Três países do Oriente Médio chamaram atenção por sua estabilidade na tempestade. Eles são Turquia, Líbano e Israel. Uma combinação curiosa, pode-se dizer, mas eles têm em comum o fato de serem lugares onde pessoas votam.
Democracia é um negócio "tudo ou nada", complicado. É por isso que eu a adoro. Você não pode ser meio democrata, como não pode estar meio grávida.
Sim, os cidadãos vão às urnas na Turquia, Líbano e Israel e nenhum ditador obtém 99,3% dos votos. São terras de oportunidades onde muita gente está enriquecendo e onde as generalizações superficiais, embora muito populares, são equivocadas. A Turquia não se tornou islâmica, o Líbano não está nas mãos do Hezbollah e Israel ainda é uma sociedade aberta.
Os três países, naturalmente, também estão arruinados por causa de divisões e imperfeições. Mas a democracia tem dois méritos: ela não contorna as divisões e não aspira à perfeição.
Falando do Hezbollah, lembra-se de todo aquele alarme, há alguns meses, quando um empresário apoiado pelo grupo xiita, Najib Mikati, surgiu como primeiro-ministro? Depois disso, o Líbano apresentou uma resolução na ONU para ser criada uma zona de exclusão aérea na Líbia - um exemplo raro de sintonia entre os EUA e um governo apoiado pelo Hezbollah.
Converse com o Hezbollah e isso fica óbvio. Ele não é um monolito aterrorizador. Mikati vem lutando contra o toma lá dá cá da política libanesa. A vida segue livremente, o que há muito tempo tem atraído árabes frustrados e oprimidos a Beirute.
O Hezbollah é um partido com uma milícia. Esse é um grande problema. O partido ultraortodoxo de Israel, Shas, tem uma influência desproporcional em Israel por causa da política de coalizão. Esse é um problema. A Irmandade Muçulmana será fundamental num Egito livre porque está em posição de vantagem do ponto de vista organizacional. Esse pode ser um problema. O Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) da Turquia é uma máquina política brilhante e tende a ser inflexível demais. Esse é um problema, também.
São problemas de portes diferentes. Mas, enquanto eles se apresentarem dentro de sistemas abertos (ou se abrindo), são muito preferíveis ao conformismo covarde comum às sociedades aterrorizadas do hoje condenado Parque Jurássico árabe, onde déspotas fazem o que há de pior.
Acabou. Basta de sepulturas sem nome que evocam o terror, chega de Estados policiais do século 20 no século 21. Sim, tudo acabou para os ex-ditadores da Tunísia, Zine al-Abidine Ben Ali, e do Egito, Hosni Mubarak. E também para o líbio Muamar Kadafi.
Quanto tempo ainda será preciso para tudo se encerrar no caso de outros autocratas árabes - sejam os de países que levam o nome de "repúblicas" ou de "reinos" -, isso dependerá de quanto tempo eles ainda conseguirão ignorar as reivindicações de seus próprios cidadãos.
Veja, não é mais possível fazer algo no estilo Hama (massacre de dissidentes na Síria, em 1982). Não se pode criar atoleiros iraquianos. Talvez seja possível matar dezenas de pessoas, mas não dezenas de milhares. Esses déspotas confiam no seu terror sem limites. Ele deve ser tão absoluto quanto o seu desprezo pela lei.
Mas agora as pessoas sabem. Elas se comunicam por meio da repressão. São hábeis no Facebook. Os déspotas olham nos seus espelhos dourados e, para seu horror, no lugar de sua imagem está a de pessoas que não serão mais silenciadas. Eles se indagam se ainda podem confiar na sua miríade de agentes. São apanhados na sua própria rede. E se agitam. Foram longe demais para recuar, mas também não conseguem avançar.
Fim do medo. Bashar Assad, o acossado presidente sírio, quase disse alguma coisa no domingo, mas decidiu não falar. Ele é médico oftalmologista formado em Londres. Seria melhor deixar de pensar em Hama - onde seu pai assassinou pelo menos 10 mil pessoas - e começar a pensar em Hammersmith (subúrbio de Londres).
Um redemoinho de perguntas. Quem são os rebeldes líbios? Quem são as pessoas encolerizadas da cidade síria de Latakia? As transições árabes serão longas e acidentadas - como as que trouxeram um governo representativo para a América Latina e Europa Central e em amplas áreas da Ásia -, mas, agora que o medo foi superado, elas são irreversíveis.
As pessoas estão renascendo em todo o Oriente Médio. Estão descobrindo sua capacidade para mudar as coisas, o seu "basta!" interior. Foi assim que a primavera árabe começou em 17 de dezembro na pequena cidade de Sidi Bouzid, na Tunísia - com um "basta" à humilhação lançado por um vendedor ambulante de frutas. No meu fim está o meu começo.
Três meses depois, o gênio não apenas saiu da garrafa, mas a destroçou. No meu artigo anterior, falei que devemos ser implacáveis ou ficar de fora. Agora que o Ocidente entrou na luta, tem de ser implacável. Tem de armar os rebeldes que ressurgiram. Aniquilar Kadafi. Fazer tudo, exceto colocar tropas em campo.
Kadafi, como disse o presidente Barack Obama, "tem de partir". Só assim a Líbia poderá ser um país árabe imperfeito, mas aberto.
* Roger Cohen é colunista do New York Times
Tradução de Terezinha Martino
Publicado em "O Estado de S.Paulo", em 30/03/2011.
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