Janio de Freitas
Tardou, mas o espetáculo do mensalão enfim abriu a semana com a promessa de justificar as atenções recebidas e, até então, pouco retribuídas.
Ainda sem considerar os demais fatos que logo agitariam o ambiente do julgamento, o ministro Marco Aurélio Mello deu a sua contribuição: é preciso rever o mecanismo adotado para o julgamento, sob pena de que uma situação caótica e longa resulte da soma de cansaço, votos complexos e extensos (dois se anunciam com mais de mil páginas) e a confusão das sentenças variadas.
Se houvesse alguma dúvida de que o sistema adotado não é sensato, para condená-lo bastaria atentar para as muitas fotos de magistrados sucumbindo às sonecas.
Também desse ponto de vista, à parte o discutível fundamento jurídico, a recusa ao desmembramento do processo levou a um acúmulo absurdo de documentos, manifestações orais de defesa, relatórios e revisões enormes, e uma grande balbúrdia indomável de fatos, ficções, deduções e contestações. Tudo em fartos plurais.
É muito duvidoso que os 11 ministros possam atravessar esse cipoal até chegar a sentenças seguras e sem ressalvas no seu sentido de justiça.
Mas o que corrigir e como fazê-lo, a esta altura, é um problema sem proposta de solução. Apesar das informações de que a inquietação alcança todos os ministros.
Contribuição inesperada para o novo clima, o delegado Luís Flávio Zampronha, responsável pelo inquérito do mensalão na Polícia Federal, atribui ao processo limitações que deixam práticas graves, e respectivos autores, fora do julgamento do Supremo Tribunal Federal ou em situação atenuada.
A Polícia Federal é dada, em particular nos períodos eleitorais, a procedimentos mal explicados. É mais um caso desses: por que só agora o delegado decide falar da exclusão de fatos gravíssimos?
Zampronha não ampara suas afirmações nem apenas em exemplos de uma ou outra prática apurada. Ainda assim, o que diz não poderia passar sem atenção imediata e efetiva do procurador-geral da República.
Até porque alguma comprovação do que Zampronha diz, sobre extorsão e venda de informações, pode produzir agravantes em muitos aspectos do processo em julgamento no STF.
Por sua vez, o brilhante ex-juiz e advogado Luiz Francisco Corrêa Barbosa, defensor de Roberto Jefferson, lançou teses em todas as direções, inclusive na que declara a invalidade do processo do mensalão.
Ao afirmar que Lula "ordenou" o sistema do mensalão, porém, sua eloquência fértil e firme faltou com alguma sustentação factual, indispensável em acusação de tamanha gravidade.
Mas a face jurídica de suas teses e a arte ao apresentá-las venceram o tédio dos ministros e dos espectadores lá e fora.
Por fim atentos, todos, para uma defesa que também atingiu o procurador-geral e acusador Roberto Gurgel. Neste caso, atingiu em cheio.
Mesmo que o restante da semana seja frustrante, o seu começo deixou marcas que não se apagarão no restante do julgamento. Nem depois, talvez.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 14/08/2012.
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A lei, para amigos e inimigos
Janaina Conceição Paschoal
Propaga-se a ideia de que os réus, no processo do mensalão, tiveram garantias desrespeitadas, foram cerceados em suas defesas, acusados por meio de denúncia inepta, não sendo raro ler que estão submetidos a um tribunal de exceção.
Independentemente de haver ou não prova suficiente para a condenação, alguns esclarecimentos precisam ser feitos.
A denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal é clara e responsável, na medida em que procura atribuir a cada um dos envolvidos a sua parcela de culpa, tomando o cuidado de estabelecer núcleos de atuação.
Tivesse o órgão acusador realmente adotado a teoria de que os líderes da organização criminosa respondem por todo e qualquer crime por tal organização praticado, certamente os principais réus, além de serem acusados por corrupção ativa, quadrilha e peculato, teriam sido denunciados por lavagem de dinheiro e evasão de divisas, pois, ao estruturar a organização, sabiam como o suposto esquema iria funcionar.
Igualmente parcimonioso foi o STF ao rejeitar algumas das imputações já no momento do recebimento da denúncia. Na maior parte dos processos criminais, o magistrado recebe a denúncia em sua íntegra para ao final dizer se absolve ou condena.
O fato de ter recusado parte das imputações no nascedouro da ação mostra que o STF não está julgando com ira, com gana de condenar ou de dar respostas à sociedade.
Também não procedem as ilações de que os réus estão tendo menos condições de defesa que outros acusados. É justamente o contrário.
A ação penal referente ao mensalão tramitou por um bom tempo, todos os requisitos previstos na lei e no regimento estão sendo observados. E aos acusados foram garantidos meios de defesa que a maior parte dos réus, no Brasil, não consegue.
Cito como exemplo o fato de terem obtido a expedição de carta rogatória para ouvir testemunhas de defesa no exterior. A lei assegura tal direito, mas dificilmente outros acusados conseguem ter deferido o mesmo meio de prova.
É insustentável a alusão de que o ministro relator, Joaquim Barbosa, estaria impedido de presidir a ação penal por ter conduzido o inquérito.
Procedesse esse argumento, todas as ações originárias estariam sob suspeita, e todos os casos em que houve quebra de sigilos se tornariam nulos, pois as decisões mais interventivas, durante qualquer investigação, são tomadas pelo juiz que normalmente preside a ação penal subsequente.
O foro privilegiado, como o próprio nome diz, a vida toda foi tido como uma benesse. Agora, estranhamente, passa a ser apresentado como sinônimo de tortura.
Se a ação referente ao mensalão for nula e se as cortes internacionais precisarem intervir em prol dos réus, todos os outros processos criminais em trâmite no país devem ser imediatamente encerrados.
Que a defesa precise usar algumas figuras de linguagem, ao apresentar suas teses, é compreensível. Difundir, entretanto, que a maior corte do país está procedendo a um julgamento de exceção constitui desrespeito com o STF e com o Brasil.
JANAINA CONCEIÇÃO PASCHOAL, 38, advogada criminalista, é professora livre-docente de direito penal na USP
Publicado na Folha de S.Paulo, em 10/08/2012.
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Respeitável público
Antônio Carlos de Almeida Castro e Pedro Ivo Velloso Cordeiro
"As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais"
Fernando Pessoa
No premiado documentário "Arquitetura da Destruição", Peter Cohen defende que o nazismo só foi palatável para a população por ter sido apresentado como um projeto de embelezamento do mundo. Retratando Hitler como artista frustrado, Cohen argumenta que o intento destrutivo do nazismo se fundou em uma poderosa estética, impulsionada por uma eficiente propaganda.
Não se quer aqui taxar ninguém de nazista ou comparar alguém a Hitler. Busca-se mostrar, pelo exemplo extremo, o poder destrutivo da estética.
Ultimamente, tem se visto que algumas acusações, na boca de delatores ou formalizadas em denúncia, procuram sofisticar a sua narrativa e emprestar-lhe uma organização e beleza fora do comum. As acusações são recheadas de adjetivos. O fato tido como criminoso é guarnecido de uma série de estruturas, núcleos e funções, em um desenho perfeito.
Para esse acusador, o regozijo é maior quando não há provas, pois assim ele terá grande espaço para o seu design. Terá liberdade para conceber e desenhar o que considera a parte oculta do iceberg. Nessa parte oculta, dá vazão a todo o seu projeto de embelezamento ou frustração por não ser um artista de sucesso.
O "mensalão" é o maior exemplo dessa nova modalidade de design. A acusação não se limitou ao que há de efetivamente tangível no caso: operações financeiras entre partidos políticos e instituições financeiras. O toque estético foi dado por um pretenso delator, que, não por coincidência, é um cantor frustrado.
Do que havia de concreto, erigiu-se um enredo belo e palatável para o público, embora falso, criado: o pagamento sistemático, organizado e mensal para parlamentares. O melhor propagandista e marqueteiro não escolheria nome melhor e mais ao gosto da população: "mensalão".
Já do acusador público esperava-se sobriedade. Afinal, ele estava lidando com um fato envolto em uma disputa política, destinada a desmoralizar um partido, como reconheceu recentemente o próprio delator.
O que se viu foi justamente o contrário. O acusador público tomou gosto pela arte do escândalo e sofisticou a estética da acusação, qualificando-a como "sofisticada organização criminosa", "profissionalmente estruturada" em "núcleos". Expressões como "engrenagem criminosa", "organograma delituoso", "engenharia criminosa" conferiram ar monumental à acusação.
O "grand finale" veio com as alegações finais, um memorial e uma sustentação oral proferidas já por outro acusador público. O ponto em comum dessas manifestações foi o gosto pela adjetivação. O edifício artístico passou a ter uma pomposa qualificação: o "mais atrevido e escandaloso caso de corrupção do Brasil".
Poucos não reconheceriam que estética e marketing foram fundamentais para o sucesso do projeto político destrutivo do pretenso delator. O que poucos têm ressaltado é que também os acusadores públicos buscaram empregar uma bela arquitetura e um cativante enredo para o sucesso de público de sua tese.
O STF fará um julgamento técnico, não estético. Pensando no público, o acusador deve ter linguagem sóbria, clara, comedida e prosaica. Os fatos da vida merecem ser retratados com a mais sofisticada estética. Todavia, quando se pede a condenação de pessoas, não deve haver espaço para a estética, sob pena de se tornar o processo um jogo cruel.
Caro leitor, caso você se depare com uma acusação muito organizada, bela e sofisticada, suspeite! Você pode estar lidando com um artista frustrado ou um acusador arquitetando a destruição de alguém.
ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, 54, e PEDRO IVO VELLOSO CORDEIRO, 28, são advogados criminais e defendem Duda Mendonça e Zilmar Fernandes na ação penal 470
Publicado na Folha de S.Paulo, em 14/08/2012.
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