terça-feira, 5 de abril de 2011

Levantes em nome de um mesmo Deus

Gilles Lapouge


O escritor francês André Malraux profetizou, há 30 anos, que o século 20 seria um "século religioso". Ele estava certo. A cada dia que passa, as matanças enlutam o mundo e, muitas vezes, nos damos conta de que, por trás das bandeiras políticas ou dos pretextos econômicos, encontramos o mesmo ator, Deus, ou antes, as efígies deletérias que vergonhosamente nos são apresentadas como representações de Deus.

O último episódio dessa triste época ocorreu no Paquistão, país muçulmano, onde recentemente tumultos ensanguentaram algumas cidades, como Mazar-i-Sharif e Kandahar, com um saldo de 20 mortos e centenas de feridos. Qual é o motivo?

Teremos de procurá-lo do outro lado do mundo, nos Estados Unidos, na Flórida, onde o pastor Terry Jones, que dirige a igreja Dove World, com apenas 30 seguidores, teve a ideia, cultivada há anos, de queimar em público o Alcorão, livro sagrado da religião islâmica.

Ele mostrou sua perseverança. Há alguns meses, preparou o que podemos chamar, em memória das piores páginas da Idade Média e do tempo das bruxarias, de seu "auto de fé". A prefeitura de Gainesville, da qual depende o pastor Jones, na realidade proibiu fogueiras na frente da igreja.

Jones refletiu e, finalmente, encontrou a solução: "o auto de fé" seria cometido no interior da igreja. O Alcorão resiste às chamas, mas precisou de dez minutos para se reduzir a cinzas.

Como resposta imediata, outros "autos de fé" acenderam-se do outro lado do mundo, no Paquistão muçulmano. Só que lá não foi papel que queimou, e sim corpos humanos. Em Mazar-i-Sharif, foi atacada a missão local da ONU: 20 mortos. No dia seguinte, em Kandahar, novamente foram atacados locais da ONU: três mortos, além de outros assassinatos, aqui e ali.

O pastor Terry Jones deve estar satisfeito: pôde constatar que suas ideias já não passam despercebidas. Ele se acalmará agora? De jeito nenhum. Começou a angariar dinheiro para ir mais longe em seu apostolado e organizar o julgamento público do Profeta Maomé.

No Paquistão, a cruzada antimuçulmana do pastor Terry Jones teve efeitos terríveis. Não apenas a morte de dezenas de inocentes, mas também a irritação dos sentimentos antiocidentais, que já são intensos no Paquistão, país tão próximo do Afeganistão e que sustenta sem admiti-lo o combate dos taleban contra as forças do Ocidente (americanos, franceses, britânicos...).

Manifestações relâmpago percorreram as grandes cidades paquistanesas, exigindo o fechamento das bases americanas na Ásia. O general americano David Petraeus, que comanda as forças aliadas no Afeganistão, definiu o gesto do pastor Jones como "detestável".

A guerra imunda travada durante um século na Irlanda entre protestantes e católicos, terminou, enfim, há alguns anos.

Imediatamente, as religiões reacenderam suas fogueiras em toda parte.

Nas torres de Nova York e em outros lugares, os islâmicos de Osama Bin Laden massacraram milhares de inocentes. Na Costa do Marfim, há um mês, os cristãos do sul (ligados a Laurent Gbagbo) matam os muçulmanos do norte (ligados a Alassane Ouattara), e os muçulmanos do norte degolam os cristãos do sul.

Se eu fosse Deus, o do Cristo, dos judeus ou dos muçulmanos, estaria realmente farto de todos esses fanáticos, de todos esses cretinos, do tipo Bin Laden ou Terry Jones, que me invocam e matam, enquanto eu peço que se amem.
Tradução de Anna Capovilla
* Publicado em O Estado de S.Paulo, em 05/04/2011.

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