segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Questão: mensalão, balanço final

Nada no processo desdiz a atuação de José Dirceu na compra de votos

Marcelo Coelho



Sem ter formação em direito, e estando exposto -como quase todo mundo- a muitas dúvidas factuais e falhas de memória ao longo do processo, tento resumir aqui algumas impressões sobre o que aconteceu nas sessões do mensalão.

Quando começou o julgamento, meu palpite era o de que José Dirceu seria absolvido. Provas gritantes contra ele não existiam, e pouco tempo antes o tribunal sequer aceitara a denúncia contra o ex-ministro Palocci na violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo -um caso em que, para usar um termo da moda, os "indícios" eram dos mais veementes.

A composição do tribunal mudou de lá para cá; dois dos recém-chegados, Rosa Weber e Luiz Fux, deram sinal desde o início que não tinham nenhuma disposição para atuar conforme os interesses do PT.

Também a composição do próprio PT, ou melhor, do núcleo do poder petista no governo federal, havia mudado. Dilma Rousseff, querendo ou não, foi beneficiária do fato de José Dirceu ter caído em desgraça durante o governo Lula.

Ocupou seu cargo na Casa Civil -e a administração lulista começou a deslanchar a partir daí. Não fosse o escândalo, talvez José Dirceu fosse o atual presidente da República. O "novo PT", mais técnico, fortaleceu-se com Dilma.

Para os que não se conformam com as decisões do STF, a contrapartida disso terá sido o surgimento de uma corte "menos técnica", justamente, do que seria de esperar.

Invocou-se com frequência a tese de que, no julgamento, fora invertido o chamado "ônus da prova". Era o acusado quem tinha de provar sua inocência, e não o acusador quem tinha de provar a culpa.

Uma certa "flexibilidade" na análise dos autos foi defendida, conforme o momento, por ministros como Luiz Fux, Marco Aurélio Mello e Rosa Weber.

A ideia é que, em crimes altamente sofisticados, os arquitetos da trama sabem perfeitamente ocultar os sinais de sua participação direta.

Difícil discordar dessa tese, tomada em abstrato. No caso concreto do mensalão, é bom senso dizer que Delúbio Soares ou Silvio Pereira não poderiam ter tomado sozinhos a iniciativa da trama.

Pode o bom senso, a suposição sensata, justificar uma condenação? Por maiores que fossem as dúvidas, na minha opinião quem as dissipou foi o ministro revisor, Ricardo Lewandowski.

Seu voto pela absolvição de José Dirceu foi uma catástrofe argumentativa. Invocava, como aliás a defesa tinha feito, numa óbvia manobra protelatória, testemunhas e mais testemunhas, colhidas nos quatro cantos do país.

A "prova testemunhal" em favor de José Dirceu não convencia. Não apenas porque vinha de pessoas comprometidas com o esquema petista. Mas também porque não desdiziam as acusações.

Uma coisa seria se alguém contasse ter testemunhado a fúria de José Dirceu contra Genoino ou contra Delúbio, suas tentativas de vetar encontros com Marcos Valério, conversas que dessem a entender seu desacordo com o esquema. Aí teríamos uma "prova testemunhal" eloquente, embora vinda de "companheiros", políticos, etc.

Nada veio desdizer, de fato, aquilo que era razoável acreditar: a atuação de José Dirceu na compra dos votos.

E por que não? Do ponto de vista político, talvez Dirceu achasse até mais legítimo, e mais "limpo", ajudar financeiramente alguns mequetrefes do Congresso em vez de ser obrigado a fatiar a administração pública em benefício dos chefões do PTB ou do PMDB.

A reação de Roberto Jefferson, ao denunciar o esquema, foi mais do que um modo de "desviar as atenções". Tratava-se de preservar, para as cúpulas partidárias, o domínio sobre deputados evidentemente venais. O que seria dos presidentes desses partidos se o governo "atravessasse" o caminho, pagando migalhas a cada votação?

O método do mensalão saiu perdendo, em benefício do esquema tradicional: distribuição de cargos, a partir de indicações feitas pelos chefes dos partidos aliados.

Qualquer que fosse o meio utilizado, sem dúvida a desmoralização do PT se consumou. Deixou de ser o partido que propunha uma "nova forma de fazer política", e um vigilante da moralidade pública, para defender-se dizendo que não faz mais do que todos os outros.

E ainda esbraveja, mais do que os outros, quando é denunciado. Usa a antiga arrogância, e uma ideologia que já aposentou em todos os outros campos, para se dizer perseguido pelas classes dominantes. Com essas e outras, Joaquim Barbosa se torna "burguês" e Maluf, um "companheiro de jornada".

Alianças "necessárias" com o que há de pior se tornaram rotina. Não se sabe como torná-las menos "necessárias" do que são. O que seria possível com eleitores mais conscientes, sem dúvida. O poder tem pressa, entretanto.

A questão é saber se, a partir de agora, o "necessário" -corrupção, fisiologia, alianças espúrias- vai continuar a ser fácil. A margem de manobras para a ilegalidade diminuiu um pouco, e esse é o principal ganho de todo o processo.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/11/2012.


* * *

O que sobrou deste julgamento, jurídica e politicamente?

Joaquim Falcão


O que sobrou desta inédita, e ao vivo, batalha ética, jurídica e política? De pressões e contrapressões no Supremo? De teses jurídicas que se anulavam? De ministros que discutiam, debatiam-se e concordavam? Que falavam para a opinião pública e pretendiam não ouvi-la? De um processo penal de caminhos certos e alguns incertos?

O que sobrou de um PT reclamante e reclamado? De um PSDB ausente e com medo? De um ex-presidente Lula falando nas sombras e de uma presidente Dilma assistindo de longe? De leitores, internautas, telespectadores jamais tão mobilizados?

Envoltos na pergunta sideral: condenar ou absolver? Quem? Quando? A quantos anos? Afinal, o que sobrou?

Quando a Folha identificou conflitos na base aliada, e Roberto Jefferson correu seu risco maior e tudo denunciou, praticou-se a liberdade de expressão e de imprensa.

Quando o Congresso instalou CPIs do Bingo e dos Correios, testemunhas falaram e parlamentares exerceram a independência do Congresso.

Quando no Ministério da Justiça sob Márcio Thomaz Bastos a Polícia Federal livremente investigou e o Ministério Público Federal sob Antônio Fernando e Gurgel agiu, praticou-se a autonomia das instituições encarregadas de vigiar e punir.

Quando o processo foi distribuído por sorteio ao ministro Joaquim Barbosa, o STF reafirmou o princípio do juiz natural e assegurou a neutralidade do julgar, indispensável ao estado democrático de direito.

Quando Barbosa propôs a abertura do processo penal, buscou a coragem da verdade. Na decisiva sessão, a imprensa flagrou o infeliz diálogo de laptops entre ministros e impediu que as investigações fossem arquivadas. E que a impunidade prevalecesse.

Quando afinal o ministro Ayres Britto decidiu decidir, e colocou em pauta o julgamento, o Supremo escapou de sua tradicional inércia diante da improbidade administrativa e da corrupção. Assumiu seu poder de decidir por último.

Quando os advogados tudo fizeram para proteger seus clientes, exerceu-se o direito de defesa e dignificou-se a advocacia. Quando o ministro Lewandowski optou por acatar argumentos da defesa e se posicionar contra o relator, exerceu seu direito de livre convencimento, sem o que julgamento imparcial não há.

Quando me perguntaram, não mais sobre absolvidos ou condenados, dosimetrias ou empates, mas se nossas instituições do estado de direito democrático estavam estáveis e funcionando, respondi que sim. Foi o que sobrou.

Mas será que o que sobrou é bastante? Não sabemos. Este julgamento foi sobre pessoas que agiram individualmente e foram julgadas individualmente. Mas estavam juntos a serviço de algo maior: de uma política de governo que usa agentes políticos, banqueiros, empresários, publicitários.

De uma política de governo que usa o público e o privado, a lei, o contrato e os partidos políticos para ameaçar a democracia. A democracia começou a se defender. Será o bastante?


JOAQUIM FALCÃO é professor de direito constitucional da FGV Direito-Rio

Publicado na Folha de S.Paulo, em 13/11/2012.

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