quinta-feira, 26 de julho de 2012

QUESTÃO: Comércio de armas pelo Brasil




A transparência opaca
Janio de Freitas

A Presidente Dilma Rousseff está sob o risco iminente de perder o direito moral de cobrar transparência, como princípio e exigência do seu governo, a quem quer que seja. O Brasil faz uso, neste momento, de uma falácia primária para opor-se, em reunião da ONU, a um acordo que estabeleça transparência nas exportações de armas.
A política externa proclamada pelo governo, e fiel ao que se entende como índole brasileira, é contrária a confrontos armados entre nações ou como solução de dissensões internas. Logo, não pode favorecer a realidade de que a busca dos altos lucros da exportação sigilosa de armas, além de ser o sustentáculo de ditaduras sanguinárias, está na raiz das matanças de populações civis, condenadas pelo Brasil -na europeia Bósnia, no Oriente Médio, nas infindáveis guerras da África, na Ásia, agora mesmo na Síria.
O argumento do governo brasileiro na reunião da ONU, destinada a tentar um Tratado sobre Comércio de Armas, foi transcrito, no essencial, pelo repórter Rubens Valente (Folha de domingo): a transparência das exportações de armas "poderia expor os recursos e a capacidade dos países [...] de sustentar um conflito prolongado".
Mas a capacidade bélica de um país depende do seu arsenal e da relação entre qualidade e quantidade de suas tropas. Um grande exportador pode ter arsenal insignificante, dando prioridade aos lucros do comércio legal ou não, e descuidar daquela relação.
Da mesma maneira, baixa ou nenhuma exportação não significa que um país não produza armas e não tenha Forças Armadas bem equipadas e preparadas. E ainda há os que têm "capacidade de sustentar um conflito prolongado" com armamento importado às claras, o que parece ser o caso, na América do Sul, da Venezuela, por exemplo.
O argumento brasileiro é falso. Porque infundado e porque adotado para esconder o fato de que o Brasil exportador de armas está envolvido em monstruosidades que finge condenar. O trabalho excelente de Rubens Valente revela que o governo de Fernando Henrique Cardoso autorizou a produção e venda de bombas de fragmentação ao Zimbábue do ditador Robert Mugabe.
Ou seja, a uma ditadura sanguinária, conduzida por ideias psicopáticas como a da necessidade de exterminar os brancos, remanescentes da antiga Rodésia. E ainda algumas das tribos locais.
As bombas de fragmentação são proibidas por acordo internacional: não têm alvo preciso, desabrocham no ar em milhares de bolas de aço que atingem a população civil em áreas imensas. Israel foi acusado de lançar tais bombas sobre a população palestina de Gaza, e, se o fez, o acusado de produzir e exportar as bombas foi o Brasil. Cujo governo posou de contrário aos ataques à população palestina.
Os mutilados por pisar inadvertidamente em mina camuflada, resto de algum conflito estúpido, compõem uma tragédia africana que tem comovido o mundo. Crianças, em geral, esses mutilados são os que escapam da mortandade feita pelas minas deixadas no chão de vários países. Em grande parte das minas recuperadas, graças sobretudo a entidades de benemerência europeias, está preservada a inscrição: "Made in Brazil".
Podemos ostentar um orgulho internacional: nós também temos nossos criminosos de guerra. Gente que não escaparia no Tribunal Penal Internacional de Haia, por fomentar a morte de populações civis inocentes, e com isso lucrar fortunas.
É a esse Brasil opaco que a falta de transparência dá proteção. Como sua continuidade permitirá que a Rússia arme Bashar al Assad, e os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, e o Brasil também, façam o mesmo pelo mundo todo.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 24/07/2012.

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Armas do Brasil
Matias Spektor

Negocia-se esta semana na ONU um Tratado de Comércio de Armas. É a primeira tentativa de regulação do lucrativo mercado global de armamentos.
O texto ora negociado afeta em cheio os interesses do Brasil emergente. Trata-se de uma área em que campeões da indústria estão em franca via de internacionalização. Além das gigantescas Embraer e Odebrecht, existe a Taurus, maior fabricante mundial de armas curtas. Exporta para 44 países, detém 20% do mercado de pistolas nos Estados Unidos e espera um lucro bruto para este ano de R$150 milhões de reais. Ainda entram na lista Avibrás (veículos não-tripulados e foguetes), Mectron (mísseis), Helibrás (helicópteros) e Companhia Brasileira de Cartuchos (munições). A Condor vende 100 produtos de "tecnologias não-letais".
Essas empresas preferem um tratado minimalista. Não querem explicar publicamente suas vendas nem revelar a lista de clientes. Tampouco enfrentar questionamentos caso suas armas sejam utilizadas para desestabilizar uma região, violar direitos humanos, fomentar o crime transnacional e o terrorismo, ou atrapalhar o combate à pobreza. Isso é compreensível - elas querem fazer negócio.
Assim, o governo brasileiro trabalha para deixar o tratado livre de mecanismos intrusivos. Nem precisa fazer força para isso - há muitos países dispostos a fazê-lo em seu lugar. Irã, Síria, Cuba, Venezuela e Paquistão têm a dianteira. A Índia joga no mesmo time; muitas vezes, os Estados Unidos também. Na sexta-feira, estará provavelmente garantido o triunfo total da posição brasileira.
Em Brasília fomenta-se o êxito dessas indústrias, que geram divisas e empregam milhares de pessoas em áreas de alta tecnologia. Daí a lei de março passado, que outorga crédito fácil e isenção de PIS/Pasep, Cofins e IPI.
Ninguém no governo questionou a Avibrás por vender 18 sistemas de "bombas cluster" para a Malásia, a Mectron por seus 100 mísseis anti-radar para o Paquistão ou a Condor por sua exportação de gás lacrimogêneo para a Síria de Bashar al-Assad. O tema simplesmente não está na agenda, e todos os incentivos de hoje apontam para mais do mesmo.
Entretanto, há uma pequena ameaça no horizonte. Grandes indústrias de armamento europeias e americanas começaram a ajustar sua posição. Como elas enfrentam controles cada vez mais estreitos para suas exportações, buscam meios de moldar o novo ambiente regulatório em benefício próprio.
Segundo elas, um tratado internacional decente seria bom para quem quer ganhar dinheiro. Criaria um controle de qualidade parecido à ISO, padronização de produtos comandada pelo setor privado que facilita a abertura de mercados.
Também estabeleceria códigos de conduta comuns, algo valioso em mercados cheios de clientes de caráter duvidoso, onde uma venda inapropriada pode ferir o interesse de acionistas e macular a reputação das empresas e de países.
Se essas regras pegarem e nossa indústria continuar apostando contra a transparência, todos perdem. Sobretudo o cidadão brasileiro, que é obrigado a custear um negócio sobre o qual ninguém o consultou.
Publicado na Folha de S.Paulo, em 25/07/2012.
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De Saddam Hussein@org para Dilma@gov
Elio Gaspari

Estimada presidente Dilma Rousseff,
Outro dia jantei com o Che Guevara e o Laurent Kabila, aquele presidente do Congo que foi assassinado em 2001. A senhora deve se recordar que o Che andou pela África e deu-se mal.
No meio da conversa Che perguntou-lhe se era verdade que em 2001 o Robert Mugabe, o soba do Zimbábue, tinha ajudado sua facção na guerra civil congolesa repassando-lhe bombas incendiárias e de fragmentação fabricadas no Brasil. Ele desconversou. O Che ficou perplexo, imaginou Lula vendendo esse tipo de armas para africanos. São bombas que incendiam a mata ou, ao explodir, soltam dezenas de milhares de esferas de aço. Destinam-se a matar indiscriminadamente combatentes e civis. Como um jornalista chamado Rubens Valente achou um pedaço dessa história, resolvi escrever-lhe, pois não quebrarei o sigilo do que se aprende por aqui. Ele contou que o Brasil vendeu 726 bombas ao Mugabe. Faturou US$ 5,8 milhões para matar africanos miseráveis. Eles morreriam nas rebeliões congolesas ou no próprio Zimbábue. Dias depois o Che me procurou, explicando que o negócio não foi feito pelo Lula, mas por Fernando Henrique Cardoso. Estava de alma leve, mas esse Guevara é um sonhador. Ele não sabe das coisas do mundo.
Eu sei, presidente Dilma, e sei que a senhora está abrindo o cofre do BNDES para o que acha que será o reerguimento da indústria bélica brasileira. Sete grandes empreiteiras já se habilitaram num programa de incentivos e, novamente, a Federação das Indústrias de São Paulo alavanca o projeto. No varejo, já se acharam bombas de gás lacrimogênio brasileiras no Bahrein e na Turquia (jogadas contra refugiados sírios).
Isso vai acabar mal. Eu vi como acabou a última iniciativa do gênero, ocorrida entre os anos 70 e 80. Os brasileiros viraram piada. Nós trocaríamos petróleo por armas e compramos blindados leves e algumas baterias de foguetes. A senhora acredita que em 1979 um industrial paulista foi a Bagdá e ofereceu tecnologia nuclear para a minha bomba atômica? Eu disse a um embaixador brasileiro que o moço não devia vender o que não tinha. Quase dois anos depois vocês voltaram a mesma história, mais um míssil capaz de transportar a bomba. Deu em nada, até porque os sionistas bombardearam meu reator e deram um tranco num poderoso general brasileiro. O Muammar Gaddafi me contou que o mesmo paulista vendia-lhe blindados e queria fabricar um tanque, acho que se chamava Osório, financiado pelos sauditas. O "reis dos reis" sabia que, se a casa de Saud financiasse uma arma, seria para matá-lo. Procure saber quanto essa operação custou. Durante minha guerra com o Irã vocês me ofereciam blindados e queriam vender metralhadores para o aiatolá. Pode? A única vítima dessas aventuras foi um jornalista brasileiro. Ele se chamava Alexandre von Baumgarten. Falou demais a respeito de uma pasta de urânio que nós compramos em 1981. No ano seguinte foi passear de barco, encontrou uma lancha com amigos, convidou-os para um copo e foram metralhados. Ele, a mulher e o barqueiro.
O homem da bomba faliu, e vocês tomaram um calote de US$ 200 milhões.
Respeitosamente,
Saddam Hussein.

Publicado na Folha de S.Paulo, em 25/07/2012.

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