Três artigos sobre a declarações de Xuxa ao Fantástico a respeito de abusos sofridos na infância.
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Eliane Cantanhêde
A ferida
O depoimento de Xuxa ao "Fantástico" é uma das peças mais contundentes da TV brasileira, porque ela é quem é e cutucou profundas feridas para tratar de um problema gravíssimo e bem mais comum do que se pensa: o abuso sexual de crianças e adolescentes. E onde deveriam estar mais protegidas: em casa e na escola.
"Eu tinha vergonha, me calava, me sentia mal, me sentia suja, me sentia errada", disse Xuxa, ao relatar que sofreu abusos do melhor amigo do pai, do homem que casaria com a sua avó e de um professor. Eles tinham a aura da autoridade, o acesso à casa e a confiança da família. Aproveitaram-se disso e da vulnerabilidade da menina Xuxa. Como enfrentá-los? Como desmascará-los?
Quem conviveu com pessoas que passaram por isso, em menor ou maior grau, sabe a explosão emocional que significa expor para uma irmã, uma amiga, uma psicóloga -imagine para milhões de pessoas- uma ferida que jamais cicatriza. E que, curiosa e invariavelmente, vem acompanhada desse sentimento desolador: o de culpa. Por que eu? Por que deixei? Por que não contei?
Porque era uma criança e, ainda por cima linda, à mercê de adultos aparentemente respeitáveis (um professor?!). E foi punida múltiplas vezes por esse "erro": pela violência, pelo pânico, pela vergonha, pela culpa e pelas consequências vida afora.
Xuxa talvez tenha aberto o coração em público para elaborar a própria dor e tentar entender, como disse, por que jamais teve um relacionamento estável e não conseguiu, ou não quis, se casar.
Mas talvez tenha feito também para que milhares, sabe-se lá se milhões, de meninas e meninos, de mulheres e homens, possam se livrar de um confuso sentimento de culpa embolado com a dolorosa sensação de solidão, de abandono.
Toda minha solidariedade, Xuxa, e meu respeito pelo seu ato de profunda coragem. O Brasil agradece.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 22/05/2012.
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Na violência sexual, silêncio é a atitude mais comum
Rosely Sayão
Quando o assunto é bullying, fazemos o maior barulho. Reportagens, colunas, palestras, orientações, conselhos, livros e mais livros.
Acreditamos que, adquirindo muita informação a esse respeito, nossos filhos ficarão mais seguros. Já quando o assunto é violência sexual contra crianças e adolescentes... silêncio é o que fazemos.
O constrangimento que sentimos em relação a essa situação é tamanho que preferimos ignorar o assunto ou, pelo menos, encontrar boas justificativas para isso.
Acreditar, por exemplo, que esse é um fato que não atinge famílias como a que pertencemos costuma ser uma delas.
Acontece. Em todo tipo de família, de todas as classes sociais, com crianças de todas as idades. E mais: em geral, são pessoas próximas, bem próximas à família que praticam tais atos.
Tios, avós, amigos íntimos da família, padrastos, vizinhos que partilham da intimidade da casa etc. São esses, entre outros, os personagens principais, segundo os estudos apontam, dos abusos sexuais contra os mais novos.
É um caso bem sério esse, principalmente quando nos lembramos de duas características de nosso mundo.
A primeira: os mais novos estão eroticamente hiperestimulados. Acham "normal" as cenas a que assistem nos canais de TV, as fotos que veem nas revistas e nos sites. Podem achar "normal" viver uma experiência desse tipo, portanto.
A segunda: nos tempos atuais, crianças e jovens não sabem mais que têm direito à intimidade. Aliás, eles nem sabem o que é isso.
Nos canais abertos, em horários que as crianças estão expostas à TV, há uma explosão de "reality shows". Eles não sabem, portanto, o que é intimidade.
Temos muitos motivos para não permanecer em silêncio quanto a assunto tão importante. Nossa questão é saber tratar do tema com a delicadeza que ele exige.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 22/05/2012.
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Claudia Antunes
Xuxa e Mano Brown
A entrevista de Xuxa que levantou a audiência do "Fantástico" ainda causa controvérsia. As reações variam entre os extremos de exaltação da coragem da apresentadora e de desprezo por um suposto golpe de marketing.
Xuxa pareceu sincera, mas foi pouco explícita sobre os abusos que sofreu. Além de mostrar a persistência de um personagem público infantilizado, essa lacuna pode comprometer o efeito de incentivar famílias e crianças a ficarem atentas e denunciarem violações do mesmo tipo.
Ela foi estuprada, foi apalpada? Os agressores demonstraram prazer, ameaçaram-na, disseram que estavam brincando? Onde as agressões ocorreram?
É possível que tal detalhamento fosse considerado impróprio ao horário nobre da TV. Mas pode ser mais difícil do que parece detectar e prevenir as várias formas de abuso sexual na infância. Todo contato físico entre pais e filhos, tios e sobrinhos, deve ser considerado suspeito?
O depoimento de Xuxa contrasta com o tom assertivo da entrevista de Mano Brown que a "TV Folha" exibiu também no domingo. Como sujeito ativo e não vítima, o líder do Racionais defendeu os 1.300 sem-teto que ocupam há cinco anos um edifício no centro paulistano.
Falou da mentalidade reacionária que, por exemplo, leva o Judiciário a uma interpretação estrita (e até anticonstitucional) do direito de propriedade. Nem juízes nem autoridades sentem-se compelidos a uma solução que mantenha as famílias "perto do hospital, do metrô, a cinco minutos do trabalho".
Que toda a sociedade não se dê conta de que ganharia com isso tanto quanto os sem-teto é prova de que, apesar do boom de consumo e de emprego, ainda estamos em transição, disse Brown. "O Brasil não sabe se é um país moderno ou se ainda está em 1964."
Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/05/2012.
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