Dráuzio Varella
Completou
20 anos a maior tragédia das cadeias brasileiras.
Naquela
sexta-feira de outubro, eu havia reunido um grupo de travestis presos na Casa
de Detenção para falarmos sobre a transmissão da Aids. A epidemia se espalhava
impiedosa entre eles: 72% eram HIV-positivos, número que chegava a 100% entre
aqueles detidos há mais de seis anos.
Perto das
11h, o diretor do presídio apareceu na porta, desejou bom dia a todos e me
convidou para um café em sua sala quando a palestra terminasse. Era o doutor
Ismael Pedrosa --anos mais tarde assassinado numa emboscada em Taubaté--, homem
destemido que andava pela cadeia inteira como se estivesse no quintal de casa.
O café
durou mais de uma hora. O diretor contava histórias de tentativas de fuga,
rebeliões e crimes que dariam para escrever mais de um livro.
Quando
dei por mim, passava de 13h30. Expliquei que já estava atrasado e que não tinha
cabimento fazê-lo perder tanto tempo.
Ele
respondeu que era sexta-feira, dia em que os detentos se ocupavam com a faxina
nas celas para receber a visita dos familiares. "Hoje é o dia mais calmo
da semana, dá até tédio", acrescentou quando nos despedimos.
No fim da
tarde, quando soube que a TV mostrava cenas de uma rebelião no Carandiru, achei
que devia haver algum engano.
Passados
20 anos, a consciência nacional continua atormentada pelos fantasmas dos 111
mortos naquele dia. Hoje nos custa crer que vivíamos numa sociedade
institucionalmente tão violenta quanto aquela. O assim chamado massacre do
Carandiru foi uma carnificina absolutamente gratuita, que enfraqueceu o poder
do Estado e abriu espaço para que o crime se organizasse em facções decididas a
impor suas leis nas prisões e fora delas.
A
confusão começou num jogo de futebol, com uma briga entre dois homens
pertencentes a quadrilhas inimigas que há tempos se estranhavam nas galerias do
Nove, pavilhão para onde eram encaminhados os presos mais jovens, geralmente
novatos no universo prisional.
Do campo,
o confronto subiu para os andares do pavilhão, onde os homens tomaram a
providência característica dessas horas: desentocaram as facas, medida
necessária para defender-se dos desafetos que porventura se aproveitem da
balbúrdia para acertar contas antigas.
O
enfrentamento das duas quadrilhas provocou algumas mortes e se transformou num
quebra-quebra generalizado, com fogo nos colchões e as cenas características
das rebeliões em presídios do mundo inteiro.
A
inexperiência dos que se achavam detidos no Nove, entretanto, foi causadora de
um erro primário: não fizeram reféns; deixaram os funcionários sair do
pavilhão.
Várias
unidades da Polícia Militar entraram na cadeia.
A partir
daquele momento, o diretor foi substituído por seus superiores hierárquicos,
que centralizaram as decisões.
Qualquer
carcereiro mais velho teria tomado as medidas rotineiras nessas crises:
cortaria a água, a comida e a luz do pavilhão. Sem reféns, não havia pressa. Na
manhã seguinte, os presos estariam prontos para negociar, como em outras
oportunidades.
O próprio
doutor Pedrosa insistiu que resolveria o problema se lhe dessem a oportunidade
de conversar com os amotinados. Diante da negativa, dirigiu-se ao portão do
Nove para tentar fazê-lo mesmo à revelia. Não teve tempo: "Mal cheguei,
escancararam o portão. Fiquei prensado contra a parede, enquanto os soldados
invadiam".
Agora,
leio nos jornais que os policiais militares irão a julgamento. Nenhuma palavra
sobre os verdadeiros responsáveis pelas mortes: as autoridades que ordenaram a
invasão. É menosprezo à inteligência alheia pretender impor a versão de que um
coronel da PM já falecido tomaria por conta própria uma medida com tantas
implicações legais, sem consultar seus superiores hierárquicos.
O que
pretendiam eles? Que um pelotão de militares com uma metralhadora na mão e um
cachorro na coleira entrasse à noite num pavilhão em chamas para dialogar com
os prisioneiros? Quem deu a famigerada ordem para que o comandante da tropa
"dominasse a rebelião a qualquer preço"?
É
provável que alguns soldados acabem condenados, a corda arrebentará do lado
deles. Mas os verdadeiros culpados pela tragédia permanecerão no anonimato,
impunes para sempre?
Publicado na Folha de S.Paulo, em 06/10/2012.
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