Marina Silva
Há um pensamento arrogante, derivado de um
positivismo rudimentar, que prega a superioridade dos fatos objetivos sobre as
opiniões, consideradas meras suposições subjetivas. Aí esconde-se uma
esperteza: os fatos são cuidadosamente selecionados para comprovar uma opinião
já formada com base em interesses, estes, sim, muito objetivos.
Os que contrariam tais interesses e contestam
a escolha dos fatos são levianamente desqualificados como ideológicos e
radicais. No debate sobre o ex-Código Florestal, cabe perguntar aos idólatras
dos "fatos":
1) É fato que o agronegócio (cuja importância
na macroeconomia e no comércio internacional ninguém nega) não é que coloca
"comida na mesa" do povo brasileiro, que 60% da cesta básica é
garantida pela agricultura familiar, também responsável por 7 em cada 10
empregos no campo?
2) É fato que existem mais de 140 milhões de
hectares de áreas degradadas, improdutivas ou com baixíssima produtividade e
que é possível dobrar a produção agrícola e o rebanho bovino sem desmatar novas
áreas, bastando agregar tecnologia simples e disponível?
3) As propriedades com menos de quatro
módulos fiscais (na Amazônia são 400 hectares) nem sempre coincidem com a
agricultura familiar, que muitas são agregadas à pecuária ou às empresas
agrícolas?
Se assim for, as reformas no código perdem a
justificativa de defender os pequenos agricultores e, de fato, atendem ao
interesse de grandes empresas. Mesmo porque, entre as mudanças feitas, há fatos
que vêm sendo omitidos.
O art. 67 dispensa imóveis menores que quatro
módulos fiscais de recuperar reserva legal desmatada até julho de 2008. Isso é
anistia. O Ipea calcula que 3,9 milhões de hectares deixarão de ser
recuperados.
O art. 63 abre várias exceções que anistiam
desmatamento ilegal em topos de morro e encostas, e o art. 61-A oferece as
mesmas bondades, dependendo do tamanho do imóvel, a quem desmatou ilegalmente
margens de rios, nascentes, olhos d'água, lagos e veredas.
Quem não foi anistiado, ainda pode usar 50%
de plantas exóticas (comerciais) para recuperar áreas degradadas (artigos 61-A
13 e 66, parágrafo 3º).
Nos mangues e apicuns, as áreas degradadas
não serão recuperadas e novas áreas podem ser ocupadas com criação de camarões
e loteamentos urbanos (art. 11-A). A mata ciliar deixa de ser contada a partir
do ponto de cheia do rio e muda a definição de "topo de morro",
reduzindo, em alguns casos, até 90% da área protegida.
A liberdade de pensamento é uma das maiores
conquistas de nossa preciosa democracia. O código deixa de ser florestal,
torna-se um sistema de concessões para a ocupação predatória de quem quer
aumentar terras em vez de agregar tecnologia. Vai na contramão do século 21 e é
um retrocesso.
Publicado na Folha de S.Paulo,
em 26/10/2012.
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