Relator do mensalão revela voto em Lula e Dilma, diz que a imprensa
trata escândalos com dois pesos e duas medidas e que o racismo está estampado
na TV
Lula Marques/Folhapress
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O ministro Joaquim Barbosa em seu gabinete no STF
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MÔNICA BERGAMO
COLUNISTA DA FOLHA de s.paulo
COLUNISTA DA FOLHA de s.paulo
O "dia mais chocante" da vida de Joaquim Benedito Barbosa
Gomes, 57, segundo ele mesmo, foi 7 de maio de 2003, quando entrou no Palácio
do Planalto para ser indicado ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) pelo
então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A ocasião era especial: ele seria o primeiro negro a ser nomeado para o
tribunal.
"Eu já cheguei na presença de José Dirceu [então ministro da Casa
Civil], José Genoino [então presidente do PT], aquela turma toda, para o
anúncio oficial. Sempre tive vida reservada. Vi aquele mar de câmeras,
flashes...", relembrava ele em seu gabinete na terça-feira, 2.
No dia seguinte à entrevista com a Folha, e nove anos depois da data
memorável de sua nomeação, Joaquim Barbosa condenou Dirceu e Genoino por
corrupção.
Para conversar com o jornal, impôs uma condição: não falar sobre o
processo, ainda em andamento no STF.
O TELEFONE TOCA
Barbosa diz que foi Frei Betto, que o conhecia por terem participado do
conselho de ONGs, que fez seu currículo "andar" no governo.
"Eu passava temporada na Universidade da Califórnia, Los Angeles.
Encontrei Frei Betto casualmente nas férias, no Brasil. Trocamos cartões. Um
belo dia, recebo e-mail me convidando para uma conversa com [o então ministro
da Justiça] Márcio Thomaz Bastos em Brasília." Guarda a mensagem até hoje.
"Vi o Lula pela primeira vez no dia do anúncio da minha posse. Não
falei antes, nem por telefone. Nunca, nunca."
Por pouco, não faltou à própria cerimônia. "Veja como esse pessoal
é atrapalhado: eles perderam o meu telefone [gargalhadas]."
Dias antes, tinha sido entrevistado por Thomaz Bastos. "E
desapareci, na moita." Isso para evitar bombardeio de candidatos à mesma
vaga.
"Na hora de me chamar para ir ao Planalto, não tinham o meu
contato." Uma amiga do governo conseguiu encontrá-lo. "Corre que os
caras vão fazer o seu anúncio hoje!"
Depois, continuou distante de Lula. Não foi procurado nem mesmo nos
momentos cruciais do mensalão. "Nunca, nem pelo Lula nem pela [presidente]
Dilma [Rousseff]. Isso é importante. Porque a tradição no Brasil é a pressão.
Mas eu também não dou espaço, né?"
O ministro votou em Leonel Brizola (PDT) para presidente no primeiro
turno da eleição de 1989. E depois em Lula, contra Collor. Votou em Lula de
novo em 2002.
"Vou te confidenciar uma coisa, que o Lula talvez não saiba: devo
ter sido um dos primeiros brasileiros a falar no exterior, em Los Angeles, do
que viria a ser o governo dele. Havia pânico. Num seminário, desmistifiquei:
'Lula é um democrata, de um partido estabelecido. As credenciais democráticas
dele são perfeitas'."
O escândalo do mensalão não influenciou seu voto: em 2006, já como
relator do processo, escolheu novamente o candidato Lula, que concorria à
reeleição.
"Eu não me arrependo dos votos, não. As mudanças e avanços no
Brasil nos últimos dez anos são inegáveis. Em 2010, votei na Dilma."
DE LADO
No plenário do STF, a situação muda. Barbosa diz que "um magistrado
tem deveres a cumprir" e que a sociedade espera do juiz
"imparcialidade e equidistância em relação a grupos e organizações".
Sua trajetória ajuda. "Nunca fiz política. Estudei direito na
Universidade de Brasília de 75 a 82, na época do regime militar. Havia
movimentos significativos. Mas estive à parte. Sempre entendi que filiação
partidária ou a grupos, movimentos, só serve para tirar a sua liberdade de
dizer o que pensa."
VENCEDOR E VENCIDO
Barbosa gosta de dizer que não tem "agenda". Em 2007, relatou
processo contra Paulo Maluf (PP-SP). Delfim Netto não era encontrado para depor
como testemunha. Barbosa propôs que o processo continuasse. Foi voto vencido no
STF. O caso prescreveu.
No mesmo ano, relatou processo em que o deputado Ronaldo Cunha Lima
(PSDB-PB) era acusado de tentativa de homicídio. O réu renunciou ao mandato e
perdeu o foro privilegiado. Barbosa defendeu que fosse julgado mesmo assim. Foi
voto vencido no STF.
Em 2009, como relator do mensalão do PSDB, propôs que a corte acolhesse
denúncia contra o ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo. Quase foi voto
vencido no STF -ganhou por 5 a 3, com três ministros ausentes.
Dois anos antes, relator do mensalão do PT, propôs que a corte acolhesse
denúncia contra José Dirceu e outros 37 réus. Ganhou por 9 a 1.
NOVELA RACISTA
Barbosa já disse que a imprensa "nunca deu bola para o mensalão
mineiro", ao contrário do que faz com o do PT. "São dois pesos e duas
medidas", afirma.
A exposição na mídia não o impede de fazer críticas até mais ácidas.
"A imprensa brasileira é toda ela branca, conservadora. O
empresariado, idem", diz. "Todas as engrenagens de comando no Brasil
estão nas mãos de pessoas brancas e conservadoras."
O racismo se manifesta em "piadas, agressões mesmo". "O
Brasil ainda não é politicamente correto. Uma pessoa com o mínimo de
sensibilidade liga a TV e vê o racismo estampado aí nas novelas."
Já discutiu com vários colegas do STF. Mas diz que polêmicas "são
muito menos reportadas, e meio que abafadas, quando se trata de brigas entre
ministros brancos".
"O racismo parte da premissa de que alguém é superior. O negro é
sempre inferior. E dessa pessoa não se admite sequer que ela abra a boca. 'Ele
é maluco, é um briguento'. No meu caso, como não sou de abaixar a crista em
hipótese alguma..."
Barbosa, que já escreveu um livro sobre ações afirmativas nos EUA, diz
que o racismo apareceu em sua "infância, adolescência, na maturidade e
aparece agora".
Há 30 anos, já formado em direito e trabalhando no Itamaraty como
oficial de chancelaria -chegou a passar temporada na embaixada da Finlândia-,
prestou concurso para diplomata. Passou. Foi barrado na entrevista.
DE IGUAL PARA IGUAL
É o primeiro filho dos oito que o pai, Joaquim, e a mãe, Benedita,
tiveram (por isso se chama Joaquim Benedito).
Em Paracatu, no interior de Minas, "Joca" teve uma infância
"de pobre do interior, com área verde para brincar, muito rio para nadar,
muita diversão". Era tímido e fechado.
A mãe era dona de casa. O pai era pedreiro. "Mas ele era aquele
cara que não se submetia. Tinha temperamento duro, falava de igual para igual
com os patrões. Tanto é que veio trabalhar em Brasília, na construção, mas se
desentendeu com o chefe e foi embora", lembra Joaquim.
O pai vendeu a casa em que morava com a família e comprou um caminhão.
Chegou a ter 15 empregados no boom econômico dos anos 70. "E levava a
garotada para trabalhar." Entre eles, o próprio Joaquim, então com 10
anos.
RUMO A BRASILIA
No começo da década, Barbosa se mudou para a casa de uma tia na cidade
do Gama, no entorno de Brasília.
Cursou direito, trabalhou na composição gráfica de jornais, no
Itamaraty. Ingressou por concurso no Ministério Público Federal.
Tirou licenças para fazer doutorado na Universidade de Paris-II. E
passou períodos em universidades dos EUA como acadêmico visitante. Fala
francês, inglês e alemão.
Hoje, Barbosa fica a maior parte do tempo em Brasília, onde moram a mãe,
os sete irmãos e os sobrinhos. O pai já morreu. Benedita é evangélica e
"superpopular". Em seu aniversário de 76 anos, juntou mais de 500
pessoas.
O ministro tem também um apartamento no Leblon, no Rio, cidade onde vive
seu único filho, Felipe, 26. Se separou há pouco de uma companheira depois de
12 anos de relacionamento.
PÚBLICO
A Folha pergunta se Barbosa não tem o "cacoete da condenação"
por ter feito carreira no Ministério Público, a quem cabe formular a acusação
contra réus.
"De jeito nenhum. O que eu tenho do MP é esse espírito de
preocupação com a coisa pública. Mesmo porque não morro de amores por direito
penal. Sou especialista em direito público."
DEVER
Nega que tenha certa aversão por advogados [ver página ao lado]. E nega
também que tenha prazer em condenar, sem qualquer tipo de piedade em relação à
pessoa que perderá a liberdade.
"É uma decisão muito dura. Mas é também um dever."
"O problema é que no Brasil não se condena", diz. "Estou
no tribunal há sete anos, e esta é a segunda vez que temos que condenar. Então
esse ato, para mim e para boa parte dos ministros do STF, ainda é muito
recente."
Diante de centenas de grandes escândalos de corrupção no Brasil, e de só
o mensalão do PT ter chegado ao final, é possível desconfiar que a máquina de
investigação e punição só funcionou para este caso e agora será novamente
desligada?
"Não acredito", diz Barbosa. "Haverá uma vigilância e uma
cobrança maior do Supremo. Este julgamento tem potencial para proporcionar
mudanças de cultura, política, jurídica. alguma mudança certamente virá."
MEQUETREFE
O caso Collor, por exemplo, em que centenas de empresas foram acusadas
de pagar propina para o tesoureiro do ex-presidente, chegou
"desidratado" ao STF, diz o ministro. "Tinha um ex-presidente
fora do jogo completamente. E, além dele, o quê? O PC, que era um
mequetrefe."
O país estava "mais próximo do período da ditadura" e o
Ministério Público tinha recém-conquistado autonomia, com a Constituição de
1988. Até 2001, parlamentares só eram processados no STF quando a Câmara
autorizava. "Tudo é paulatino. Mas vivemos hoje num país diferente."
PONTO FINAL
Desde o começo do julgamento do mensalão, o ministro usa um escapulário
pendurado no pescoço. "Presente de uma amiga", afirma.
Depois de flagrado cochilando nas primeiras sessões, passou a tomar
guaraná em pó no começo da tarde.
Diz que não gosta de ser tratado como "herói" do julgamento.
"Isso aí é consequência da falta de referências positivas no país. Daí a
necessidade de se encontrar um herói. Mesmo que seja um anti-herói, como
eu."
BARBOSA SERÁ ELEITO PARA PRESIDIR STF NA QUARTA
O
ministro Joaquim Barbosa deve ser eleito presidente do STF e do CNJ (Conselho
Nacional de Justiça) na próxima quarta-feira, 10.
A posse
está prevista para novembro, quando o atual presidente, Carlos Ayres Britto, se
aposenta.
Ele diz
que pretende, no cargo, lançar discussões sobre práticas do Judiciário.
"No Brasil, coisas absurdas são admitidas como as mais naturais. Por
exemplo, filhos e mulheres de juízes advogarem nas cortes em que seus parentes
atuam. Se você fizer uma interpretação rigorosa do devido processo legal, da
igualdade de armas que o juiz deve conceder às partes, pode chegar à conclusão
de que essa prática é ilegal."
Ele acha
que a situação é tão imprópria quanto magistrados receberem advogados sem que a
parte contrária do litígio esteja presente.
"Eu
não suporto essa ideia porque cria uma desigualdade muito grande. Em qualquer
país civilizado do mundo, é considerada uma falta gravíssima do juiz. Para
receber uma das partes, ele tem que receber a outra."
Barbosa nega que não goste de advogados.
"Isso é um pouco tabu e um pouco mentira. Eu tenho aqui no gabinete a
lista de todos os advogados que recebi nos últimos sete anos. E continuo
recebendo. O que eu não gosto é dessa promiscuidade."
Autor de
um livro sobre o STF que escreveu em francês, quando fazia doutorado em Paris,
ele diz que "o tribunal começa a acontecer no mundo. E eu não sei se isso
tem sido percebido internamente".
Para o magistrado, "é preciso ter em mente que o tribunal não é como outro qualquer. Tem atribuições jurídicas, mas com repercussões políticas. É muito mais um órgão de equilíbrio entre poderes do que um órgão de prestação jurisdicional comum".
Para o magistrado, "é preciso ter em mente que o tribunal não é como outro qualquer. Tem atribuições jurídicas, mas com repercussões políticas. É muito mais um órgão de equilíbrio entre poderes do que um órgão de prestação jurisdicional comum".
UMBIGO
Ele acha
"um erro" a aplicação de "cálculos estatísticos" para
avaliar a corte. "Uma decisão por ano do Supremo que tenha relevância, que
mexa com as instituições para fortalecê-las, já basta."
E cita
exemplos: "Analisemos o que o STF julgou neste ano. Sem dúvida, o processo
mais importante não foi o do mensalão. E sim o das cotas [para negros em
universidades] e o do reconhecimento da relação homoafetiva. Essas sim são
decisões cruciais para a sociedade, que distinguem uma corte Suprema de um
tribunal comum".
Esse
reconhecimento não ocorre como deveria porque "a comunidade jurídica brasileira
não vê além do seu umbigo. Continua com aquele mesmo comportamento típico do
microcosmo jurídico brasileiro, provinciano, clubístico. Não percebe que pelo
tribunal passam as grandes questões nacionais".
De
personalidade forte, ele já protagonizou discussões com vários colegas. Mas diz
que "uma coisa é você estar lá, no embate de ideias e pontos de vista.
Outra é você ter a responsabilidade pelo todo. O presidente é apenas um
representante do colegiado".
(MÔNICA
BERGAMO)
***
Sobre o entendimento do ministro Joaquim Barbosa
acerca das ações afirmativas, vale a pena ler seu trabalho, “As ações
afirmativas e os processos de promoção da igualdade efetiva”, escrito
juntamente com Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva: http://daleth.cjf.jus.br/revista/SerieCadernos/Vol24/artigo04.pdf
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