quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Árabes olham para dentro e veem inimigo

Roger Cohen

Há muito tempo os povos árabes têm sua dignidade negada, são governados por autocratas alheios às suas preocupações e condenados a habitar um mundo de conspirações, enfrentam a zombaria periódica de "eleições" que não passam de pantomimas farsescas, sofrem espionagem policial, veem suas oportunidades negadas e são torturados ou até mesmo mortos quando necessário.

Há muito tempo os EUA e seus aliados ocidentais toleram ou sustentam essa opressão. O senso comum tem sido que a alternativa a isso seria o islamismo e os jihadistas. Agora uma revolução na Tunísia -de classe média, não-islâmica e pró-ocidental- pôs por terra esse surrado pensamento binário. É uma revolução que talvez esteja inspirando outras, se os protestos da semana passada no Egito forem prenúncio de algo maior.

Não surpreende que déspotas árabes como Muammar Gaddafi, na Líbia, e Hosni Mubarak, no Egito (os dois somando mais de 70 anos de poder), se sintam tão ameaçados; nem que tenham ocorrido distúrbios nas ruas, da Argélia ao Iêmen, e autoimolações que imitam o suicídio que desencadeou a revolta tunisiana.

O homem-bomba muçulmano dirige sua raiva a um inimigo externo; a autoimolação revela um desespero similar, mas voltado para dentro de sistemas que suprimiram as esperanças. A mudança é significativa. O bode expiatório ocidental é substituído por um culpado árabe.

Blogs, Twitter, Facebook e novas redes de TV convenceram os jovens árabes de que seus regimes são o antípoda da abertura e da modernidade. Se os governos ocidentais não trabalharem agora para promover uma abertura na mentalidade árabe -se persistem em acreditar que só com mão de ferro será possível evitar o pior-, eles irão colher o fruto inevitável da autocracia: a radicalização islâmica dos jovens marginalizados.

Achei desanimadoras as reações iniciais dos governos europeus à rebelião de um povo árabe para depor seu ditador. Ninguém aplaudiu. Franco Frattini, o chanceler italiano, declarou que "a prioridade número um é deter o fundamentalismo islâmico e as células terroristas". Não é estabelecer uma democracia onde os direitos de todos os tunisianos sejam respeitados. Em lugar disso, um alerta ao novo governo: mantenha o programa que o déspota deposto, Zine el Abidine Ben Ali, usava para justificar a repressão.

Michele Alliot-Marie, ministra francesa de Relações Exteriores, ofereceu assessoria às forças de segurança de Ben Ali antes de ele fugir, em 14 de janeiro. Ela agora está sendo pressionada a renunciar. O presidente Nicolas Sarkozy depois disse que a França "subestimou" o desejo tunisiano de mudança. Isso foi um eufemismo.

Vi na TV uma sucessão de funcionários do governo britânico se contorcendo para evitar uma expressão de apoio aos manifestantes, e alertando que o exemplo da Tunísia não é exportável. Sim, a Tunísia é pequena, coesa e com alto nível educacional; suas mulheres são emancipadas, seus muçulmanos são moderados. Mas a crise reverbera precisamente porque a autoimolação de Mohamed Bouazizi capturou uma profunda frustração regional.

O pêndulo oscilou demais. Depois da Bósnia e de Ruanda, no Ocidente só se falava em intervencionismo em nome da liberdade e dos valores democráticos. Depois do Iraque, tudo isso evaporou e "não interferência" se tornou a palavra-chave. O governo Obama tem hesitado em usar a palavra liberdade. Mas seu desgaste pelo ex-presidente Bush não significa que ela tenha perdido a importância. A bravura do povo tunisiano merecia uma saudação mais incisiva e imediata do Ocidente.

O presidente Barack Obama nesse sentido se saiu melhor que seus colegas europeus, e imediatamente elogiou a "coragem e dignidade" do povo tunisiano. Os EUA irão se empenhar nos próximos meses por eleições imediatas, livres e limpas na Tunísia. Mas isso não basta. A Tunísia deve marcar uma guinada na abordagem ocidental para a região. A ex-secretária de Estado Condoleezza Rice disse certa vez que havia sido um erro permitir que a segurança se sobrepusesse à liberdade no mundo árabe, porque nenhuma das duas prevaleceu.

Mas suas palavras não levaram a nada. Agora, a Tunísia pode demonstrar que segurança e liberdade são compatíveis, que os partidos islâmicos podem participar de uma democracia sem causar reviravoltas, e que o Ocidente tem a oportunidade de encerrar um longo capítulo de hipocrisia.

Ele deveria iniciar esse processo focando no Egito -beneficiário de bilhões de dólares em ajuda americana-, assegurando que Mubarak não irá entregar o poder ao seu filho. A repressão alimenta a violência; o empoderamento dos povos árabes poderá ajudar a romper esse ciclo.
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* Publicado no New York Times e na Folha de S.Paulo, em 31/01/11.

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