sexta-feira, 25 de maio de 2012

Dois personagens à procura de uma história

Filha de guerrilheiros quer resgatar memória dos pais


Pedagoga vivia em Cuba e era apenas um bebê quando eles foram mortos
Ela chegou ao Brasil com documento falso e só começou a usar o nome verdadeiro com 26 anos de idade
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A CAMPINAS (SP)



Ñasaindy Barrett de Araújo, 44, sabe bem a diferença entre memória e lembrança. "Lembranças são as imagens do que vivi. Memória é o que aprendo do passado."

Sem lembranças de seus próprios pais, ela espera que a Comissão da Verdade a ajude a reconstruir ao menos a memória de quem eles foram.

Os pais de Ñasaindy (o nome quer dizer 'Claridade do Luar', em guarani), militantes de esquerda, apaixonaram-se em Cuba, então a meca da revolução mundial, e ela nasceu.

A menina era um bebê de poucos meses quando o pai e logo depois a mãe voltaram ao Brasil para fazer a revolução. E deixaram-na na ilha.

O pai, José Maria Ferreira de Araújo, era um jovem que havia participado do levante dos marinheiros e fuzileiros navais, em 1964, ainda antes do golpe militar. Expulso da Marinha, Araújo viajou a Cuba para aprender técnicas de guerrilha.

O regresso ao Brasil em junho de 1970 era para aplicar os ensinamentos. Não durou.

Embora seu corpo nunca tenha sido encontrado, camaradas dizem que, preso e torturado, ele morreu em setembro do mesmo ano.

A mãe de Ñasaindy, Soledad Barrett Viedma, foi personagem marcante na história da luta contra o regime dos generais. Herdeira de uma família de militantes comunistas, estudou marxismo na Universidade Patrice Lumumba, de Moscou.

Culta, linda, poliglota, poeta e grande entendedora de explosivos, teve destino trágico. Apaixonou-se por José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, um revolucionário como ela. Ao ser preso e torturado, ele bandeou-se para a repressão.

Delatada pelo namorado ao maior caçador de comunistas da época, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops de São Paulo, Soledad foi morta numa emboscada em Pernambuco em 1973.

Com ela morreram outros cinco militantes da Vanguarda Popular Revolucionária, a organização de esquerda que ela integrava.

Ñasaindy foi criada por uma exilada brasileira em Cuba, Damaris de Oliveira Lucena, que a adotou. Mas o clima da época não favorecia as lembranças.

Ai de quem fosse pego levando cartas de militantes procurados. A menina teve de se contentar em ver imagens da mãe e do pai apenas em fragmentos.

"Eu não tenho fotos onde apareçam os rostos deles [dos pais]. Todas as fotos eram tiradas apenas com os braços. Ou cortavam-se as que eventualmente tivessem rosto."

Percebeu que a mãe e o pai estavam mortos quando, enfim, penduraram um quadro com as fotos dos dois na casa em que vivia. Eles já não corriam riscos.

"Soledad era uma pessoa que eu tinha de amar porque era minha mãe. Por ela ser essa grande mulher que todos diziam que ela era. Mas ela não representava nada para mim, que nem a conheci".

Com 11 anos, depois de promulgada a Lei da Anistia, em 1979, Ñasaindy chegou ao Brasil. Como documento, apenas uma certidão de nascimento falsa, em que figurava o nome Ñasaindy Sosa del Sol. Ela também usava o nome da família adotiva: Oliveira Lucena.

Foi só em 1996, com 26 anos, que recebeu documentos com seu nome verdadeiro. Até aí ela se recusou a ter documentos sem os sobrenomes de seus pais.

A jovem conta que procurou insistentemente os familiares para formar uma imagem da mãe. "Fiz muitas perguntas. Primeiro, só pensava: puxa, por que ela me abandonou? Precisei entender a Soledad para perdoá-la e dizer: Eu entendo você. Entendo que o mal que você me fez era pelo bem da humanidade, do Brasil, sei lá".

Hoje, Ñasaindy é pedagoga e mãe de quatro filhos. Define-se como "de esquerda", mas não se diz socialista. Sobre o delator da mãe, o cabo Anselmo, afirma que nunca conseguiu odiá-lo. "Procurei muito esse sentimento em mim, mas não consegui."

Ñasaindy tem poucas esperanças de que Anselmo conte o que sabe.

"Como ela não desconfiou que ele era o traidor? Será que se ela tivesse agido mais com a razão, teria conseguido salvar os outros?" A expectativa é que essas respostas venham na história que a Comissão da Verdade levantará.

***

Vítima de bomba também espera receber reparação


Corretor teve a perna amputada em atentado contra consulado americano
Sonho de trabalhar como piloto de aviões teve que ser abortado; ele já ganha R$ 700 por mês como indenização
LAURA CAPRIGLIONE
DA ENVIADA A SANTOS



Em 19 de março de 1968, a ALN (Ação Libertadora Nacional), dissidência armada do Partido Comunista Brasileiro, que lutava contra o regime militar, colocou uma bomba na entrada do estacionamento do Conjunto Nacional, em plena avenida Paulista (centro de São Paulo).

Orlando Lovecchio Filho, então com 22 anos, que não era nem americano, nem um gorila da repressão, mas um cara "apolítico, que curtia iê-iê-iê, carros e aviões", como se define, perdeu parte da perna esquerda.

"Meu consolo foi pensar no Roberto Carlos", ele revela.

Criado em Santos, Lovecchio tinha acabado de aterrissar em São Paulo. O pai o mandara para a capital a fim de cuidar dos negócios da família, que lidava com navegação marítima.

Ele arrumou um apartamento perto da Paulista. Como o prédio não tinha estacionamento para o possante automóvel DKW -"todo preparado no departamento de competição da fábrica"-, Lovecchio alugou uma vaga no Conjunto Nacional, então endereço do Consulado Americano em São Paulo.

Era 1h30 do dia 19, avenida vazia, lojas fechadas, consulado idem, quando o DKW desceu a rampa do estacionamento. Lovecchio estava com um primo e um amigo de Santos, que o visitavam.

Um cano tampado com papel kraft. Saída do prédio. Fumacinha. Acabam aí as lembranças. Lovecchio não ouviu nada, não viu clarão.

Quando acordou, estava deitado no chão, cercado por pessoas perguntando-lhe isso e aquilo. Achou estranho que a sola do sapato estivesse "olhando" para ele.

Os jovens foram os primeiros suspeitos do atentado. Nos jornais dos dias seguintes, a polícia avisava: a explosão podia ser um"acidente de trabalho". Os três do DKW entraram na mira da Polícia do Exército e do Dops.

Internado no Hospital das Clínicas, Lovecchio lutou para controlar a infecção na perna dilacerada. Os pais dele recusavam-se a aceitar a hipótese de amputação. "Mas já estava gangrenando."

Lovecchio lembra-se: "Eu frequentava quase todo domingo o programa da Jovem Guarda. E o cara mais importante da Jovem Guarda, o Roberto Carlos, era amputado. Ele era uma pessoa querida, amada mesmo. E sofreu o mesmo tipo de amputação que eu teria de fazer."

Segundo Lovecchio, foi dele a autorização: "Amputa essa perna e acabou."

Lovecchio tinha brevê para pilotar pequenos aviões, mas estudava para comandar aeronaves maiores.

"Quando eu perdi a perna, perdi o sonho junto. Porque a pilotagem de um avião de grande porte exige movimentos das pernas e dos pés. Na ponta dos pés, controla-se o leme. Nos calcanhares, controlam-se os freios", diz.

Foi só em 1992 que, enfim, Lovecchio descobriu quem tinha colocado a bomba que roubou sua perna. Em uma entrevista à Folha, o artista plástico, arquiteto e professor de história da arte Sergio Ferro admitiu ter sido um dos três autores do atentado ao consulado. "A bomba era contra o horror no Vietnã", disse na época o artista.

Lovecchio jura que não tem ódio dos que colocaram a bomba no Consulado. Na hipótese de se encontrar com Ferro, abordaria o artista da seguinte forma: "Oi, Sergio, tudo bem? Você se lembra do que você me fez? Eu continuo aqui, correndo atrás."

O corretor casou-se, teve um filho, separou-se e hoje vive com a mãe em um confortável apartamento defronte ao mar, em Santos. Namora uma executiva.

Considera-se exceção entre as vítimas conhecidas do período. "Sou o único que foi atingido sem ter nada a ver com aquela guerra." Ele exige reparação pelo que passou. Atualmente, Lovecchio recebe cerca de R$ 700 por mês, a título de indenização. Mas quer ser reparado pela carreira que perdeu (a de piloto). "Como já acontece com os anistiados", lembra.

Sobre o fato de o Brasil ter hoje uma presidente como Dilma Rousseff, que integrou organizações de esquerda armada, diz que "esta é a prova de que no Brasil hoje em dia todo mundo pode alcançar o poder sem violência."

Da Comissão da Verdade, espera que ajude a contar também a história das pessoas comuns como ele, que foram atingidas pela violência.


Publicado na Folha de S.Paulo, em 20/05/2012.

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