quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Entrevista com sociólogo Rudá Ricci


"Inclusão na era Lula deixa bomba-relógio para Dilma desativar"

A Uirá Machado

SOCIÓLOGO DIZ QUE DISCUSSAO SOBRE SALÁRIO MÍNIMO É O COMEÇO DE UM LONGO PROCESSO DE NEGOCIAÇAO DOS AJUSTES DO MODELO LULISTA

A inclusão social pelo consumo ocorrida no governo Lula trouxe para a presidente Dilma Rousseff uma "espécie de bomba-relógio", e a disputa sobre o aumento real do salário mínimo é parte desse problema, afirma o sociólogo Rudá Ricci.

Autor do livro "Lulismo -Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira", Ricci avalia que a manutenção desse processo é o "primeiro grande problema" de Dilma, mais progressista no discurso, mas, de prática, "mais conservadora que Lula".

O sociólogo diz ainda que a presidente se identifica com a classe média tradicional, enquanto Lula é a expressão da nova classe C -segmento que, para Ricci, não aponta para uma nova divisão de classes.

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Folha - O primeiro grande embate de Dilma foi com as centrais sindicais. Quanto desse choque é explicado pela ausência de Lula e pelo estilo da presidente?

Rudá Ricci - Trata-se de uma situação das mais complexas. O movimento sindical brasileiro é, quase todo, sindicalismo de resultados. É negociador por natureza, e não contestador. O reajuste do salário mínimo é um aríete visível e popular, mas que será utilizado para negociações mais amplas.

Mas é evidente que o perfil de Dilma, marcado pelo estilo gerencial, influencia nessa relação. Vamos perceber que um gestor público tem que ter jogo de cintura.

A queda de braço em torno do salário mínimo sugere que as centrais sindicais estão retomando pautas antigas?

Não acredito. Minha leitura é que se trata de um movimento de estudo sobre as novas diretrizes governamentais. As centrais sindicais ocuparam um espaço importante no governo, e não apenas uma parceria.

O governo Lula cooptou os movimentos sociais?

Em parte. Diria que se trata de um pacto social não explícito. No que tange ao movimento sindical, orienta-se para a construção de um modelo neocorporativo. Não se trata de uma situação clássica de cooptação, mas da convergência de interesses políticos. Não há ingênuos em nenhum dos lados.

Qual o significado simbólico da votação do mínimo?

Essa votação teve o simbolismo de mostrar quão sólida é a base governista no Congresso. Agora, os blocos parlamentares podem se movimentar com mais segurança.

Foi a ponta do iceberg de um longo processo de negociação dos ajustes do modelo lulista. Será um processo que dará muito trabalho aos operadores políticos do governo.

Já é possível fazer comparações entre Lula e Dilma no que diz respeito ao trato com os movimentos sociais?

Dilma faz um discurso mais progressista, mas adota uma prática mais conservadora que Lula.

Lula é um negociador nato e fala a linguagem da nova classe C, pragmática e, muitas vezes, cínica. Dilma é técnica e ascética como a classe média tradicional.

Não se trata apenas de um líder carismático e outro racional. Trata-se de empatia política, de qual segmento social é liderado.

Mas o Brasil ainda vive uma transição na sua composição social. A classe média tradicional perdeu seu poder de formar opinião num país com mobilidade social enrijecida. Temo que Dilma não tenha "feeling" político para entender esse momento.

Dilma recebe do lulismo alguma herança negativa?

O primeiro grande problema é como conduzirá o financiamento da inclusão social pelo consumo que o lulismo montou. Aí está parte das dificuldades de relacionamento com o mundo do trabalho.

Se a política tributária é regressiva, se a transferência de renda está com seu financiamento no limite e se o lulismo é um pacto pelo estatal-desenvolvimentismo de tipo fordista, conciliando interesses diversos, como resolver a equação?

O aumento do consumo já faz com que 60% da população esteja endividada. Criou-se uma expectativa em relação ao aumento real do salário mínimo para o ano seguinte, salvando parte do orçamento familiar.

Há uma espécie de bomba-relógio a ser desativada. Esta é a herança: a expectativa de lideranças sociais e da classe C, vorazes consumidores.

O sociólogo Jessé Souza argumenta que não é correto falar em "nova classe média". Como o sr. avalia essa questão?

A série histórica que temos no país e que segue o Critério Brasil [usado em pesquisas de opinião e de mercado para definir classes econômicas] é baseada na estratificação social fundada no poder aquisitivo. Estamos presos, para efeito de análise comparativa, a essa base.

Na análise de Jessé Souza, vejo um duplo equívoco. Primeiro, ele não percebe que se trata de uma transição na composição das classes sociais a partir da forte ascensão social dos últimos anos.

Estamos falando de mudança de ideário e hábitos no interior das classes, em especial da classe C. Isso já ocorreu outras vezes no país.

O segundo equívoco é que os conceitos de "ralé" e "batalhador" são impressionistas e partem de um juízo de valor. Batalhador sempre houve no Brasil. Assusta-me essa vertente conservadora de definir o país a partir do empenho individual.

Mas há diferenças em relação à classe média tradicional?

A nova classe C é desconfiada e tem na família seu porto seguro. Afinal, foi sua família que sofreu a pobreza. O conservadorismo aparece como elemento de negação do passado.

Essa é a expressão cultural da nova classe C, que obviamente se distingue da classe média tradicional. Mas não temos uma nova divisão de classes, apenas uma nova composição em virtude da ascensão social de momento.

Qual o peso da ascensão da nova classe média na sustentação do lulismo?

Total. O discurso de Lula, e até mesmo a sua imagem, cria forte empatia com essa nova classe média.

Lula era a afirmação desses hábitos populares que invadem o mundo das elites e chegam ao cargo máximo do poder público. Lula foi e é a expressão maior da ascensão da nova classe C.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 21/02/2011.

Por que o Brasil cresceu mais

Demian Fiocca


O Brasil viveu dois períodos diferentes desde a estabilização. De 1995 a 2003, teve crescimento baixo: 2,2% em média. De 2004 a 2010, alcançou crescimento alto: 4,4% em média. Mudanças na gestão econômica explicam essa melhora.

O país não foi levado pela "onda" de uma expansão mundial. Enquanto o crescimento do mundo oscilou de 3,4% para 3,8%, o do Brasil dobrou.

Tampouco foi apenas a "sorte" dos bons preços das commodities.

Minério ou petróleo em alta estimularam investimentos nesses setores e o saldo comercial. Mas o uso de poupança externa, dado pelo deficit em contas correntes, diminuiu.

Passou, na média anual, de 2,9% do PIB para 0,2%.

Cinco políticas importantes têm de constar das explicações do novo crescimento: distribuição de renda, investimentos de estatais, fomento à expansão do crédito, acumulação de reservas e medidas anticíclicas.

Essas políticas moldaram um novo ambiente, de ampliação de renda e emprego, de um lado, e de confiança e expansão do investimento, de outro. Não foi algo trivial nem de continuidade pela inércia.

Desde 2005 há críticos à diretriz de expandir as operações do BNDES. Quando se afirmava que o Brasil podia crescer 5%, outros tentavam provar que o máximo possível era 3,5%.

Quando os bancos públicos sustentaram a expansão do crédito em meio à crise, muitos faziam ressalvas. Quando o presidente transmitia mensagens de otimismo, vários tentaram ridicularizar. Mas todas essas diretrizes estavam corretas.

Comparando 1997-2003 com 2004-2010, o gasto federal cresceu de 15% para 17% do PIB. As transferências a pessoas, como o Bolsa Família e as aposentadorias vinculadas ao salário mínimo, respondem por todo o acréscimo de 2% do PIB.

O gasto com pessoal oscilou de 4,5% para 4,4%. Os investimentos da União, de 0,7% para 0,8%. Tiveram impacto neutro.

Os investimentos das estatais federais subiram de 1,2% para 1,7% do PIB em média. Esse foi outro fator de aceleração.

Adotaram-se medidas favoráveis à expansão dos bancos privados, como a regulação do crédito consignado e o apoio aos bancos médios durante a crise econômica, e diretrizes indiscutivelmente novas de expansão e apoio em relação aos bancos públicos.

O crédito dos bancos privados saltou de 14,8% do PIB em 2003 para 27,1% em 2010. O dos bancos públicos, de 9,8% para 19,5%.

O crédito dos bancos públicos, mais voltados ao investimento, foi importante para ampliar a capacidade produtiva e evitar que a aceleração da economia fosse limitada pelo risco de inflação.

Entre 1995 e 2005, as reservas internacionais oscilaram na faixa de US$ 30-70 bilhões. Com a nomeação de Mantega para a Fazenda, desde 2006 prevaleceu uma política de compra continuada de reservas, por prudência contra crises e para suavizar a tendência de valorização do real, de modo a evitar um impacto brusco sobre a indústria.

As reservas então sobem de U$ 54 bilhões em 2005 para US$ 206 bilhões em setembro de 2008, às vésperas da crise.

Por fim, quando o mundo mergulha na crise, opta-se por política anticíclica, de manutenção dos investimentos públicos, redução de impostos e forte suporte ao crédito.

Descontando efeitos contábeis do Fundo Soberano e da concessão do pré-sal, o superavit primário federal foi reduzido de 2,8% em 2008 para 1,2% em 2009 e em 2010.

Injetou-se impulso de mais de 3% do PIB nesses dois anos. O suporte ao crédito responde facilmente por outros 3% do PIB. Foram políticas ativas, corajosas e inovadoras, que estão no centro do bom desempenho econômico do país.

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DEMIAN FIOCCA, é economista, sócio da Mare Investimentos. Foi presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e da Nossa Caixa.
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 21/02/2011.

A Praça Tahir já não tem limites

Clóvis Rossi


A revolta no mundo árabe/muçulmano disseminou-se de tal forma que a revista "The Economist", usualmente sóbria, não hesitou em colocar na roda até mesmo a Arábia Saudita, o bastião da ordem na região que se poderia chamar de Oriente Médio ampliado.

A revista elaborou um "índice de vulnerabilidade" e, de 1 a 10, cravou 7,3 como chances de que o país seja atingido pela onda de rebeliões, mais até do que a Líbia (6,7), que foi alcançada antes que o índice chegasse às bancas.

Não por acaso, o jornal preferido dos intelectuais palestinos, "Al-Ayyam", publica uma análise muito mais abrangente do que qualquer índice. Hassan Khader vai ao ponto de prever o início do fim do que se poderia batizar de "Ordem Saudita", imposta a partir dos choques do petróleo dos anos 70.

Como é essa "ordem"? Responde Khader: "Crentes contra infiéis, sunitas contra xiitas, muçulmanos contra cristãos. Tudo era engolido por uma luta entre absolutos religiosos emparedados no passado, que não deixava lugar para os partidos políticos, para os sindicatos ou outros engajamentos. No lugar deles, havia a figura do kamikaze, que se impunha como a última etapa da política rumo às esferas celestes".

Agora, prossegue o analista, a revolução tunisiana e a egípcia "fizeram a política descer de novo à Terra". Reconvertidos em cidadãos, os vassalos dizem "basta ao soberano, não porque ele seja pouco crente nem porque vendeu a Palestina, mas porque ele não lhes assegurou nem o pão nem a liberdade".

Essa mesma característica de fim de uma época é ressaltada por James Le Sueuer, professor de história da Universidade de Nebraska, em artigo para a "Foreign Affairs".

Mas Le Sueuer prefere ver nos eventos que se desdobram no mundo árabe/muçulmano o fim do que ele chama de "síndrome da desordem da era pós-colonial".

Significa que os autocratas do mundo árabe aderiam a uma filosofia de governo fora de moda, "de acordo com a qual o autoritarismo é a única cura para desafios políticos internos ou externos".

Também o filósofo argelino radicado na França Sami Naïr, em artigo para "El País", trata de uma nova ordem, caracterizada pela entrada em cena da juventude.

"Esta geração não pertence a nenhuma tradição, nacionalista árabe ou religiosa. Sua cultura política não é herdada do passado e, sim, provém mecanicamente da insuportável contradição entre a liberdade negada na vida cotidiana e a liberdade extrema de que os jovens desfrutam na internet, no Facebook, no twitter, nos SMS etc."

O que todos estão querendo dizer, no fundo, é que as categorias analíticas geralmente utilizadas para tratar do Oriente Médio tendem a ficar obsoletas, como sempre ocorre no momento em que uma dada era está morrendo e outra tenta nascer, a fórceps.

Afinal, os gritos por mudança atingem países pró-ocidentais (Egito, Bahrein), países de forte nacionalismo árabe (Líbia), de predomínio religioso e anti-Ocidente (Irã), razoavelmente laicos (Tunísia) -e têm sido, invariavelmente, contra os governantes locais, não contra potências estrangeiras.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 19/02/2011.

Educação alta entre árabes dá o combustível para protestos

Filipe Campante


A maioria dos observadores da atual turbulência no mundo árabe concorda em um aspecto: foi inesperada.

No entanto, fatores plenamente visíveis -relacionados à educação, à demografia e à falta de oportunidades econômicas- já apontavam para maior instabilidade.

Está fartamente documentado que pessoas mais educadas são mais propensas a participar de atividades políticas -do voto aos protestos.

No entanto, como demonstra pesquisa conjunta minha com o professor Davin Chor, da Singapore Management University, essa ligação condiciona-se à disponibilidade de oportunidades.

Habilidades adquiridas pela educação conduzem a aumento da disposição de se envolver em política e da efetividade do envolvimento.

Contudo, se elas são recompensadas em outras atividades, é menos provável que sejam utilizadas para fins políticos. Os países onde as oportunidades são abundantes exibem menos engajamento político por parte de pessoas instruídas -precisamente o tipo de envolvimento que é mais assustador para os regimes autoritários.

O mundo árabe não tem sido um modelo de dinamismo econômico. As economias da região não são voltadas para atividades que usam intensivamente o "capital humano" adquirido via educação.

Menos reconhecido é o fato de que vários desses países estão entre os que mais têm investido em educação. Dados compilados para 104 países pelos economistas Robert Barro e Lee Jong Wha mostram que, entre 1980 e 1999, o Egito foi o quinto país onde mais cresceram os anos de escolaridade média -135%.

A Tunísia vem não muito atrás, com mais de 70% de aumento. De nove membros da Liga Árabe incluídos, oito encontram-se entre os 25 países no topo da lista.

Há portanto um cenário no qual uma enorme quantidade de jovens árabes encontra-se muito mais educada que seus pais e avós. Na falta de oportunidades econômicas, esse contingente dedica as habilidades adquiridas às atividades políticas -das páginas do Facebook à organização de protestos.

Ao investirem em educação sem proporcionarem oportunidades condizentes, os autocratas árabes contribuíram enormemente para a situação que ora os aflige -para sorte da democracia.
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FILIPE CAMPANTE é professor-assistente de políticas públicas da Universidade Harvard

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/02/2011.

Lacerdismo cultural

Vladimir Safatle


Carlos Lacerda entrou para a história do Brasil como aquele que procurou rebaixar o debate político nacional ao nível da rinha de galo. Sempre municiado de uma frase bombástica, de um complô iminente contra os valores da família brasileira perpetrado por esquerdistas com a faca nos dentes, Lacerda representava o pensamento conservador nacional em sua face mais paranoica.

Podemos dizer isso porque havia um pouco dos delírios paranoicos clássicos em seus discursos: perseguição de quem vê infiltração comunista por todos os poros, megalomania de quem acha que qualquer autocrítica é uma traição, pensamento binário de quem divide o mundo entre amigos e inimigos. Isso sem falar na redução caricata do pensamento crítico à denúncia, ao desmascaramento dos pretensos interesses de poder por trás dos discursos edificantes.

Bem, Lacerda morreu, mas seu espírito continua vivo em alguns setores da imprensa nacional. Tais setores desenvolveram uma variante que poderíamos chamar de "lacerdismo cultural". Ela consiste em tentar conquistar os "corações e mentes" da opinião pública transplantando a lógica da estigmatização política para o campo das ideias e da cultura. Assim, os debates atingem seu nível mais raso.

Pois não se trata mais de debater, mas de esconjurar, de preferência utilizando termos que servem para expulsar o oponente do interior do universo do discurso, como "terrorista", "inimigo dos valores ocidentais" e, o mais vazio de todos, "irracionalista".

Para tanto, eles precisam dar a impressão de existir um grande complô que vai de Michel Foucault ao Hamas, passando pelo "politicamente correto", pelo "relativismo pós-moderno" e pela consciência dos problemas da desigualdade de classe no Brasil.

Todos juntos para destruir os valores da liberdade individual e da democracia liberal.

Como boa parte desses arautos da razão e do pensamento vieram de uma juventude em grupos de extrema-esquerda, seu ressentimento dirige-se, na verdade, contra aquilo que eles foram no passado. No entanto eles apenas inverteram os sinais, usando o mesmo tipo de pensamento binário e totalizante, agora na luta contra os "vampiros da civilização ocidental".

Não passa pela cabeça deles que suas crenças de juventude não eram esquerdistas, mas simplesmente autoritárias, fruto do desejo de uma explicação simplória e totalizante de mundo. Elas continuam assim. Que tais crenças encontrem guarida em certos grupos de extrema-esquerda, bem eis um problema que muitos denunciaram há mais de um século. Por fim, deve-se dizer que tal tendência não passará tão cedo. Pois ela repete uma guinada histérico-conservadora que parece assolar nosso mundo em crise.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 22/11/2011

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Pão egípcio e ferro brasileiro

Vinicius Torres Freire


O pão está caro no Egito, e o comércio exterior do Brasil foi muito bem em janeiro. Como assim?

Sim, o preço de comida, combustíveis, minérios continuou a subir muito em janeiro. O Brasil exporta muita comida e minérios. O Egito importa metade do trigo e do milho que consome. Mesmo que não importasse, o preço de trigo e milho ainda subiria -talvez o subsídio da comida ficasse menos custoso, a depender do câmbio.

O preço médio das commodities subiu 6,5% em janeiro, segundo um índice popular na praça, o CRB. No ano passado, o CRB subiu uns 24%. Nesse índice, da Thomson Reuters, é ponderada a evolução dos preços de petróleo, gás, trigo, soja, milho, café, algodão, carnes, suco de laranja, ouro, prata e platina, de acordo com as respectivas cotações em Bolsas americanas.

O preço do cobre é recorde. Os de outros metais estão chegando perto dos recordes de 2008, assim como os dos grãos; em meados de 2008 houve a rodada anterior da grande inflação de commodities, quando a economia mundial ainda estava superaquecida, apesar do declínio já evidente no mundo rico.

Dado que o Brasil tem uma balança comercial de petróleo mais ou menos equilibrada, em geral as exportações brasileiras melhoram de preço quando o CRB sobe. Em lugares ainda mais pobres e selvagens que o Brasil, onde a despesa com comida leva parte ainda maior da renda dos cidadãos (quando a renda existe, aliás), a alta do CRB tende a ser uma desgraça. Há pobres e miseráveis passando ainda pior no sul da Ásia e na África quase toda.

No Brasil, o preço das commodities em alta provocou surpresas como um deficit comercial menor do que o esperado em 2010. E outra surpresa em janeiro, um mês tradicional e relativamente mais fraco do comércio exterior. Mesmo com dólar barato e a decorrente surra em alguns setores industriais, o comércio exterior teve superavit em janeiro, pequeno, mas superavit. Mais interessante, a corrente de comércio (exportações mais importações) cresceu 32% sobre janeiro de 2010. O valor das exportações cresceu 34,5%, mais que o das importações (que cresceu 28,7%).

A resistência da balança comercial, o deficit externo menor do que o esperado, a torrente de dinheiro que vem entrando para fusões, aquisições, investimentos "produtivos" e outros, tudo isso ajuda a derrubar um pouco mais o dólar, o suficiente para avariar vários setores industriais, que perdem mercado no exterior e para importados.

Note-se, porém, que, embora o preço de commodities não cause aqui desgraças tão agudas como em lugares mais sombrios do planeta, a inflação desses produtos também contamina os preços no Brasil. O que empurra juros para cima. O que atrai um tanto mais de dólares, o que valoriza o real. O que prejudica alguns setores industriais. Etc.

O resumo da ópera é que estamos todos enredados por correntes de produção e consumo gigantescas, que alteram o clima econômico e até político do planeta. A bonança das commodities tornou o ambiente mais confortável para o governo Lula; agora, bate um pouco na inflação aqui, embora ajude a sustentar o equilíbrio externo. No norte da África, a mesma corrente turbina o preço da comida, o que enfurece o povo, o que balança ditaduras.


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/02/2011. 

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Fazendo o certo

Kenneth Maxwell


O presidente Franklin Delano Roosevelt supostamente teria dito, em 1936, sobre Anastasio Somoza, por muito tempo ditador da Nicarágua, que "Somoza pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta".

Na verdade, parece mais provável que Somoza, e não Roosevelt, tenha dado origem a esse mito, embora a frase tenha a virtude de sumarizar a política de Roosevelt com relação à América Latina.

Mais tarde, durante a Guerra Fria, essa postura se tornou comum no aparelho de política externa dos Estados Unidos. Diplomatas e empresários norte-americanos preferiam fortemente os governantes latino-americanos, e de outras regiões do mundo, que sabiam de que lado deveriam estar tanto nas questões internas quanto nas internacionais.

Com a queda dos regimes comunistas da Europa oriental, nos anos 90, porém, a única região do mundo sobre a qual persistiram opiniões desse tipo foi o Oriente Médio, e Hosni Mubarak serve como exemplo clássico.

A justificativa de Barack Obama para manter seu apoio a Mubarak até o fim é notavelmente semelhante à opinião de Roosevelt sobre Somoza, ainda que os EUA tenham muito mais em jogo no Egito.

Mubarak foi presidente do Egito por quase 30 anos, depois de suceder Anwar El Sadat, assassinado em 1981, e governou ao longo dos mandatos de cinco presidentes norte-americanos, de Reagan a Obama, passando por Bush pai, Clinton e Bush filho.

Era visto como um baluarte dos interesses norte-americanos e como fiel da paz com Israel. Auxiliou os Estados Unidos na primeira Guerra do Golfo Pérsico e na reconquista do Kuwait depois da invasão do país pelo Iraque de Saddam Hussein. Como resultado, o Egito teve US$ 14 bilhões em dívidas perdoadas pelos Estados Unidos e pela Europa.

O Egito continua a receber assistência militar norte-americana maciça.

Mas o resultado foi a falta de mudanças políticas no Egito.

E esse foi um preço pesado a pagar. Os acordos de paz entre Israel e os palestinos malograram. E Israel fica cada vez mais duro e oposto de qualquer modificação real na sua política de expansão de assentamentos dentro do território palestino. Era como se todos os envolvidos tivessem tempo ilimitado. Mas a lição da história é que o tempo não para.

Ninguém sabe quais serão as consequências das revoluções populares que varrem o Oriente Médio. A esperança é a de um futuro mais democrático, mais aberto e mais esclarecido. Uma coisa é certa: caso isso aconteça, não terá sido graças àqueles que passaram 30 anos percorrendo o caminho da conveniência, nos Estados Unidos.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 17/02/2011.

Não subestimar a justa indignação

Luiz Carlos Bresser-Pereira


Desde que começaram as revoluções por ora vitoriosas na Tunísia e no Egito deixaram "em situação embaraçosa" os Estados Unidos e a França, e seus intelectuais "ficaram confusos". Não é difícil compreender o embaraço dos grandes países.

Embora façam um discurso em defesa da democracia, acusem de forma indignada dirigentes nacionalistas de países que não seriam democráticos mas que atendem às condições mínimas da definição de democracia, e não hesitem em apoiar movimentos de direita que tentam derrubá-los pela força, não obstante tudo isso, apoiam de forma integral governos abertamente ditatoriais e corruptos, mas que se portam de forma "amiga" em relação a seus interesses de curto prazo.

Quanto à "confusão" de seus intelectuais, foi um artigo em Le Monde (6.fev.2011) que a acentuou referindo-se a intelectuais de direita na França como Bernard-Henri Lévy, para quem "a situação seria muito complexa", ou Olivier Mongin que declara: "mais vale um Ben Ali que um Bin Laden".

No fundo, diz o jornal, "a revolução iraniana está em todas as mentes". E, portanto, para se evitar uma possível ditadura islâmica e, portanto, nacionalista, se apoia uma ditadura corrupta e dependente.

Em primeiro lugar, não há qualquer razão de ordem democrática ou de ordem moral para essa opção.

Por que uma ditadura corrupta e dependente é melhor para seu povo do que uma ditadura islâmica?

Segundo, não há razão para se colocar o problema da Tunísia ou do Egito nesses termos.

Existe sempre o risco de uma revolução nacionalista islâmica, mas esse risco só aumentará e se tornará real se os países ricos insistirem em pensar em termos dessas duas alternativas radicais, e, a partir daí, continuarem a optar pela ditadura corrupta e dependente.

Egito e Tunísia já não são países estritamente pobres, mas, ao contrário de países como o Brasil ou como a Índia, não realizaram ainda sua revolução capitalista, não contam com uma classe empresarial ampla, uma classe média diversificada, e um Estado capaz de defender os interesses nacionais.

É disto que esses países precisam, é isto o que os jovens que lideram essas duas revoluções com ajuda da Internet reivindicam.

Eles tiveram acesso à educação, mas a administração dependente e incapaz de suas economias não promove o desenvolvimento econômico necessário para que eles tenham empregos e salários decentes ou então oportunidade de se tornarem empresários.

Estes objetivos conflitam com a lógica imperialista, que sempre foi a de se aliar às elites dependentes e aos governos corruptos das colônias. Mas será que essa é a melhor estratégia?

ORIENTE MÉDIO

Em relação aos países pobres, acredito que ainda dê bons resultados. Mas a era dos impérios está terminando.

Foi isso o que mostraram os países do Leste Europeu em 1989; é isto que estão dizendo os países do Oriente Médio em 2011.

A revolução agora não é tão decisiva como foi aquela, porque os países do Oriente Médio são menos desenvolvidos, e porque os impérios do Ocidente não estão tão debilitados como estava o soviético.

Mas é um equívoco subestimar a justa indignação e a determinação desses povos de alcançarem e autonomia nacional e a democracia.

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/02/2011.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Entrevista com Jessé Souza

É um erro falar que existe nova classe média, diz sociólogo

UIRÁ MACHADO
DE SÃO PAULO

Autor do livro "Os Batalhadores Brasileiros", o sociólogo Jessé Souza afirma que a ascensão social de 30 milhões de pessoas no governo Lula não produziu uma "nova classe média", mas uma classe social diferente, que ele chama provocativamente de "batalhadores".

Assim como fizera em seu livro anterior, Souza procura determinar as características dessa classe por um recorte diferente do que ele chama de economicista e quantitativo, fugindo tanto de análises pelo consumo e renda quanto de abordagens marxistas "unidimensionais".

Abaixo, trechos da entrevista sobre a classe que, para ele, "parece se constituir, com o resgate social da ralé, na questão social, econômica e política mais importante do Brasil contemporâneo".



Folha - Após lançar o livro "A Ralé Brasileira", o senhor agora publica "Os Batalhadores Brasileiros". Qual a diferença entre a "ralé" e os "batalhadores"?

Jessé Souza - Os dois livros se enquadram no projeto de longo prazo de estudar as classes sociais mais importantes do Brasil contemporâneo de maneira não economicista e quantitativa, como sempre acontece.

Quando falo em estudos economicistas, penso tanto nas descrições estatísticas baseadas em níveis de consumo e renda quanto nas descrições marxistas fundadas numa leitura unidimensional da realidade.

Alguns desses estudos são importantes como ponto de partida descritivo, mas o que nenhum deles oferece é uma leitura sociocultural da realidade que nos possibilite compreender o principal: a produção diferencial de seres humanos a partir do pertencimento a classes sociais distintas.

Ainda que a renda seja um componente importante do pertencimento de classe, pessoas muitos diferentes podem ter renda semelhante.

Para que possamos explicar e compreender uma realidade social complexa é necessário penetrar na dimensão mais recôndita das motivações profundas do comportamento social e nos dramas, sonhos, angústias e sofrimentos humanos que elas implicam.

O ganho em compreensão em relação a uma realidade opaca e complexa é insofismável.

Acredito que, por conta desse tipo de interesse instruído teórica e metodologicamente, foi possível perceber, talvez pela primeira vez, a existência do um terço de brasileiros excluídos como uma única classe, ou seja, pelo estudo dos pressupostos afetivos, morais e emocionais que explicam a origem, a manutenção e o destino social provável às pessoas dessa classe específica.

No caso da "ralé", formada pela ausência dos pressupostos que permitem a incorporação das capacidades exigidas pela sociedade competitiva moderna, é possível perceber a irmandade entre pessoas que moram no interior do Piauí ou na periferia de São Paulo quando a regra é a fragmentação e, portanto, a cegueira da percepção.

É essa cegueira que percebe essa classe de abandonados sociais apenas no registro espetacularizado e manipulador da oposição polícia/bandido, aprofundando todos os preconceitos das classes do privilégio contra esses esquecidos, explorados como mão de obra barata por esses mesmos privilegiados.

O ganho em termos de uma percepção alternativa, totalizadora e crítica da realidade social como um todo não é pequeno.

No caso dos "batalhadores", esse mesmo ponto de partida nos permitiu, na contramão dos estudos dominantes sobre esse assunto, perceber tanto o potencial de chance e de oportunidade que efetivamente existe nessa nova classe que se constitui defronte os nossos olhos quanto articular a dimensão do sofrimento e dor humanos sistematicamente silenciados por uma leitura superficial e triunfalista da realidade.

Em seu livro, o senhor questiona a afirmação de que o governo Lula alçou 30 milhões de brasileiros à classe média e diz até que se trata de uma mentira. Por quê?

Eu não nego que houve uma efetiva ascensão social de 30 milhões de brasileiros nem que esse fato seja extremamente importante e digno de alegria. O que questiono é a leitura dessa classe como uma classe média.

A classe média é uma das classes dominantes em sociedades modernas como a brasileira porque é constituída pelo acesso privilegiado a um recurso escasso de extrema importância: o capital cultural nas suas mais diversas formas.

Seja sob a forma de capital cultural técnico, como na "tropa de choque" do capital (advogados, engenheiros, administradores, economistas etc.), seja pelo capital cultural literário dos professores, jornalistas, publicitários etc., esse tipo de conhecimento é fundamental para a reprodução e legitimação tanto do mercado quanto do Estado.

Consequentemente, tanto a remuneração quanto o prestígio social atrelados a esse tipo de trabalho --e da condução de vida que ele proporciona-- são consideráveis.

A vida dos "batalhadores" é completamente outra. Ela é marcada pela ausência dos privilégios de nascimento que caracterizam as classes médias e altas.

E, quando se fala de "privilégios de nascimento", não se está falando apenas do dinheiro transmitido por herança de sangue nas classes altas. Esses privilégios envolvem também o recurso mais valioso das classes médias, que é o tempo.

Afinal, é necessário muito tempo livre para incorporar qualquer forma de conhecimento técnico, científico ou filosófico-literário valioso.

Os batalhadores, em sua esmagadora maioria, precisam começar a trabalhar cedo e estudam em escolas públicas muitas vezes de baixa qualidade.

Como lhes faltam tanto o capital cultural altamente valorizado das classes médias quanto o capital econômico das classes altas, eles compensam essa falta com extraordinário esforço pessoal, dupla jornada de trabalho e aceitação de todo tipo de superexploração da mão de obra.

Essa é uma condução de vida típica das classes trabalhadoras, daí nossa hipótese de trabalho desenvolvida no livro que nega e critica o conceito de "nova classe média".

Qual o ganho analítico de enxergar os batalhadores como uma classe diferente da classe média tradicional? E quais as implicações que essa diferenciação traz para o governo Dilma?

O ganho é tanto analítico quanto político.

Essa diferenciação permite, em primeiro lugar, perceber a realidade social como ela é, com suas ambiguidades e contradições constitutivas.

Depois, como em toda leitura sóbria da realidade, ela possibilita criticar todo tipo de manipulação política ou de leitura triunfalista da realidade.

Com relação não apenas ao governo Dilma, mas em relação ao futuro do Brasil, essa nova classe de trabalhadores, típica do novo tipo de capitalismo financeiro que logrou se globalizar, parece se constituir --com o resgate social da ralé-- na questão social, econômica e política mais importante do Brasil contemporâneo.

Para mim, existem duas alternativas possíveis: a primeira é essa classe ser cooptada pelo discurso e prática individualista e socialmente irresponsável que caracterizam boa parte das classes dominantes no Brasil; a segunda alternativa é essa classe assumir um papel de protagonista e inspirar, pelo seu exemplo social, a efetiva redenção daquela classe social de humilhados sociais que chamo provocativamente de ralé.

Muitos dos batalhadores que entrevistamos vinham, inclusive, da própria ralé, mostrando que as fronteiras entre as classes são fluidas e que não existem classes condenadas para sempre.

Esse ponto me parece fundamental, já que é precisamente a existência desses abandonados sociais --e não qualquer tipo de patrimonialismo advindo de um suposto "mal de origem" português, como ainda hoje acredita nossa ciência social dominante-- o que nos separa das sociedades mais igualitárias e socialmente mais justas do globo.

Quando o senhor afirma que os batalhadores alcançaram um "lugar ao sol à custa de extraordinário esforço", o senhor não está assumindo a tese do mérito individual, a qual o senhor habitualmente critica?

Quando critico a ideologia do mérito individual, não estou negando a extraordinária importância do esforço individual, nem, muito menos, a necessidade de reconhecimento social efetivo para os desempenhos singulares em qualquer área da vida.

Qualquer noção de justiça social moderna tem que articular responsabilidade social e reconhecimento dos desempenhos singulares e extraordinários.

Há que proteger tanto a ideia de que somos responsáveis uns pelos outros quanto estimular o esforço pessoal.

Quando critico a ideia de mérito individual, é apenas pelo seu uso amesquinhado como ideologia, ou seja, como falsa percepção da realidade.

É muito diferente quando uma classe inteira de privilegiados de nascimento, com boas escolas, estimulados em casa o tempo todo, com tempo livre desde sempre para fazer o que bem entende e dinheiro para investir em cursos de línguas e pós-graduações valorizadas, chama o próprio sucesso de mérito individual e ainda acusa as classes que não tiveram acesso a qualquer desses privilégios sociais de preguiçosos, burros e culpados pelo próprio fracasso.

A tese do mérito individual que crítico é, portanto, herdeira do modo como o liberalismo sempre foi recebido no Brasil: um discurso para legitimar os privilégios de nascimento das classes abastadas, como se esses privilégios decorressem do esforço apenas de indivíduos, e não da herança de sangue e de classe.

No estudo dos batalhadores, o que impressionou foi o extraordinário esforço de superação de condições efetivamente adversas, todas contribuindo antes ao desânimo e ao desespero do que ao enfretamento corajoso das condições negativas ao sucesso social e econômico.

O título do livro foi uma homenagem à luta cotidiana e silenciosa desses brasileiros.

Este termo "batalhadores" sinaliza o fato de que o que perfaz o cotidiano dessas pessoas é a necessidade de "matar um leão por dia" como forma de vida de toda uma classe social que tem que lutar diariamente contra o peso da própria origem.

Nos casos empíricos de seu livro, há operadores de telemarketing, uma profissão relativamente nova, e feirantes, ocupação bem antiga. Como as duas funções aparecem juntas para caracterizar tipos de uma nova classe social que é tão conforme o modelo atual do capitalismo?

Para responder a esta pergunta, temos que compreender, antes de tudo, ainda que sucintamente, o que significa "modelo atual de capitalismo", de modo a podermos compreender de maneira mais adequada como essa "nova classe trabalhadora" se torna, não só no Brasil, mas em todos os países emergentes, como China e Índia, sua classe suporte, como diria Max Weber, mais típica.

O que hoje é chamado por muitos de "capitalismo financeiro" representa um movimento que começa nos anos 80 no mundo e se propaga nos anos 90 entre nós. O pano de fundo desse movimento eram taxas de lucro decrescentes em nível mundial já havia décadas.

Mas as mudanças não foram apenas nem principalmente de retórica política. Elas comandaram transformações profundas tanto na forma de produção de todo tipo de mercadoria quanto no regime de trabalho.

Ao fim e ao cabo, o conjunto de mudanças apontou no sentido de um aumento da velocidade de circulação do capital, em grande medida determinado pelos cortes com gastos de controle e supervisão de trabalho, que caracterizavam a produção do tipo fordista tradicional, como existe ainda hoje, por exemplo, em algumas indústrias automobilísticas.

Amplos setores da produção de mercadorias de todo tipo são realizados agora por trabalhadores em fábricas a céu aberto ou pequenas unidades familiares que se acreditam, inclusive, empresárias de si próprias, o que explica, também, que o epíteto de "nova classe média" tenha caído tão rápido no gosto de todos, inclusive dos próprios batalhadores.

Na verdade, o capital financeiro que flui sem qualquer controle por todos os pontos do globo pode, agora, se valorizar a taxas de lucros e juros sem precedentes também a partir de atividades realizadas por um exército mundial de trabalhadores --que abundam precisamente nos países populosos ditos emergentes-- sem direitos trabalhistas, sem passado sindical e sem tradição de lutas políticas, que muitas vezes não pagam impostos, que trabalham de dez a 14 horas ao dia e ainda nem sequer precisam de capatazes ou supervisores, porque se acreditam "livres" e patrões de si mesmos.

Essa mudança abrange não apenas as "novas atividades", como as da informática, mas também redefinem e transformam, inclusive, atividades tradicionais, como a dos feirantes.

Quais são os valores dessa classe batalhadora?

Em primeiro lugar, há que ficar bem claro que uma pesquisa sobre valores sociais profundos, como a que realizamos, não pode imaginar que esses valores sejam de fácil acesso e estejam na cabeça das pessoas de modo claro e óbvio.

Ao contrário, como diria Max Weber, a primeira necessidade dos seres humanos não é a de dizer a verdade --muito menos a verdade sobre si mesmos--, mas sim justificar e legitimar a vida que realmente levam.

Por conta disso, uma pesquisa de sociologia crítica é diferente de uma pesquisa meramente quantitativa. Nas pesquisas quantitativas podemos saber, por exemplo, em quem as pessoas vão votar ou que sabonete elas usam, precisamente porque suas autoimagens quase nunca estão em jogo nesse tipo de questão.

Quem se interessa em perceber os estímulos mais profundos da conduta social, ao contrário, tem que realizar um esforço interpretativo e hermenêutico que as pesquisas quantitativas comuns não fazem e perceber os valores na prática cotidiana efetiva da vida das pessoas.

Afinal, valores são aquilo que nos conduzem para um lado e não para outro da vida, mesmo que de modo pré-reflexivo ou inconsciente.

Nós optamos por analisar a vida no trabalho e na família de nossos informantes, de modo a retirar dessas esferas fundamentais os impulsos e estímulos práticos --os tais "valores" na nossa visão-- da conduta de vida.

Neste particular, o horizonte valorativo dos batalhadores pode ser mais bem percebido no confronto com os membros da ralé.

A principal diferença em relação aos excluídos e abandonados sociais é a constituição de uma ética articulada do trabalho duro.

Afinal, não basta querer trabalhar em qualquer área da vida. É necessário também poder trabalhar, ou seja, ter logrado incorporar (literalmente "tornar corpo", de modo pré-reflexivo e automático) os pressupostos emocionais e morais do trabalho produtivo no mercado competitivo.

O capitalismo atual pressupõe crescente incorporação de distintas formas de conhecimento e de capital cultural como porta de entrada em qualquer de seus setores competitivos.

Como esses pressupostos faltam por diversos motivos à ralé, esta é condenada aos trabalhos braçais ou com mínimo de conhecimento, servindo, portanto, de mão de obra barata para qualquer serviço duro, desvalorizado e pesado.

Esse não é o único horizonte dos batalhadores.

Os batalhadores são quase sempre vindos de famílias pobres, mas, no entanto, bem estruturadas, com os papéis de pais e filhos reciprocamente compreendidos, exemplos de perseverança na família e estímulo consequente --baseado em exemplos concretos-- para o estudo e para o trabalho.

Temos nas famílias dessa classe a incorporação e internalização efetiva da tríade disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo que sempre está pressuposta tanto em qualquer processo de aprendizado na escola quanto em qualquer trabalho produtivo no mercado competitivo.

Sem disciplina e autocontrole é impossível, por exemplo, concentrar-se na escola --daí que os membros da ralé diziam repetidamente que "fitavam" o quadro negro por horas sem aprender.

Essa "virtude" não é natural, como pensa a classe média que universaliza indevidamente às outras classes suas virtudes e privilégios para depois culpar a vítima do abandono social, como se o abandono e a miséria fossem uma escolha.

Por outro lado, sem pensamento prospectivo --ou seja, a visão de que o futuro é mais importante do que o presente--, não existe sequer a possibilidade de condução racional da vida pela impossibilidade de cálculo e de planejamento e pela prisão no aqui e agora.

No caso dos batalhadores, a incorporação dessa economia emocional e moral mínima é duramente conquistada, às vezes no horizonte do aprendizado familiar, às vezes tardiamente, nas mais diversas formas de socialização religiosa.

Assim, ainda que falte a essa classe o acesso às formas mais valorizadas de capital cultural --monopólio das "verdadeiras" classes médias--, não lhes falta força de vontade, perseverança e confiança no futuro, apesar de todas as dificuldades.

Em um contexto minimamente favorável, como o que vivemos até agora, esse exército de batalhadores se mostra então disponível e atento à menor possibilidade de trabalho rentável e de melhoria das condições de vida por meio, por exemplo, do consumo de bens duráveis que antes lhes eram inatingíveis.

Durante as eleições deste ano, alguns debates ganharam fortes contornos religiosos, como foi o caso da discussão sobre o aborto. A religião é mais importante para os batalhadores do que para a classe média tradicional?

O tema da religião é tão importante para essa classe que até dedicamos toda uma parte do livro a esta temática. Além disso, a socialização religiosa dessa classe perpassa boa parte dos textos construídos a partir das análises empíricas.

É preciso cuidado com esse tema, já que ele pode servir para que se construa uma nuvem de preconceitos contra essa classe.

É, sem dúvida, correto que as religiões evangélicas --como, aliás, todas as religiões em alguma medida-- exigem o sacrifício do intelecto, o que, efetivamente, não ajuda no exercício da tolerância nem no desenvolvimento das capacidades reflexivas dos seres humanos.

Em troca, no entanto, essas religiões oferecem o que a sociedade como um todo, o Estado ou mesmo algumas das famílias menos estruturadas dessa classe jamais deram a eles: confiança em si mesmos, autoestima, esperança e a força de vontade para vencer as enormes adversidades da vida sem privilégios de nascimento.

Nesse sentido preciso, tudo leva a crer que a religião seja efetivamente mais importante para esses setores do que para as classes médias estabelecidas, ainda que nunca tenhamos feito nenhum estudo sistemático. Mas me parece uma hipótese plausível.

E não apenas as religiões evangélicas, que são muito importantes especialmente nos núcleos urbanos. Também a religião católica, no interior do Nordeste, ainda muito forte e atuante, cumpre uma função fundamental de baluarte da solidariedade familiar e como fundamento de uma ética do trabalho em muitos aspectos semelhantes à ética do protestantismo.

Se é verdade que a classe batalhadora não é uma classe média em sentido tradicional, e se aí vai uma crítica, não é possível ao menos imaginar que os filhos dos "batalhadores" terão melhores oportunidades que seus pais? Nesse sentido, a crítica não perderia sua força? Não é possível imaginar que a ascensão à classe média se dará em "duas etapas"?

Sem dúvida que isso é possível. Até porque o Brasil é um país singular no sentido de ser extremamente desigual e, ao mesmo tempo, apresentar forte mobilidade social muitas vezes ascendente.

É preciso, no entanto, também levar em consideração que uma concepção sociocultural das classes sociais implica a percepção de que as mudanças sociais tendem a preservar aspectos importantes da história e da tradição das classes sociais envolvidas nessas mudanças.

Como nos constituímos como seres humanos de modo antes de tudo afetivo e emocional, pela incorporação insensível e pré-reflexiva daquilo e de quem amamos, somos sempre muito mais parecidos com nossos pais --ou de quem quer que tenhamos recebido afeto e amor-- do que as vezes muitos imaginam.

Mas o que é importante é que as mudanças sociais e pessoais são, sim, sempre possíveis. Mais importante ainda é lembrar que as mudanças sociais jamais acontecem apenas pelo jogo das variáveis econômicas.

O aprofundamento dos processos de aprendizado social e político que o Brasil começa a realizar são também fundamentais para a constituição de uma sociedade em que todos tenham efetiva condição de participar da competição social com um mínimo de igualdade de condições, que é o que muitos entre nós desejam.

A nova classe batalhadora faz surgir um novo tipo de preconceito no Brasil?

Sem dúvida. Basta olhar qualquer das revistas que analisam o padrão de consumo dessa classe sob a égide da visão de mundo da classe média estabelecida. Ela aparece sempre como um tanto vulgar e sem o "bom gosto" que caracterizaria os estratos superiores.

Como regra geral, as classes superiores se veem sempre como as "classes do espírito", da personalidade refinada e sensível, e percebem as classes baixas como as "classes do corpo" e, portanto, rudes, primitivas e sem refinamento.

Uma das características dos "batalhadores" parece ser a precariedade da situação econômica e social. De que forma o governo pode melhorar ou piorar a situação dessa classe?

Eu acho fundamental o aprofundamento mais consequente tanto da política social --no sentido de que apenas uma pequena ajuda econômica tópica não irá retirar o um terço de brasileiros da exclusão e do abandono-- quanto de políticas de crédito e de estímulo aos batalhadores.

A "parte de baixo" da população brasileira tem demonstrado sobejamente que consegue transformar qualquer pequena ajuda em progresso social e econômico significativo que interessa e beneficia a todos os setores da sociedade inclusive os superiores.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Entre Teerã de 1979 e Berlim de 1989

Roger Cohen


A questão fundamental do Egito resume-se ao seguinte: estamos testemunhando uma nova Teerã de 1979 ou uma Berlim de 1989? Será esse um grande levante contra a ditadura, cujo objetivo - a liberdade democrática - será usurpado pelos islâmicos organizados, como ocorreu na Revolução Iraniana? Ou será o fim do Parque Jurássico árabe no qual, do Iêmen à Tunísia, antigos déspotas perpetuam-se no governo, e o início de um florescimento democrático capaz de transformar o mundo, como ocorreu com o colapso do império soviético?

Se, como acredito, a última hipótese se concretizar, é crucial esclarecê-la. E isso envolve um presidente americano, Barack Obama, ainda inexperiente, reunindo toda a habilidade diplomática que os EUA mostraram em 1989 - e até mesmo inspirando-se em 1947, no Plano Marshall - para respaldar a nascente democracia egípcia e árabe.

Também implica Israel procurar uma fração da coragem que Anwar Sadat demonstrou em sua visita a Jerusalém em 1977: a coragem de deixar de lado o refrão da segurança, que vê em cada adversário democrático de Hosni Mubarak um jihadista em potencial, e apelar para as forças modernizadoras do mundo árabe que conhecem a esterilidade da guerra.

Israel e seus partidários conservadores abraçaram a analogia do Irã. Acima de tudo, eles veem no despertar egípcio uma ameaça. O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu assim se expressou: "O que tememos é que, se ocorrer uma rápida mudança, o que ocorrerá - como já aconteceu no Irã - será a ascensão de um regime opressivo. Esse regime esmagará todos os direitos humanos, não permitirá a democracia ou a liberdade e se converterá numa ameaça à paz".

Os intelectuais árabes têm uma visão oposta, expressa de maneira mais clara por Rami Khouri, da Universidade Americana de Beirute: "Estamos testemunhando o momento histórico épico do nascimento de conceitos que durante muito tempo foram negados ao árabe comum: o direito de definirmos nós mesmos nossos governos, de afirmarmos nossos valores nacionais, de criarmos nossos sistemas de governança".

Os EUA tentaram o caminho intermediário, da "transição ordenada". A secretária de Estado Hillary Clinton reiterou as palavras de Netanyahu com algumas variações: "As revoluções derrubaram os ditadores em nome da democracia, mas esse processo foi sequestrado pelos novos autocratas".

Israel deveria aplaudir o despertar árabe. Foi a negação desses direitos pelos déspotas da região que deu à retórica populista iraniana tanta ressonância nas ruas árabes. Nada provocará o declínio da influência iraniana tão rapidamente quanto a democracia árabe.

Há uma segunda razão para Israel encontrar esperança na Praça Tahrir: são os indivíduos que se dão conta de que sua existência não tem sentido - a situação fundamental dos árabes hoje - os mais propensos a ver na morte jihadista a solução de tudo.

Agora, se Obama aderir ao momento de 1989 e não ao de 1979, como provavelmente fará, terá de pressionar os aliados do Golfo. E garantir que a democracia egípcia atenda às expectativas mediante a elaboração de um Plano Marshall financiado pelo petróleo em benefício de um mundo árabe democrático. Quanto a Netanyahu, deveria emular Sadat e ir ao Cairo abraçar o próximo presidente do Egito eleito democraticamente. Ainda não chegamos lá, mas esse é o momento para pensar grande e mostrar coragem. Não se trata apenas do momento 1989 do mundo árabe. É o momento de Obama. 


Tradução de Anna Capovilla

* Publicado no Estado de S.Paulo, em 09/02/2011, e no New York Times.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

E Cuba?

Vladimir Safatle


Há uma compulsão de repetição no debate político brasileiro. Todas as vezes em que se levantam questões sobre o apoio do Ocidente a ditaduras, sobre o bloqueio do dever de memória no Brasil, o desrespeito aos direitos humanos nos EUA e na Europa, sempre se ouve a pergunta: "E Cuba?"

Um pouco como se tal pergunta parodiasse o dito de Max Horkheimer: "Quem não está disposto a criticar o capitalismo deve se calar sobre a União Soviética", fornecendo a versão "quem não está disposto a criticar Cuba deve se calar sobre o resto do mundo".

Mas é interessante perceber como os amigos de Cuba não procuram, assim, ampliar o espectro do debate sobre democracia e direitos humanos. Na verdade, querem neutralizá-lo com o raciocínio: "Pare de falar sobre o que não gosto de ouvir, senão te lembrarei aquilo que quer esquecer".

Contra essa lógica da neutralização, só há uma saída: falar aquilo que, no fundo, eles não querem falar, ou seja, ampliar o debate também para Cuba, sem fechá-lo para outros casos.

De fato, há certos setores minoritários da esquerda nacional que procuram justificar o injustificável. Cuba é, no máximo, uma revolução popular que há muito entrou em estado de degenerescência. Hoje, não passa de uma ditadura que só serve para nos lembrar que mesmo revoluções verdadeiras podem terminar mal.

Há dois artifícios retóricos usados para relativizar o fato: creditar o fechamento do regime ao embargo norte-americano e minorá-lo dizendo que, ao menos, o governo cubano cuidou dos indicadores sociais de saúde e educação. Os dois artifícios são desonestos.

O primeiro consiste em dizer que problemas estratégicos (a luta contra o embargo) submetem princípios norteadores da luta política (o aprofundamento da liberdade). O segundo parece o argumento dos apoiadores de Pinochet : impomos uma ditadura, mas aumentamos a riqueza (no caso cubano, sem grandes desigualdades). Mas riqueza social sem democracia real continua sendo miséria política.

Nesse sentido, Cuba nos mostra que um acontecimento verdadeiro não garante a sequência de suas consequências. Mais do que um projeto claro, as revoluções são o ato violento de abertura de novas sequências. Um ato que mobiliza expectativas contraditórias, que coloca em circulação valores cuja determinação de sua significação será objeto de embates também violentos.

Por isso, uma revolução é uma causa a partir da qual não é possível derivar, com segurança, qual série de consequências virá. Quando as consequências são ruins, a crítica deve ser radical. Por sinal, os melhores setores da esquerda sempre fizeram isso. Eles nos lembram que o verdadeiro compromisso é com uma democracia de forte participação popular e poder instituinte soberano, não com ditaduras.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 08/02/2011.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Wall Street e a praça Tahrir

Clóvis Rossi


Vi, no voo de volta para São Paulo, o documentário "Inside Job", que conta a história da crise de 2008/09 e concorre ao Oscar de melhor documentário. Por mim, ganharia com um pé nas costas. É revoltante, dá náuseas. Não há "mocinhos" nessa história.

Revoltante é o comportamento dos agentes de mercado, com sua insolência, leviandade, irresponsabilidade, arrogância. Capazes até de roubar as próprias firmas para as quais trabalham, ao lançar como despesas de serviço gastos com cocaína e com prostitutas de luxo. É o mercado, enfim.

Dá náusea ver a omissão dos governantes, a promiscuidade com os negócios dessa gente. A começar de Ronald Reagan, com o qual se inicia o trabalho de desmanche da regulação que acaba, passados vários presidentes, montando o palco para os "senhores do universo" provocarem o colapso que custou ao mundo dois anos de crescimento zero (a economia mundial tem hoje o mesmo tamanho de 2008).

O sistema financeiro instalou portas giratórias no governo. Funcionários saem da banca para o governo, nada fazem para controlar o sistema de que saíram e voltam a ele, ganhando fábulas.

O documentário denuncia, com toda a razão, a "colonização" da academia pelos agentes de mercado. Professores de economia, das melhores grifes, têm empregos muito bem remunerados em conselhos e passam a produzir apenas a ideologia dos que lhes pagam, não a compilar informações e analisá-las de maneira tão objetiva quanto possível em se tratando de algo, a economia, que não é ciência exata.

Revoltante, por fim, é saber que nada mudou, depois da tentativa inicial de que a política governasse os mercados, e não o contrário.

Não vou viver para ver, mas, desse jeito, a menos que surja um estadista, Wall Street ainda será uma imensa praça Tahrir. Tomara.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/02/2011.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Árabes podem aprender com modelo turco de democracia

Ibon Villenlabetia


Os egípcios e outros árabes que estão procurando deixar no passado os seus governos autocráticos podem contemplar a Turquia em busca de indícios sobre como combinar o islã e a democracia.

Relativamente estável, dotada de economia vibrante e gerida por um governo conservador e pragmático liderado por antigos militantes islâmicos, a Turquia foi muitas vezes mencionada como democracia muçulmana modelo e como âncora da influência ocidental na região.

Com uma onda de inquietação se espalhando da Tunísia à Jordânia e Iêmen, e com a intensificação dos apelos para que Mubarak inicie logo a transição, os analistas do Oriente Médio estão voltando sua atenção à Turquia, uma força diplomática em ascensão na região.

"O modelo da Turquia serve como fundação para sociedades semelhantes e por isso acredito que, depois dos protestos, os árabes reconsiderarão o modelo turco, que combina valores islâmicos e democracia como forma universal de governo", disse Fawaz Gerges, da London School of Economics.

Mas analistas dizem que as profundas diferenças entre a Turquia, membro da Otan (aliança militar ocidental) e candidata à União Europeia, com variedade amena de islã, e o Oriente Médio árabe, no qual falta a cultura da liberdade política, significam que o modelo não poderá ser copiado de imediato.

Na Turquia, as poderosas Forças Armadas derrubaram quatro governos de 1960 até agora e agiam como árbitro final do poder no sistema parlamentar que estava em vigor até a década de 1950.

Nos últimos anos, a democracia turca ganhou vigor, com reformas empreendidas pelo Partido AK, do premiê Tayyip Erdogan, a fim de preparar a Turquia para a adesão à União Europeia e cercear o poder dos generais.

Paul Salem, do Carnegie Endowment's Middle East Centre, em Beirute, ressaltou que não era esse o caso no Egito, onde os militares estão no coração do poder desde o fim da monarquia, em 1952.

Analistas dizem que grupos islâmicos provavelmente desempenharão papel proeminente na Tunísia e no Egito, quando Mubarak sair.

Essa perspectiva preocupa os EUA, que apoiam autocracias para servirem como baluartes contra suposta ameaça do islamismo militante

* Publicado na Folha de S.Paulo, em 04/02/2011

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A Espanha deporta? Deportaremos

Elio Gaspari


Nunca é demais repetir: ao tempo em que os europeus exportavam sua gente para outras terras, a Espanha mandou para o Brasil perto de 1 milhão de imigrantes. (A Itália mandou 1,5 milhão.) Passou o tempo, e a polícia espanhola continua perseguindo brasileiros que desembarcam em Madri.

Há três anos, uma física que estava a caminho de um congresso em Lisboa foi detida por 53 horas e embarcada de volta. Há poucos dias, Denise Severo, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília, foi detida por 15 horas pela meganha do aeroporto de Barajas e deportada. Retornou sem a bagagem.

Denise Severo botou seu trombone na internet:

"Havia cerca de dez pessoas presas nesta situação e todas elas eram latinas e/ou negros da África!!! Ou seja, é xenofobia pura!!!! Mas xenofobia contra latinos e negros!!!! Puro preconceito !!! (...) Vou recorrer ao Itamaraty, vou fazer uma queixa oficial na Embaixada da Espanha no Brasil, vou à Secretaria de Política para Mulheres e Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, vou a todos os órgãos que puder para lutar contra esta arbitrariedade!!!"

A brasileira informa que tinha consigo a comprovação de emprego, emitida pelo Ministério da Cultura, passagem de ida e volta, reserva de hotel (em nome de uma amiga, que chegara em outro voo, informação confirmada pelo estabelecimento) e até cópia da escritura de sua casa. Isso tudo e mais o cartão Travelmoney do Banco do Brasil, bem como os comprovantes da transação dos euros necessários para custear a viagem.

O embaixador da Espanha em Brasília, Carlos Alonso Zaldivar pode procurar no arquivo alguns casos anteriores e verá que sua turma só mudou (um pouco) o tratamento dado aos brasileiros depois que a Polícia Federal, em muito boa hora, começou a deportar seus patrícios.

Em março de 2008, foram devolvidos oito, com os mesmos argumentos oferecidos aos brasileiros em Madri.

Infelizmente, as dificuldades econômicas da Europa estão estimulando a busca de empregos no além-mar. Nessa hora, Pindorama volta a ser um porto seguro. Recentemente, diplomatas de diversos países procuraram o Ministério do Trabalho para discutir uma política de concessão de vistos de serviço para seus cidadãos. Bem que o ministro Carlos Lupi poderia discutir esses pleitos mostrando uma tabelinha de deportações arbitrárias impostas a brasileiros em cada país europeu.

Há brasileiros e brasileiras presos na Espanha por prostituição, tráfico de drogas, sequestros-relampago e falsificação de documentos. Problema deles, que violaram as leis locais. O ano de 2010 terminou com 163 espanhóis encarcerados no Brasil, 52 a mais do que em 2009. A má conduta de uns não permite que os outros sejam tratados como suspeitos. Ademais, a preferência da meganha pela deportação de mulheres jovens revela que é a polícia espanhola quem tem um problema na cabeça, não suas vítimas.

Em pelo menos um caso de exercício da xenofobia, um governo europeu recuou quando soube que o Brasil estava disposto a discutir uma agenda ampla, negociando inclusive a suspensão da reciprocidade da isenção de vistos de turista. Seria o caso de o chanceler Antonio Patriota perguntar ao embaixador Zaldivar se o seu governo pretende mudar as regras do jogo.
 
* Publicado na Folha de S.Paulo, em 02/02/2011.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A religião como farsa

Vladimir Safatle


Há algo de patético em parte dos analistas internacionais e nacionais que, diante da revolta no Egito, só conseguem se lembrar do risco do advento de um governo islâmico. Parece que de nada adianta lembrar que o que se ouve na Tunísia e no Egito são palavras de ordem pedindo democracia, fim do arbítrio, liberdade.

Palavras vindas, principalmente, de jovens que não veem futuro em regimes que misturaram ditadura e liberalismo econômico.

Também não adianta lembrar que, na Tunísia, o maior movimento organizado por trás da revolta é um sindicato (União Geral dos Trabalhadores da Tunísia) e, no Egito, o grupo religioso Irmandade Muçulmana é apenas uma dentre as várias organizações presentes nas manifestações.

Organização que não está na origem das manifestações e que sequer tem um líder capaz de capitalizar os protestos.

Na verdade, precisamos desesperadamente da narrativa que consiste em dizer que, no mundo árabe, só pode haver ou regimes teológico-políticos ou "autocracias" amistosas.

Afinal, como justificar que durante 30 anos nós, arautos dos direitos humanos, apoiamos um regime despótico, com eleições de fachada, assassinato de opositores, censura rígida e plutocracia? Só mesmo inventando que, se não fosse isso, teríamos que engolir o fundamentalismo islâmico.

Mas vejam que engraçado.

Se há um regime no mundo árabe que impôs à vida social um código jurídico totalmente religioso, regime onde os direitos das mulheres, das minorias e as liberdades individuais são massacrados, esse é a Arábia Saudita.

Comparado aos sauditas, os iranianos vivem numa democracia escandinava. Mas você nunca ouviu uma liderança ocidental criticar o regime saudita. O problema do Ocidente não é com a junção reacionária entre religião e política. O problema é com a distinção, digna de Carl Schmitt, entre "amigo" e "inimigo".

O que talvez certos governos ocidentais realmente temam é o aparecimento de um governo laico, democrático, de grande participação popular, mas que não está disposto a submeter-se aos interesses econômicos e geoestratégicos das potências que sempre viram aquela região do mundo como seu "protetorado".

No entanto é isso o que realmente pode acontecer no momento. As comparações com a queda da cortina de ferro no Leste europeu são justificadas. Só que, nesse caso, os árabes usam nossos valores para mostrar que ninguém no Ocidente os levava a sério.

Senão, como explicar uma pérola como a fornecida pelo vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Binden: "Não podemos chamar Mubarak de ditador". Bem, Joe, e como você prefere chamá-lo? De grande amigo e estadista com mãos sujas de sangue?


* Publicado na Folha de S.Paulo, em 01/02/11.

Árabes olham para dentro e veem inimigo

Roger Cohen

Há muito tempo os povos árabes têm sua dignidade negada, são governados por autocratas alheios às suas preocupações e condenados a habitar um mundo de conspirações, enfrentam a zombaria periódica de "eleições" que não passam de pantomimas farsescas, sofrem espionagem policial, veem suas oportunidades negadas e são torturados ou até mesmo mortos quando necessário.

Há muito tempo os EUA e seus aliados ocidentais toleram ou sustentam essa opressão. O senso comum tem sido que a alternativa a isso seria o islamismo e os jihadistas. Agora uma revolução na Tunísia -de classe média, não-islâmica e pró-ocidental- pôs por terra esse surrado pensamento binário. É uma revolução que talvez esteja inspirando outras, se os protestos da semana passada no Egito forem prenúncio de algo maior.

Não surpreende que déspotas árabes como Muammar Gaddafi, na Líbia, e Hosni Mubarak, no Egito (os dois somando mais de 70 anos de poder), se sintam tão ameaçados; nem que tenham ocorrido distúrbios nas ruas, da Argélia ao Iêmen, e autoimolações que imitam o suicídio que desencadeou a revolta tunisiana.

O homem-bomba muçulmano dirige sua raiva a um inimigo externo; a autoimolação revela um desespero similar, mas voltado para dentro de sistemas que suprimiram as esperanças. A mudança é significativa. O bode expiatório ocidental é substituído por um culpado árabe.

Blogs, Twitter, Facebook e novas redes de TV convenceram os jovens árabes de que seus regimes são o antípoda da abertura e da modernidade. Se os governos ocidentais não trabalharem agora para promover uma abertura na mentalidade árabe -se persistem em acreditar que só com mão de ferro será possível evitar o pior-, eles irão colher o fruto inevitável da autocracia: a radicalização islâmica dos jovens marginalizados.

Achei desanimadoras as reações iniciais dos governos europeus à rebelião de um povo árabe para depor seu ditador. Ninguém aplaudiu. Franco Frattini, o chanceler italiano, declarou que "a prioridade número um é deter o fundamentalismo islâmico e as células terroristas". Não é estabelecer uma democracia onde os direitos de todos os tunisianos sejam respeitados. Em lugar disso, um alerta ao novo governo: mantenha o programa que o déspota deposto, Zine el Abidine Ben Ali, usava para justificar a repressão.

Michele Alliot-Marie, ministra francesa de Relações Exteriores, ofereceu assessoria às forças de segurança de Ben Ali antes de ele fugir, em 14 de janeiro. Ela agora está sendo pressionada a renunciar. O presidente Nicolas Sarkozy depois disse que a França "subestimou" o desejo tunisiano de mudança. Isso foi um eufemismo.

Vi na TV uma sucessão de funcionários do governo britânico se contorcendo para evitar uma expressão de apoio aos manifestantes, e alertando que o exemplo da Tunísia não é exportável. Sim, a Tunísia é pequena, coesa e com alto nível educacional; suas mulheres são emancipadas, seus muçulmanos são moderados. Mas a crise reverbera precisamente porque a autoimolação de Mohamed Bouazizi capturou uma profunda frustração regional.

O pêndulo oscilou demais. Depois da Bósnia e de Ruanda, no Ocidente só se falava em intervencionismo em nome da liberdade e dos valores democráticos. Depois do Iraque, tudo isso evaporou e "não interferência" se tornou a palavra-chave. O governo Obama tem hesitado em usar a palavra liberdade. Mas seu desgaste pelo ex-presidente Bush não significa que ela tenha perdido a importância. A bravura do povo tunisiano merecia uma saudação mais incisiva e imediata do Ocidente.

O presidente Barack Obama nesse sentido se saiu melhor que seus colegas europeus, e imediatamente elogiou a "coragem e dignidade" do povo tunisiano. Os EUA irão se empenhar nos próximos meses por eleições imediatas, livres e limpas na Tunísia. Mas isso não basta. A Tunísia deve marcar uma guinada na abordagem ocidental para a região. A ex-secretária de Estado Condoleezza Rice disse certa vez que havia sido um erro permitir que a segurança se sobrepusesse à liberdade no mundo árabe, porque nenhuma das duas prevaleceu.

Mas suas palavras não levaram a nada. Agora, a Tunísia pode demonstrar que segurança e liberdade são compatíveis, que os partidos islâmicos podem participar de uma democracia sem causar reviravoltas, e que o Ocidente tem a oportunidade de encerrar um longo capítulo de hipocrisia.

Ele deveria iniciar esse processo focando no Egito -beneficiário de bilhões de dólares em ajuda americana-, assegurando que Mubarak não irá entregar o poder ao seu filho. A repressão alimenta a violência; o empoderamento dos povos árabes poderá ajudar a romper esse ciclo.
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* Publicado no New York Times e na Folha de S.Paulo, em 31/01/11.