de ferro da ideologia baathista.

Para mim, a lição aprendida no Iraque é bastante simples: não se pode sair de Saddam e chegar à Suíça sem ficar encalhado em Hobbes - uma guerra de todos contra todos - a não ser que se tenha uma parteira externa e bem armada, a quem todos os presentes temam e na qual todos confiem enquanto gestora da transição. No Iraque, esse papel coube aos Estados Unidos. O tipo de parto de baixo custo, comandado por controle remoto pela ONU/Otan, que derrubou Kadafi e levou ao nascimento de uma nova Líbia não deve se repetir na Síria. A Síria é mais difícil. A Síria é como o Iraque.

E o Iraque foi uma experiência tão amarga para os EUA que preferimos nunca mais voltar a falar no assunto. Mas o Iraque é relevante neste caso. O único motivo pelo qual o Iraque tem hoje a chance de chegar a um resultado decente é o fato de os EUA terem estado presentes com dezenas de milhares de soldados para agir como a parteira bem armada, merecedora de razoável confiança de todos os lados e certamente temida por eles, para administrar a transição do Iraque para uma política mais consensual. Meus instintos me dizem que a Síria vai exigir o mesmo para que tenha a mesma chance.

Como eu jamais defenderia uma nova intervenção americana em terreno sírio nem em nenhuma outra parte do mundo árabe novamente - e como o público americano jamais apoiaria algo assim - vejo-me torcendo para que os analistas estejam errados e os sírios possam nos surpreender ao encontrarem o próprio caminho, com armas justas e assistência diplomática, chegando a um futuro político melhor. Sei que se espera dos colunistas que batam na mesa e apontem aquilo que é necessário. Mas, quando acreditamos que o necessário - uma parteira externa para a Síria - é impossível, é preciso dizê-lo. Acho que aqueles que defendem uma intervenção americana mais ativa na Síria - criticando o presidente Barack Obama por não liderar tal esforço - não estão sendo realistas quanto ao que seria necessário para a criação de um resultado decente.

Por quê? No Oriente Médio, a alternativa ao ruim nem sempre é o bom.

Ela pode ser pior. Fico impressionado com a bravura dos rebeldes sírios que deram início ao levante, pacificamente, sem armamento, contra um regime que joga por aquilo que chamo de regras de Hama, ou seja, nenhuma regra. O governo Assad matou manifestantes deliberadamente para transformar o conflito numa luta sectária entre a minoria alauita, liderada pelo clã Assad, e os muçulmanos sunitas, maioria no país. É por isso que o oposto à ditadura de Assad seria a partilha da Síria - conforme os alauitas recuam para seus redutos na costa - e uma permanente guerra civil.

Há duas coisas que poderiam nos afastar desse resultado. Uma delas é a alternativa iraquiana, na qual os EUA intervieram e decapitaram o regime de Saddam, ocuparam o país e forçaram a transformação de uma ditadura liderada pelos sunitas numa democracia liderada pela maioria xiita. Graças tanto à incompetência dos EUA quanto à natureza do Iraque, essa intervenção americana deu início a uma guerra civil na qual todos os envolvidos no Iraque - sunitas, xiitas e curdos - testaram o novo equilíbrio do poder, infligindo pesadas baixas uns aos outros e levando, tragicamente, a uma limpeza étnica que rearranjou o país em blocos mais homogêneos de sunitas, xiitas e curdos.

Mas a presença americana no Iraque conteve a guerra civil e impediu a limpeza étnica de se espalhar para os países vizinhos. E, depois que a guerra civil perdeu força - e todos os lados se viram exaustos e mais separados uns dos outros - os EUA negociaram com sucesso a aprovação de uma nova Constituição e um novo acordo de divisão do poder no Iraque, com os xiitas desfrutando do poder da maioria, os sunitas afastados do poder, mas não impotentes, e os curdos garantindo sua autonomia parcial. O custo dessa transição em vidas e recursos foi imenso e, mesmo hoje, o Iraque não é uma democracia estável nem saudável. Mas o país tem uma chance e seu destino cabe agora aos iraquianos.

Como é muito improvável que uma parteira armada, temida e digna de confiança ouse entrar no embate na Síria, os rebeldes no país terão de vencer sozinhos. Levando-se em consideração a fragmentação da sociedade síria, isso não será fácil - a não ser que tenhamos uma surpresa. Seria surpreendente, por exemplo, se os diferentes grupos da oposição síria se reunissem numa frente política unida - talvez com a ajuda de funcionários dos serviços de informações dos EUA, da Turquia e da Arábia Saudita, já no país -, assim como surpreenderia se essa nova frente buscasse negociar com cristãos e alauitas moderados que tenham apoiado o clã Assad por medo, concordando em construir juntos uma nova ordem que proteja os direitos da maioria e da minoria. Seria maravilhoso ver o tirânico eixo Assad-Rússia-Hezbollah ser substituído por uma Síria democrática, e não por uma Síria caótica.

Mas as coisas não são tão simples assim. Os 20% da população síria compostos por alauitas e cristãos pró-Assad morrerão de medo da nova maioria dos muçulmanos sunitas, com seu componente da Irmandade Muçulmana, e essa maioria de muçulmanos sunitas sofreu tamanha brutalidade nas mãos deste regime que a reconciliação será difícil, especialmente com o passar de cada dia de sanguinolência. Sem uma parteira externa ou um Nelson Mandela sírio, as chamas do conflito podem arder por muito tempo. Torço para ser surpreendido.


THOMAS FRIEDMAN É COLUNISTA, ESCRITOR E GANHADOR DO PRÊMIO PULITZER
TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIl
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 26/07/2012.

Chega de Excelências, senhores!


Fausto Rodrigues de Lima



Em 13/6 , um juiz do Paraná desmarcou uma audiência porque um trabalhador rural compareceu ao fórum de chinelos, conduta considerada "incompatível com a dignidade do Poder Judiciário". Não muito antes, policiais do Distrito Federal fizeram requerimento para que fossem tratados por "Excelência", tal qual promotores e juízes.

Há alguns meses, foi noticiado que outro juiz, este do Rio de Janeiro, entrou com uma ação judicial para obrigar o porteiro de seu condomínio residencial a tratar-lhe por "doutor".

Tais fatos poderiam apenas soar como anedotas ridículas da necessidade humana de criar (e pertencer a) castas privilegiadas. No entanto, os palácios de mármore e vidro da Justiça, os altares erguidos nas salas de audiência para juízes e promotores e o tratamento "Excelentíssimo" dispensado às altas autoridades são resquícios diretos da mal resolvida proclamação da República brasileira, que manteve privilégios monárquicos aos detentores do poder.

Com efeito, os nobres do Império compravam títulos nobiliárquicos a peso de ouro para que, na qualidade de barões e duques, pudessem se aproximar da majestade imperial e divina da família real.

Com a extinção da monarquia, a tradição foi mantida por lei, impondo-se diferenciado tratamento aos "escolhidos", como se a respeitabilidade dos cargos públicos pudesse, numa república, ser medida pela "excelência" do pronome de tratamento.

Os demais, que deveriam só ser cidadãos, mantiveram a única qualidade que sempre lhes coube: a de súditos (não poderia ser diferente, já que a proclamação não passou de um movimento da elite, sem nenhuma influência ou participação popular). Por isso, muitas Excelências exigem tratamento diferenciado também em sua vida privada, no estilo das famosas "carteiradas", sempre precedidas da intimidatória pergunta: "Você sabe com quem está falando?".

É fato que a arrogância humana não seduz apenas os mandarins estatais.

A seleta casta universitária e religiosa mantém igualmente a tradição monárquica das magnificências, santidades, eminências e reverências. Tem até o "Vossa Excelência Reverendíssima" (esse é o cara!). Somos, assim, uma República com espírito monárquico.

As Excelências, para se diferenciarem dos mortais, ornam-se com imponentes becas e togas, cujo figurino é baseado nas majestáticas vestimentas reais do passado. Para comparecer à sua presença, o súdito deve se vestir convenientemente. Se não tiver dinheiro para isso, que coma brioches, como sugeriu a rainha Maria Antonieta aos esfomeados que não podiam comprar pão na França do século 18.

Enquanto isso, barões sangram os cofres públicos impunemente. Caso flagrados, por acaso ou por alguma investigação corajosa, trata a Justiça de soltá-los imediatamente, pois pertencem ao mesmo clã nobre (não raro, magistrados da alta cúpula judiciária são nomeados pelo baronato).

Os sapatos caros dos corruptos têm livre trânsito nos palácios judiciais, com seus advogados persuasivos (muitos deles são filhos dos próprios julgadores, garantindo-lhes uma promiscuidade hereditária), enquanto os chinelos dos trabalhadores honestos são barrados. Eles, os chinelos, são apenas súditos. O único estabelecimento estatal digno deles é a prisão, local em que proliferam.

A tradição monárquica ainda está longe de sucumbir, pois é respaldada pelo estilo contemporâneo do liberal-consumismo, que valoriza as pessoas pelo que têm, e não pelo que são.

Por isso, após quase 120 anos da proclamação da República, ainda é tão difícil perceber que o respeito devido às autoridades devia ser apenas conseqüência do equilíbrio e bom senso dos que exercem o poder; que as honrarias oficiais só servem para esconder os ineptos; que, quanto mais incompetente, mais se busca reconhecimentos artificiais etc.

Numa verdadeira República, que o Brasil ainda há de um dia fundar, o único tratamento formal possível, desde o presidente da nação ao mais humilde trabalhador (ou desempregado), será o de "senhor", da nossa tradição popular.

Os detentores do poder, em vez de ostentar títulos ridículos, terão o tratamento respeitoso de servidor público, que o são. E que sejam exonerados se não forem excelentes!

Seus verdadeiros chefes, cidadãos com ou sem chinelos, legítimos financiadores de seus salários, terão a dignidade promovida com respeito e reverência, como determina o contrato firmado pela sociedade na Constituição da República.

Abaixo as Excelências!

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FAUSTO RODRIGUES DE LIMA , é promotor de Justiça do Distrito Federal.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 16/07/2007.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Esses índios aí

Antonio Prata




Pra que serve o índio? Índio não colabora com o PIB, não contribui com a ciência, não dourará nosso quadro de medalhas nas Olimpíadas e ainda é dono de Bélgicas e Bélgicas de terra improdutiva! Esses folgados deviam era tomar vergonha na cara, botar uma roupa, arrumar um emprego, mudar pra um apartamento de 25 metros quadrados e passar duas horas no trânsito, todo dia, como qualquer ser humano normal, é ou não é?!

Tirando a ironia do apartamento e do trânsito, o discurso acima não é muito diferente do que eu ouvi tantas vezes, na época em que cursava ciências sociais e explicava a algum curioso do que tratava a antropologia.

Lembrei-me dessas pérolas na semana passada, ao ler aqui na Folha a notícia de que uma portaria da Advocacia-Geral da União prevê a possibilidade de o setor público construir em áreas indígenas sem consultar seus habitantes. A ideia, pelo que eu entendi, é que as reservas não sejam reservadas. Genial.

Uma vez perguntaram a um antropólogo "por que os índios precisam de reserva?". Resposta: "porque eles existem". Simples assim. Por existirem, viverem da caça, da pesca, da colheita, de pequenas produções de subsistência -e, diga-se de passagem, por estarem aqui há pelo menos 5.000 anos-, devem ter as partes que lhes cabem entre nossos latifúndios.

Que baita desperdício! -dirá a turma do primeiro parágrafo. Debaixo das terras onde esses pelados estão a comer pitangas há minérios valiosíssimos! Minérios essenciais para a fabricação de celulares, por exemplo. Enquanto eles estão lá, rezando pro grande Deus da mandioca, poderíamos estar diminuindo em 0,001 centavo o preço dos smartphones, permitindo a mais gente tirar fotos de seus cachorros para pôr no Facebook, possibilitando que mais gente desse "like" nas fotos dos cachorros de mais gente, contribuindo, assim, para a grande marcha da civilização -mas esses índios...

Não, não direi que o índio é bom e a gente é ruim, caro leitor, nem acho que um caiapó viva necessariamente melhor do que o morador da Caiowá. Sou feliz com os antibióticos, as séries da HBO, as cervejas artesanais e outras conquistas da civilização. E é justamente a herança iluminista desta civilização à qual pertenço que me obriga a concordar que, se não há uma finalidade última para a existência, tanto faz gastarmos o tempo que nos foi dado vestidos e postando fotos de cachorros no FB ou pelados e cantando para a mandioca. Mais ainda: é essa mesma tradição, cujas grandes criações tanto admiro -de Hamlet ao microchip-, que me faz lamentar o tesouro que desperdiçamos ao menosprezar os quase 240 povos indígenas brasileiros, com suas mais de 800 mil pessoas falando cerca de 180 línguas. Quantas Ilíadas e Gênesis, Medeias e Gilgameshs, quantos belos poemas, cosmogonias e epopeias deixam de fazer parte do rio de nossa cultura por preconceito e ignorância?

Garantir a terra e a sobrevivência desses índios é aumentar a riqueza da experiência humana. A deles e a nossa. E, mesmo que não fosse, mesmo que "esses índios aí" não pudessem trazer nada de bom para nós, ainda mereceriam as reservas. Porque eles existem. Simples assim.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 25.07.2012.

Para romper com o analfabetismo funcional

Priscila Cruz


A recente divulgação dos dados da oitava edição do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), pesquisa realizada pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa, com apoio do Ibope, oferece um painel extenso e consistente dos níveis de alfabetismo de jovens e adultos brasileiros nos últimos dez anos.

Diferentemente das estatísticas fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que se baseiam em dados autodeclarados, o Inaf é realizado por meio de uma entrevista e um teste, avaliando efetivamente as habilidades de leitura, escrita e Matemática de brasileiros entre 15 e 64 anos de idade, classificando-os em quatro níveis de alfabetização: analfabetos, alfabetizados em nível rudimentar - estes dois considerados como analfabetos funcionais -, alfabetizados em nível básico e alfabetizados em nível pleno - considerados juntos como alfabetizados funcionalmente. É este último nível, o pleno, que precisamos universalizar, pois é a condição necessária para a inserção digna e autônoma na atual sociedade, crescentemente complexa.

Os dados revelam que o Brasil parece ainda não se ter dado conta da urgência e da gravidade dos problemas que enfrenta no campo da educação.

Ainda que se tenha reduzido a proporção de analfabetos funcionais e aumentado os que estão no nível básico, é preciso mais, bem mais. Nossas atenções devem estar voltadas para o nível pleno de alfabetismo - e aqui houve retrocessos preocupantes. Entre 2001 e 2011, o domínio pleno da leitura caiu de 22% para 15% entre os que concluíram o Ensino Fundamental II, e de 49% para 35% entre os que fizeram o ensino médio. Com ensino superior, 38% não chegam ao nível pleno.

Como referência, no nível pleno estão as pessoas que conseguem ler e compreender um artigo de jornal, comparar suas informações com as de outros textos e fazer uma síntese dele. Em Matemática, as que resolvem problemas envolvendo porcentuais e proporção, além de fazerem a interpretação de tabelas e gráficos simples.

Não conseguimos avançar do básico para o pleno, nível estagnado há dez anos. Mesmo que o Inaf não seja um indicador escolar, pesquisando até mesmo pessoas que nunca tiveram acesso à escola, podemos atribuir parte desses resultados, justamente, à falta de acesso e à insuficiente aprendizagem dos alunos ao longo da educação básica. Ainda hoje não conseguimos garantir que todas as crianças e todos os jovens estejam na escola e adquiram as habilidades esperadas em cada série em disciplinas básicas como Português e Matemática.

Tal situação evidencia a urgência de um investimento eficiente, consistente e focado nos anos iniciais. É neles que todo o problema começa, mas também é neles que a solução deve nascer.

Portanto, como sociedade, precisamos exigir que todas as crianças estejam plenamente alfabetizadas até os 8 anos de idade. Sem se perder em discussões ideológicas estéreis, sem concessões de espécie alguma. É um direito de nossas crianças, que precisa ser assegurado.

Esse é o primeiro passo, e ainda estamos muito longe de considerá-lo um patamar vencido. A Prova ABC - a primeira avaliação externa da alfabetização das crianças de 8 anos realizada em 2011 pelo movimento Todos Pela Educação, pelo Instituto Paulo Montenegro/Ibope, pela Fundação Cesgranrio e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) - mostrou que pouco mais de metade das crianças avaliadas apresentara aprendizado adequado em leitura e escrita no final do terceiro ano do ensino fundamental, e essa proporção cai para pouco mais de 40% em Matemática. As que não conseguem alfabetizar-se nessa etapa passam a acumular lacunas cada vez maiores, o que dificulta ou até mesmo impossibilita a sua aprendizagem nas etapas posteriores.

Dessa maneira, os dados revelados pelo Inaf 2012, somados aos indicadores produzidos pela Prova ABC, expõem o grande desafio educacional deste início do século 21: garantir a todos a alfabetização plena, pré-requisito para a garantia do aprendizado ao longo de toda a vida escolar de crianças e jovens.

Para mudar esse cenário é fundamental avançarmos rapidamente na agenda que deveria ter sido cumprida no século passado e romper com o descaso histórico com a qualidade da educação, direcionando muito mais esforços para assegurar que todos os alunos atinjam a competência em leitura, escrita e Matemática. E para isso é necessário começar pela base, desde a Educação Infantil.

O Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) - a avaliação bianual realizada pelo Inep para monitorar a aprendizagem no final de cada ciclo - comprova essa tese. A pontuação média em Língua Portuguesa dos alunos do terceiro ano do ensino fundamental que não cursaram a Educação Infantil é de 169, enquanto a dos que a cursaram é de 187. Se a Educação Infantil tivesse uma qualidade muito boa no Brasil, esse impacto seria ainda maior.

Todas as evidências científicas apontam para a qualidade dos professores como fator determinante. Um bom professor é um ótimo começo. Assim, é preciso atrair os melhores professores para essa etapa do ensino, os mais experientes e mais bem preparados para trabalhar com as crianças que cursam os anos iniciais. As faculdades de Educação precisam ser reformuladas, colocando o foco na aprendizagem dos futuros alunos de seus alunos.

É vergonhoso que o país que tem o sexto produto interno bruto (PIB) do mundo esteja entre os piores em educação. Não obstante o Brasil conseguir acumular riquezas, não consegue distribuí-las de forma justa, e a má distribuição de renda é reflexo da educação de baixa qualidade.

Mais do que garantir escola para todos, é preciso universalizar a aprendizagem.

* DIRETORA EXECUTIVA DO MOVIMENTO TODOS PELA EDUCAÇÃO
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 25/07/2012.

QUESTÃO: Comércio de armas pelo Brasil




A transparência opaca
Janio de Freitas

A Presidente Dilma Rousseff está sob o risco iminente de perder o direito moral de cobrar transparência, como princípio e exigência do seu governo, a quem quer que seja. O Brasil faz uso, neste momento, de uma falácia primária para opor-se, em reunião da ONU, a um acordo que estabeleça transparência nas exportações de armas.
A política externa proclamada pelo governo, e fiel ao que se entende como índole brasileira, é contrária a confrontos armados entre nações ou como solução de dissensões internas. Logo, não pode favorecer a realidade de que a busca dos altos lucros da exportação sigilosa de armas, além de ser o sustentáculo de ditaduras sanguinárias, está na raiz das matanças de populações civis, condenadas pelo Brasil -na europeia Bósnia, no Oriente Médio, nas infindáveis guerras da África, na Ásia, agora mesmo na Síria.
O argumento do governo brasileiro na reunião da ONU, destinada a tentar um Tratado sobre Comércio de Armas, foi transcrito, no essencial, pelo repórter Rubens Valente (Folha de domingo): a transparência das exportações de armas "poderia expor os recursos e a capacidade dos países [...] de sustentar um conflito prolongado".
Mas a capacidade bélica de um país depende do seu arsenal e da relação entre qualidade e quantidade de suas tropas. Um grande exportador pode ter arsenal insignificante, dando prioridade aos lucros do comércio legal ou não, e descuidar daquela relação.
Da mesma maneira, baixa ou nenhuma exportação não significa que um país não produza armas e não tenha Forças Armadas bem equipadas e preparadas. E ainda há os que têm "capacidade de sustentar um conflito prolongado" com armamento importado às claras, o que parece ser o caso, na América do Sul, da Venezuela, por exemplo.
O argumento brasileiro é falso. Porque infundado e porque adotado para esconder o fato de que o Brasil exportador de armas está envolvido em monstruosidades que finge condenar. O trabalho excelente de Rubens Valente revela que o governo de Fernando Henrique Cardoso autorizou a produção e venda de bombas de fragmentação ao Zimbábue do ditador Robert Mugabe.
Ou seja, a uma ditadura sanguinária, conduzida por ideias psicopáticas como a da necessidade de exterminar os brancos, remanescentes da antiga Rodésia. E ainda algumas das tribos locais.
As bombas de fragmentação são proibidas por acordo internacional: não têm alvo preciso, desabrocham no ar em milhares de bolas de aço que atingem a população civil em áreas imensas. Israel foi acusado de lançar tais bombas sobre a população palestina de Gaza, e, se o fez, o acusado de produzir e exportar as bombas foi o Brasil. Cujo governo posou de contrário aos ataques à população palestina.
Os mutilados por pisar inadvertidamente em mina camuflada, resto de algum conflito estúpido, compõem uma tragédia africana que tem comovido o mundo. Crianças, em geral, esses mutilados são os que escapam da mortandade feita pelas minas deixadas no chão de vários países. Em grande parte das minas recuperadas, graças sobretudo a entidades de benemerência europeias, está preservada a inscrição: "Made in Brazil".
Podemos ostentar um orgulho internacional: nós também temos nossos criminosos de guerra. Gente que não escaparia no Tribunal Penal Internacional de Haia, por fomentar a morte de populações civis inocentes, e com isso lucrar fortunas.
É a esse Brasil opaco que a falta de transparência dá proteção. Como sua continuidade permitirá que a Rússia arme Bashar al Assad, e os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, e o Brasil também, façam o mesmo pelo mundo todo.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/07/2012.

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Armas do Brasil
Matias Spektor

Negocia-se esta semana na ONU um Tratado de Comércio de Armas. É a primeira tentativa de regulação do lucrativo mercado global de armamentos.
O texto ora negociado afeta em cheio os interesses do Brasil emergente. Trata-se de uma área em que campeões da indústria estão em franca via de internacionalização. Além das gigantescas Embraer e Odebrecht, existe a Taurus, maior fabricante mundial de armas curtas. Exporta para 44 países, detém 20% do mercado de pistolas nos Estados Unidos e espera um lucro bruto para este ano de R$150 milhões de reais. Ainda entram na lista Avibrás (veículos não-tripulados e foguetes), Mectron (mísseis), Helibrás (helicópteros) e Companhia Brasileira de Cartuchos (munições). A Condor vende 100 produtos de "tecnologias não-letais".
Essas empresas preferem um tratado minimalista. Não querem explicar publicamente suas vendas nem revelar a lista de clientes. Tampouco enfrentar questionamentos caso suas armas sejam utilizadas para desestabilizar uma região, violar direitos humanos, fomentar o crime transnacional e o terrorismo, ou atrapalhar o combate à pobreza. Isso é compreensível - elas querem fazer negócio.
Assim, o governo brasileiro trabalha para deixar o tratado livre de mecanismos intrusivos. Nem precisa fazer força para isso - há muitos países dispostos a fazê-lo em seu lugar. Irã, Síria, Cuba, Venezuela e Paquistão têm a dianteira. A Índia joga no mesmo time; muitas vezes, os Estados Unidos também. Na sexta-feira, estará provavelmente garantido o triunfo total da posição brasileira.
Em Brasília fomenta-se o êxito dessas indústrias, que geram divisas e empregam milhares de pessoas em áreas de alta tecnologia. Daí a lei de março passado, que outorga crédito fácil e isenção de PIS/Pasep, Cofins e IPI.
Ninguém no governo questionou a Avibrás por vender 18 sistemas de "bombas cluster" para a Malásia, a Mectron por seus 100 mísseis anti-radar para o Paquistão ou a Condor por sua exportação de gás lacrimogêneo para a Síria de Bashar al-Assad. O tema simplesmente não está na agenda, e todos os incentivos de hoje apontam para mais do mesmo.
Entretanto, há uma pequena ameaça no horizonte. Grandes indústrias de armamento europeias e americanas começaram a ajustar sua posição. Como elas enfrentam controles cada vez mais estreitos para suas exportações, buscam meios de moldar o novo ambiente regulatório em benefício próprio.
Segundo elas, um tratado internacional decente seria bom para quem quer ganhar dinheiro. Criaria um controle de qualidade parecido à ISO, padronização de produtos comandada pelo setor privado que facilita a abertura de mercados.
Também estabeleceria códigos de conduta comuns, algo valioso em mercados cheios de clientes de caráter duvidoso, onde uma venda inapropriada pode ferir o interesse de acionistas e macular a reputação das empresas e de países.
Se essas regras pegarem e nossa indústria continuar apostando contra a transparência, todos perdem. Sobretudo o cidadão brasileiro, que é obrigado a custear um negócio sobre o qual ninguém o consultou.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 25/07/2012.
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De Saddam Hussein@org para Dilma@gov
Elio Gaspari

Estimada presidente Dilma Rousseff,
Outro dia jantei com o Che Guevara e o Laurent Kabila, aquele presidente do Congo que foi assassinado em 2001. A senhora deve se recordar que o Che andou pela África e deu-se mal.
No meio da conversa Che perguntou-lhe se era verdade que em 2001 o Robert Mugabe, o soba do Zimbábue, tinha ajudado sua facção na guerra civil congolesa repassando-lhe bombas incendiárias e de fragmentação fabricadas no Brasil. Ele desconversou. O Che ficou perplexo, imaginou Lula vendendo esse tipo de armas para africanos. São bombas que incendiam a mata ou, ao explodir, soltam dezenas de milhares de esferas de aço. Destinam-se a matar indiscriminadamente combatentes e civis. Como um jornalista chamado Rubens Valente achou um pedaço dessa história, resolvi escrever-lhe, pois não quebrarei o sigilo do que se aprende por aqui. Ele contou que o Brasil vendeu 726 bombas ao Mugabe. Faturou US$ 5,8 milhões para matar africanos miseráveis. Eles morreriam nas rebeliões congolesas ou no próprio Zimbábue. Dias depois o Che me procurou, explicando que o negócio não foi feito pelo Lula, mas por Fernando Henrique Cardoso. Estava de alma leve, mas esse Guevara é um sonhador. Ele não sabe das coisas do mundo.
Eu sei, presidente Dilma, e sei que a senhora está abrindo o cofre do BNDES para o que acha que será o reerguimento da indústria bélica brasileira. Sete grandes empreiteiras já se habilitaram num programa de incentivos e, novamente, a Federação das Indústrias de São Paulo alavanca o projeto. No varejo, já se acharam bombas de gás lacrimogênio brasileiras no Bahrein e na Turquia (jogadas contra refugiados sírios).
Isso vai acabar mal. Eu vi como acabou a última iniciativa do gênero, ocorrida entre os anos 70 e 80. Os brasileiros viraram piada. Nós trocaríamos petróleo por armas e compramos blindados leves e algumas baterias de foguetes. A senhora acredita que em 1979 um industrial paulista foi a Bagdá e ofereceu tecnologia nuclear para a minha bomba atômica? Eu disse a um embaixador brasileiro que o moço não devia vender o que não tinha. Quase dois anos depois vocês voltaram a mesma história, mais um míssil capaz de transportar a bomba. Deu em nada, até porque os sionistas bombardearam meu reator e deram um tranco num poderoso general brasileiro. O Muammar Gaddafi me contou que o mesmo paulista vendia-lhe blindados e queria fabricar um tanque, acho que se chamava Osório, financiado pelos sauditas. O "reis dos reis" sabia que, se a casa de Saud financiasse uma arma, seria para matá-lo. Procure saber quanto essa operação custou. Durante minha guerra com o Irã vocês me ofereciam blindados e queriam vender metralhadores para o aiatolá. Pode? A única vítima dessas aventuras foi um jornalista brasileiro. Ele se chamava Alexandre von Baumgarten. Falou demais a respeito de uma pasta de urânio que nós compramos em 1981. No ano seguinte foi passear de barco, encontrou uma lancha com amigos, convidou-os para um copo e foram metralhados. Ele, a mulher e o barqueiro.
O homem da bomba faliu, e vocês tomaram um calote de US$ 200 milhões.
Respeitosamente,
Saddam Hussein.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 25/07/2012.

Só os ricos vão ao paraíso

Clóvis Rossi

Você certamente já ouviu falar do "impostômetro", aquele gigantesco placar que a Associação Comercial de São Paulo montou para mostrar quanto o brasileiro paga de impostos.
No começo da tarde de ontem, a conta já ia algo além de R$ 855 bilhões este ano. Revoltante, não é? Afinal, ninguém gosta de pagar imposto, ainda mais quando o retorno em serviços é pobre.
Mas há a outra face do "impostômetro", muito mais revoltante, mas que em geral fica nas sombras em que se move a alta finança. No domingo, o "Observer" jogou um pouco de luz nos números do que se poderia chamar de "sonegacionômetro"- ou seja o dinheiro desviado para os paraísos fiscais.
Um levantamento da Tax Justice Network mostrou que os paraísos fiscais escondem fabulosos US$ 21 trilhões, pilha que equivale à riqueza somada dos Estados Unidos e do Japão, a primeira e a terceira economias do mundo.
Ontem, a Folha expôs o lado local: brasileiros depositaram de 1970 até 2010 cerca de US$ 520 bilhões (ou mais de R$ 1 trilhão) nessas contas, nas quais "se pode guardar dinheiro em razoável sigilo, sem ter de responder a muitas perguntas nem pagar imposto".
O valor equivale a pouco mais de um quinto do PIB brasileiro e o arrecadado em impostos nos últimos seis meses e 23 dias.
O autor do estudo, James Henry, ex-economista chefe da consultoria McKinsey e especialista em paraísos fiscais, calcula que a metade dos ativos existentes em paraísos fiscais pertencem a apenas 92 mil pessoas ou 0,001% da população mundial.
Depois, quando aparece um movimento de protesto contra o 1% mais rico nos Estados Unidos ainda tem gente que o classifica como radical.
Esconder dinheiro não é ação individual, relata James Henry: "essa riqueza é protegida por um bando altamente bem pago de profissionais nas indústrias de 'private banking', jurídica, de contabilidade e da indústria de investimentos".
Ou seja, o sistema financeiro, o mesmo que frauda a taxa denominada Libor, que lava dinheiro do narcotráfico, que frauda as contas públicas da Grécia, por exemplo, está também envolvido nesse esquema de esconder fortunas.
Sou capaz de apostar que todos os donos dessas fortunas usam equipamentos públicos, para cuja consecução não contribuíram com impostos. No Brasil, certamente muitos põem filhos nas faculdades públicas, embora escondam o dinheiro para não pagar impostos que custeiam tais escolas.
O pior é que desde a crise de 2008, os líderes do G20 - exatamente os mais importantes do mundo - pregam o fim dos paraísos fiscais, que não obstante continuam funcionando - e aumentando o volume de recursos que movimentam.
Essa distorção, para usar uma palavra suave, foi apontada com uma das causas da instabilidade financeira global. Como a instabilidade continua, como os paraísos continuam, só se pode concluir que quem manda no mundo não são governantes eleitos, mas o que os argentinos chamam apropriadamente de "pátria financiera".

Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/07/2012.

Amor e ódio aos ricos nos EUA

Julia Sweig


As campanhas de Obama e Romney estão explorando um dos elementos mais antigos na política americana: nossa relação de amor e ódio com os ricos. A mitologia sugere que amamos os ricos porque eles representam a promessa da meritocracia: o trabalho duro pode proporcionar riqueza a qualquer pessoa.
Mas odiamos os ricos porque desconfiamos que eles exploraram o sistema para engordar suas contas bancárias, às expensas do emprego ou meio de subsistência de outras pessoas.
No ano passado, os estrategistas de Obama decidiram usar contra Romney o fato de ele ter comandado a Bain Capital. Foi inteligente, porque Romney declara que sua maior qualificação para ser presidente não é o período que passou como governador de Massachusetts, mas sua experiência à frente de uma grande firma de investimentos.
A acusação básica é que muitas das firmas que a Bain Capital comprou e reestruturou, sob a liderança de Romney, eliminaram empregos que eram de americanos e os "terceirizaram" fora do país.
O histórico do próprio Obama com relação à geração de empregos tem sido fraco: ao invés disso, ele priorizou a reforma da saúde.
Mas não é apenas Obama que é vulnerável no quesito empregos. Bill Clinton, os líderes do Partido Democrata no Congresso e todos os seus principais doadores em Wall Street compreendem que o capital naturalmente busca condições ótimas --salários baixos--, e que se danem as fronteiras nacionais.
A desregulamentação financeira, os acordos de livre-comércio, os impostos regressivos, o passar por cima de falhas importantes na governança corporativa e dos bancos: o Partido Democrata ajudou a perpetuar ou legislar essas tendências que vêm ocorrendo há décadas, muitas das quais são responsáveis pela perda de bons empregos.
Ame-o ou odeie-o, o capitalismo nos EUA é uma questão para ambos os partidos principais. Também democratas comandam, reestruturam e auferem as recompensas de firmas de "private equity". Mas os dois partidos não são iguais em alguns quesitos fundamentais.
O Partido Republicano de hoje tem um nível muito mais alto de tolerância da desigualdade, argumentando que o acúmulo privado de riqueza em última análise traz benefícios públicos, até mesmo sociais.
Romney critica os gastos governamentais e o atendimento à saúde universal, que implica gastos públicos, apesar de ter promovido as duas coisas no passado, principalmente porque, se não o fizer, sua base não votará nele.
O drama envolvendo a Bain Capital está ficando entediante. Ao invés disso, Obama deveria explicar a todos os eleitores que a única maneira de renovar nossa meritocracia historicamente bipartidária é mudar de abordagem e transformar a receita tributária gerada pela riqueza capitalista em investimentos em elementos fundamentais de uma sociedade forte: empregos, saúde, educação, ciência, transportes, defesa. Romney terá dificuldade em demonstrar que o setor privado, por si só, é capaz de realizações da mesma monta. E tem consciência disso.

@JuliaSweig
Tradução de CLARA ALLAIN
Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/07/2012.

Quem maltrata mais você?

Moisés Naím

Por quem você se sente mais maltratado? Por sua operadora de telefonia celular? Seu banco? Pelas companhias aéreas? As relações entre as empresas e seus clientes estão carregadas de conflitos de interesses recobertos por uma capa de hipocrisia, publicidade e marketing.
Em última análise, as empresas querem arrancar o máximo possível de dinheiro de seus clientes, e estes querem pagar o mínimo possível.
Criar lealdade à marca e não perder clientes são as principais motivações que levam as empresas a tratar bem seus clientes. Nada de novo. Não obstante, elas insistem em nos convencer de que são nossas aliadas amáveis e que suas decisões sobre preços, qualidade e serviços também são guiadas pela ética.
As coisas não têm ido bem ultimamente para essa ideia. O Barclays, por exemplo, pagou uma multa de US$ 453 milhões por ter manipulado as taxas de juros interbancárias (a Libor, que alguns cínicos agora andam chamando, em inglês, de Lie-More, ou mente-mais).
"Não somos os únicos!", disse o presidente do Barclays antes de renunciar. Jamie Dimon, do JPMorgan, insiste em que os bancos não precisam de mais controles, já que seus valores éticos, seus controles próprios e a concorrência garantem que suas decisões estejam alinhadas com os interesses da sociedade.
Mas Dimon foi surpreendido por perdas ocultas de US$ 2 bilhões no banco (ou US$ 5 bilhões. Ou mais. Ainda não se sabe). Ele se disse indignado com a desonestidade dos banqueiros do JPMorgan (pequeno detalhe: são seus empregados).
Rajat Gupta, o ex-chefe da consultoria McKinsey & Co, acaba de ser condenado por ter passado a seu cúmplice informações secretas e valiosas sobre o Goldman Sachs, empresa da qual Gupta era diretor.
O HSBC também pediu desculpas: em 2007 e 2008, sua subsidiária no México enviou aos EUA US$ 7 bilhões supostamente depositados por cartéis do narcotráfico.
E por falar no México: de acordo com a OCDE, os preços excessivos cobrados pela América Móvil -empresa de telefonia de Carlos Slim- custaram aos consumidores desse país US$ 129 bilhões entre 2005 e 2009. Mas pagar a mais para fazer uma ligação não é tão perigoso quanto tomar um medicamento que, em vez de curar, mata.
A farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK) acaba de ser multada em US$ 3 bilhões por promover medicamentos que causam efeitos negativos ou até a morte. O valor é alto, mas não tão alto quanto os US$ 8,2 bilhões que ela lucrou em 2011.
O que está acontecendo? Essa explosão de comportamentos empresariais abusivos e corruptos é algo novo ou simplesmente estamos mais bem informados? As duas coisas.
Mas o certo é que o princípio do "caveat emptor", frase que significa que é o comprador quem deve tomar todas as precauções, porque o risco é todo dele, e não de quem vende, é mais válido que nunca.
A enorme complexidade do comércio moderno coloca os consumidores em desvantagem, mas eles têm acesso a mais informação que nunca sobre o que compram e quem vende a eles. O Barclays e a GSK acabam de descobrir isso.

@moisesnaim
Tradução de CLARA ALLAIN
Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/07/2012.

Segurança em unidades de saúde

Rubens Belfort Jr.

Recentemente, em São Paulo, um recém-nascido foi mais uma vítima da falta de segurança hospitalar.
A instilação ocular de nitrato de prata a 1%, para evitar infecção causada pela gonorreia, foi trocada por solução muito mais forte, causando cegueira irreversível.
Meses atrás, uma criança morreu porque injetaram leite na cânula de infusão endovenosa. Na última semana, um paciente de 88 anos recebeu um pino na perna errada.
Com absurda frequência, pacientes morrem, sofrem lesões sérias e são violentados em unidades de saúde pela falta de segurança. A responsabilidade vai muito além de quem prepara ou aplica o medicamento e do gestor imediato.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, todo ano milhões de pacientes sofrem danos incapacitantes ou morrem pela falta de segurança ao paciente, que também acarreta grandes gastos. No Brasil, a situação vai seguir piorando se não tomarmos medidas efetivas.
As mortes assim são quase sempre silenciosas e muitas nem reconhecidas, mas milhares de vezes mais frequentes que as causadas pelos ruidosos acidentes aéreos.
Existem protocolos e sistemas de segurança que minimizam os riscos. Ao contrário do grande número de hospitais privados que até por marketing procuram essas certificações de segurança e eficiência, raríssimos são os hospitais públicos que as tem.
Por que não se tornam obrigatórias? Não seria ótimo um prefeito ou governador em fim de mandato apresentar o número de hospitais acreditados por organismos independentes em segurança e eficiência?
A ONA (Organização Nacional de Acreditação) é uma das entidades nacionais que desenvolvem um sistema de certificação de segurança. Há também certificações internacionais, como a americana, através da Joint Comission, e a canadense, oferecida pelo Canadian Council for Health Services Accreditation.
Hospitais administrados pela SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina) em Taboão da Serra (Hospital Geral de Pirajussara) e Diadema (Hospital Estadual de Diadema) têm o selo de certificação de excelência no atendimento ONA 3 (nível máximo) e foram os primeiros hospitais do SUS a terem também a certificação canadense. O Hospital de Transplantes de São Paulo vai no mesmo caminho. Mas eles são exceções bastante raras, pouquíssimos hospitais públicos seguem o seu exemplo.
Os governantes sabem disso e fogem do SUS, indo aos bunkers da saúde privada. Por que nenhum deles se interna em hospitais públicos?
Continuamos a viver esse caos também nos hospitais de ensino. Neles, cada vez mais sucateados, estudantes de medicina e enfermagem se formam e terminam aprendendo errado, em ambientes onde a segurança dos pacientes não é devidamente priorizada.
As manchetes e mortes são só consequência. Punir o plantonista é o mais fácil, perverso e inócuo.
Procedimentos de diferentes níveis de complexidade podem tornar hospitais mais seguros. Existem muitas práticas de segurança validadas internacionalmente sem custo financeiro algum.
Podemos citar a identificação eficaz de todos dentro do hospital, o controle rigoroso da calibração e manutenção dos equipamentos médicos, a dupla checagem de medicações perigosas, a garantia de normas sanitárias e o controle de infecções.
O checklist é uma prática simples, praticamente sem custo, que segundo a OMS chega a diminuir em um terço os erros cirúrgicos.
A implantação obrigatória da acreditação e de um bom programa de segurança do paciente diminuiria a negligência do sistema.
Aquela criança, agora cega por toda a vida, poderia ter enxergado normalmente. Muitos pacientes poderiam estar vivos, sem sofrimento e também com grande economia. É importante enxergar --e enxergar o que precisa ser feito.
RUBENS BELFORT JR., 65, é professor titular de oftalmologia na Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina
Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/07/2012.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Pela extinção da PM

Vladimir Safatle

No final do mês de maio, o Conselho de Direitos Humanos da ONU sugeriu a pura e simples extinção da Polícia Militar no Brasil. Para vários membros do conselho (como Dinamarca, Espanha e Coreia do Sul), estava claro que a própria existência de uma polícia militar era uma aberração só explicável pela dificuldade crônica do Brasil de livrar-se das amarras institucionais produzidas pela ditadura.

No resto do mundo, uma polícia militar é, normalmente, a corporação que exerce a função de polícia no interior das Forças Armadas. Nesse sentido, seu espaço de ação costuma restringir-se às instalações militares, aos prédios públicos e aos seus membros.

Apenas em situações de guerra e exceção, a Polícia Militar pode ampliar o escopo de sua atuação para fora dos quartéis e da segurança de prédios públicos.

No Brasil, principalmente depois da ditadura militar, a Polícia Militar paulatinamente consolidou sua posição de responsável pela completa extensão do policiamento urbano. Com isso, as portas estavam abertas para impor, à política de segurança interna, uma lógica militar.

Assim, quando a sociedade acorda periodicamente e se descobre vítima de violência da polícia em ações de mediação de conflitos sociais (como em Pinheirinho, na cracolândia ou na USP) e em ações triviais de policiamento, de nada adianta pedir melhor "formação" da Polícia Militar.

Dentro da lógica militar, as ações são plenamente justificadas. O único detalhe é que a população não equivale a um inimigo externo.

Isto talvez explique por que, segundo pesquisa divulgada pelo Ipea, 62% dos entrevistados afirmaram não confiar ou confiar pouco na Polícia Militar. Da mesma forma, 51,5% dos entrevistados afirmaram que as abordagens de PMs são desrespeitosas e inadequadas.

Como se não bastasse, essa Folha mostrou no domingo que, em cinco anos, a Polícia Militar de São Paulo matou nove vezes mais do que toda a polícia norte-americana ("PM de SP mata mais que a polícia dos EUA", "Cotidiano").

Ou seja, temos uma polícia que mata de maneira assustadora, que age de maneira truculenta e, mesmo assim (ou melhor, por isso mesmo), não é capaz de dar sensação de segurança à maioria da população.

É fato que há aqueles que não querem ouvir falar de extinção da PM por acreditar que a insegurança social pode ser diminuída com manifestações teatrais de força.

São pessoas que não se sentem tocadas com o fato de nossa polícia torturar mais do que se torturava na ditadura militar. Tais pessoas continuarão a aplaudir todas as vezes em que a polícia brandir histericamente seu porrete. Até o dia em que o porrete acertar seus filhos.

 
Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/07/2012.

Falha geral

José Paulo Kupfer


Não é só a telefonia celular que passa, no momento, por turbulências econômicas e políticas. Não custa lembrar, até porque a repercussão da suspensão da venda de linhas ofuscou qualquer outra, também há, neste momento, turbulências da mesma natureza no setor de planos privados de saúde. Dias antes da suspensão da venda de linhas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), três dezenas de empresas foram proibidas pela Agência Nacional de Saúde complementar (ANS) de comercializar quase três centenas de modalidades desses planos.

Foi a mesma a motivação para os breques, nos dois segmentos: as empresas estavam vendendo mais serviços do que eram capazes de entregar, com um padrão mínimo exigido de eficiência e qualidade. No caso dos celulares, as reclamações de queda de sinal e de demora no atendimento em call centers, que se contam, há tempos, aos milhares por ano, haviam disparado. O mesmo ocorre com os planos de saúde, cujos prazos para consultas e exames vinham aumentando em proporções alarmantes – sem falar no aumento dos conflitos, muitas vezes levados aos tribunais, em relação a cobranças por procedimentos em internações.

As medidas oficiais, como não poderia deixar de ser, deflagraram um debate aceso sobre as responsabilidades pela inconteste má prestação dos serviços. Da pura e simples ganância das empresas à incompetência e inoperância dos órgãos reguladores, passando pelos marcos regulatórios defasados ou inadequados, sobrou para todos de tudo um pouco.

Um dos riscos desse debate – que dá atualidade à velha máxima segundo a qual em casa que falta pão todos brigam e ninguém tem razão –, é propiciar o (re)surgimento de algum tipo de ideia retrógrada sobre o valor da privatização de serviços públicos. Afinal, entre os setores atingidos pelas medidas restritivas, está o setor de telefonia, ícone das privatizações brasileiras.

Mesmo sem estender a observação para outros mercados, as experiências locais já acumulam quilometragem suficiente para provar que, se a operação privada de serviços públicos não é isenta de falhas, as possíveis desvantagens da operação pública desses serviços são muito maiores. Os esforços na direção da assegurar a eficiência dos serviços, portanto, deveriam se concentrar no diagnóstico e na correção dessas falhas.

A ideia mestre das privatizações é a de que os mercados são sempre mais eficientes na alocação de recursos e, além do mais, estão protegidos de interferências políticas. Trata-se de uma lógica que se assenta em princípios teóricos desenvolvidos entre o fim do século 19 e início do século 20, notadamente pelos economistas das correntes neoclássicas.

É costume, no entanto, esquecer que essa formulação partia de um modelo abstrato, no qual prevalece a estrutura de um mercado de concorrência perfeita. Nesse mercado, em que não há barreiras de entrada aos que dele desejarem participar, o preço é determinado livremente pelo encontro da demanda com a oferta. Não é essa, porém, a realidade, muito menos no caso dos serviços públicos. Pela própria exigência de grandes investimentos, nos serviços públicos, o regime de mercado universal é o de oligopólio.

Mercados oligopolísticos se caracterizam pelo grande número de consumidores ou usuários atendidos por pequeno número de ofertantes , que diferenciam os serviços oferecidos basicamente pela propaganda de suas qualidades, em relação ao preço cobrado. Não se pode, aqui, falar em “eficiência”, no sentido da alocação ótima de recursos, ao preço que assegura o “lucro normal”, que lhe confere a concorrência perfeita. Aí estão os cartéis – expressão radical dos oligopólios –, para lembrar que é possível obter o máximo de lucro com um mínimo de eficiência no atendimento dos interessados.

A invenção das agências reguladoras é um derivado óbvio dessa constatação. Em todas as partes do mundo, elas foram criadas justamente para evitar que, na prestação de serviços públicos, normalmente essenciais para as pessoas – e, por isso, quase impossíveis de descartar, fato que limita a capacidade de formação estrita de preços em mercado – a lucratividade almejada pelas empresas pudesse ser alcançada com o mínimo de eficiência na oferta dos serviços.

Tudo considerado, cada um, nessa história, pode escolher o vilão ou o mocinho que bem entender. Mas, a verdade é que, se as empresas falham em vender o que não podem entregar, falham também as agências reguladoras que não impedem no nascedouro esse tipo de prática destrutiva.


Publicado em O Estado de S.Paulo, em 24/07/2012.