Rogério Cezar
de Cerqueira Leite
A afirmativa de que os fins justificam os
meios sempre foi vista como antiética. Todavia, em nosso cotidiano, vemos
exemplos claros dessa prática, que não censuramos.
Quando Fernando Henrique Cardoso foi pela
primeira vez eleito presidente, José Serra, então seu fiel escudeiro,
perguntado por um repórter se estaria preocupado com a
"governabilidade", respondeu que não, pois dispunha-se de 20 mil
cargos.
Entenda-se que estes cargos seriam
distribuídos para obter governabilidade, o que significa apoio no Congresso, em
votações que fossem de interesse do Executivo. Ou seja, governabilidade por
distribuição de cargos não seria apenas um eufemismo para compra de votos?
Um desses cargos sem concurso corresponde a
um salário entre R$ 5.000 e R$ 15.000 por mês, digamos uma média de R$ 130 mil
por ano. Os 20 mil cargos durante um mandato de quatro anos somam R$ 10
bilhões. Frente a tal valor, o total do mensalão é uma ninharia.
Ora, o professor José Serra estaria dizendo
que dispunha dessa imensa quantia de dinheiro público para comprar
governabilidade -ou seja, apoio em votações de interesse do governo. Será que
isso é diferente, em sua essência, da compra de votos como interpretada pela
STF no caso do assim chamado "mensalão"?
Uma outra forma generalizada de "compra
de governabilidade" é através das chamadas emendas parlamentares.
Consideremos para ilustração o seguinte exemplo: ainda no primeiro mandato de
Fernando Henrique, foi formada uma comissão mista do Congresso para aprovar o
contrato que suportaria a implantação do "Sivam" (Sistema de
Vigilância da Amazônia).
Fui escalado para representar a oposição ao
projeto. O contrato com o Eximbank que forneceria e forneceu os recursos
atribuía ao Brasil apenas a responsabilidade das obras civis, conferindo às
indústrias dos Estados Unidos e da Europa a confecção de todos os equipamentos,
embora já existisse uma indústria nascente brasileira no setor.
A intenção de sonegação de transferência de
tecnologia para o Brasil ficava óbvia em um artigo do contrato que dizia que se
qualquer equipamento não pudesse ser produzido nos Estados Unidos, ele poderia
ser encomendado em qualquer outro país, exceto o Brasil.
Essa obscenidade teria sido suficiente para
que qualquer parlamentar com um mínimo de patriotismo, para não dizer
dignidade, repudiasse a proposta americana.
Pois bem, o projeto foi aprovado sem
objeções. Na semana seguinte, a Folha publicou a relação de emendas
parlamentares liberadas imediatamente após a votação e os respectivos nomes dos
congressistas que tinham votado favoravelmente.
O único critério para as ditas liberações
foi, inquestionavelmente, o voto favorável, ou seja, votos foram comprados com
dinheiro público.
Esses e outros múltiplos dispositivos,
igualmente inquinados, são generalizadamente adotados igualmente por impolutos
e ímpios políticos no Brasil. Apenas não são tão explícitos como aquele do dito
mensalão, pois sabem manter as aparências. À mulher de César basta parecer
honesta.
Que a simplista exposição aqui apresentada
não seja entendida como escusa aos atos dos assim chamados mensaleiros, mas
antes como alerta para a sociedade a respeito das múltiplas e corruptas formas,
já banalizadas, de compra de voto que frequentam o Congresso.
ROGÉRIO CEZAR DE
CERQUEIRA LEITE, 81, físico, é
professor emérito da Unicamp, pesquisador emérito do CNPq e membro do Conselho
Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da Folha
Publicado na Folha de S.Paulo, em 18/10/2012.
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