segunda-feira, 4 de abril de 2011

É preciso aproveitar o “momento Bolsonaro”

Para muitos, Jair Bolsonaro é polêmico. Para outros, como o petista Cândido Vacarezza, Bolsonaro é estúpido. Para alguns, o parlamentar carioca é preconceituoso, mas há também – e são muitos – os que o consideram “apenas” sincero em suas convicções.

Seja lá o perfil que se atribua a Bolsonaro, há uma série de temas relevantes que vieram à tona com sua nova “performance”, na famosa entrevista ao CQC. Assim como uma série de medidas que podem ser tomadas, incentivadas por este “momento Bolsonaro”. São elas:


Um “preconceito aceitável”?

Admitamos como verdadeira que a resposta dada a Preta Gil, como alega o deputado, não se referia aos negros, mas aos gays. Logo, concluiremos: o deputado pensa que preconceito contra negros não é aceitável, mas contra gays, sim.

Talvez esteja, de fato, arraigada na sociedade brasileira atual essa impressão: a homofobia é um “preconceito aceitável”. Ou, quem sabe, sequer seja admitida como um preconceito. Mas, sim, proteção da família, da moral e dos bons costumes. Podem, inclusive, argumentar que homossexualismo é doença ou coisa do demo.

Historicamente, às mulheres não cabiam os mesmos direitos atribuídos aos homens. O direito ao voto, por exemplo, ou o termo “mulher honesta”, constante do Código Penal até há pouco tempo, evidenciam que o machismo, além de culturalmente sedimentado, estava institucionalizado no próprio ordenamento legal. Após brava luta feminista, hoje, pelo menos à vista de todos, não é admissível determinadas atitudes contra as mulheres, muito embora, claro, elas tenham muito ainda por conquistar. Bem, o próprio fato de termos hoje uma presidenta, democraticamente eleita, é sinal de que algo mudou.

Com os negros ocorre algo parecido. Em uma sociedade historicamente marcada pela escravidão, apesar de não termos tido algo como o apartheid sul-africano ou as leis discriminatórias norte-americanas – nos tempos em que não se imaginaria Mandela ou Obama eleitos presidentes –, tivemos (e ainda temos, em boa medida) formas de perpetuação dos negros em posições subalternas, alijados de conquistas e direitos. De qualquer forma, para usar um exemplo relativamente recente, se um jogador de futebol xingar outro de macaco, é bem possível que saia do estádio direto para uma delegacia, além de responder a processo judicial.

Em suma, mulheres e negros avançaram na conquista efetiva de direitos. Avançaram na luta contra a discriminação. Além disso, destaco: institucionalizaram algumas de suas conquistas. A Constituição de 1988 afirma que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5º, I), assim como o racismo é crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII). Em âmbito infraconstitucional, mulheres e negros também encontram guarida legal, como, por exemplo, na Lei 7716/89 (crimes de preconceito de raça ou de cor) ou na Lei 11340/06 (Maria da Penha).

No entanto, em que pese o art. 3º, IV, da Constituição, que determina como objetivo do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação, desconheço proteção legal específica aos homossexuais.

Eis a primeira medida que pode ser feita a partir do “momento Bolsonaro”: a promulgação de lei que criminalize a homofobia.

Há, sim, projetos tramitando no Congresso. O que talvez não há – pelo menos até agora – é a oportunidade para fazer com que tal projeto seja transformado em lei. Vale dizer, o que não ocorre, em medida considerável, por força de bancadas e parlamentares religiosos. Porém, da mesma forma, a submissão da mulher ao homem e a escravidão já foram tolerados e respaldados em discursos com citações bíblicas, em sermões de quem, em tese, fala em nome de Deus. É possível que se questione vigorosamente a naturalidade, ainda muito presente, com que os homossexuais são atacados sob o pretexto abjeto de se tratar de um preconceito em nome do Todo-Poderoso. Como se sua existência, e não a violência discriminatória ou mesmo física que sofrem, fosse um acinte às pessoas de bem e às famílias. Pelo menos, é o que pregam os que se acham donos da família e de Deus.

Questão de opinião?

Para surpresa de muitos, pululam aos milhares na internet manifestações favoráveis a Jair Bolsonaro. Afora quem comungue do pensamento retrógrado do deputado, há um argumento que chama a atenção: a democracia requer que se respeite todas as opiniões. Assim, o comentário racista ou homofóbico de Bolsonaro é interpretado como “mera” opinião, tão garantida pela Constituição como os direitos dos negros e dos gays. Simples assim. Será?

Os defensores de Bolsonaro apontam sua fidelidade às convicções. Cumulado a isso, o fato de a democracia exigir que se respeite a opinião alheia, por mais avessa que seja às nossas próprias opiniões ou valores. No entanto, também em nome da democracia, há limites à manifestação das opiniões. Por exemplo: em nome desse regime político, posso exaltar o nazismo ou o holocausto? Posso externar minha simpatia a crimes como a tortura? Posso fazer apologia da discriminação racial ou sexual? Não. Há, inclusive, limites impostos pela própria Constituição e por leis infraconstitucionais, como já dito.

Além disso, o parlamentar é enaltecido pela “coragem de falar o que pensa” e – o elogia da moda – por ser ficha limpa. O ficha limpa virou um bordão do senso comum, uma panaceia para todos os males da política e do Brasil. Como se todos os prós e contras nacionais fossem separáveis – qual o joio do trigo – entre fichas sujas e fichas limpas. Pior: como se apologia à tortura, assassinatos, racismo ou homofobia não fossem tão ou mais repugnantes que a clássica corrupção. Do “rouba, mas faz”, Bolsonaro inaugura o slogan “tortura e discrimina, mas é ficha limpa”.

Essa defesa do deputado reside em indisfarçável incapacidade em lidar com a democracia. Como também se trata de déficit democrático, em sentido contrário, sua condenação sumária. No caso dos defensores, prospera a falácia de que “no tempo dos militares” não havia corrupção. Mentira que deve ser contraditada, tanto pelo fato de na ditadura a imprensa ser tenazmente censurada – o que impedia a produção livre e a credibilidade das notícias ou denúncias de quaisquer espécie –, como pelo fato de os militares terem encontrado sustentação política em figuras para lá de suspeitas – para dizer o mínimo do mínimo –, como Paulo Maluf (eleito prefeito e governador e candidato à Presidência sob as bênçãos dos quartéis) ou José Sarney (presidente do PDS, partido da ditadura).

Segunda conclusão: É preciso aproveitar este momento para, sem qualquer sentimento de injustiça, levar adiante o processo de cassação do deputado Jair Bolsonaro. É preciso que se respeite a democracia e o Estado de direito que o Brasil, a duríssimas penas, e contra pessoas como o deputado Bolsonaro, conseguiu construir e, apesar dos pesares, manter e desenvolver.

Reforma política e o voto em lista

Chama a atenção o silêncio do Partido Progressista, o PP, do qual faz parte o deputado Bolsonaro. Afinal, o partido não tem qualquer responsabilidade sobre o que fazem seus parlamentares. Ou, quem sabe, não deve tomar partido (com o perdão do trocadilho) por atitudes “individuais” de seus filiados. Ou, ainda, como quem cala consente, não vê nada de mais nas “polêmicas” opiniões do nobre deputado.

Sim, claro que o partido deve ser chamado a se explicar e a assumir responsabilidades que também são suas. É legítimo que se lhe cobre a punição, até mesmo a desfiliação compulsória do mandatário de cargo político eleito sob sua legenda. Mas, diante da inércia, o que fazer?

Tramita atualmente no Congresso o projeto de reforma política. O principal tópico da reforma é a mudança do sistema eleitoral. Voto em lista, voto distrital, voto distrital misto são sistemas existentes nas democracias consolidadas e que servem como referência para as discussões da reforma brasileira. Eu, particularmente, tenho simpatia pelo voto em lista, muito embora considere pertinentes as críticas que tal sistema sofre, sobretudo, pelo possível fortalecimento excessivo do poder dos caciques de cada partido. Estes podem determinar unilateralmente os nomes da lista, tirando do eleitor a possibilidade de escolher os parlamentares que serão eleitos. Dessa forma, sou favorável ao voto em lista, mas com ressalvas. Por exemplo: a democracia interna dos partidos deve ser um pressuposto, não uma prerrogativa de cada agremiação. A escolha dos nomes da lista deve vir, obrigatoriamente, em prévias partidárias. Ou ainda – proposta minha – o voto pode ser dado em dois turnos: no primeiro, escolhe-se os partidos, determinando-se o percentual de cadeiras que cada qual terá; no segundo, em voto facultativo, também os eleitores escolhem os nomes que preencherão as cadeiras.

Votando a Bolsonaro, o voto em lista traz a vantagem de o próprio partido ser impelido a defender todos os seus candidatos. Ou melhor, todos os companheiros de lista teriam a missão de defender todos os nomes da lista, numa estratégia “um por todos e todos por um”. Por extensão, veriam-se obrigados a extirpar da lista aqueles candidatos que prejudicariam sua própria eleição. Em síntese, a presença de Bolsonaro – considerando suposta rejeição causada por seu nome – dificultaria a eleição de todos os seus colegas de PP. Diferentemente de hoje, quando todos se beneficiam dos votos trazidos por quem quer que seja, aumentando a soma do coeficiente eleitoral.

Terceira conclusão: É preciso aproveitar o “momento Bolsonaro” para levar adiante a reforma política e discutir a proposta do voto em lista, com salvaguardas para que os núcleos duros dos partidos não se tornem castas intocáveis e poderosíssimas no sistema político.

A Comissão da Verdade

Por fim, diante de mais uma manifestação de desapreço pela vida e pela dignidade humana sob a forma de apologia da tortura, é preciso que a Comissão da Verdade seja, finalmente, constituída. Assim como ocorreu na África do Sul, por determinação de Mandela e sob a coordenação de Desmond Tutu – dois prêmios Nobel da paz –, na Espanha, Portugal e em outros países.

Não se trata de revanchismo ou coisa do tipo, mas de resgate da história e devida responsabilização do Estado e seus agentes para com famílias de pessoas cujas vidas foram covardemente ceifadas. Há um abismo entre o Brasil e outros países que passaram pela vergonha da ditadura. Na Argentina, por exemplo, até mesmo ex-presidentes foram punidos. Lá, a punição dos agentes da ditadura não é vista sob a ótica do revanchismo, mas da justiça – a propósito, recomendo o ótimo filme “O Segredo dos Seus Olhos”, ganhador do Oscar (recomendo também o documentário brasileiro “Cidadão Boilesen”). Seria difícil imaginar os argentinos impassíveis com o desdém de um deputado pela busca angustiante dos restos mortais de familiares, como verificado no desenho do cachorrinho, colado na porta do gabinete de Bolsonaro.

Falando nisso, aproveito para aplaudir ação do promotor Otávio Bravo, do Ministério Público Militar do Rio, que abriu investigação sobre desaparecimentos de pessoas durante a ditadura com a participação de agentes das Forças Armadas ou que tenha ocorrido dentro de suas unidades. Aplaudo, especialmente, a inteligência da tese defendida pelo promotor, que postula que os casos de desaparecidos devem ser considerados sequestro em andamento até a localização de eventual resto mortal ou de “evidências verossímeis” de que as vítimas foram soltas ou mortas. Em suma, trata os casos sob o fundamento das leis penais vigentes, driblando o eterno pretexto de que a Lei de Anistia protege “os dois lados”.

Concluindo: é preciso aproveitar o “momento Bolsonaro” para efetivar a Comissão da Verdade.

***

Conclusão geral: à parte a repugnância gerada por seu protagonista, o “momento Bolsonaro” pode ser bastante útil para se concretizar algumas medidas politicamente difíceis. No caso, a promulgação de lei que criminalize a homofobia, a abertura do processo da cassação do próprio deputado, a reforma política e a constituição da Comissão da Verdade.

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